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A primeira faz bum, a segunda faz tá


SOBREVIVENDO NO INFERNO Eu tenho uma missão e não vou parar
Organizado por Professor Márcio K. Meu estilo é pesado e faz tremer o chão
Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição
RACIONAIS MC’s Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além
E tem disposição pro mal e pro bem
Jorge da Capadócia
Jorge sentou praça
Talvez eu seja um sádico, ou um anjo
Na cavalaria
Um mágico, o juiz ou réu
E eu estou feliz porque eu também
O bandido do céu, malandro ou otário
Sou da sua companhia
Padre sanguinário, franco atirador se for necessário
Eu estou vestido com as roupas
Revolucionário, insano ou marginal
E as armas de Jorge
Antigo e moderno, imortal
Para que meus inimigos tenham pés
Fronteira do céu com o inferno
E não me alcancem
Astral imprevisível
Para que meus inimigos tenham mãos
Como um ataque cardíaco do verso
E não me toquem
Violentamente pacífico
Para que meus inimigos tenham olhos
Verídico, vim pra sabotar seu raciocínio
E não me vejam
Vim pra abalar seu sistema nervoso, e sanguíneo
E nem mesmo um pensamento eles possam ter
Pra mim ainda é pouco, Brown cachorro louco
Para me fazerem mal
Número 1 dia, terrorista da periferia
Armas de fogo
Uni-duni-tê, eu tenho pra você
Meu corpo não alcançarão
Um rap venenoso ou uma rajada de PT
Facas e espadas se quebrem
E a profecia se fez como previsto
Sem o meu corpo tocar
1997, depois de Cristo
Cordas e correntes arrebentem
A fúria negra ressuscita outra vez
Sem o meu corpo amarrar
Racionais Capítulo 4, Versículo 3
Pois eu estou vestido com as roupas
E as armas de Jorge
Aleluia, aleluia
Jorge é de Capadócia
Racionais no ar, filhas da puta, pá, pá, pá
Salve Jorge
Salve Jorge
Faz frio em São Paulo
Jorge é de Capadócia
Pra mim tá sempre bom
Salve Jorge
Eu tô na rua de bombeta e moletom
Salve Jorge
Dim, dim, dom, rap é o som
Que emana no Opala marrom
Genesis E aí, chama o Guilherme
Chama o Vander, chama o Dinho e o Di
"Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor. Marquinho chama o Éder, vamo aí
O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as Se os outros manos vem
bebida, as puta. Pela ordem tudo bem melhor
Eu? Eu tenho uma bíblia véia, uma pistola automática e um Quem é quem no bilhar no dominó
sentimento de revolta.
Eu tô tentando sobreviver no inferno". Colou dois mano, um acenou pra mim
De jaco de cetim, de tênis e calça jeans
Capítulo 4, Versículo 3
Ei Brown, sai fora nem vai, nem cola
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais Não vale a pena dar ideia nesses tipo aí
Já sofreram violência policial Ontem à noite eu vi na beira do asfalto
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras Tragando a morte, soprando a vida pro alto
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são Ó os cara só pó, pele o osso
negros No fundo do poço, vários flagrante no bolso
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São
Paulo Veja bem, ninguém é mais que ninguém
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente Veja bem, veja bem, eles são nosso irmãos também
Mas de cocaína e crack, Whisky e conhaque
Minha intenção é ruim, esvazia o lugar Os manos morrem rapidinho sem lugar de destaque
Eu tô em cima, eu tô afim, um, dois pra atirar
Eu sou bem pior do que você tá vendo Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma
O preto aqui não tem dó, é 100% veneno Nem dá, nunca te dei porra nenhuma
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Você fuma o que vem, entope o nariz Os mano cu de burro têm, eu sei de tudo
Bebe tudo o que vê, faça o diabo feliz Em troca de dinheiro e um cargo bom
Você vai terminar tipo o outro mano lá Tem mano que rebola e usa até batom
Que era um preto tipo A Vários patrícios falam merda pra todo mundo rir
Ninguém entrava numa, mó estilo Ha ha, pra ver branquinho aplaudir
De calça Calvin Klein e tênis Puma É, na sua área tem fulano até pior
Um jeito humilde de ser, no trampo e no rolê Cada um, cada um, você se sente só
Curtia um Funk, jogava uma bola Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério
Buscava a preta dele no portão da escola Explode sua cara por um toca-fita velho
Um exemplo pra nós, mó moral, mó ibope Click pláu, pláu, pláu e acabou
Mas começou colar com os branquinhos do shopping Sem dó e sem dor, foda-se sua cor
(Aí já era) Limpa o sangue com a camisa e manda se foder
Ih mano outra vida, outro pique Você sabe por quê, pra onde vai, pra quê?
