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Journal of Russian and East European Psychology, vol. 45, no. 4,


July–August 2007, pp. 9–49.

E.V. ILYENKOV

Nossas escolas devem ensinar


a pensar!1

Parece que ninguém duvida disso. Mas todos seriam capazes de dar uma resposta direta à
pergunta feita diretamente: o que isso significa? O que significa "pensar" e o que é "pensamento"?
Uma pergunta longe de ser simples e, em certo sentido, complicada. Vale a pena cavar um pouco
mais profundamente para ver como isso vem à luz.
Muitas vezes - muito mais frequentemente, talvez, do que parece - misturamos duas coisas
muito diferentes aqui, especialmente na prática: o desenvolvimento da capacidade de pensar e o
processo de domínio formal do conhecimento especificado nos currículos. De nenhuma maneira
esses dois processos coincidem automaticamente, embora um sem o outro também seja impossível.
"Muitos conhecimentos não treinam a mente", embora "os amantes da sabedoria devam saber muito"
- essas palavras, faladas há mais de 2.000 anos por Heráclito de Éfeso, não estão desatualizadas.
Verdadeiramente, "muito conhecimento" em si não treina a mente - ou a capacidade (ou
habilidade) de pensar. O que então treina a mente? E ela pode ser treinada (ou treinar-se) de qualquer
modo?
Sobre isso, existe uma opinião sem fundamento, segundo a qual a mente (a capacidade de
pensar, "talento" ou simplesmente "habilidade") é "de Deus" ou, em terminologia mais esclarecida,
"da natureza", dos pais de uma pessoa. É, de fato, possível inculcar a "mente" em uma pessoa sob a
forma de um sistema de "regras" ou esquemas operacionais precisa e rigorosamente formulados - em
suma, sob a forma de uma "lógica"? Temos de concluir que isso não é possível. Esta conclusão é o
fruto da experiência que encontra expressão gráfica na parábola internacional do tolo que,
encontrando uma procissão fúnebre, quer "unir-se a você, não roubar de você."2 É sabido que as

1
English translation © 2007 M.E. Sharpe, Inc., from the Russian text “Shkola dolzhna
uchit’ myslit’!” in E.V. Ilyenkov, Shkola dolzhna uchit’ myslit’ (Moscow and
Voronezh: Moskovskii psikhologo-sotsial’nyi institute and Izdatel’stvo IPO MODEK,
2002), pp. 6–55. Published with the permission of Elena Evaldovna Illiesh.
Translated by Stephen D. Shenfield.

2
Taskat’ vam, ne peretaskat’ é um cumprimento costumeiro em casamentos. Tendo aprendido a expressão nesse
contexto, o tolo não entende que isso não é apropriado para um funeral e é espancado. —Trad.
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melhores regras e fórmulas, quando marteladas em uma cabeça obtusa, não fazem essa cabeça mais
inteligente, mas são transformadas em ridículos absurdos. Isso, infelizmente, é muito conhecido.
Quase ninguém contestará o fato de que o ensino da lógica formal, introduzido em nossas escolas há
algum tempo "nas instruções pessoais do camarada Stálin", não aumentou o número de pessoas
"inteligentes" nem reduziu o número de "obtusos" entre as pessoas do secundário.
Não é uma única experiência empiricamente indiscutível que apoia a opinião acima
mencionada. As "regras" mais precisas e rigorosas que constituem a "lógica" não ensinam e não
podem ensinar o chamado "poder de julgamento" - isto é, a capacidade de julgar se um determinado
caso ou determinado fato submete-se a determinadas regras. Como escreveu Emmanuel Kant em sua
Crítica da Razão Pura, a escola só pode oferecer, e como se fosse enxertada, uma compreensão
limitada de uma abundância de regras emprestadas da percepção dos outros, mas o poder de
empregá-las corretamente deve pertencer ao próprio aluno; e na ausência de tal dom natural,
nenhuma regra que lhe possa ser prescrita para esse fim pode assegurar contra o uso indevido... A
deficiência no julgamento é apenas o que costumeiramente se chama idiotice, e para tal falha não há
remédio."3 Isto parece ser verdade. E aqui está a opinião de outro pensador - citado com grande
simpatia por Lenin como "de espírito fino" – referindo-se ao "preconceito" de que "a lógica ensina a
pensar": "Isto é como dizer que somente estudando anatomia e fisiologia aprendemos pela primeira
vez como digerir alimentos e mover-nos" (Hegel, Soch., Vol. 5, p. 2 [retraduzido do Russo];
compare também Lenin, Soch., Vol. 38, p. 75) .Trata-se, na verdade, de um ingênuo preconceito. É
por isso que a introdução da "lógica" no currículo da escola secundária não poderia justificar as
esperanças que algumas pessoas colocaram sobre ela.
Evidentemente, tudo permanece como estava. Qualquer pessoa, mesmo "uma pessoa obtusa
ou de mente estreita", pode "ser treinada por meio do estudo, até mesmo ao ponto de se tornar sábia.
Mas como essas pessoas geralmente ainda não têm julgamento, não é incomum encontrar homens
instruídos que, na aplicação de seu conhecimento científico, traiam essa necessidade original, que
nunca pode ser satisfeita". Assim Kant tristemente resume seu argumento. E com isso também temos
que concordar.
Mas nesse caso, que tal o apelo que forma o título deste artigo? Não provei eu mesmo ainda,
por referência a autoridades altamente respeitadas, que este slogan não pode ser realizado e que a
inteligência é um "dom natural" e não uma habilidade adquirida?
Felizmente, isso não é assim. É verdade que a capacidade (ou habilidade) de pensar não
pode ser "enxertada" no cérebro sob a forma de uma coleção de "regras", fórmulas e - como as

3
A citação do autor é da Crítica de Kant, com ajuste sintático mínimo ao texto Russo, na forma apresentada na tradução
de 1929 de Norman Kemp Smith, disponível em www.hkbu.edu.hk/~ppp/cpr/.—Trad.
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pessoas gostam de dizer hoje em dia - "algoritmos". Um ser humano é ainda um ser humano, tanto
quanto alguns gostariam de transformá-lo em uma "máquina". Na forma de "algoritmos" você pode
"inserir" no crânio apenas uma mente mecânica, isto é, uma mente muito obtusa - a mente de um
caixa, mas não a mente de um matemático.
No entanto, os argumentos acima referidos de forma alguma não esgotam a posição mesmo
de Kant, e, muito menos a de um materialista. Primeiro, não é verdade que a inteligência é um dom
"natural". Para sua mente, ou sua capacidade de pensar, o homem deve tão pouco à Mãe Natureza
como quanto a Deus, o Pai. Para a natureza, ele só deve seu cérebro - o órgão do pensamento.
Quanto à sua capacidade de pensar com o auxílio desse cérebro, ela não só se "desenvolve" (no
sentido de "melhora"), mas também emerge primeiro só com a ligação dele à cultura sócio-humana,
ao conhecimento. O mesmo vale para a sua capacidade de andar ereto, que o homem também não
obteve "da natureza". Este é o mesmo tipo de "habilidade" como todas as outras capacidades
humanas. É verdade, embora qualquer mãe facilmente ensine seu filho a usar seus membros traseiros
para andar ereto, está longe de todo pedagogo profissional que é capaz de ensiná-lo a usar seu
cérebro para pensar. Mas uma mãe atenta e razoavelmente inteligente faz isso muito melhor, via de
regra, do que qualquer outro tipo do pedagogo. Ela nunca desistirá do esforço difícil associado ao
treino da "mente" de seu filho pequeno sob o pretexto - tão conveniente para o "educador"
mentalmente preguiçoso – de que a criança em questão é "naturalmente" ou "congenitamente"
incapaz. A criança pequena é ensinada a "pensar" por toda a vida, por sua família, por jogos, pelo
pátio e por outras crianças pequenas como ela, sejam elas mais velhas ou até mais novas. Cuidar de
seu irmão pequeno também requer tanto quanto desenvolve "inteligência".
A ideia da origem "congênita" ou "natural" da capacidade (ou "incapacidade") de pensar é
apenas um véu que esconde do pedagogo mentalmente preguiçoso aquelas condições e
circunstâncias reais (muito complexas e individualmente variáveis) que de fato estimulam e formam
a "mente", a capacidade de "pensar de forma independente". Essa ideia geralmente serve apenas para
justificar nossa falta de compreensão dessas condições e relutância preguiçosa para examiná-las e
assumir o árduo trabalho de organizá-las. Ao transferir a culpa para a "natureza", preservamos uma
consciência limpa e mantemos a aparência científica.
Teoricamente, tal posição é incompetente; moralmente, é vil, porque é extremamente
antidemocrática. Também não está de acordo com a compreensão marxista-leninista do problema do
"pensar", ou com a atitude comunista para com o homem. Em termos de dotação natural, somos
todos iguais - no sentido de que 99% das pessoas entram na vida neste mundo com um cérebro
biologicamente normal capaz em princípio - com um pouco menos ou um pouco mais de dificuldade
- de dominar todas as "capacidades" desenvolvidas pelos seus predecessores. E convém que
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despejemos na natureza os pecados da sociedade, que até agora era menos justa e democrática do que
a natureza na distribuição de seus "dons". É necessário abrir o acesso de cada pessoa às condições do
desenvolvimento humano, incluindo as condições para o desenvolvimento da capacidade de "pensar
de forma independente" como um dos principais componentes da cultura humana. E a escola é
obrigada a fazer isso. A inteligência não é um dom "natural". É um presente da sociedade para uma
pessoa. É, aliás, um presente que mais tarde ele pagará centuplicado - do ponto de vista de uma
sociedade desenvolvida, o mais "rentável" dos "investimentos de capital". Uma sociedade
inteligentemente organizada - isto é, comunista - pode ser constituída apenas por pessoas
inteligentes. E nunca por um minuto devemos esquecer que é precisamente o povo do futuro
comunista que está sentado atrás das carteiras escolares de hoje.
A mente, a capacidade de pensar de forma independente, toma forma e se desenvolve
apenas no curso da assimilação individual da cultura intelectual da época. Falando apropriadamente,
a mente não é outra coisa senão essa cultura intelectual, transformada em posse e legado pessoal, no
princípio da atividade de uma pessoa. A "mente" é composta de nada mais que isso. Para usar a
linguagem de elevada estatura da filosofia, é a riqueza espiritual individualizada da sociedade.
E isso, para dizê-lo de forma simples, significa que a mente (inteligência, talento,
capacidade, etc.) é o estado natural do homem, a norma e não a exceção, o resultado normal do
desenvolvimento de um cérebro biologicamente normal sob condições - humanas - normais.
Por outro lado, a pessoa "obtusa", a pessoa com uma deficiência incorrigível de "poderes de
julgamento", é acima de tudo uma pessoa mutilada, uma pessoa com um cérebro aleijado. E essa
"deformação" do órgão do pensamento é sempre a consequência de condições "anormais" e
"antinaturais" (do ponto de vista dos verdadeiros critérios da cultura humana), o resultado de
influências "pedagógicas" cruamente coercivas sobre este delicado órgão (especialmente em tenra
idade).
O órgão do pensamento é muito mais facilmente aleijável do que qualquer outro órgão do
corpo humano. E é muito difícil - depois de uma certa idade, totalmente impossível – consertá-lo.
Para aleijar é simples - por meio de um sistema de exercícios "não-naturais". E um dos métodos mais
confiáveis de tal incapacitação do cérebro e do intelecto é a memorização formal do conhecimento. É
precisamente por esse método que se produzem pessoas "obtusas" - isto é, pessoas com poder
atrofiado de julgamento. Pessoas que não conseguem relacionar competentemente o conhecimento
geral que dominaram com a realidade, e que, portanto, fazem uma confusão das coisas.
"Atulhar", apoiado por interminável "repetição" (que deveria ser chamada não a mãe, mas
sim a madrasta da aprendizagem), paralisa o cérebro e o intelecto. Paradoxalmente, quanto mais
verdadeiras e “inteligentes” as verdades inculcadas pelo atulhamento, mais incapacitante é o efeito.
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O ponto é que uma ideia tola e sem sentido da própria cabeça da criança logo será dissipada pela
experiência: quando tal ideia choca-se com fatos, a criança será forçada a duvidar, a comparar, a
perguntar por quê, e, em geral, a "queimar seus miolos." Uma verdade "absoluta", pelo contrário,
nunca lhe dará ocasião para fazer essas coisas. "Quebrar a cabeça" é contraindicativo de absolutos:
estes são sem movimentos e almejam somente mais e mais “confirmações” de sua infalibilidade. É
por essa razão que uma “verdade absoluta” memorizada sem compreensão torna-se para o cérebro
algo como um trilho para um trem ou um tapa-olhos para um cavalo. O cérebro cresce acostumado a
mover-se apenas ao longo de trilhos batidos (por outros cérebros). Qualquer coisa que esteja à direita
ou à esquerda desses trilhos não é mais de interesse para ele. Simplesmente já não presta atenção a
outras coisas, considerando-as como "não essenciais" e "desinteressantes". É o que o proeminente
escritor alemão B. Brecht tinha em mente quando disse: "Uma pessoa a quem é evidente por si
mesmo que duas vezes dois faz quatro nunca será um grande matemático" [retraduzido do russo].
Todo mundo sabe que experiência agonizante é esta operação toscamente coercitiva sobre o
cérebro - "atulhar" e "enxertar" - para qualquer criança ativa. Apenas lembranças muito
desagradáveis da infância poderiam inspirar os adultos a inventar esses termos poeticamente
expressivos. Não é por acaso ou por capricho que a criança experimenta o "enxerto" como violência.
A questão é que a natureza arranjou nosso cérebro tão inteligentemente e tão bem que ele não tem
necessidade de qualquer "repetição" ou “memorização” especial para aprender qualquer coisa que
considere diretamente “compreensível", "interessante "e" útil". Portanto, é necessário enxertar apenas
o que é incompreensível, desinteressante e inútil - o que não tem ressonância ou contrapartida na
experiência de vida direta do indivíduo e não "flui" dela.
Como numerosos experimentos provaram, a "memória" do homem armazena tudo o que foi
motivo de preocupação para ele ao longo de sua vida. No entanto, algum conhecimento é
armazenado no cérebro, por assim dizer, em um estado ativo, “de fácil acesso”, e em caso de
necessidade pode sempre ser chamado para a luz da consciência por um esforço da vontade. Esse é o
conhecimento que está intimamente ligado à atividade de vida do homem orientada ao sentido e aos
objetos. Esta memória "ativa" é remanescente de um espaço de trabalho bem organizado no qual o
artesão se apodera do objeto, instrumento ou material de que necessita sem olhar e sem "lembrar"
especialmente qual músculo ele tem que mover para esse fim. É completamente outra a questão com
o conhecimento que o cérebro absorveu em completo isolamento de sua atividade principal e foi
colocado, por assim dizer, "em reserva". Os psicólogos franceses, por exemplo, aplicaram técnicas
especiais ao cérebro de uma idosa semiletrada para forçá-la a declamar durante horas e horas os
antigos versos gregos de que ela não compreendia nem o conteúdo nem o significado e que ela "se
lembrava" apenas porque uma vez, muitos anos antes, algum aplicado estudante de ginásio
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memorizara esses versos em voz alta em sua presença. Da mesma forma, um pedreiro "lembrou" e
desenhou com precisão no papel as torções e curvas fantasticamente intrincadas de uma rachadura
em uma parede que ele teve que consertar uma vez. A fim de "recordar" coisas desse tipo, uma
pessoa tem que fazer esforços agonizantes e estes muito raramente têm sucesso. O problema é que o
cérebro submerge em uma enorme massa de informações desnecessárias, inúteis e "não
operacionais" em “armazéns escuros" abaixo do limiar da consciência. Tudo o que uma pessoa tenha
visto ou ouvido pelo menos uma vez é armazenado lá. Em casos especiais – anormais -, todo o lixo
que se acumulou nestes armazéns ao longo de muitos anos rompe a superfície das regiões superiores
do córtex cerebral, para a luz da consciência. Então a pessoa de repente lembra-se de uma massa de
detalhes triviais que aparentemente haviam sido por muito tempo e finalmente "esquecidos". Mas
isso ocorre precisamente quando o cérebro está em estado de passividade, geralmente o de um transe
hipnótico, como nos experimentos dos psicólogos franceses. O ponto é que "esquecer" não é um
defeito. Muito pelo contrário: o "esquecimento" é produzido por mecanismos sábios especiais do
cérebro que protegem o órgão do pensamento (as regiões de função cerebral ativa) de afogar-se em
"informações" desnecessárias. É uma reação de defesa natural do córtex à ameaça de falta de sentido
e de estúpida sobrecarga. Se as fortes fechaduras do esquecimento se rompessem um belo dia, na
escuridão dos depósitos de memória, todo o lixo ali acumulado nas regiões mais altas do córtex viria
à tona e torná-lo-ia incapaz de "pensar" - de selecionar, comparar, especular e "julgar".
O fato de que "esquecer" não é um inconveniente, não é um defeito de nossa mente, mas, ao
contrário, uma vantagem, apontando para um "mecanismo" redundante que o produz de modo
especial e proposital, foi demonstrado graficamente pelo conhecido psicólogo soviético A. N.
Leontiev em uma sessão com o não menos conhecido possuidor de "memória absoluta" Sh-skii. O
sujeito do teste foi capaz de "memorizar" de uma só vez uma lista de 100, 200 ou 1.000 palavras e
reproduzi-la em qualquer momento posterior e em qualquer ordem. Depois de uma demonstração
dessa capacidade surpreendente, foi feita a ele uma pergunta inocente. Poderia ele recordar entre as
palavras impressas em sua memória o nome, com três letras, de uma doença altamente infecciosa?
Houve um problema. Então o experimentador pediu auxílio à audiência. E logo se descobriu que
dezenas de pessoas "normais" lembravam o que o homem com a "memória absoluta" não podia
lembrar. A palavra tif (tifo) aparecia na lista, e dezenas de pessoas com uma memória "relativa" -
muito involuntariamente - registraram essa palavra em sua memória. A memória "normal" “ocultou”
esta pequena palavra, como todas as outras 999 pequenas palavras, num celeiro escuro, "em reserva".
Mas, por esse meio, as regiões superiores do córtex, que são responsáveis pelo "pensamento",
permaneceram "livres" para seu trabalho especial - incluindo o do "lembrar" intencional, traçando
cadeias de conexões lógicas.
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Foi tão difícil para um cérebro com "memória absoluta" funcionar como para um estômago
cheio de pedras.
Esta experiência é muito instrutiva. Uma memória "absoluta" - mecânica - não é vantajosa,
mas, pelo contrário, é prejudicial a um dos mecanismos mais importantes e intrincados do nosso
cérebro e mente. Esse é o mecanismo que "esquece" ativamente tudo que não é de uso direto para o
desempenho das funções mentais superiores, tudo o que não está conectado ao fluxo lógico de nossos
pensamentos. O cérebro tenta "esquecer" o que é inútil, o que não está conectado com o pensamento
ativo, afundá-lo até o fundo do subconsciente, a fim de deixar o consciente "livre" e pronto para as
formas mais elevadas de atividade.
É esse mecanismo "natural" do cérebro, que protege as regiões superiores do córtex da
agressão, das inundações por uma massa caótica de informação incoerente, que "atulha", destrói e
aleija. O cérebro é violentamente forçado a "lembrar-se" de tudo o que ele tenta ativamente
"esquecer", para colocá-lo sob fechadura e chave, de modo a não ficar no caminho do "pensar". O
material cru, não processado e não digerido (pelo pensamento) é "enxertado" no cérebro, quebrando
sua resistência teimosa.
Mecanismos maravilhosamente sutis criados pela natureza são assim estragados e aleijados
por interferência bruta e bárbara. E muitos anos depois, algum sábio educador despeja a culpa na
"natureza".
Com todo o seu poder, o cérebro "natural" da criança resiste a ser atulhado com
conhecimento indigesto. Ele tenta livrar-se dos alimentos que não mastigou, afundá-los nas regiões
mais baixas do córtex, “esquecer-se” - e continuamente é escolarizado pela "repetição", coagido e
quebrado, usando ambos a vara [a punição] e a cenoura [a recompensa]. Eventualmente a escola é
bem sucedida. Mas a que preço! Ao preço da capacidade de pensar.
Como não poderíamos recordar aqui os cirurgiões de O homem que ri? O pedagogo-
comprador-de-crianças impõe um "sorriso" fixo permanente sobre o pensamento e torna-o capaz de
funcionar apenas de acordo com um esquema rigidamente "enxertado"4. E este é o método mais
difundido de produzir pessoas "obtusas".
É bom que o estudante não leve a sabedoria escolástica atulhada nele muito a sério, se ele
apenas "trabalha para cumprir sua pena." Então eles não conseguem aleijá-lo completamente, e a
vida real ao redor da escola o salva. A vida é sempre mais inteligente do que um pedagogo obtuso.