Só mina de elite, balada, vários drink Vai de bar em bar, esquina em esquina
Puta de butique, toda aquela porra Pegar 50 conto, trocar por cocaína
Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra
Enfim, o filme acabou pra você
Hã, faz uns nove anos A bala não é de festim, aqui não tem dublê
Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia
Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia
Dente tudo zoado, bolso sem nenhum conto De Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro
O cara cheira mal, as tia sente medo Ser um preto tipo A custa caro
Muito louco de sei lá o que logo cedo É foda, foda é assistir à propaganda e ver
Agora não oferece mais perigo Não dá pra ter aquilo pra você
Viciado, doente, fodido, inofensivo Playboy forgado de brinco: Cu, trouxa
Roubado dentro do carro na avenida Rebouças
Um dia um PM negro veio embaçar Correntinha das moça
E disse pra eu me pôr no meu lugar As madame de bolsa
Eu vejo um mano nessas condições, não dá Dinheiro, não tive pai não sou herdeiro
Será assim que eu deveria estar? Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor Por menos de um real
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor Minha chance era pouca
Te oferece dinheiro, conversa com calma Mas se eu fosse aquele moleque de touca
Contamina seu caráter, rouba sua alma Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
Depois te joga na merda sozinho De quebrada sem roupa, você e sua mina
Transforma um preto tipo A num neguinho Um, dois, nem me viu, já sumi na neblina
Minha palavra alivia sua dor Mas não, permaneço vivo, prossigo a mística
Ilumina minha alma, louvado seja o meu Senhor Vinte e sete anos contrariando a estatística
Que não deixa o mano aqui desandar, ah Seu comercial de TV não me engana
E nem sentar o dedo em nenhum pilantra Eu não preciso de status nem fama
Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei Seu carro e sua grana já não me seduz
Racionais Capítulo 4, Versículo 3 E nem a sua puta de olhos azuis
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Aleluia, aleluia Apoiado por mais de 50 mil manos
Racionais no ar filha da puta, pá, pá, pá Efeito colateral que o seu sistema fez
Racionais Capítulo 4, Versículo 3
Quatro minutos se passaram e ninguém viu
O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil
Talvez o mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo
Que enquadra o carro forte na febre com sangue nos olhos Tô Ouvindo Alguém Me Chamar
O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol (Aí mano, o Guina mandou isso aqui pra você)
Ou o que vende chocolate de farol em farol
Talvez o cara que defende o pobre no tribunal Tô ouvindo alguém gritar meu nome
Ou que procura vida nova na condicional Parece um mano meu, é voz de homem
Alguém num quarto de madeira lendo à luz de vela Eu não consigo ver quem me chama
Ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela É tipo a voz do Guina
Ou da família real de negro como eu sou Não, não, não, o Guina tá em cana
Um príncipe guerreiro que defende o gol Será? Ouvi dizer que morreu
Sei lá!
E eu não mudo, mas eu não me iludo
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Última vez que eu o vi Tá vendo televisão


Eu lembro até que eu não quis ir, ele foi
Parceria forte aqui era nós dois (Psiu, vamo, vai, entrando)
Louco, louco, louco e como era Guina no portão, eu e mais um mano
Cheirava pra caralho (vixe), sem miséria Como é que é neguinho?
Se dirigia a mim, e ria, ria, como se eu não fosse nada
Todo ponta firme, foi professor no crime Ria, como fosse ter virada
Também mó sangue frio, não dava boi pra ninguém Estava em jogo, meu nome e atitude
Era uma vez Robin Hood
Puta aquele mano era foda Fulano sangue-ruim, caiu de olho aberto
Só moto nervosa Tipo me olhando, é, me jurando
Só mina da hora Eu tava bem de perto e acertei uns seis
Só roupa da moda O Guina foi e deu mais três
Deu uma pá de blusa pra mim
Naquela fita na butique do Itaim Lembro que um dia o Guina me falou
Mas sem essa de sermão, mano, eu também quero ser assim Que não sabia bem o que era amor
Vida de ladrão não é tão ruim Falava quando era criança
Uma mistura de ódio, frustração e dor
Pensei De como era humilhante ir pra escola
Entrei Usando a roupa dada de esmola
No outro assalto eu colei e pronto De ter um pai inútil, digno de dó
Aí o Guina deu mó ponto Mais um bêbado, filho da puta e só
Aí é um assalto, todo mundo pro chão, pro chão Sempre a mesma merda, todo dia igual
Aí filho-da-puta, aqui ninguém tá de brincadeira não Sem feliz aniversário, Páscoa ou Natal
Mais eu ofereço o cofre mano, o cofre, o cofre Longe dos cadernos, bem depois
Vamo lá que o bicho vai pegar A primeira mulher e o 22
Prestou vestibular no assalto do busão
Pela primeira vez vi o sistema aos meu pés Numa agência bancária se formou ladrão
Apavorei, desempenho nota dez Não, não se sente mais inferior
Dinheiro na mão, o cofre já tava aberto Aí neguinho, agora eu tenho o meu valor
O segurança tentou ser mais esperto
Foi defender o patrimônio do playboy (tiros) Guina, eu tinha mó admiração, ó
Não vai dar mais pra ser super-herói Considerava mais do que meu próprio irmão, ó
Ele tinha um certo dom pra comandar
Se o seguro vai cobrir (ha-ha) Tipo, linha de frente em qualquer lugar
Foda-se, e daí? Tipo, condição de ocupar um cargo bom e tal
O Guina não tinha dó Talvez em uma multinacional
Se reagir, bum, vira pó É foda
Sinto a garganta ressecada Pensando bem que desperdício
E a minha vida escorrer pela escada Aqui na área acontece muito disso
Mas se eu sair daqui eu vou mudar Inteligência e personalidade
Mofando atrás da porra de uma grade
Eu tô ouvindo alguém me chamar
Eu tô ouvindo alguém me chamar Eu só queria ter moral e mais nada
Mostrar pro meu irmão
Tinha um maluco lá na rua de trás Pros cara da quebrada
Que tava com moral até demais Uma caranga e uma mina de esquema
Ladrão, e dos bons Algum dinheiro resolvia o meu problema
Especialista em invadir mansão O que eu tô fazendo aqui?
Comprava brinquedo a reviria Meu tênis sujo de sangue, aquele cara no chão
Chamava a molecada e distribuía Uma criança chorando e eu com um revolver na mão
Sempre que eu via ele tava só Era um quadro do terror, e eu que fui o autor
O cara é gente fina mas eu sou melhor
Eu aqui na pior, ele tem o que eu quero Agora é tarde, eu já não podia mais
Joia escondida e uma 380 Parar com tudo, nem tentar voltar atrás
No desbaratino ele até se crescia Mas no fundo, mano, eu sabia
Se pan, ignorava até que eu existia Que essa porra ia zoar a minha vida um dia
Me olhei no espelho e não reconheci
Tem um brilho na janela, é então Estava enlouquecendo, não podia mais dormir
A bola da vez Preciso ir até o fim
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Será que Deus ainda olha pra mim? Qual que é?


Eu sonho toda madrugada Eu nem sei
Com criança chorando e alguém dando risada Diz que o Guina tá em cana e eu que cagüetei
Não confiava nem na minha própria sombra Pô, logo quem, logo eu, olha só, ó
Mas segurava a minha onda Que sempre segurei os B.O
Não, eu não sou bobo, eu sei qual é que é
Sonhei que uma mulher me falou, eu não sei o lugar Mas eu não tô com esse dinheiro que os cara quer
Que um conhecido meu (quem?) ia me matar Maior que o medo, o que eu tinha era decepção
Precisava acalmar a adrenalina A trairagem
Precisava parar com a cocaína A pilantragem
A traição
Não tô sentindo meu braço Meus aliado, meus mano, meus parceiro
Nem me mexer da cintura pra baixo Querendo me matar por dinheiro
Ninguém na multidão vem me ajudar? Vivi sete anos em vão
Que sede da porra, eu preciso respirar Tudo que eu acreditava não tem mais razão, não

Cadê meu irmão? Meu sobrinho nasceu


Eu tô ouvindo alguém me chamar Diz que o rosto dele é parecido com o meu
Eu tô ouvindo alguém me chamar É, diz: Um pivete eu sempre quis
Meu irmão merece ser feliz
Nunca mais vi meu irmão Deve estar a essa altura
Diz que ele pergunta de mim, não sei não Bem perto de fazer a formatura
A gente nunca teve muito a ver Acho que é direito, advocacia
Outra ideia, outro rolê Acho que era isso que ele queria
Os malucos lá do bairro Sinceramente eu me sinto feliz
Já falava de revolver, droga, carro Graças a Deus, não fez o que eu fiz
Pela janela da classe eu olhava lá fora Minha finada mãe, proteja o seu menino
A rua me atraia mais do que a escola O diabo agora guia o meu destino
Fiz 17, tinha que sobreviver
Agora eu era um homem, tinha que correr Se o júri for generoso comigo
No mundão você vale o que tem Quinze anos para cada latrocínio
Eu não podia contar com ninguém Sem dinheiro pra me defender
Cuzão Homem morto, cagueta, sem ser
Fica você com seu sonho de doutor Que se foda, deixa acontecer
Quando acordar cê me avisa, morô? Não há mais nada a fazer
Eu e meu irmão era como óleo e água
Quando eu sai de casa trouxe muita mágoa Essa noite eu resolvi sair
Isso há mais ou menos seis anos atrás Tava calor demais, não dava pra dormir
Porra, mó saudade do meu pai Ia levar meu canhão
Sei lá, decidi que não
Me chamaram para roubar um posto É rapidinho, não tem precisão
Eu tava duro, era mês de agosto Muita criança, pouco carro, vou tomar um ar
Mais ou menos três e meia, luz do dia Acabou meu cigarro, vou até o bar
Tudo fácil demais, só tinha um vigia
Não sei, não deu tempo, eu não vi, ninguém viu (E aí, como é que é, e aquela lá ó?)
Atiraram na gente, um moleque caiu Tô devagar, tô devagar
Prometi pra mim mesmo, era a última vez
Porra, ele só tinha 16 Tem uns baratos que não dá pra perceber
Que tem mó valor e você não vê
Não, não, não, tô afim de parar Uma pá de árvore na praça
Mudar de vida, ir pra outro lugar As criança na rua
Um emprego decente, sei lá O vento fresco na cara
Talvez eu volte a estudar As estrela
Dormir a noite era difícil pra mim A Lua
Medo, pensamento ruim
Ainda ouço gargalhadas, choro, vozes Dez minutos atrás, foi como uma premonição
A noite era longa Dois moleques caminhando em minha direção
Mó neurose Não vou correr, eu sei do que se trata
Se é isso que eles querem
Tem uns malucos atrás de mim Então vem, me mata
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Disse algum barato pra mim que eu não escutei \"Clip, clap, bum!\"
Eu conhecia aquela arma, é do Guina, eu sei \"Predatória\".