4
Isto se refere ao romance de Victor Hugo, L’homme qui rit (1869). “O homem que ri” tinha um sorriso fixo em seu
rosto porque ele foi raptado na infância por “comprachicos” (um nelogismo espanhol para “compradores de crianças”) -
“cirurgiões” que ganhavam a vida deformando suas vítimas, transformando-as em aberrações e vendendo-as como
pedintes ou para exibições nos carnavais. - Trad.
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Os idiotas desesperançados florescem precisamente a partir dos "atulhados" mais obedientes


e aplicados. Isso confirma que tanto a "obediência" como a "aplicação" são o mesmo tipo de virtudes
dialeticamente ardilosas como todos os outros "absolutos" que em certo ponto e sob certas
condições, se transformam em seus opostos, em defeitos, alguns deles incorrigíveis.
E tem que ser dito que qualquer criança vivaz (e isto é "da natureza") possui um indicador
muito preciso que distingue as influências pedagógicas "naturais" em seu cérebro daquelas violentas
e incapacitantes. Ela ou absorve o "conhecimento" com interesse ávido e vivaz ou exibe
incompreensão obtusa e resistência obstinada à violência. Ou ela facilmente - de uma vez só - "atinge
o ponto", mostrando prazer ao fazê-lo, ou, pelo contrário, agita-se, brinca, e simplesmente não pode
"lembrar-se" de coisas aparentemente simples.
O pedagogo moralmente sensível sempre presta atenção a esses sinais de feedback
"naturais", tão precisos quanto a dor que acompanha o exercício "não natural" dos órgãos da
atividade física. O pedagogo moralmente obtuso e mentalmente preguiçoso insiste, obriga e
eventualmente "segue seu próprio caminho". Os gritos da alma da criança são para ele caprichos
vazios. Ele simplesmente continua treinando a criança; se ele usa a cenoura ou a vara não faz
diferença.
E a partir disso resulta uma simples conclusão que é tão antiga quanto o mundo. É
impossível ensinar uma criança - ou, na verdade, um adulto - qualquer coisa, incluindo a capacidade
(habilidade) de pensar de forma independente, sem adotar uma atitude de atenção mais próxima à sua
individualidade. As antigas filosofia e pedagogia costumavam chamar essa atitude de "amor". Essa
pequena palavra também pode ser usada. Não é tão imprecisa, embora alguns admiradores do
pensamento rigorosamente matemático considerem tal definição "qualitativa" e, portanto, "não-
científica".
Naturalmente, também é necessário adotar uma atitude inteligente em relação às indicações
do "sentimento interior" da criança. Pode ser que ela esteja impaciente não porque esteja entediada,
mas porque comeu ameixas não maduras no dia anterior. Bem, afinal, "individualidade" é uma coisa
caprichosa e matematicamente indefinível.
Mas todas estas coisas são, por assim dizer, preliminares éticas e estéticas. Como então
devemos ensinar a pensar? Aqui, naturalmente, amor e atenção à individualidade não são muita
coisa para prosseguir, embora nós não possamos fazer isso sem eles.
Em linhas gerais, a resposta é a seguinte. Temos de organizar o processo do domínio do
conhecimento, o processo de assimilação da cultura intelectual da mesma forma que o melhor
professor - a vida - o organizou por milhares de anos. Ou seja, de tal forma que, no decorrer desse
processo, a criança deva ser constantemente forçada a treinar não só (e nem mesmo tanto) a
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"memória", mas também a capacidade de resolver, independentemente, tarefas que exigem o


pensamento no sentido próprio e preciso da palavra - os "poderes de julgamento", a capacidade de
julgar se um determinado caso encaixa-se previamente ou não nas "regras" dominadas e, se não,
então o quê?
Resolver tarefas não é de modo algum um privilégio da matemática. Toda a busca humana
de conhecimento não é senão um processo interminável de propor e resolver novas tarefas -
perguntas, problemas, dificuldades.
E é evidente que uma pessoa "entende" fórmulas e proposições científicas somente se vê
nelas não simplesmente material que ele tem que atulhar, mas sobretudo, respostas arduamente
obtidas a perguntas bem definidas – a questões que emergem naturalmente do meio da vida e
urgentemente exigem respostas.
É igualmente claro que uma pessoa que encontrou numa fórmula teórica uma resposta clara
a uma questão, problema ou dificuldade que vinha perturbando-a (em que ela esteve interessada) não
esquecerá essa fórmula teórica. Ela não terá que "atulhá-la". Ela vai lembrar-se dela fácil e
naturalmente. E se ela "esquecer", isso não é uma calamidade. Ela sempre a derivará ela mesma
quando de novo encontrar uma situação-tarefa com o mesmo conjunto de condições. E esse é o
significado da "inteligência".
Portanto, é necessário "ensinar a pensar", em primeiro lugar, desenvolvendo a capacidade de
propor (fazer) questões corretamente. A ciência em si começou e começa toda vez com isto -
propondo uma questão à natureza, formulando um problema - isto é, uma tarefa que é insolúvel com
a ajuda de métodos de ação, seguindo trilhas já conhecidas - batidas e pisoteadas. Cada recém-
chegado ao reino da ciência, criança ou adulto, deve começar sua jornada com isto, com a
formulação afiada de uma dificuldade que é insuperável com o auxílio de meios pré-científicos, com
a expressão precisa e acurada de uma situação problema.
O que dizer de uma matemática que forçou seus alunos a memorizar as respostas dos
exercícios impressos no final do livro, não mostrando-lhes nem os exercícios nem métodos para
resolvê-los?
No entanto, muitas vezes ensinamos às crianças geografia, botânica, química, física e
história de uma forma tão absurda. Dizemos-lhes as respostas encontradas pela humanidade, muitas
vezes sem sequer tentar explicar exatamente a quais perguntas essas respostas foram dadas,
encontradas ou adivinhadas.
Os livros de texto e os professores que os seguem muitas vezes, infelizmente, começam
imediatamente com "definições" quase-científicas. Mas as pessoas reais que criaram a ciência nunca
começaram com isso. Terminaram com definições. Por alguma razão, no entanto, a criança é
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"conduzida" para a ciência do lado oposto. E então as pessoas ficam surpresas de que ela seja
incapaz de "dominar" proposições teóricas gerais, e que tendo-as "dominado" (no sentido de
atulhado) é incapaz de relacioná-las com a realidade, com a "vida". Desta forma, o pseudo-cientista
cresce formal - a pessoa que às vezes conhece toda a literatura em seu campo de especialização, mas
não a entende.
Karl Marx deu uma boa descrição desse fenômeno há cem anos, com referência ao vulgar
economista político burguês W. Roscher:
Eu reservarei este companheiro para uma nota. Tais estudantes professorais não têm
lugar no texto. Roscher tem, sem dúvida, um conhecimento considerável - e muitas
vezes inútil - da literatura, embora mesmo aqui parece que vejo o aluno de
Göttingen vasculhando ansiosamente tesouros literários e familiarizado apenas com
o que poderia ser chamado de literatura oficial e respeitável. Mas isso não é tudo.
Pois o que se aproveita de um sujeito que, embora conheça toda a literatura
matemática, não entende nada de matemática?
“Se apenas esse estudante professoral, por natureza, totalmente incapaz de fazer
mais do que aprender sua lição e ensiná-la, de chegar ao estágio de ensinar a si
mesmo, se ao menos o tal Wagner fosse, pelo menos, honesto e consciencioso, ele
poderia ser de alguma utilidade para seus alunos. Se ele ao menos não se entregasse
a falsas evasões e dissesse francamente: ‘Aqui temos uma contradição. Alguns
dizem isso, outros aquilo. A natureza da coisa impede que eu tenha uma opinião.
Agora, veja se vocês podem resolver sozinhos!’ Desse modo, seus alunos
receberiam, por um lado, algo para prosseguir e, por outro, seriam induzidos a
trabalhar por conta própria. Mas, reconhecidamente, o desafio que lancei aqui é
incompatível com a natureza do estudante professoral. Uma incapacidade de
compreender as perguntas em si é essencialmente parte integrante dele, e é por isso
que seu ecletismo apenas vai fungando em meio à riqueza de respostas definidas".
(carta a Ferdinand Lassalle, de 16 de junho de 1862, ver K. Marks [Marx] e Engel’s
[Engels], Soch., Vol. 25, p. 404 [Tradução inglesa de
www.marxists.org/archive/marx/works/1862/letters/62_06_16.htm]).

Essa análise da "mente" do sujeito formal é muito instrutiva para a pedagogia, para a arte de
ensinar a pensar.
A ciência - tanto no seu desenvolvimento histórico como no processo de sua assimilação
pelo indivíduo - em geral começa com uma questão, seja ela dirigida à natureza ou às pessoas.
Mas qualquer questão real que surge do meio da vida e é insolúvel com a ajuda de métodos
predeterminados, costumeiros, estereotipados e rotineiros é sempre formulada para a consciência
como uma contradição formalmente insolúvel.
Ou, para ser ainda mais preciso, como uma contradição "lógica" que é insolúvel por meios
puramente lógicos - isto é, por uma série de operações puramente mecânicas, robotizadas, sobre
conceitos previamente memorizados (ou, para ser mais preciso, sobre "termos").
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A filosofia há muito deixou claro que uma verdadeira "questão" que só pode ser resolvida
por meio de uma investigação mais aprofundada dos fatos aparece sempre como uma "contradição
lógica", como um "paradoxo".
Assim, é somente no ponto, no corpus do conhecimento, onde de repente aparece uma
"contradição" (alguns dizem isso, outros dizem aquilo) que, propriamente falando, surgem mais
profundamente a emergência e a necessidade de investigar o próprio objeto. É um indicador de que o
conhecimento registrado em proposições geralmente aceitas é excessivamente geral, abstrato e
unilateral.
É precisamente por isso que a mente que foi treinada para a ação estereotipada de acordo
com a prescrição estabelecida de uma "solução típica" e que fica perdida quando lhe é solicitado
encontrar uma solução (criativa) independente "não gosta" de contradições. Ela tenta evitá-las ou
disfarça, retornando repetidamente para a trilha batida da rotina. E quando no cálculo final não
consegue evitar ou disfarçar uma contradição, quando a "contradição" teimosamente continua a
aparecer, tal "mente" desmorona na histeria, exatamente no ponto em que é necessário "pensar".
Por esta razão, a atitude de uma mente para com a contradição é um critério muito preciso
da sua cultura – e mesmo, propriamente falando, um indicador de sua presença como inteligência.
Pesquisadores do laboratório de I. P. Pavlov realizaram uma experiência muito desagradável
em um cão (desagradável para o cão, é claro).
Eles com perseverança induziram e desenvolveram no cão um reflexo salivar positivo para
um círculo e um reflexo negativo para uma elipse. O cão era muito bom em distinguir essas duas
formas "diferentes". Então, um belo dia eles começaram a girar o círculo dentro do campo de visão
do cão de tal forma que ele gradualmente "virou" uma elipse. O cão tornou-se agitado e em certo
ponto desmoronou em histeria. Dois mecanismos de reflexo condicionado, rigorosamente
desenvolvidos e diretamente opostos, foram ativados simultaneamente e se chocaram em conflito,
"erro" ou antinomia. Para o cão, isso foi insuportável. O ponto em que "A" se transforma em "não-
A", o ponto em que "os opostos se encontram" é exatamente o ponto em que a diferença fundamental
entre o pensamento humano e a atividade reflexa do animal se manifesta clara e nitidamente.
Nesse ponto, o animal (e também a mente privada da verdadeira cultura "lógica")
desmorona na histeria, começa a se precipitar e torna-se prisioneira de circunstâncias aleatórias.
Para a mente equipada com a verdadeira cultura lógica, o aparecimento de uma contradição
é um sinal do surgimento de um problema que é insolúvel com o auxílio de ações intelectuais
estritamente estereotipadas, um sinal para ativar o "pensamento" - o exame independente da "coisa"
na expressão da qual a antinomia surgiu.
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Portanto, é necessário treinar a "mente" desde o início de tal maneira que uma "contradição"
não deve causar-lhe a histeria, mas um impulso ao trabalho independente, ao exame independente da
coisa em si - e não apenas daquilo que outras pessoas disseram sobre essa coisa.
Esta é uma exigência elementar da dialética. E a dialética não é de modo algum uma arte
misteriosa apenas para mentes maduras e seletas. É a verdadeira lógica do pensamento real -
sinônimo de pensamento concreto. As pessoas devem ser treinadas nela desde a infância.
Não posso deixar de recordar aqui as sábias palavras ditas há não muito tempo por um velho
matemático. Deliberando sobre as causas da cultura inadequada do pensamento matemático (e não
apenas matemático) entre os graduados do ensino secundário nos últimos anos, ele deu a seguinte
caracterização extraordinariamente precisa dessas causas: os currículos contêm "muito do que é
definitivamente estabelecido", muitas “verdades absolutas”. É precisamente por isso que os alunos,
habituados a “engolir a perdiz assada da ciência absoluta", são então incapazes de encontrar o
caminho para a verdade objetiva, para a "coisa" em si.
Isso também soa, por assim dizer, "paradoxal". No entanto, as palavras do matemático são
tão simples quanto verdadeiras:
Lembro-me de meus próprios tempos de escola. Ensinou-nos literatura um seguidor
muito erudito de Belinsky. E nos acostumamos a olhar para Pushkin pelos seus
olhos, isto é, através dos olhos de Belinsky. Em relação a tudo o que o professor nos
disse sobre Pushkin sem dúvida, nós também vimos em Pushkin apenas o que ele
nos disse - e nada mais... Assim permaneceu até que, por acaso, eu me deparei com
um artigo de Pisarev. Isso me deixou confuso. O que é isso? Tudo foi virado de
cabeça para baixo e ainda convincente. O que eu iria fazer? E só então voltei minha
atenção para o próprio Pushkin. Só então eu próprio descobri sua verdadeira beleza
e profundidade. E só então compreendi – de verdade, e não de forma escolástica –
tanto Belinsky como Pisarev.

E isso, é claro, não se aplica apenas a Pushkin. Quantas pessoas deixaram a escola para a
vida adulta tendo memorizado "indubitáveis" proposições sobre Pushkin de livros didáticos e
contentando-se com isso! Naturalmente, uma pessoa que tenha engolido sua porção da “perdiz
assada da ciência absoluta" já não quer olhar a perdiz viva voando no céu. Afinal de contas, não é
segredo que muitas pessoas não tivessem qualquer desejo de ler Pushkin nocauteados pelas aulas de
literatura na escola secundária - e não apenas Pushkin.
Pode-se objetar que nossas escolas são obrigadas a ensinar aos alunos os fundamentos
"indubitáveis" e "firmemente estabelecidos" da ciência moderna e não a semear dúvidas,
contradições e ceticismo em seus cérebros imaturos. Verdade. Mas, ao mesmo tempo, não se deve
esquecer que todos esses "fundamentos firmemente estabelecidos" não são outra coisa senão os
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resultados de uma busca difícil, nada menos que respostas laboriosamente adquiridas a perguntas que
uma vez surgiram (e ainda são compreensíveis) – nada além do que contradições resolvidas.
E não "verdades absolutas" que caíram do céu para as cabeças dos gênios. Afinal, alguém
deve ter capturado e assado a perdiz. E o que deve ser aprendido na ciência é como fazer isso, não
como engolir o mingau de aveia já mastigado pelos dentes dos outros. E deve ser aprendido desde o
primeiro passo - porque mais tarde será tarde demais.
"O resultado puro sem o caminho que leva a ele é um cadáver", ossos mortos, o esqueleto da
verdade, incapaz de movimento independente - assim o grande dialético Hegel se expressa
esplendidamente em sua Fenomenologia da Mente. Uma verdade científica estabelecida em termos
verbais e divorciada da rota pela qual foi adquirida transforma-se em uma casca verbal, mesmo que
retenha todos os sinais externos da "verdade". E então o morto se apodera do vivo e não lhe permite
avançar na estrada da ciência, ao longo do caminho da verdade. A verdade morta torna-se o inimigo
da verdade viva e desenvolvente. É assim que se obtém o intelecto dogmático e ossificado que, nos
exames de graduação, recebe um "cinco", mas que a vida dá um "dois" ou mesmo uma pontuação
mais baixa.5
Tal pessoa não gosta de contradições porque não gosta de perguntas não resolvidas. Ela
gosta apenas de respostas definidas. Ela não gosta de trabalho mental independente, preferindo tirar
proveito dos frutos do trabalho mental dos outros. Ela é uma consumidora parasita, não uma
produtora criativa. Nossas escolas, infelizmente, já fabricaram muitas dessas.
E isso é inculcado desde a infância, desde o primeiro ano. E por aqueles "pedagogos" que
gostam de despejar a culpa pela "falta de capacidade" na natureza "irrepreensível". É hora de
expulsar esta vil fábula, tão conveniente para professores preguiçosos, de nosso ambiente pedagógico
tão impiedosamente quanto expulsamos as fábulas estúpidas da religião.
Ensinar especificamente o pensamento humano significa ensinar a dialética - a capacidade
de formular rigorosamente uma "contradição" e então encontrar a sua verdadeira resolução por meio
do exame concreto da coisa, da realidade, e não por meio de manipulações verbais formais que
camuflam "contradições" em vez de resolvê-las.
Aqui está todo o segredo. Aqui reside a diferença entre a lógica dialética e formal, entre o
pensamento humano e a psique de qualquer mamífero ou as ações de um computador. Um
computador também entra em um estado de "autoexcitação" que muito precisamente "modela" a
histeria do cão nos experimentos de Pavlov quando dois comandos, mutuamente exclusivos - uma
"contradição" - são introduzidos simultaneamente.

5
Na União Soviética e na Rússia os estudantes eram e são graduados em uma escala de cinco pontos, sendo cinco a nota
mais alta. Trad.
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Para o ser humano, em contraste, o aparecimento de uma contradição é um sinal para ativar
o "pensar" e não a histeria. Isso deve ser ensinado desde a infância, desde os primeiros passos da
pessoa na ciência. Aqui está a única chave para a transformação da "didática" com base no
materialismo dialético, com base na dialética como lógica materialista e teoria do conhecimento.
Caso contrário, toda conversa sobre essa "transformação" continuará sendo um desejo piedoso, uma
frase vazia. Pois o "núcleo" da dialética, sem o qual não há dialética, é precisamente a "contradição"
- o "motor" e a "mola mestra" do pensamento em desenvolvimento.
Não há nada especialmente "novo" aqui. Qualquer pedagogo razoavelmente inteligente e
experiente faz e sempre fez isso. Ou seja, sempre orienta com tática a criança para uma "situação
problemática", como é chamada na psicologia - isto é, uma situação insolúvel com a ajuda de
métodos de ação já desenvolvidos pela criança, com a ajuda do "conhecimento" já dominado por ela,
mas uma situação que está ao mesmo tempo bem dentro de suas capacidades, dado o seu
conhecimento existente (precisamente avaliado). Uma situação que, por um lado, requer o uso ativo
de toda a sua bagagem intelectual previamente acumulada e, por outro lado, não "cede"
completamente a ele, mas exige "um pouco mais" - um argumento próprio, um dispositivo criativo
elementar, uma gota de "independência" de ação.
Se, depois de um processo de tentativa e erro, uma pessoa encontrar uma "saída" de tal
situação sem orientação direta ou guia, ele dá um passo real no caminho do desenvolvimento mental,
do desenvolvimento da "inteligência". E tal passo vale mais do que mil verdades dominadas na
forma estabelecida das palavras dos outros.
Pois é só e precisamente assim que uma pessoa desenvolve a capacidade de realizar ações
que a obrigam a ir além das condições dadas de uma tarefa.
Nesse sentido, existe uma dialética onde quer que uma pessoa vá além do conjunto de
condições dadas dentro das quais a tarefa permanece resolvida e não resolvida (e, portanto, tem a
aparência de uma "contradição lógica" entre o "objetivo" e os "meios" para alcançá-lo) naquele
conjunto mais amplo de condições dentro das quais ela é realmente - concretamente, em relação aos
objetos e, portanto, "obviamente" - resolvida.
Tal dialética é realizada mesmo no caso de resolver uma tarefa geométrica simples que
requer uma transformação das condições dadas pelo diagrama inicial - mesmo que essa
transformação consista apenas em traçar a primeira e única linha "extra" que une duas outras (dadas)
que estavam previamente desunidas, desconectadas, ou – o termo usado em lógica – “sem
mediação”. A linha que realiza a conexão - a transição, a conversão - e, portanto, incorpora as
características das duas linhas que ela conecta, tanto "A" quanto "não-A".
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Desta forma, resolvemos, em ação orientada a objetos e em contemplação, a situação que