Uma 380 prateada, que eu mesmo dei Rapaz comum.
Um moleque novato com a cara assustada \"Preserve a sua glória!\"
(Aí mano, o Guina mandou isso aqui pra você)
Mas depois do quarto tiro eu não vi mais nada Queria atrasar o meu relógio.
Pra mim vale muito um minuto a mais de ódio.
Sinto a roupa grudada no corpo Mas me sinto fraco, indefeso, desprotegido.
Eu quero viver Eu vou mais alto, cusão! Pra te levar comigo!
Não posso estar morto Vou ser um encosto na sua vida.
Mas se eu sair daqui eu vou mudar Você criou um monstro sem cura, sem alternativa!
Eu tô ouvindo alguém me chamar Me enganar pra quê?
Se o fim é virar pó!
Fiquei muito pior.
Segura o seu B.O.!
Rapaz Comum O preto aqui não tem dó!
Mais uma vida desperdiçada e é só.
Parece que alguém está me carregando perto do chão Uma bala vale por uma vida do meu povo.
Parece um sonho, parece uma ilusão No pente tem quinze, sempre há menos no morro, e então?
A agonia, o desespero toma conta de mim. Quantos manos iguais a mim se foram?
Algo no ar me diz que é muito ruim. Preto, preto, pobre, cuidado, socorro!
Meu sangue quente. Não sinto dor. Quê que pega aqui? Quê que acontece ali?
A mão dormente não sente o próprio suor. Vejo isso frequentemente, desde moleque.
Meu raciocínio fica meio devagar. Quinze de idade já era o bastante, então.
Quem me fodeu? Treta no baile, então. Tiros de monte!
Eu tô tentando me lembrar. Morte nem se fala!
Cresceu o movimento ao meu redor. Eu vejo o cara agonizando!
Meu Deus! Eu não sei mais o que é pior. \"Chame a ambulância! Alguém chame a ambulância!\"
Mentir a vida toda pra si mesmo. Depois ficava sabendo na semana
Ou continuar e insistir no mesmo erro. Que dois já era.
Me lembro de um fulano: Os preto sempre teve fama.
\"mata esse mano!\" No jornal, revista e TV se vê.
Será que errar dessa forma é humano? Morte aqui é natural, é comum de se ver.
Errar a vida inteira é muito fácil. Caralho! Não quero ter que achar normal
Pra sobreviver aqui tem que ser mágico. ver um mano meu coberto de jornal!
Me lembro de várias coisas ao mesmo tempo. É mal! Cotidiano suicida!
Como se eu estivesse perdendo tempo. Quem entra tem passagem só pra ida!
\"A ironia da vida é foda!\" Me diga. Me diga: que adianto isso faz?
Que valor tem? Quanto valor tem? Me diga. Me diga: que vantagem isso traz?
Uma vida vale muito, vim saber agora. Então...
Deitado aqui e os manos na paz, tudo lá fora A fronteira entre o Céu e o Inferno tá na sua mão.
Puxando ferro ou talvez batendo uma bola. Nove milímetros de ferro.
\"Pode crer. Deve tá mó lua da hora\" Cusão! otário! que pôrra é você?
Tem alguém me chamando, quem é? Olha no espelho e tenta entender
Apertando minha mão, tem voz de mulher. A arma é uma isca pra fisgar.
O choro a faz engolir as palavras. Você não é polícia pra matar!
Um lenço que enxuga meu suor enxuga suas próprias É como uma bola de neve.
lágrimas. Morre um, dois, três, quatro.
No rosto de uma mãe que ora baixinho. Morre mais um em breve.
Que nunca me deixou faltar, ficar sozinho. Sinto na pele, me vejo entrando em cena.
Me ensinou o caminho desde criança. Tomando tiro igual filme de cinema.
Minha infância, mais uma eu guardo na lembrança.
Na esperança da periferia eu sou mais um. \"Clip, clap, bum!\"
Rapaz comum.
\"Clip, clap, bum!\" \"Clip, clap, bum!\"
Rapaz comum. \"A lei da selva é assim\"
\"Clip, clap, bum!\" \"Clip, clap, bum!\"
\"A lei da selva é assim\" Rapaz comum.
\"Clip, clap, bum!\" \"A lei da selva é assim\"
Rapaz comum. \"Clip, clap, bum!\"
\"A lei da selva é assim\"
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\"Predatória\". Mas de um a cem, a minha chance é zero


Rapaz comum. Será que Deus ouviu minha oração?
\"Preserve a sua glória!\" Será que o juiz aceitou a apelação?
Mando um recado lá pro meu irmão
Minha idéia tá clareando. Se tiver usando droga, tá ruim na minha mão
Eu fico atacado, mó neurose, o tempo tá esgotando. Ele ainda tá com aquela mina
Não quero admitir, meus olhos vão abrir. Pode crer, moleque é gente fina
Vou chorar, vou sorrir, vou me despedir. Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá
Não quero admitir que sou mais um. Tanto faz, os dias são iguais
Infelizmente é assim, aqui é comum. Acendo um cigarro, e vejo o dia passar
Um corpo a mais no necrotério, é sério.