levou o cão a um estado de histeria. A situação de transição ou conversão de uma forma claramente
definida para outra - de um círculo para uma elipse, de um polígono a um círculo, de uma linha reta a
uma curva, de uma área a um volume, e assim por diante - em geral, de "A" para "não-A".
Qualquer tarefa que exija tal transição do dado ou conhecido para o desconhecido sempre
implica a conversão de opostos fixos.
Se "A" é conhecido por nós (suas características qualitativas ou quantitativas ou
"parâmetros" são dados) e nós precisamos encontrar "B" - isto é, expressar "B" através das
características de "A" - e ainda não conhecenos esse "B", então isso significa que, por enquanto, só
podemos dizer que é "não-A". Mas o que é isso, além de ser "não-A"?
É por isso que precisamos encontrar uma transição ou "ponte". A transição de uma coisa
para uma segunda - de "A" para "não-A" - pode, em geral, ser realizada apenas por meio de um "elo
de mediação", por meio de um "termo médio da dedução", ou - como é chamado em lógica - por
meio de "um terceiro".
Encontrar esse termo intermediário é sempre a principal dificuldade de uma tarefa. É aqui
que a presença ou ausência de "inteligência afiada", "inventividade" e outras qualidades da "mente
inteligente" vem à tona.
Esse "terceiro" desconhecido sempre possui propriedades dialéticas claramente marcadas.
Ou seja, deve incorporar simultaneamente as características de "A" e as características de "B" (isto é,
"não-A").
Para "A" ele deve representar "B" e para "B" ele deve ser uma imagem de "A".
Da mesma forma, um diplomata em um país estrangeiro "representa" não ele mesmo, mas
seu país. No país "A", ele é um representante de "não-A". Ele deve falar em duas línguas, nas línguas
dos dois países - na do país que representa e na do país no qual é representante.
Em outras palavras, o "termo médio" deve combinar diretamente dentro de si as
características dos lados da contradição que ele "medeia" - tanto "A" quanto "não-A". É uma unidade
direta de opostos - o ponto em que se transformam um no outro.
Enquanto os "lados da contradição" não são mediados - isto é, existe o "A" e, ao lado dele, o
"não-A" - temos uma contradição lógica. Uma contradição lógica é uma contradição não-mediada,
não resolvida. Nesse sentido - no sentido de que expressa uma questão não resolvida - é algo
"intolerável".
Resolver uma questão significa encontrar aquele "terceiro" por meio do qual os lados
iniciais da contradição, "A" e "não-A", são unidos, conectados e expressos por meio um do outro -
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isto é, (no pensamento) transformam-se um no outro. Esta é a mesma situação que eles criaram para
o cão no laboratório de Pavlov, "transformando" um círculo em uma elipse.
Mas qual o significado que isso tem para o movimento do pensamento, para o treinamento
da capacidade de "pensar?" Enorme significado.
Acima de tudo, se tivermos claramente registrado as condições de uma tarefa como uma
"contradição", então o nosso pensamento visa a buscar esse fato (linha, evento, ação, etc.) somente
por meio do qual a contradição inicial pode ser resolvida.
Por enquanto não sabemos o que é esse terceiro. É isso que devemos procurar e encontrar.
Mas, ao mesmo tempo, já sabemos algo extraordinariamente importante sobre ele. Ou seja,
deve simultaneamente corresponder às características de "A" e às características de "B" (isto é, de
"não-A"). A busca do "termo médio" da dedução é, portanto, direcionada para o objetivo. Deve ser
um fato real que, expresso através dos termos das condições iniciais da tarefa, se parecerá com "A" e
com "não-A" simultaneamente e na "mesma relação" - como uma "contradição".
Do ponto de vista do pensamento puramente formal, tal fato parece algo completamente
impossível e impensável. Sim, é "impensável" no sentido de que ainda não está presente no nosso
pensamento e no campo da nossa contemplação - nas condições dadas da tarefa. Mas, afinal, em
última análise, todo o progresso em nosso conhecimento se resume em trazer o que antes era
"impensável" dentro do âmbito do nosso pensamento: encontramos, vemos e compreendemos. E
assim resolvemos uma tarefa, uma pergunta ou uma contradição previamente não resolvida.
A dialética consiste em formular uma "contradição", trazendo-a para a mais completa
nitidez e clareza de expressão, e depois encontrando uma resolução real, concreta, relacionada com o
objeto e, portanto, óbvia. E isso é sempre realizado descobrindo um fato novo no contexto do qual a
"contradição" anteriormente exposta por nós é simultaneamente realizada e concretamente resolvida.
Uma contradição nitidamente formulada cria uma "tensão de pensamento" que não é
liberada até que o fato, apenas por meio do qual é resolvido, é encontrado.
Isso ocorre tanto nos casos mais complicados de desenvolvimento intelectual quanto nos
mais simples. Foi precisamente a dialética que permitiu a Karl Marx resolver um problema sobre o
qual os economistas burgueses haviam esgotado seus cérebros em vão - o problema do surgimento
do capital a partir da troca de mercadorias. Em primeiro lugar, uma contradição acentuada foi
registrada aqui. O problema é que a lei suprema das relações de mercado é a troca de equivalentes,
de valores iguais. Se eu tiver um objeto no valor de 5 rublos, eu posso trocá-lo por outras
commodities que também valem 5 rublos. Não posso por meio de troca - por meio de uma série de
vendas e compras - transformar 5 rublos em 20 (se, é claro, excluímos especulação e fraude). Mas
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como, então, é possível o lucro, a mais-valia e o capital? A lei do capital é a "autoexpansão"


incessante. E, portanto, surge a questão:
O nosso amigo, Endinheirado, que até agora é apenas um embrião capitalista, deve
comprar suas mercadorias ao seu valor, deve vendê-las pelo seu valor, e no entanto,
no final do processo deve retirar mais valor da circulação do que jogou nele no
início. Seu desenvolvimento em um capitalista maduro deve ocorrer, tanto dentro da
esfera da circulação quanto sem ela. Essas são as condições do problema. Hic
Rhodus, hic salta! [Aqui está Rhodes, salte aqui!]. (K. Marks [Marx], Kapital
[Capital], vol. 1, págs. 172-73]) [tradução para o inglês:
www.econlib.org/library/YPDBooks/Marx/mrxCpA5.html]

Assim, como então - sem qualquer fraude, isto é, sem violar a lei suprema do mundo das
mercadorias - o "capital" aparece subitamente - um fenômeno cujas características contradizem
diretamente a lei da troca de equivalentes?
A tarefa é posta nítida e claramente. Sua solução, Marx continua, só é possível com a
condição de que "nosso amigo, Endinheirado" deveria “ter tanta sorte de modo a encontrar, dentro da
esfera da circulação, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso possua a propriedade peculiar de
ser uma fonte de valor, cujo consumo real, portanto, é em si uma encarnação do trabalho e,
consequentemente, uma criação de valor" (Marks, Kapital, vol.1, p.173). YPDBooks / Marx /
mrxCpA6.html]).
Uma mercadoria cujo consumo é uma criação! Uma coisa que parece impossível,
"impensável" - porque é "logicamente contraditória".
Mas se o nosso amigo, Endinheirado, mesmo assim se transformou em um capitalista, então
ele resolveu o problema que é insolúvel do ponto de vista da lei suprema do mundo das mercadorias.
Ele trocou o kopeck [antiga moeda russa] pelo kopeck da maneira mais honesta, nunca roubando
uma só alma, e ainda acabou com um rublo. E isso significa que ele encontrou e comprou no
mercado esse objeto impensavelmente maravilhoso - um valor de mercadoria cujo consumo
(destruição) é idêntico à produção (criação) de valor.
E para o teórico resolver essa contradição teórica (lógica), ele só tem que investigar onde
Endinheirado conseguiu comprar uma mercadoria tão original, com a ajuda da qual o impensável se
torna "pensável". E qual é esse objeto mágico que realiza o impensável, sem violar, no mínimo, a
estrita lei do mundo das mercadorias? O autor de o Capital o segue e descobre que "o possuidor de
dinheiro encontra no mercado tal mercadoria especial em capacidade de trabalho ou força de
trabalho" (Marks, Kapital, vol.1, p.173).
Esta é a única mercadoria no mercado que nos permite resolver a contradição que nenhum
truque com a terminologia é capaz de resolver. Este é o único objeto que é estritamente subordinado
a todas as leis da "mercadoria" e se ajusta estritamente a todas as definições teóricas de "mercadoria"
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e "valor" (essas mesmas definições e leis de cujo ponto de vista o nascimento do capital é um ato
"ilegal") e que, ao mesmo tempo, em estrita conformidade com a lei, dá origem a essa prole "ilícita" -
mais-valia e capital, isto é, fenômenos que contradizem diretamente as leis do mundo das
mercadorias. Este é apenas um objeto em cuja própria existência a conversão de "A" para "não-A" -
de valor de uso para o valor de troca - é realizada. Uma "conversão" que é tão natural - e ao mesmo
tempo tão "insuportável" para o pensamento não-dialético- como a conversão do círculo para a
elipse, para o não-círculo.
O fato necessário foi encontrado - o fato diretamente real, concreto e óbvio - e a
"contradição lógica", que de outra forma é insolúvel, foi resolvida.
E aqui podemos ver muito claramente que é precisamente a "contradição lógica" exposta
nas condições iniciais da tarefa e dentro daquelas condições não resolvidas e insolúveis que
proporciona pensar com aquelas condições às quais o "desconhecido" - o "X" ou o elo perdido que
temos de encontrar para resolver rigorosamente a tarefa - deve corresponder.
E quanto mais fortemente é formulada a "contradição", mais precisamente indica os "sinais"
a que esse "desconhecido" deve corresponder, os critérios segundo os quais a busca deve ser
orientada e dirigida. Nesse caso, o pensamento de uma pessoa não vagueia aqui e ali com a
esperança de tropeçar em um fato novo, mas procura propositadamente esse fato - o fato único que
lhe permitirá fechar a corrente do raciocínio.
Figurativamente, podemos imaginar esse mecanismo do pensamento dialético como segue.
Ele traz à mente um fio elétrico cortado. Em uma extremidade do fio uma carga positiva acumulou,
no outro uma carga negativa. A tensão entre as duas cargas opostas pode ser liberada apenas usando
algum objeto para fechar o circuito. Que tipo de objeto? Vamos experimentar. Conectamos as
extremidades do fio com um pedaço de vidro. A corrente não flui; a tensão permanece. Nós tentamos
madeira. O resultado é o mesmo. Mas assim que colocamos um pedaço de metal no intervalo entre
os pólos a corrente flui e a tensão é liberada.
A "tensão da contradição" no pensamento é liberada de forma semelhante - inserindo um
novo fato na cadeia de raciocínio que foi "cortada" pela contradição. Não, naturalmente, apenas
qualquer fato que acontece de vir à mão, mas apenas o fato único que "se ajusta" nas condições da
tarefa e se conecta ou "medeia" os lados anteriormente "sem mediação" da contradição. Deve ser um
fato que simultaneamente "ajusta-se" às características (exigências legais) de ambos os lados da
contradição.
Para o lado "A" deve ser um "representante" do lado "B" (isto é, "não-A"), enquanto para o
lado "B" deve ser uma imagem representativa do lado “A”, que é, é claro, “não-B"). Caso contrário,
não poderia ser um "condutor" ou "intermediário" entre eles, assim como um intérprete entre duas
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pessoas que falam línguas diferentes só pode ser uma terceira pessoa que fala ambas as línguas. Deve
possuir dentro de si, como partes de seu caráter "específico", os indicadores de "A" e "B" - isto é,
deve ser uma combinação direta (unidade) de atributos diferentes e opostos.
Uma vez que encontramos tal fato, a "contradição" deixa de ser "sem mediação" e não
resolvida. Enquanto não a encontrarmos, a contradição permanece uma contradição "lógica" não
resolvida e cria a própria "tensão do pensamento" que não nos dá descanso até que a tarefa seja
resolvida.
Adquirir a cultura do pensamento significa, portanto, aprender a "suportar a tensão da
contradição" e não tentar evitá-la ou adulterá-la e, se isso falhar, sucumbir na histeria, na raiva e na
irritação. Ao contrário, devemos sempre abordar uma contradição e tentar revelá-la em sua "forma
pura" para então encontrar sua resolução concreta, objetiva e óbvia nos fatos.
A dialética consiste em trazer à luz, nos fatos, no conjunto de fatos que constituem o sistema
de condições da tarefa não resolvida, sua própria contradição, em conceder a essa contradição a
máxima clareza e pureza de expressão e depois em encontrar sua "resolução" novamente em fatos -
no fato único que ainda não está no campo de visão e que precisa ser encontrado. A própria
contradição nos obriga a buscar tal fato. Nesse caso, a contradição no pensamento (isto é, a
"contradição lógica") é resolvida da mesma maneira que a realidade, o movimento da "coisa em si"
resolve contradições reais.
E não por meio de manipulações puramente terminológicas, não por "esclarecer conceitos" e
suas definições.
(É claro que nenhuma objeção pode ser feita contra o esforço de "esclarecer conceitos". Ao
verificar e rever o curso precedente de raciocínio que levou à "contradição lógica", descobrimos
muitas vezes que essa contradição é meramente uma consequência de simples descuido,
ambiguidade em termos ou alguma causa similar e, portanto, não expressa qualquer problema real
relacionado ao objeto. Contradições desse tipo são resolvidas por meios puramente formais - ou seja,
por "esclarecer conceitos" - e não exigem a busca de novos fatos.
No entanto, a dialética exige um pensamento formalmente impecável. O que se disse acima
se aplica apenas às "contradições lógicas" que emergem no raciocínio como resultado do pensamento
mais rigoroso e formalmente impecável, do pensamento que dá expressão lógica às condições reais
da tarefa. Isso deve ser levado em conta.)
É por essa razão que a mais alta cultura do pensamento, a capacidade de suportar a "tensão
da contradição" sem irritação ou histeria, a capacidade de resolver uma contradição na realidade e
não nas palavras, sempre encontra expressão em saber argumentar consigo mesmo. O que distingue
uma pessoa que pensa dialecticamente de uma pessoa que pensa não-dialeticamente? A capacidade
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de pesar todos os "prós" e todos os "contras" por conta própria, sem a presença de um "oponente
externo", sem esperar até que um adversário com alegria maliciosa empurre os "contras" na frente de
seu nariz.
Uma pessoa com pensamento culto é, portanto, sempre muito bem preparada para disputas.
Ela previu e pesou todos os "contras" e tem seus contra-argumentos prontos.
A pessoa que na preparação para uma disputa se limita a coletar com a parcialidade
diligente "prós" e "confirmações" de uma tese não contraditória é sempre vencida. Ela é vencida de
ângulos que ela não previu. E quanto mais diligentemente ela procurou "confirmações", quanto mais
diligentemente fechou os olhos aos "lados" reais de uma coisa que pode servir de base para uma
visão oposta, mais esses ângulos existem.
Em outras palavras, quanto mais unilateral (mais abstrata e geral) a tese, para ela,
"indubitável", que por alguma razão ela prefere, mais "indubitável" e "absoluta" a verdade que
memorizou e dominou como uma tese internamente "não contraditória".
É aqui que toda a artimanha das "verdades absolutas" se manifesta. Pois, quanto mais
"absoluta" e "certa" uma verdade, mais próximo ela se aproxima do ponto fatídico de transformação
em seu oposto, mais fácil para um oponente torná-la contra si mesma, mais fatos e provas podem ser
citados contra ela.
Duas vezes dois são quatro?
Onde você viu isso? Em casos muito raros, casos artificiais e excepcionais. Nos casos
envolvendo apenas corpos sólidos, mutuamente impenetráveis. Duas gotas de água "unidas" juntas
renderão apenas uma gota, ou talvez vinte e uma. Dois litros de água "adicionados" a dois litros de
álcool nunca lhe dará quatro litros de vodka, mas sempre um pouco menos. E, em geral, "duas vezes
dois são quatro" seria absolutamente infalível somente se o universo consistisse apenas de "corpos
absolutamente sólidos". Mas esses corpos realmente existem, pelo menos por exceção? Ou talvez
eles existam apenas em nossas cabeças, na idealização da fantasia? Não é uma pergunta fácil.
Átomos e elétrons, em qualquer caso, não são tais corpos.
É precisamente por essa razão que aqueles matemáticos que estão convencidos de que
suas afirmações (verdades matemáticas) possuem uma universalidade "absolutamente indubitável"
estão inclinados para a ideia de que essas afirmações não refletem e não podem refletir nada no
mundo objetivo real e que a totalidade da matemática do começo ao fim é meramente uma
construção subjetiva artificial, o fruto da criatividade "livre" de nosso próprio espírito e nada mais. E
então o fato de que essas afirmações são em geral aplicáveis a fatos empíricos e funcionam
esplendidamente no curso de sua análise, no curso da investigação da realidade torna-se um enigma
místico.
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E aí estão vocês! Idealistas filosóficos - como sempre em tais casos.


E essa é a sua punição pela fé cega em uma tese absoluta aparentemente óbvia como "duas
vezes dois são quatro".
Absolutos são, em geral, não apenas estáticos, mas também extremamente ardilosos. Aquele
que cegamente coloca sua fé em qualquer absoluto como algo "indubitável", mais cedo ou mais tarde
será vilmente traído por ela. Como aquele cão que foi treinado irrefletidamente para salivar à vista de
um círculo.
Então é realmente apropriado inculcar na criança uma confiança cega em tais traidores
patentes? Não se trata deliberadamente de prepará-la como holocausto, como sacrifício às "verdades
absolutas" - em vez de educá-la para dominá-las?
Uma pessoa educada a considerar "duas vezes dois são quatro" como uma verdade
indubitável sobre a qual é inadmissível até mesmo ponderar, nunca se tornará simplesmente um
matemático, muito menos um grande matemático. Ela não saberá se comportar na esfera da
matemática como ser humano.
Nesse campo, ela permanecerá sempre apenas uma cobaia a quem o professor presenteará
constantemente com surpresas altamente desagradáveis e incompreensíveis, como a conversão de um
círculo em uma elipse, de um polígono em um círculo, de uma curva em linha reta e de volta
novamente, do finito em infinito, e assim por diante. Ela vai perceber todos esses truques como
magia negra, como a arte misteriosa de deuses matemáticos a quem é necessário apenas adorar e
venerar cegamente.
Mas a vida vai mostrar-lhe não só como duas vezes dois transforma-se em cinco, mas
também como se transforma em uma vela de cera. A vida é cheia de mudança e transformação em
cada turno. Pouco nela é absolutamente estático. A ciência para ela será apenas um objeto de
adoração cega, enquanto a vida será abundante em ocasiões de histeria. A conexão entre ciência e
vida permanecerá sempre para ela misticamente incompreensível, fora de sua compreensão e
alcance. A vida sempre lhe parecerá uma coisa bastante "não-científica" e até mesmo "irracional", e a
ciência como uma visão que se eleva sobre a vida e não tem nenhuma semelhança com ela.
O "enxerto de absolutos" no cérebro da criança não pode ter outro resultado. Quanto mais
forte e cega a fé que uma pessoa coloca na infalibilidade deles quando se é criança, mais cruelmente
a vida o punirá com desilusão na ciência, falta de fé e ceticismo.
Pois, em todo caso, ela não escapará à contradição - o conflito entre uma ideia geral ou uma
verdade abstrata e a diversidade de fatos vivos que ela não consegue acomodar. Cedo ou tarde ela
será atraída para tal conflito - e será compelida a resolver a contradição. E se você não lhe ensinou
como fazer isso, se você a convenceu de que as verdades impressas nela são tão absolutas e
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indubitáveis que ela nunca vai encontrar um fato que as "contradiz", então ela vai ver que você a
enganou. E então ela deixará de acreditar em você e nas verdades que você tem martelado nela.
A filosofia e a psicologia estabeleceram há muito tempo que o "cético" é sempre um
"dogmático" desiludido, que o "ceticismo" é o reverso do "dogmatismo". São duas posições
mutuamente reforçadoras, duas pedras de moinho mortas entre as quais uma educação estúpida
tritura a mente viva.
O treinamento de um dogmático consiste em ensinar uma pessoa a olhar para o mundo ao
seu redor apenas como um reservatório de "exemplos" que ilustram a correção de uma ou outra
verdade geral abstrata. Ao mesmo tempo, ele é cuidadosamente protegido do contato com fatos que
favorecem a visão oposta e, acima de tudo, é impedido de ler obras que favorecem essa visão oposta.
É evidente que só uma mente incapaz de uma atitude crítica em relação a si mesma pode ser treinada
dessa maneira. É igualmente óbvio que tal mente crescida em estufa só pode sobreviver sob uma
redoma, em ar condicionado esterilizado, e que a saúde espiritual assim preservada é tão frágil
quanto a saúde física de uma criança mantida dentro de casa por medo de ela pegar um resfriado.
Mesmo a menor brisa vai arruinar essa saúde. O mesmo acontece com uma mente que está
cuidadosamente protegida dos encontros com as contradições da vida, uma mente que teme obras
que questionam os dogmas que memorizou.
É muito mais benéfico para a "boa causa" - escreve Kant na Crítica da Razão Pura - estudar
contra-argumentos do que ler obras que demonstram o que você já sabe. "A resposta do defensor
dogmático da boa causa", ele continua, "eu não deveria ler. Eu sei de antemão que ele vai atacar os
argumentos sofisticados de seu oponente simplesmente para ganhar a aceitação para o seu próprio; e
também sei que uma linha bastante familiar de argumento falso não produz tanto material para novas
observações como uma que é nova e engenhosamente elaborada...
Mas não devem os jovens, pelo menos, quando confiados ao nosso ensino acadêmico, ser
advertidos contra tais escritos e preservados de um conhecimento prematuro de tais proposições
perigosas, até que sua capacidade de julgamento seja madura, ou ao menos até a doutrina que
buscamos incutir neles tomou raízes tão firmes, que eles são capazes efetivamente de resistir a toda
persuasão a opiniões contrárias, a partir de qualquer canto que possa vir? "
Isso parece razoável, diz Kant. Mas . . .
"Mas quando, mais tarde, ou a curiosidade ou a moda da época traz esses escritos sob o seu
conhecimento, será que a sua convicção jovem, então, resistirá ao teste?"
Duvidoso. Para a pessoa que está acostumada apenas ao elenco dogmático da mente e não
sabe desenvolver a dialética oculta em sua própria alma, não menos do que na alma de seu
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adversário, a convicção oponente possuirá "a vantagem da novidade", enquanto a convicção familiar,
aprendida com "a credulidade da juventude", já perdeu essa vantagem.
"E, consequentemente, ele acredita que não pode haver melhor maneira de mostrar que ele
superou a disciplina infantil do que deixando de lado esses bons avisos; e acostumado como está ao
dogmatismo, bebe goles profundos do veneno, o que destrói seus princípios por um “contra-
dogmatismo".
Tudo isso, é claro, permanece verdadeiro até hoje. Esta é uma lei psicológica que tem seu
protótipo na lógica das coisas.
É precisamente por esta razão que Hegel considerou o "ceticismo" um nível mais elevado de
desenvolvimento do espírito do que o "dogmatismo" - a forma natural da superação do dogmatismo
ingênuo.
Pois, enquanto o dogmático defende obstinadamente "metade da verdade" contra a outra
"metade da verdade", sem saber como encontrar a "síntese de opostos" ou "verdade concreta", o
cético - que também não sabe como realizar essa síntese concreta - pelo menos vê ambas as metades,
entendendo que há bases para ambas, e oscila entre elas.
O cético, portanto, tem uma chance de ver a "coisa", na qual os dogmáticos quebram sua
lança, como uma "unidade de opostos" - como aquele "terceiro" desconhecido que aparece a um
dogmático como "A" e a outro como "não-A".
E dois dogmáticos - como dois carneiros em uma ponte - estão condenados à eterna luta.
Eles vão bater um no outro até que ambos caiam na água fria do ceticismo.
E só depois de se banharem em sua corrente de águas sóbrias eles se tornarão mais espertos
- se, é claro, eles não se asfixiarem ou se afogarem.
O pensamento dialético, de acordo com Hegel, incorpora o "ceticismo" como seu elemento
"intrínseco" organicamente inerente. Mas, como tal, não é mais "ceticismo", mas simplesmente
autocrítica racional.
Uma mente viva e dialeticamente pensante não pode ser constituída a partir de duas metades
igualmente mortas - do "dogmatismo" e do "ceticismo". É, mais uma vez, não simplesmente uma
combinação mecânica de dois pólos opostos, mas um "terceiro". Esse terceiro é uma combinação da
convicção racional (e, portanto, firme) com uma autocrítica igualmente racional (e, portanto,
perspicaz).
Aos olhos de um dogmático esse "terceiro" sempre se parece com "ceticismo"; aos olhos de
um cético sempre se parece com "dogmatismo".
Na verdade, trata-se da dialética - a dialética de uma mente capaz de refletir a dialética da
realidade, uma lógica de pensar de acordo com a lógica das coisas.
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É somente mantendo tudo isso em vista que é possível construir uma didática destinada a
treinar uma mente verdadeira.
E se você quiser educar uma pessoa como um cético consumado e duvidador, então não há
método mais confiável de fazer isso do que inculcar nele uma confiança cega "nas verdades
absolutas da ciência" - nas verdades melhores e mais verdadeiras, naquelas verdades que nunca o
enganariam se as tivesse aprendido cegamente e sem pensar, mas com inteligência.
E, inversamente, se você quiser educar uma pessoa que não apenas estará firmemente
convencida do poder do conhecimento, mas também saberá como aplicar seu poder à resolução das
contradições da vida, então meça para o "indiferente" uma dose de "dúvida" que não lhe fará nenhum
dano - uma dose de skepsis [ceticismo], como diziam os gregos antigos. Faça como os médicos
fizeram por muito tempo, quando inoculam um bebê recém-nascido com uma vacina enfraquecida
das doenças as mais terríveis (mesmo para um adulto!). Faça-o pegar essas doenças em uma forma
enfraquecida e segura - a forma que uma pessoa e sua mente precisam. Treine-a independentemente
para verificar cada verdade geral no confronto olho no olho com fatos que a contradizem
diretamente. Ajude-a a resolver o conflito entre a verdade geral e o fato específico em favor da
verdade autêntica e concreta - isto é, para o benefício conjunto da ciência e do fato.
E não em benefício do "fato" e em prejuízo da "ciência", como acontece frequentemente
com os dogmáticos que se desesperaram para resolver racionalmente esse conflito e, portanto,
desiludiram-se com a ciência e a traem com o pretexto de que ela "não mais corresponde à vida".
Então, o terrível micróbio da desilusão e do ceticismo não ficará à espreita para envenenar
seu aluno enquanto ele cruza o limiar da escola. Bem e verdadeiramente imunizado, ele saberá como
manter a honra do conhecimento científico no caso de entrar em conflito com "fatos" e "factóides"
que o "contradizem". Ele saberá interpretar estes fatos cientificamente e não por meio da "adaptação"
burguesa da ciência a eles, não traindo verdades científicas "por causa dos fatos", "por causa da
vida", mas na realidade pelo bem do princípio burguês de "assim é a vida".
Só assim é possível desenvolver na pessoa a capacidade de pensar, de pensar
concretamente.
Pois só é possível pensar concretamente. Porque a própria verdade é sempre concreta,
porque "a verdade abstrata não existe" (Lênin).
Essa sábia verdade, que as grandes mentes da humanidade - Spinoza, Hegel, Marx, Engels,
Plekhanov, Lênin - não se cansaram de repetir ao longo dos séculos, está, infelizmente, longe de se
tornar um dos princípios condutores de nossa didática e pedagogia.
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É verdade que muitas vezes - com demasiada frequência, talvez – agimos hipocritamente
com a palavra "concreto", dilapidando esse precioso conceito com insignificâncias com que não tem
nenhuma relação.
Não confundimos muitas vezes a "concretude" com a "obviedade"? Afinal de contas, essas
são coisas muito diferentes - pelo menos na filosofia marxista-leninista, na lógica e na teoria do
conhecimento do materialismo.
Na filosofia científica, "concreto" não é de modo algum entendido como "óbvio". Marx,
Engels e Lênin repudiaram categoricamente a equiparação desses dois conceitos como um legado
muito ruim da filosofia escolástica medieval. Para Marx, Engels e Lênin, "concreto" é sinônimo de
"unidade na diversidade". Ou seja, a palavra "concreto" é reservada a um agregado legitimamente
conectado de fatos reais, sistema de fatos determinantes, entendidos em sua interligação e interação.
Onde não há tal sistema, onde há apenas um amontoado ou conglomerado de todos os tipos
de fatos "óbvios" e exemplos que confirmam alguma "verdade" escassa e abstrata, não pode haver
qualquer "conhecimento concreto" do ponto de vista da filosofia.
Pelo contrário, neste caso, a "obviedade" é apenas um traje de disfarce sob o qual se
esconde o inimigo mais astuto e repulsivo do "pensamento concreto" - conhecimento abstrato no
sentido pior e mais preciso da palavra, no sentido de vazio, isolado da vida, da realidade, da prática.
É verdade que muitas vezes você ouve a seguinte "justificativa". Nos reinos mais elevados
da sabedoria filosófica, "concreto" pode significar algumas coisas muito complicadas. Mas a didática
é uma ciência mais simples. Ela não se preocupa com as alturas da dialética, e é, portanto, permitido
tudo o que não é permitido à filosofia superior. Portanto, não é tão terrível se entendemos por
"concretude" precisamente "obviedade" e não entrar em distinções excessivamente finas.
À primeira vista isso parece certo. E se na pedagogia o termo "concreto" não se distingue
muito claramente do termo "óbvio"? É realmente uma questão de terminologia? "Uma rosa com
qualquer outro nome cheira igualmente doce." Se fosse meramente uma questão de terminologia,
poderíamos concordar com tudo isso. Mas o problema é que não é.
O ponto é que, embora possa tudo começar com confusão sobre os termos, a confusão a que
isso leva não é brincadeira.
Em última análise, a "obviedade" (o princípio em si não é nem bom nem mau) não é o
aliado e amigo do pensamento verdadeiro (= concreto) que os didatas pensam que deve ser, mas algo
bem ao contrário. É precisamente a máscara sob a qual se escondem os mais abstratos - no pior
sentido - pensamento e conhecimento.
Combinada com a verdadeira concretude, a "obviedade " é um poderoso meio de
desenvolver uma mente pensante.
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Mas combinada com a abstração, a mesma "obviedade" torna-se um meio confiável de