Um preto a mais no cemitério, é sério. Mato o tempo pra ele não me matar
Eu tô me vendo agora e é difícil. Homem é homem, mulher é mulher
Minha família, meus manos. Estuprador é diferente, né?
No centro um crucifixo. Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés
Meus filhos olhando sem entender o porquê. E sangra até morrer na rua 10
Se eu pudesse falar talvez iriam saber. Cada detento uma mãe, uma crença
Não acredito que esse mano veio até aqui! Cada crime uma sentença
Me matou, quer certeza e quer conferir. Cada sentença um motivo, uma história de lágrima
Me acompanham até a sepultura. Sangue, vidas inglórias, abandono, miséria, ódio
Vejo um tumulto no caixão. Hã! Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
E alguém segura! Misture bem essa química
Mais uma mãe que não se conforma. Pronto, eis um novo detento
Perder um filho dessa forma é foda!
Quem se conforma? Lamentos no corredor, na cela, no pátio
Como eu podia imaginar no velório de outras pessoas. Ao redor do campo, em todos os cantos
Hoje estou no lugar. Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã
No buraco desce o meu caixão. Aqui não tem santo
Jogam terra, flores, se despedem na última oração. Rátátátá preciso evitar
Tão me chamando, meu tempo acabou. Que um safado faça minha mãe chorar
Não sei pra onde ir! Minha palavra de honra me protege
Não sei pra onde vou! Pra viver no país das calças bege
Qual que é? Tic, tac, ainda é 9 e 40
Qual que é? O relógio da cadeia anda em câmera lenta
O quê que eu vou ser?
Talvez um anjo de guarda pra te proteger Ratatatá, mais um metrô vai passar
Não sou o último nem muito menos o primeiro Com gente de bem, apressada, católica
A lei da selva é uma merda e você é o herdeiro! Lendo jornal, satisfeita, hipócrita
Com raiva por dentro, a caminho do centro
Olhando pra cá, curiosos, é lógico
Não, não é não, não é o zoológico

Diário de Um Detento Minha vida não tem tanto valor


Quanto seu celular, seu computador
Hoje tá difícil, não saiu o Sol
São Paulo, dia 1º de Outubro de 1992, oito horas da manhã Hoje não tem visita, não tem futebol
Aqui estou, mais um dia Alguns companheiros têm a mente mais fraca
Sob o olhar sanguinário do vigia Não suportam o tédio, arruma quiaca
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de Graças a Deus e à Virgem Maria
uma HK Faltam só um ano, três meses e uns dias
Metralhadora alemã ou de Israel Tem uma cela lá em cima fechada
Estraçalha ladrão que nem papel Desde Terça-feira ninguém abre pra nada
Na muralha, em pé, mais um cidadão José Só o cheiro de morte e Pinho Sol
Servindo o Estado, um PM bom Um preso se enforcou com o lençol
Passa fome, metido a Charles Bronson
Ele sabe o que eu desejo Qual que foi? Quem sabe? Não conta
Sabe o que eu penso Ia tirar mais uns seis de ponta a ponta
O dia tá chuvoso, o clima tá tenso Nada deixa um homem mais doente
Que o abandono dos parentes
Vários tentaram fugir, eu também quero Aí moleque, me diz, então, cê quer o quê?
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A vaga tá lá esperando você Que prefere ser neutro pelo telefone


Pega todos seus artigos importado Ratatatá, caviar e champanhe
Seu currículo no crime e limpa o rabo
A vida bandida é sem futuro Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe
Sua cara fica branca desse lado do muro Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo
Já ouviu falar de Lúcifer? Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio
Que veio do Inferno com moral O ser humano é descartável no Brasil
Um dia no Carandiru, não, ele é só mais um Como modess usado ou Bombril
Comendo rango azedo com pneumonia Cadeia? Guarda o que o sistema não quis
Aqui tem mano de Osasco, do Jardim D'Abril, Parelheiros Esconde o que a novela não diz
Mogi, Jardim Brasil, Bela Vista, Jardim Ângela Ratatatá sangue jorra como água
Heliópolis, Itapevi, Paraisópolis Do ouvido, da boca e nariz
O Senhor é meu pastor
Ladrão sangue bom tem moral na quebrada Perdoe o que seu filho fez
Mas pro Estado é só um número, mais nada Morreu de bruços no Salmo 23
Nove pavilhões, sete mil homens Sem padre, sem repórter
Que custam trezentos reais por mês, cada Sem arma, sem socorro
Na última visita, o neguinho veio aí Vai pegar HIV na boca do cachorro
Trouxe umas frutas, Marlboro, Free Cadáveres no poço, no pátio interno
Ligou que um pilantra lá da área voltou Adolf Hitler sorri no inferno
Com Kadett vermelho, placa de Salvador O Robocop do governo é frio, não sente pena
Pagando de gatão, ele xinga, ele abusa Só ódio e ri como a hiena
Com uma nove milímetros embaixo da blusa Ratatatá, Fleury e sua gangue
Vão nadar numa piscina de sangue
Aí neguinho, vem cá, e os manos onde é que tá? Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Lembra desse cururu que tentou me matar? Dia 3 de Outubro, diário de um detento
Aquele puta ganso, pilantra corno manso
Ficava muito doido e deixava a mina só
A mina era virgem e ainda era menor
Agora faz chupeta em troca de pó Periferia É Periferia
Esses papos me incomoda
Se eu tô na rua é foda
É, o mundo roda, ele pode vir pra cá
Não, já, já, meu processo tá aí Este lugar é um pesadelo periférico
Eu quero mudar, eu quero sair Fica no pico numérico de população
Se eu trombo esse fulano, não tem pá, não tem pum De dia a pivetada a caminho da escola
E eu vou ter que assinar o 121 À noite vão dormir enquanto os manos "decola"
Na farinha... hã! Na pedra... hã!