paralisar e perverter a mente da criança.
Em um caso, é uma grande bênção, no outro, um mal igualmente grande - assim como a
chuva pode beneficiar a colheita em um caso e prejudicá-la em outro.
E quando os professores se esquecem disso, quando começam a ver a "obviedade" como
uma "bênção" absoluta e incondicional, como uma panacéia para todos os males e, sobretudo, para a
má "abstração", para a assimilação verbal formal do conhecimento, é então que, inconscientemente,
prestam o maior serviço ao inimigo - o "abstrato". De forma hospitaleira, abrem-lhe todas as portas e
janelas da escola, desde que tenha a inteligência de aparecer ali na fantasia de "obviedade", sob um
manto decorado com pequenos quadros, "livros didáticos gráficos" e os outros atributos que
compõem sua camuflagem "concreta".
E isso é terrível. Um inimigo aberto é preferível a um inimigo que se passa por um amigo.
É aí onde a confusão lidera.
Primeiro deixe-me contar uma parábola sábia feita há 150 anos por um homem muito
inteligente. Esta parábola é intitulada: "Quem pensa abstratamente?" Aqui está a primeira parte.
Um assassino está sendo levado à execução. Para a multidão de curiosos ele é um
assassino e nada mais. Pode acontecer que as senhoras que estão presentes
observem, entre outras coisas, que ele é uma bela figura de homem, até mesmo um
homem bonito. A multidão considera isso uma observação repreensível: "O quê? O
assassino é bonito? Como vocês podem pensar uma coisa tão terrível? Como vocês
podem chamar um assassino de bonito? Vocês mesmas, ouso dizer, não são
melhores!” E, talvez, um sacerdote, com o hábito de olhar profundamente para as
coisas e para os corações humanos, acrescente: "Este é um sinal da corrupção moral
que reina nos mais altos círculos da sociedade."
O conhecedor de pessoas tem uma abordagem diferente. Ele traça o curso de eventos
que moldaram o criminoso e descobre na história de sua vida e educação a
influência da discórdia dos pais em sua família. Ele vê que uma vez que esta pessoa
foi punida com severidade excessiva por uma infração insignificante; isso o
amargou, inclinou-o contra a ordem legal, e despertou sua resistência, colocando-o
fora da sociedade, de modo que, eventualmente, o crime tornou-se seu único meio
de autoafirmação.
A multidão, se eles ouvissem isso, certamente ficaria indignada: "Ele quer justificar
um assassino!"
Lembro-me de como, nos dias da minha juventude, havia um prefeito que se
queixava de que os escritores haviam descido tão baixo a ponto de minar os
alicerces do Cristianismo e da ordem legal: um deles, o céu o perdoe, até defendeu o
suicídio!
Outra explicação do prefeito chocado deixou claro que ele estava falando de Os
sofrimentos do jovem Werther [de Goethe].

Isto é o que se chama pensar abstratamente - não ver nada em um assassino além da
abstração de que ele é um assassino, e por meio dessa simples qualidade extinguir todas as outras
qualidades do ser humano no criminoso. Mas passemos à segunda parte da parábola.
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"Ei, velha, você está vendendo ovos podres", diz a compradora à comerciante. "O
quê?" a comerciante explode. "Meus ovos estão podres? Você está podre! Você se
atreve a me dizer uma coisa dessas sobre minhas mercadorias? E quem é você? Seu
pai foi comido vivo por piolhos e sua mãe teve casos com franceses! Você, cuja avó
morreu num albergue! Olhe, você enrolou um lençol inteiro em seu xale! Não
duvide, todo mundo sabe de onde tudo isso veio! Se não fosse pelos oficiais, você e
seu tipo não estariam desfilando em fineza! Mulheres decentes cuidam melhor de
suas casas, mas o lugar para você e seu tipo é na cadeia! Melhor seria se você
cerzisse os buracos de suas meias!" Em suma, ela não pode permitir a mínima gota
de bem na mulher que a insultou. [Retraduzido do russo; fonte exata não fornecida
no original]

Ela também está pensando abstratamente, resumindo tudo, começando com o xale e
terminando com as meias, da cabeça aos pés, e jogando no pai da compradora e outros parentes em
boa medida, exclusivamente à luz de seu crime em dizer que os ovos da comerciante não eram
frescos. Ela vê tudo através do prisma desses ovos podres, enquanto aqueles oficiais a quem ela se
refere, é claro, eles têm alguma coisa a ver com o assunto em questão, o que é muito duvidoso –
prefeririam notar outras coisas em uma mulher.
Essa parábola não parece necessitar de comentários longos. Seu autor, o grande dialético
Hegel, a usa para ilustrar uma proposição muito simples e profundamente verdadeira, ainda que à
primeira vista paradoxal: "Quem pensa abstratamente? A pessoa sem instrução, e de nenhuma
maneira a educada."
A pessoa de cultura intelectual nunca pensa abstratamente porque é muito fácil, por causa
do "vazio interior e inutilidade desse passatempo". Ele nunca se contenta com uma definição verbal
escassa ("assassino", etc.), mas sempre tenta examinar a própria coisa em todas as suas "mediações",
conexões e relações, e, além disso, no desenvolvimento causalmente condicionado pelo mundo
inteiro dos fenômenos que produziram essa coisa.
É o pensamento desse tipo – pensamento culto, competente e flexível dirigido ao objeto –
que a filosofia chama de “pensamento concreto”. Esse pensamento é sempre guiado por sua própria
"lógica das coisas" e não por qualquer interesse, preconceito ou aversão estritamente egoísta
(subjetivo). Ele focaliza as características objetivas de um fenômeno, visando revelar sua
necessidade - isto é, a lei que as governa, e não os detalhes triviais que costumam chamar a atenção,
sejam eles cem vezes mais "óbvios".
O pensamento abstrato é guiado por palavras gerais, por termos e frases memorizados e,
portanto, vê muito pouco da riqueza dos fenômenos reais. Ele vê apenas o que "confirma" ou fornece
"prova gráfica e óbvia" de um dogma ou concepção geral que está preso(a) na cabeça ou, em muitos
casos, simplesmente o que se conforma a um estreito "interesse" egoísta.
JULY–AUGUST 2007 36

O “pensamento abstrato" não é um mérito, como as pessoas às vezes pensam que é,


associando o termo à ideia de "ciência superior" como um sistema de "abstrações" ultra-
incompreensíveis que se mantêm em algum lugar acima das nuvens. Essa ideia de ciência é mantida
apenas por aqueles cuja única experiência da ciência é de segunda mão, que conhecem a superfície
terminológica do processo científico, mas não penetraram em sua essência.
A ciência - se é realmente ciência e não um sistema de termos e frases quase-científico - é
sempre uma expressão (reflexão) de fatos reais, entendidos em sua interligação. Um "conceito" – ao
contrário de uma palavra, que requer simplesmente ser memorizada - é um sinônimo para a
compreensão da essência dos fatos. Um conceito nesse sentido é sempre concreto, no sentido de
relacionado-ao-objeto. Ele surge a partir de fatos, e somente em fatos e por meio de fatos tem
sentido, "significado" ou conteúdo.
Assim também é o pensamento do matemático, que é involuntariamente insultado por
aqueles que desejam elogiá-lo, chamando-o "abstrato". Somente o traje terminológico de
"conceitos", apenas a linguagem da matemática é "abstrata" no pensamento matemático. E se fora de
toda a matemática uma pessoa dominou apenas a sua "linguagem", isso significa que ela a dominou
abstratamente. Em outras palavras, não entendendo e não vendo seu objeto real e não sabendo
mover-se independentemente de acordo com sua lógica estrita - não vendo a realidade do ponto de
vista especificamente matemático, mas vendo apenas os sinais que a designam. Talvez ela também
tenha aprendido alguns "exemplos óbvios" que ilustram a "aplicação" desses sinais.
O matemático real - como o físico, como o biólogo, como o historiador - pensa de maneira
totalmente concreta. Ele também se concentra não em floreios abstratos, mas na própria realidade;
apenas ele faz isso a partir do ângulo ou aspecto especial que é específico para a matemática. É essa
habilidade de ver o mundo circundante do ponto de vista da quantidade que constitui a característica
especial do pensamento do matemático.
A pessoa que não sabe como fazer isso não é um matemático, mas apenas um enumerador e
calculador que executa operações auxiliares padronizadas, mas não está envolvido no
desenvolvimento da ciência matemática.
E saber treinar um matemático - isto é, uma pessoa capaz de pensar no campo da
matemática - é longe de ser a mesma coisa que saber ensinar uma pessoa a contar, calcular e resolver
"tarefas típicas". Nossas escolas, infelizmente, são mais orientadas para o último. Porque isso é "mais
fácil". E então começamos a lamentar o fato de que as pessoas "capazes" do pensamento matemático
são uma raridade - uma ou duas em cada quarenta. Então, espantados com seu "talento natural",
começamos a "selecioná-los" artificialmente, os isolamos das "massas sem talento", e inculcamos
neles uma repugnante auto-presunção, o orgulho e a arrogância dos poucos "seletos".
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A matemática como ciência, no entanto, não é nem um pouco mais complicada e difícil do
que as outras ciências, que não parecem tão misteriosamente abstratas. Em certo sentido, o
pensamento matemático é ainda mais simples e fácil. Isso é evidente se apenas considerarmos o fato
de que os "talentos" matemáticos e mesmo os "gênios" se desenvolvem em uma idade precoce - uma
idade por volta da qual é impossível em outras ciências até mesmo alcançar o primeiro plano. A
matemática requer menos e mais simples "experiência" do mundo circundante do que a economia
política, a biologia ou a física nuclear. É por isso que não encontramos "gênios" de quinze anos
nesses campos do conhecimento.
Se até agora obtivemos de nossas escolas uma proporção relativamente pequena de pessoas
"capazes" de pensamento matemático, isso não é porque a Mãe Natureza é tão avarenta em dar
habilidades matemáticas, mas por outra razão.
É, acima de tudo, porque muitas vezes levamos a criança pequena para a esfera do
pensamento matemático "de cabeça para baixo" ou "de trás para a frente". Desde os seus primeiros
dias na escola, martelamos em sua cabeça "ideias" de conceitos matemáticos que não ajudam, mas,
ao contrário, impedem-na de ver, de olhar corretamente o mundo ao seu redor, do ponto de vista
estritamente matemático, que lhe é pouco familiar.
As poucas crianças que se tornam "capazes" são aquelas que, por uma combinação
afortunada de circunstâncias casuais, conseguem olhar pela "janela" fechada pelas tábuas das ideias
falsas. Em alguns lugares, "fendas" permanecem entre essas tábuas, e a criança curiosa, por vezes,
olha através dessas fendas. E acaba por ser "capaz".
E essas ideias falsas de conceitos matemáticos elementares estão organicamente ligadas a
essas antiquadas ideias filosófico-epistemológicas sobre conceitos em geral e sobre as relações entre
esses conceitos e a realidade fora do pensamento, que a filosofia científica abandonou há muito
tempo.
A análise filosófico-lógica das primeiras páginas do livro de texto aritmético que introduz o
primeiroanista ao reino de conceitos matemáticos demonstra esse fato inquestionável. Inculca na
criança uma ideia absolutamente falsa de número (do ponto de vista da própria matemática).
Como o livro de texto transmite à criança o "conceito" de número, essa base fundamental e
mais geral para todas as suas etapas subsequentes no campo do pensamento matemático?
Na primeira página há desenhos, muito naturais e gráficos, de uma bola e ao lado dela uma
menina, uma maçã (ou cereja), um traço grosso (ou ponto) e, finalmente, o numeral "1".
Na segunda página encontramos duas bonecas, dois meninos, dois melões, dois pontos e o
numeral "2." E assim por diante - até dez, o "limite" estabelecido para o primeiroanista pela didática
de acordo com suas capacidades relacionadas com a idade ("naturais").
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Supõe-se que, ao "dominar" essas dez páginas, a criança "domina" a habilidade de contar e,
ao mesmo tempo, "o conceito de número".
Desta maneira, ele realmente aprende a contar. Mas quanto ao "conceito de número", sem se
dar conta, a criança engole em vez disso uma ideia bastante falsa de número - uma ideia desse
conceito importantíssimo que é ainda pior do que aquelas ideias pré-científicas burguesas com as
quais ela vem para a escola. E um pouco mais tarde, essa falsa ideia a impedirá de dominar passos
mais difíceis no caminho do pensamento matemático.
Depois de dominar as páginas acima mencionadas, o primeiroanista, se ele possuisse a
capacidade analítica necessária, responderia à pergunta: "O que é número?" aproximadamente como
segue.
Número é um nome que expressa a propriedade abstrata geral que todas as coisas simples
compartilham. O primeiro numeral da série de inteiros naturais é o nome de uma única coisa, o
numeral "2" é o nome de "duas" coisas únicas, e assim por diante. Uma coisa única é uma coisa que
vejo no espaço tão nítida e distintamente demarcada, "cortada" por seu contorno de todo o resto do
mundo que a rodeia - quer o contorno seja o de uma bola, uma escada rolante, uma menina, ou uma
tigela de sopa. Não é por acaso que, para verificar se a criança dominou ou não essa sabedoria, o
professor lhe mostra um objeto (não importa que tipo de objeto) e pergunta "quantos?" na esperança
de ouvir "um" em resposta. E similarmente para dois, três, e assim por diante.
Mas é evidente que qualquer pessoa com a menor competência em matemática vai rir ao
ouvir tal explicação de "número" e, com razão, considerá-la infantilmente ingênua e falsa.
Na verdade, trata-se apenas de um caso especial da expressão numérica da realidade. E a
criança é forçada a dominá-lo como o caso mais geral, como uma ideia de "número em geral".
Como resultado, seus primeiros passos na esfera do pensamento matemático, que ela
hesitantemente dá sob a supervisão do professor, já a leva para a confusão, em um beco sem saída.
Logo se verifica que o objeto único que a ela é mostrado não é necessariamente designado pela
palavra "um": pode ser "dois" (duas metades) ou "três" ou "oito" ou algo mais. Acontece que o
número "1" é qualquer coisa que você queira, exceto o nome de uma única "coisa" percebida pelos
sentidos. Então o que é? Que tipo de realidade os sinais numéricos designam?
Agora, mesmo a criança que possui as capacidades analíticas mais sutis e mais brilhantes
não será capaz de dizer isso. E ela será incapaz de lhe dizer, porque duas ideias mutuamente
exclusivas de número foram depositadas em sua cabeça e ela é incapaz de relacioná-las ou "mediá-
las". Elas simplesmente se encontram uma "ao longo" da outra, como dois estereótipos, em seu
"segundo sistema de sinal".
Isso é muito fácil de demonstrar, colocando-as em contradição aberta, em "erro".
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Mostre-lhe um trem de brinquedo composto de três vagões e uma locomotiva a vapor.


Quantos?
Um (trem)? Quatro (partes componentes do trem)? Três e um (os vagões e a locomotiva)?
Dezesseis (rodas)? Seiscentos e cinquenta e quatro (gramas)? Cento e cinquenta (o preço do
brinquedo na loja)? Metade (do conjunto completo)?
Aqui vemos toda a artimanha na questão abstrata "quantos?" para a qual ela foi treinada
para dar uma resposta irrefletidamente abstrata sem esclarecer "quantos o quê?". E ela é até treinada
para renunciar a esse desejo de esclarecer, se ela o tivesse, como um desejo que é necessário deixar
fora da entrada para o templo do pensamento matemático, onde, em contraste com o mundo de sua
experiência direta, tanto um saboroso doce como uma revoltante colher de óleo de rícino significam
"o mesmo" - a saber, "1."
A criança é "treinada" para essa abstração pelas primeiras páginas do livro de "contagem",
que a treinam completamente para desviar sua atenção de quaisquer propriedades qualitativas de
"coisas únicas", para aceitar que nas aulas de matemática a "qualidade" em geral tem que ser
esquecida por causa da quantidade pura, por causa do número, embora isso esteja além do alcance da
compreensão da criança. Ela só pode conseguir isso na fé: tal, aparentemente, é o costume em
matemática, em contraste com a vida real, onde ela continua a distinguir entre doces e óleo de rícino.
Suponhamos que a criança tenha "dominado" firmemente a ideia de "número" e "contagem"
explicada acima e admita que três melões são "o mesmo que" três pares de botas - "três", sem mais
esclarecimentos.
Mas agora deixam-na entrar em um novo mistério. Três metros não podem ser comparados
com três quilos6: eles “não são iguais". Antes que você possa "comparar" as coisas - colocá-las na
mesma escala numérica - você tem que se certificar de que você está lidando com coisas do mesmo
nome (mesma qualidade). Somente "números sem nome" podem ser acrescentados e subtraídos. Um
novo estereótipo, diretamente oposto ao irrefletidamente antigo. Mas qual deles deve ser "aplicado"
ou "ativado" em um determinado caso?
Por que é possível e necessário "comparar" dois rapazes e duas cerejas em um caso,
enquanto em outro não é necessário e não é permitido? Por que em um caso isso é "o mesmo" - ou
seja, coisas únicas sensualmente perceptíveis sem mais esclarecimentos, enquanto que em outro "não
o mesmo" – coisas nomeadas diferentemente, não similares (embora também únicas)?
Na verdade, por quê?

6
No original: “arshins” e “poods”. Arshin: uma velha medida de comprimento, equivalente a cerca de 28 polegadas ou
71 centímetros; pood: uma medida velha do peso, equivalente a aproximadamente 36 libras ou 16.4 quilogramas.
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O professor não explica. Ele simplesmente mostra, usando "exemplos óbvios", que em um
caso você tem que fazê-lo desta maneira, enquanto que no outro você tem que fazê-lo daquela
maneira. A criança recebe assim duas ideias altamente abstratas de "número", mas não lhe é dado um
conceito concreto - isto é, uma compreensão - dele.
Isto faz lembrar muito dos princípios didáticos para "aprender algum sentido" que são
ridicularizados em um conto popular sábio.
"Simplório, oh simplório, em vez de deitar na cama7 por que você não vai ficar perto
das pessoas e aprender algum sentido?"
Ao ver alguns camponeses puxando sacos de trigo, o simplório obediente e diligente
vai e fica perto de um deles, depois de outro...
"Simplório, seu idiota, você deveria ter dito 'eu quero me juntar a vocês, não roubar
de vocês!'"

O simplório segue também obedientemente esta preciosa instrução.


Aqui também, o professor supõe que "concretamente" - com a ajuda da expressão muito
óbvia de "ficar perto" - explicou à criança como a criança pode "aprender algum sentido".
Mas a criança, como o simplório do conto, não compreende as alegorias sábias dos adultos.
Ela as compreende literalmente, compreendendo em suas palavras e explicações apenas o que lhe é
familiar e compreensível a partir de sua própria experiência de vida. E como sua experiência é muito
mais pobre do que a experiência dos adultos e as palavras que expressam essa experiência, ela capta
apenas uma parte do significado incorporado nessas palavras, compreendendo-as literalmente,
abstratamente - isto é, de uma forma unilateral, muito geral. Como resultado, em vez de adquirir
uma compreensão concreta (e sob o disfarce de tal entendimento), ela aprende e toma como seu guia
uma prescrição extremamente abstrata e geral (e, portanto, astuciosamente ambígua). O mesmo é
verdadeiro no que diz respeito ao "número".
Primeiro, é explicado ao aluno que o número (um, dois, três, etc.) é um sinal verbal ou
gráfico que expressa a propriedade comum compartilhada por todas as coisas singulares percebidas
pelos sentidos, não importa o que eles possam ser - meninos ou maçãs, pesos de ferro (poods), ou
ripas de madeira (arshins).
Mas, quando ele diligentemente começa a agir com base nessa ideia abstrata de número
(aqui como em outros lugares, "abstrato" não significa "não óbvio", pelo contrário, é extremamente
óbvio; "abstrato" aqui significa pobre, unilateral, subdesenvolvido, geral demais, tão "geral" como a
expressão "ficar perto") e começa a comparar pesos de ferro (poods) com ripas de madeira (arshins),
ele é censurado: "Você é incapaz! Aqui você deveria ter verificado primeiro se essas são coisas
nomeadas identicamente."