Amanheceu com Sol, dois de Outubro Usando droga de monte, que merda! hã!
Tudo funcionando, limpeza, jumbo Eu sinto pena da família desses cara
De madrugada eu senti um calafrio Eu sinto pena, ele quer mas ele não para!
Não era do vento, não era do frio Um exemplo muito ruim pros moleque
Acertos de conta tem quase todo dia Pra começar é rapidinho e não tem breque
Tem outra logo mais, hãn, eu sabia Herdeiro de mais alguma Dona Maria
"Cuidado, senhora, tome as rédeas da sua cria!"
Lealdade é o que todo preso tenta Porque o chefe da casa, trabalha e nunca está
Conseguir a paz, de forma violenta Ninguém vê sair, ninguém escuta chegar
Se um salafrário sacanear alguém O trabalho ocupa todo o seu tempo
Leva ponto na cara igual Frankestein Hora extra é necessário pro alimento
Fumaça na janela, tem fogo na cela Uns reais a mais no salário
Fudeu, foi além, se pã, tem refém Esmola de um patrão, cuzão milionário!
Na maioria, se deixou envolver Ser escravo do dinheiro é isso, fulano
Por uns cinco ou seis que não têm nada a perder 360 dias por ano, sem plano
Dois ladrões considerados passaram a discutir Se a escravidão acabar pra você
Mas não imaginavam o que estaria por vir Vai viver de quem? Vai viver de quê?
Traficantes, homicidas, estelionatários O sistema manipula sem ninguém saber
Uma maioria de moleque primário A lavagem cerebral te fez esquecer
Era a brecha que o sistema queria Que andar com as próprias pernas não é difícil
Avise o IML, chegou o grande dia Mais fácil se entregar, se omitir
Depende do sim ou não de um só homem Nas ruas áridas da selva
Eu já vi lágrimas demais, o bastante pra um filme de guerra
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Muita pobreza, estoura violência!


Aqui a visão já não é tão bela Nossa raça está morrendo
Não existe outro lugar Não me diga que está tudo bem!
Periferia (gente pobre)
Muita pobreza, estoura violência!
Aqui a visão já não é tão bela Nossa raça está morrendo
Não existe outro lugar Não me diga que está tudo bem!
Periferia é periferia Muita pobreza, estoura violência!
Nossa raça está morrendo
Aqui a visão já não é tão bela Verdade seja dita!
Não existe outro lugar
Periferia (gente pobre) Vi só a alguns anos pra cá, pode acreditar
Já foi bastante pra me preocupar
Aqui a visão já não é tão bela. Com meus filhos, periferia é tudo igual
Não existe outro lugar Todo mundo sente medo de sair de madrugada e tal
Periferia é periferia Ultimamente, andam os doidos pela rua
Loucos na fissura, te estranham na loucura
Um mano me disse que quando chegou aqui Pedir dinheiro é mais fácil que roubar, mano
Tudo era mato e só se lembra de tiro, aí Roubar é mais fácil que trampar, mano
Outro maluco disse que ainda é embaçado É complicado
Quem não morreu, tá preso, sossegado O vício tem dois lados
Quem se casou, quer criar o seu pivete, ou não Depende disso ou daquilo, ou não, tá tudo errado
Cachimbar e ficar doido igual moleque, então Eu não vou ficar do lado de ninguém, por quê?
A covardia dobra a esquina e mora ali Quem vende a droga pra quem? Hã!
Lei do Cão, Lei da Selva, hã Vem pra cá de avião ou pelo porto, cais
Hora de subir! Não conheço pobre dono de aeroporto e mais
–"Mano, que treta, mano! Mó treta, você viu? Fico triste por saber e ver
Roubaram o dinheiro daquele tio!" Que quem morre no dia a dia é igual a eu e a você
Que se esforça sol a sol, sem descansar
Nossa Senhora o ilumine, nada vai faltar Periferia é periferia
É uma pena. Um mês inteiro de trabalho (Que horas são? Não sei responder)
Jogado tudo dentro de um cachimbo, caralho! Periferia é periferia
O ódio toma conta de um trabalhador (Milhares de casas amontoadas)
Escravo urbano Periferia é periferia
Um simples nordestino (Vacilou, ficou pequeno. Pode acreditar)
Comprou uma arma pra se auto-defender Periferia é periferia (em qualquer lugar)
Quer encontrar (Gente pobre)
O vagabundo, q'essa vez não vai ter... boi
–"Qual que foi? (Qual que foi?)" Periferia é periferia
Não vai ter... boi (Vários botecos abertos, várias escolas vazias)
–"Qual que foi? (Qual que foi?)" Periferia é periferia
A revolta deixa o homem de paz imprevisível (E a maioria por aqui se parece comigo)
E sangue no olho, impiedoso e muito mais Periferia é periferia
Com sede de vingança e prevenido (Mães chorando, irmãos se matando. Até quando?)