7
Literalmente, pechka — a plataforma aquecida para dormir na cabana de um camponês. —Trad.
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O estudante diligente e obediente está preparado para comparar apenas as coisas de nome
idêntico. Mas esse não era o caso aqui. Na primeira tarefa ele encontra não apenas "meninos" e não
apenas "maçãs", mas meninos misturados com maçãs, para não mencionar meninas más, cada uma
das quais querendo obter mais por uma maçã do que cada menino.
Acontece que não é apenas possível, mas mesmo necessário, somar, subtrair, multiplicar e
dividir números que expressam coisas com nomes diferentes - dividir maçãs por meninos, adicionar
meninos a meninas, dividir quilogramas por metros e multiplicar metros por minutos.
Números que são identicamente nomeados em um caso e em um sentido acabam por ser
nomeados de forma diferente em um segundo e terceiro caso ou sentido. Em um caso, um estereótipo
deve ser ativado, em outro o estereótipo diretamente oposto. Qual dos dois deve ser aplicado em um
determinado caso? Qual das regras memorizadas tem que ser lembrada? E há mais e mais "regras" à
medida que você prossegue. E todos elas são contraditórias.
E a criança confusa começa a agir com o método de "tentativa e erro", movimentando-se
aqui e ali. Quando esse método altamente vangloriado e improdutivo finalmente o conduz a um beco
sem saída e se recusa a dar respostas coincidentes com as impressas no final do livro, a criança
começa a ficar nervosa, chora e, eventualmente, sucumbe ou na histeria ou no estado de tristeza
letárgica e desespero silencioso conhecido como a fase ultraparadoxical.
Cada um de nós, infelizmente, tem observado e observa este quadro todas as noites em
quase todos os apartamentos. Você realmente contou as lágrimas amargas derramadas por crianças
pequenas sobre sua tarefa de aritmética? Mas então é bem sabido que muitas crianças experimentam
lições aritméticas como trabalho duro ou mesmo como um tormento cruel, adquirindo assim uma
aversão ao assunto por toda a vida. Em qualquer caso, essas crianças superam em número os
indivíduos afortunados - os "capazes, talentosos, bem-dotados" - que encontram na aritmética um
passatempo interessante, um campo para o exercício de seus poderes criativos, inventividade e
desenvoltura.
E a natureza não tem a menor culpa por esta situação.
A culpa é da didática. A culpa reside nas ideias sobre a relação do "abstrato com o
concreto", do "geral com o singular", da "qualidade com a quantidade" e do pensamento com o
mundo percebido pelos sentidos que, até hoje, estão na base de muitos programas didáticos.
A análise elementar das primeiras páginas do livro de texto aritmético acima descrito mostra
que as ideias sobre todas essas categorias lógicas permanecem no nível de desenvolvimento da lógica
como ciência que essa respeitada ciência alcançara na época de Jan Amos Komensky [Comenius] e
John Locke.
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A ideia do "concreto" como o que é óbvio para os sentidos - uma ideia que leva na prática à
criança que tem o "abstrato" batido em sua cabeça sob o disfarce do "concreto". A ideia de
"quantidade" (número) como algo que é obtido abstraindo completamente de quaisquer e todas as
características "qualitativas" das coisas, ao equiparar os meninos com poods e maçãs com arshins e
não, como a ciência da lógica demonstrou há mais de 150 anos, analisando uma qualidade
claramente manifestada. A ideia de um conceito como palavra ou termo que expressa a essência
abstrata geral que existe "em todas as coisas" de um determinado tipo - uma ideia superficial que
leva a criança a dominar apenas uma concepção verbal abstrata em vez de (e sob o disfarce de) um
conceito concreto. A ideia de uma "contradição" como algo "ruim" e "intolerável", como mero
indicador de pensamento desleixado e inexato, como algo que deve ser eliminado o mais rápido
possível por meio de "clarificação" verbal e manipulação terminológica.
São todas ideias que hoje, do ponto de vista da lógica contemporânea, do ponto de vista da
dialética como a lógica e a teoria do conhecimento do materialismo contemporâneo, devem ser
avaliadas como superficiais, arcaicas, ingênuas e - não vamos evitar chegar ao ponto principal -
reacionárias.
Para que nossas escolas sejam capazes de ensinar a pensar e para que elas realmente
ensinem a pensar, devemos reconstruir resolutamente toda a didática com base na compreensão
contemporânea marxista-leninista de todas as categorias lógicas - ou seja, de conceitos que
expressam a verdadeira natureza do pensamento em desenvolvimento. Caso contrário, toda a
conversa sobre a melhoria da didática permanecerá apenas um desejo piedoso, e o processo de ensino
baseado nessa didática continuará a produzir "mentes capazes" apenas como uma exceção à regra.
Caso contrário, continuaremos a colocar todas as nossas esperanças em relação aos "dotados" nos
favores da Mãe Natureza. Devemos esperar por esses raros favores em vez de conquistá-los.
E um brilho de esperança a esse respeito já é visível.
No laboratório do Instituto de Psicologia da Academia de Ciências Pedagógicas da RSFSR,
iniciou-se a pesquisa sob a liderança de D. B. Elkonin e V. V. Davydov que visava a especialmente
colocar sob o processo pedagógico uma base firme de ideias filosóficas contemporâneas sobre o
"pensamento" e sua conexão com "contemplação" (com "obviedade"), a conexão entre o "universal"
e o "singular", entre o "abstrato" e o "concreto", entre o "lógico" e o "histórico", e assim por diante.
(nota 1)
Nessa pesquisa, procura-se organizar a assimilação individual do conhecimento científico
de tal forma que ela reproduza de forma comprimida e abreviada o processo real de geração e
desenvolvimento desse conhecimento. Aqui a criança é desde o início não um consumidor de
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resultados fixos incorporados em definições abstratas, axiomas e postulados, mas, por assim dizer,
um "co-participante" no processo criativo.
De nenhuma maneira, é claro, isso significa que cada criança é forçada a "inventar" de
forma independente todas as fórmulas que as pessoas das gerações passadas já inventaram para ela
ao longo dos séculos e milênios. Mas ela deve retraçar a lógica da estrada percorrida. Então, ela
dominará essas fórmulas não como prescrições mágicas abstratas, mas como princípios gerais reais e
bastante concretos para resolver tarefas concretas reais.
"Princípios gerais concretos" - isso soa bastante paradoxal para uma pessoa acostumada a
pensar (mais corretamente, por assim dizer) que "geral" significa "abstrato" e que "concreto"
significa "singular" e óbvio para os sentidos.
No entanto, do ponto de vista dos conceitos da dialética, isso não é de modo algum um
paradoxo, nem uma combinação inesperada de termos mutuamente exclusivos. Do ponto de vista da
dialética, um conceito é precisamente "concreto-universal", em contraste com o termo "abstrato-
geral" que expressa uma ideia unilateral, embora altamente óbvia, sobre as coisas.
Assim, os pesquisadores do laboratório de Elkonin e Davydov estão convencidos de que a
metodologia aceita para ensinar a contar (como descrito acima) dá às crianças não o conceito de
número, mas meramente duas ideias abstratas e mutuamente contraditórias de número, dois casos
especiais da expressão numérica de coisas reais em vez de um princípio verdadeiramente geral. Além
disso, essa metodologia apresenta um desses casos especiais como "geral" e o outro como mais
complexo, como "concreto".
Em um caso o número expressa a quantidade de coisas singulares, no outro caso a
quantidade de suas partes componentes.
Tendo entendido isso, os pesquisadores concluíram que a sequência da metodologia aceita
deve ser revertida. Em primeiro lugar, deve-se explicar às crianças a natureza verdadeiramente geral
do número, e só então devem ser mostrados os dois "casos especiais" de aplicação do conceito.
Mas claramente não se pode transmitir a uma criança o "conceito de número" purificado de
todos os vestígios de "obviedade", de conexão com qualquer "caso especial". Portanto, é necessário
procurar e encontrar um caso "especial" (e portanto obvio, relacionado ao objeto e ao sentido) em
que o número e a necessidade de ações com número aparecem à criança de forma geral. Temos de
procurar uma característica "especial" que exprima apenas a natureza "geral" do número e não
impinja de novo como geral algo que é meramente "especial".
Tentando resolver esse problema parcialmente psicológico, parcialmente lógico e
matemático, os pesquisadores concluíram que é errado começar a ensinar matemática infantil com
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"número" - isto é, com operações de contar e computar, seja em "coisas singulares" ou em suas
"partes componentes". (nota 2)
Há toda razão para supor que as ações com "números" que compõem a "aritmética"
tradicional estão longe de ser as mais simples e fáceis de aprender, e que a aritmética não constitui o
"piso inferior" do pensamento matemático. O piso inferior, em vez disso, consiste em certos
conceitos que normalmente são considerados parte da "álgebra".
Outro paradoxo, pois de acordo com a tradição de longa data "álgebra" é uma coisa mais
complexa e difícil do que a "aritmética": somente quando as crianças atingem a sexta série são
capazes de enfrentá-la, e na "história da matemática" veio mais tarde do que a aritmética.
A análise mostra que, na história do conhecimento, a "álgebra" deve ter surgido não mais
tarde que a "aritmética". É claro que estou falando da história real do desenvolvimento matemático
das pessoas, e não da história dos tratados matemáticos, que refletiram a verdadeira história somente
em retrospecto e, portanto, de cabeça para baixo.
Como a pesquisa demonstra, o homem tornou-se consciente das relações quantitativas muito
simples que a "álgebra" descreve antes de ele "inventar" o número e a contagem. Na verdade, as
pessoas por necessidade devem ter usado palavras como "mais", "menos", "mais longe", "mais
próximo", "então", "anteriormente", "igual" e "desigual" antes de inventarem o número e a contagem
e a adição, subtração, multiplicação e divisão de números. Foi precisamente nessas "palavras" que as
relações quantitativas gerais (espaciais-temporais) entre as coisas, os fenômenos e os acontecimentos
encontraram a sua expressão.
Mas, naturalmente, essa etapa no desenvolvimento do pensamento matemático não foi
registrada em tratados especiais sobre matemática. E se a história real do desenvolvimento do
pensamento matemático começou antes da aparição dos primeiros tratados teóricos sobre
matemática, então a sequência "lógica" para ensinar matemática - isto é, para desenvolver a
capacidade matemática - também deve começar a partir do verdadeiro “início”.
Deve começar orientando a criança corretamente no plano quantitativo da realidade, e não
ensinando-lhe o número, que é meramente uma forma tardia (e portanto mais complexa) da
expressão da quantidade, apenas um caso especial de "quantidade".
Portanto, é preciso começar com ações que marcam para a criança esse plano "quantitativo"
da realidade que ela vê ao seu redor, para abordar o "número" na fase seguinte como a forma
desenvolvida de expressão de "quantidade" como uma abstração intelectual mais tardia e mais
complexa.
O princípio da coincidência do "lógico" com o "histórico" é um grande princípio da lógica
dialética. Mas, mais uma vez, sua aplicação depende de um detalhe dialeticamente hábil - ou seja, a
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lógica deve corresponder à história real do objeto, e não à história das ideias teóricas sobre essa
história.
Analisando a história da economia política, Karl Marx observou uma circunstância que é de
grande importância do ponto de vista da dialética. "O desenvolvimento histórico de todas as ciências
leva ao seu verdadeiro ponto de partida somente por meio de uma infinidade de caminhos de
rotatória e cruzamento. Ao contrário de outros arquitetos, a ciência não só desenha castelos no ar,
como também erige algumas histórias do edifício antes de lançar sua fundação" (Contribuição para
a Crítica da Economia Política, p. 46. [retraduzido do russo]).
Sim, a ciência "descobre" em seu objeto o verdadeiro "fundamento lógico" sobre o qual as
histórias superiores repousam apenas em retrospecto.
Até então, esse "fundamento" é pressuposto pelas "histórias superiores", mas não é
claramente compreendido, demonstrado e analisado. É pressuposto de uma forma confusa,
indistintamente formulado, muitas vezes sob a forma de ideias "místicas". Foi o que aconteceu, por
exemplo, no caso da diferenciação. Newton e Leibnitz "descobriram" a diferenciação e ensinaram as
pessoas a usá-la, mas eles mesmos não conseguiam entender em quais fundamentos reais reside toda
a sua complexa construção - isto é, quais conceitos e ações "mais simples" ela realmente pressupõe.
Isso foi estabelecido somente mais tarde, por Lagrange, Euler e outros teóricos.
O número e a contagem realmente pressupuseram e pressupõem como pré-condições reais
um número de ideias que a matemática (como "todas as ciências") chega a compreender apenas em
retrospectiva. Falo aqui das pré-condições gerais do número e da contagem, dos conceitos que devem
ser desenvolvidos (e dominados) antes do número e da contagem porque são de caráter mais geral e,
portanto, logicamente mais simples.
Os "signos" matemáticos com a ajuda dos quais esses conceitos mais simples e mais gerais
são registrados não são numerais mas sim signos que há muito são usados pela álgebra.
Eles são os signos para igualdade (=) e desigualdade (≠) para "mais" (>) e para "menos" (<).
E todos esses signos indicam relações entre magnitudes. Precisamente entre "magnitudes" - isto é,
entre quaisquer magnitudes, de qualquer tipo, quer expressas em termos de número quer não, quer
espaciais-geométricas ou temporais. Relações entre magnitudes em geral.
É evidente que a ideia de "magnitude" surgiu na história do pensamento das pessoas antes
da capacidade de medir essas magnitudes precisamente por um meio ou outro e expressá-las em
termos de "número".
A capacidade especialmente para marcar, de toda a diversidade de qualidades de coisas que
são percebidas pelos sentidos, apenas uma qualidade, ou seja, sua "magnitude". E, em seguida, a
capacidade de comparar essas "magnitudes" ou comparar as coisas apenas como magnitudes. Para
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julgar se elas são iguais ou não. Para julgar qual delas é "maior" ou "mais próxima" e qual é "menor"
ou "mais distante" - no espaço ou no tempo.
E então, quando se descobriu que julgamentos desse tipo são muito "gerais", demasiado
incompletos (= "abstratos") para agir no mundo em sua base, a questão começou a surgir: "maior" ou
"menor" acerca de quanto? E somente neste ponto surgiram a necessidade e a prática de "número" e
"contagem".
Porque sem eles, sem esses conceitos mais concretos (complexos, desenvolvidos) de
quantidade, teria sido impossível resolver tarefas práticas mais complexas e concretas orientadas a
objetos, relacionadas com a reflexão da determinação quantitativa do mundo circundante.
O homem "inventou" o número não "abstraindo" de todas e quaisquer "qualidades", não
aprendendo a "não prestar atenção" à diferença entre uma pedra e um pedaço de carne, entre uma
vara e um fogo. Ao contrário: em "número" e "contagem" encontrou um meio para a expressão mais
profunda e concreta precisamente da determinação qualitativa (a mais importante e a primeira).
A "necessidade" que o homem tinha de número surgiu quando e somente quando a vida o
colocou diante da necessidade de dizer a outra pessoa (ou a si mesmo) não simplesmente "mais" ou
"menos", mas quanto "mais" ou "menos".
Isso pressupunha uma maneira mais elevada e mais desenvolvida de se relacionar com as
coisas do mundo circundante do que aquela com base na qual ele tinha aprendido a distinguir
"magnitudes" apenas aproximadamente - abstratamente.
O número pressupõe a medida como uma categoria mais complexa do que a "qualidade" e a
"quantidade" - uma categoria que permite refletir o aspecto quantitativo da qualidade marcada mais
precisamente (mais concretamente) do que antes. E para registrar essa ideia mais concreta
precisamente com o auxílio de numerais e não simplesmente por meio das palavras "mais", "menos",
"igual" e "desigual".
A partir de uma ideia geral, difusa e indiferenciada de "quantidade", o homem se aproximou
e chegou a uma ideia de quantidade mais perfeita e precisa - isto é, concreta - ou seja, "número".
E, portanto, o "número" tinha um significado e uma significação bastante concretos - isto é,
relacionados ao objeto e práticos - para o homem desde o início. E era um verdadeiro conceito de
número, embora ainda não tivesse sido analisado teoricamente por um único matemático
profissional. Isso não aconteceu até muito mais tarde, quando não apenas o pensamento matemático,
mas sua "autoconsciência" teórica surgiram. Inicialmente, essa auto-consciência tomou uma forma
mística distorcida, como entre os pitagóricos. E seriam muitos milênios antes que a matemática
atingisse uma verdadeira compreensão teórica do número.
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É, evidentemente, a partir deste verdadeiro início e nesta verdadeira sequência histórica, que
a matemática como ciência deve descobrir, apenas em retrospecto, que o desenvolvimento lógico da
mente da criança no campo da matemática deveria prosseguir.
Primeiro, a criança deve ser ensinada a orientar-se da forma mais geral e abstrata no plano
quantitativo, a dominar as relações mais gerais e abstratas entre as coisas como "magnitudes", e a
gravar essas relações no papel com a ajuda dos signos para "mais", "menos", "igual" e "desigual".
Aqui, no entanto, a criança aprende a orientar-se no plano da quantidade, não por meio do
"raciocínio abstrato", mas de situações reais que lhe são compreensíveis – “igualando” varetas e
“combinando” porcas com parafusos, caixas com lápis, e assim por diante. Para a criança, isso é
compreensível e interessante.
Para a mente da criança, isso é treinamento na habilidade de marcar de forma independente
o aspecto quantitativo-matemático das coisas reais no mundo de qualidades diversas que a rodeia.
E não treinar na habilidade de repetir como papagaio a palavra "um" quando uma "coisa"
singular sensualmente percebida é posta na frente de seu nariz, ou a palavra "dois" quando duas
dessas coisas são postas lá.
Graças a isso, a criança, quando lhe é mostrada uma coisa singular sensualmente percebida
(duas, três, etc.), não mais responderá irrefletidamente à pergunta provocativa e abstrata "quantos?"
com a palavra "um" ("dois, "três", etc.). Ela vai primeiro perguntar: "Quantos o quê?"
E isso indica que ela já está - no caso do número – pensando concretamente. E não como a
comerciante do mercado que impensadamente pendura o rótulo de uma abstração verbalmente
incorporada sobre uma coisa concreta e pensa que sua "compreensão" desta coisa é assim completa.
Se para a sua legítima questão a criança recebe a resposta: "Estou perguntando quantas
coisas há aqui", ela responderá com confiança e precisão: "Uma".
Se lhe for explicado: "Estou perguntando quantos centímetros", ela responderá: "dois",
"cerca de dois", ou dirá: "Tem de ser medido". Ela entende que expressão em termos de número (um
numeral) requer medição, medida.
Dois elementos importantes de "inteligência" são treinados aqui simultaneamente. Primeiro,
a capacidade de se relacionar corretamente com uma pergunta ("quantos?") e de fazer uma pergunta
para esclarecer a tarefa em termos suficientemente concretos para possibilitar uma resposta precisa e
inequívoca ("quantos o quê?"). E segundo, a capacidade de correlacionar corretamente um signo
numérico com a realidade em seu aspecto matemático.
A mente da criança procede aqui não de particulares óbvios para o abstratamente geral,
porque este é um caminho completamente antinatural e infrutífero na ciência, mas do
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verdadeiramente universal (abstrato) à diversidade dos particulares ao seu alcance (isto é, ao


concreto). (nota 3)
Pois é assim que a própria ciência se desenvolve, assimilando cada vez mais "particulares" à
luz dos princípios iniciais. E não o contrário, não partindo dos "particulares" para as elevadas alturas
da abstração vazia.
Aqui o pensamento move-se constantemente dentro do material sensível e relacionado ao
objeto (e portanto também "óbvio"), move-se de acordo com os fatos, nunca por um momento
rompendo a conexão com eles.
Dessa forma, a criança domina a verdadeira realidade sensorial e relacionada ao objeto dos
conceitos matemáticos, e não uma pobre imitação substituta dessa realidade, não "exemplos óbvios"
de abstrações definidas que são incompreensíveis para ele. O pensamento matemático se desenvolve
dentro dela. Não há necessidade de acumular-lhe montes de palavras abstratas, prescrições,
esquemas estereotipados e "soluções típicas" que ela é então completamente incapaz de "aplicar".
Portanto, ela não enfrenta então a tarefa supremamente absurda de, de algum modo, "aplicar" o
conhecimento geral que ela adquiriu (ou seja, atulhou) para a vida, para a realidade. Para ela, esse
conhecimento geral é, desde o início, nada menos que a própria realidade, refletida em suas
características essenciais - isto é, nos conceitos. Nos conceitos, ela domina precisamente a realidade
que eles refletem. E não "abstrações" que ela é então completamente incapaz de correlacionar com a
"realidade".
O leitor-pedagogo que esperava encontrar neste artigo um conjunto detalhado de receita em
resposta à pergunta "Como eu deveria ensinar a pensar?" provavelmente ficará desapontado. Tudo
isso é muito geral, ele dirá, mesmo que seja verdade.
Muito certo. A filosofia é incapaz de oferecer ao pedagogo qualquer conjunto de prescrições
ou "algoritmos" a este respeito. É necessário gastar muito mais esforços para trazer os princípios que
enunciei a um grau de concretude que os torne diretamente aplicáveis à prática pedagógica diária.
Isso exigirá esforços colaborativos por parte de filósofos e lógicos, psicólogos, especialistas em
matemática e em história, e, naturalmente, os próprios pedagogos.
Qualquer um que queira ensinar os outros a pensar deve ele próprio saber pensar. Você não
pode ensinar alguém a fazer o que você não sabe fazer você mesmo.
Nenhuma didática ensinará a um pedagogo como ensinar a pensar se esse pedagogo é uma
pessoa indiferente, semelhante a uma máquina, acostumada a trabalhar de acordo com o estereótipo,
a seguir um algoritmo rigidamente programado em sua cabeça. Cada pedagogo deve ser capaz de
aplicar princípios teóricos gerais e, em particular, princípios filosóficos gerais ao seu próprio assunto
concreto. Não devia esperar que outra pessoa fizesse isso por ele e lhe trouxesse uma coleção de
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prescrições estabelecidas que o aliviassem da carga do trabalho intelectual, da necessidade, acima de


tudo, de constituir seu próprio pensamento. Mesmo a melhor e mais elaborada didática não libertará
o pedagogo dessa necessidade. Por mais concreto e detalhado que possa ser, entre suas proposições
gerais e situações pedagógicas únicas, haverá uma lacuna. E somente o pedagogo que pensa
dialecticamente, somente a pessoa com um "poder de julgamento" desenvolvido será capaz de
superar essa lacuna (entre o "universal" e o "singular").
Nossas escolas devem ensinar a pensar. Isso significa que cada pedagogo deve ensinar a
pensar. Pensar no nível da lógica contemporânea, isto é, no nível da dialética como lógica e teoria do
conhecimento do materialismo de Marx, Engels e Lênin. Sem isso, todos os nossos esforços
resultarão em nada, e a didática permanecerá no nível de John Locke e Jan Amos Komensky.

Notas
1. Ver V. V. Davydov, "Sviaz 'teorii obobshcheniia s programmirovaniem obucheniia," em
Issledovaniia myshleniia v sovetskoi psikhologii (Moscou: Nauka, 1966).
2. Para uma análise detalhada deste problema, veja o livro Vozrastnye vozmozhnosti
usvoeniia znanii (mladshie klassy shkoly), ed. D.B. El'konin [Elkonin] e V.V. Davydov (Moscovo:
Prosveshchenie, 1966).
3. Para um tratamento mais detalhado ver, por exemplo, o meu livro Dialektika
abstraktnogo i konkretnogo v "Kapitale" K. Marksa (Moscovo: Izd-vo AN SSSR, 1960).

Para solicitar reimpressões, ligue para 1-800-352-2210; Fora dos Estados Unidos, ligue para
717-632-3535
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