Com ferro na cinta, acorda na Periferia é periferia
Madrugada de quinta (Em qualquer lugar. Gente pobre)
Um pilantra andando no quintal
Tentando, roubando, as roupas do varal Periferia é periferia
Olha só como é o destino, inevitável! (Aqui, meu irmão, é cada um por si)
O fim de vagabundo, é lamentável! Periferia é periferia
Aquele puto que roubou ele outro dia (Molecada sem futuro eu já consigo ver)
Amanheceu cheio de tiro, ele pedia Periferia é periferia
Dezenove anos jogados fora (Aliados, drogados, então)
É foda! Periferia é periferia (em qualquer lugar)
Essa noite chove muito (Gente pobre)
Por que Deus chora Periferia é periferia
(Deixe o crack de lado, escute o meu recado)
Muita pobreza, estoura violência!
Nossa raça está morrendo
Não me diga que está tudo bem!
9

Em Qual Mentira Vou Acreditar? Tudo comigo, confio no meu taco, versão africana "Don Juan
de Marco"
São apenas dez e meia, tem a noite inteira Tudo muito bom, tudo muito bem, sei lá o que é que tem
Dormir é embaçado, numa sexta-feira Idéia vai, idéia vem, ela era princesa, eu era o plebeu
TV é uma merda, prefiro ver a lua Quem é mais foda que eu, espelho, espelho meu
Preto Edy Rock Star a caminho da rua "Tipo Taís de Araújo ou Camila Pitanga?"
Hã... sei lá vou pruma festa, "se pam" Uma mistura. Confesso: fiquei de perna bamba
Se os cara não colar, volto às três da manhã Será que ela aceita ir comigo pro baile?
Tô devagar, tô a cinquenta por hora Ou ir pra Zona Sul ter um "Grand Finale"?
Ouvindo funk do bom, minha trilha sonora Amor com gosto de gueto até às seis da manhã
A polícia cresce o olho, eu quero que se foda! Me chamar de "meu preto" e me cantar "Djavan"
Zona Norte a bandidagem curte a noite toda Ninguém ouviu, mas... puta que pariu!
Eu me formei suspeito profissional Em fração de segundos meu castelo caiu!
Bacharel pós-graduado em "tomar geral" A mais bonita da escola, rainha passista
Eu tenho um manual com os lugares, horários, de como "dar Se transformou numa vaca nazista!
perdido" Eu ouvindo James Brown, pá, cheio de pose
Aí, caralho... ( "prefixo da placa é MY, sentido Jaçanã, Jardim Ela pergunto se eu tenho... o quê?
Hebron...") Guns n' Roses? Lógico que não! A mina quase histérica
Quem é preto como eu já tá ligado qual é Meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica
Nota Fiscal, RG, polícia no pé Como é que ela falou? Só se liga nessa
("Escuta aqui: o primo do cunhado do meu genro é mestiço Que mina cabulosa, olha só que conversa:
Racismo não existe, comigo não tem disso. É pra sua Que tinha bronca de neguinho de salão (não...)
segurança") Que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí não...)
Falou, falou, deixa pra lá Aí não, mano! Foi por pouco
Vou escolher em qual mentira vou acreditar Eu já tava pensando em capotar no soco
Disse pra mim não falar gíria com ela
Tem que saber curtir, tem que saber lidar pra me lembrar que não tô na favela
Em qual mentira vou acreditar? Bate-boca, mó guela, será que é meia-noite, já?
A noite é assim mesmo, então... deixa rolar A Cinderela virou bruxa do mal
Em qual mentira vou acreditar? Me humilhar não vai, vai tirar o caralho
Tem que saber curtir, tem que saber lidar Levanta o seu rabo racista e sai!
Em qual mentira vou acreditar? "Eu conheço essa perversa "há maior cara"
Correu a banca toda de uns "pleiba" que colava lá na área
Ô, que caras chato, ó! Quinze pras Onze "Pra mim ela já disse que era solitária
Eu nem fui muito longe e os "home" embaçou Que a família era rígida e autoritária
Revirou os banco, amassou meu boné branco Tem vergonha de tudo, cheia de complexo
Sujou minha camisa dos Santos Que ainda era cedo pra pensar em sexo
Eu nem me lembro mais pra onde eu vou A noite é assim mesmo... deixa rolar!
E agora, quem será que ligou? Vou escolher em qual mentira vou acreditar
"Me espere na estação, eu tô na Zona Sul
Eu chego rapidinho, assinado: Blue" Tem que saber curtir, tem que saber lidar
Pode crer, naquele lado de Santana Em qual mentira vou acreditar?
Conheço uns lugar, conheço umas fulana A noite é assim mesmo, então... deixa rolar
Juliana? Não. Mariana? Não. Alessandra? Não. Adriana? Em qual mentira vou acreditar?
O nome é só um detalhe, o nome é só um nome Tem que saber curtir, tem que saber lidar
9532... hum, esqueci o telefone Em qual mentira vou acreditar?
"Porra, demorou, heim?!" E aí, Blue, como é?
Isso aqui é um inferno, tem uma par de mulher Ih! Caralho! Olha só quem tá ali?
Trombei uma par de gente, uma par de mano O que que esse mano tá fazendo aqui?
Tô há quase uma hora te esperando E aí, esse maluco veio agora comigo
Passou uma figura aqui e deu ideia Ligou que era até seu amigo, que morava lá na sul
Disse que te conhece e pá, chama Léa irmão da Cristiane, dei um cavalo(carona pra biqueira, não o
Cabelo solto, vestido vermelho animal) pra ele no Lausane
Estrategicamente a um palmo do joelho Ia levar um recado pra uns parente local
Os caras comentaram o visual, oh os bico e tal, pagando o Da Igreja Evangélica Pentecostal
maior pau. Desceu do carro acenando a mão
Ninguém falou, ah! ah! mas eu ouvia meio mundo "A paz do Senhor!". Ninguém dava atenção
Xingando por telepatia ("mina filha da puta!"). Bem diferente do estilo dos crentes
Economizava meu vocabulário, não tinha o que falar Bombojaco, touca, mas a noite tá quente
Falava o necessário, meio assim, é claro Que barato estranho, só aqui tá escuro
Será qual é que é, truta é o que não falta, mina filha da puta
10

Justo nesse poste não tem luz de mercúrio Envergonhar-se se aos 25 ter chegado
Passaram vinte fiéis até agora, dá cinco reais Queria que Deus ouvisse a minha voz
Cumprimenta e sai fora E transformasse aqui num Mundo Mágico de Oz
Um irmão muito sério, em frente à garagem
Outro com a mão na cintura em cima da laje Queria que Deus ouvisse a minha voz (que Deus ouvisse a
De vez em quando a porta abre e um diz: minha voz)
"Tem do preto e do branco?" e coça o nariz. Num Mundo Mágico de Oz (um Mundo Mágico de Oz)
Isso sim, isso é que é união!
O irmão saiu feliz, sem discriminação! Um dia ele viu a malandragem com o bolso cheio
De lá pra cá veio gritando, rezando Pagando a rodada, risada e vagabunda no meio
"Aleluia, as coisas tão melhorando!" A impressão que dá, é que ninguém pode parar
Esse cara é dentista, sei lá... Um carro importado, som no talo
Diz que a firma dele chama "Boca S.A.". Homem na Estrada, eles gostam
Será material de construção? Vendedor de pedras? Só bagaceira só, o dia inteiro só
Lá na zona sul era patrão Como ganha o dinheiro?
Que patrão o caralho! Ele é safado Vendendo pedra e pó
Fugiu do Valo Velho com os dias contados Rolex, ouro no pescoço à custa de alguém
A paranoia de fumar era fatal Uma gostosa do lado, pagando pau pra quem?
Arrombava os barracos, saqueava os varal A polícia passou e fez o seu papel
Bateu na cara do pai de um vagabundo Dinheiro na mão, corrupção a luz do céu
Humm... tá fazendo hora extra no mundo Que vida agitada, hein? Gente pobre tem
A noite tá boa, a noite tá de barato Periferia tem
Mas puta, gambé, pilantra é mato! Você conhece alguém?

Tem que saber curtir, tem que saber lidar Moleque novo que não passa dos 12
Em qual mentira vou acreditar? Já viu, viveu, mais que muito homem de hoje
A noite é assim mesmo, então... deixa rolar Vira a esquina e para em frente a uma vitrine
Em qual mentira vou acreditar? Se vê, se imagina na vida do crime
Tem que saber curtir, tem que saber lidar Dizem que quem quer segue o caminho certo
Em qual mentira vou acreditar? Ele se espelha em quem tá mais perto
Pelo reflexo do vidro ele vê
Tem que saber curtir, tem que saber lidar Seu sonho no chão se retorcer
Em qual mentira vou acreditar? Ninguém liga pro moleque tendo um ataque
A noite é assim mesmo, então... deixa rolar Foda-se, quem morrer dessa porra de crack
Em qual mentira vou acreditar? Relacione os fatos com seu sonho
Tem que saber curtir, tem que saber lidar Poderia ser eu no seu lugar
Em qual mentira vou acreditar? Das duas uma, eu não quero desandar
Por aqueles manos que trouxeram essa porra pra cá
Matando os outros, em troca de dinheiro e fama
Mágico de Oz Grana suja, como vem, vai, não me engana
Queria que Deus ouvisse a minha voz
Aquele moleque, que sobrevive como manda o dia a dia E transformasse aqui num Mundo Mágico de Oz
Tá na correria, como vive a maioria
Preto desde nascença, escuro de Sol Queria que Deus ouvisse a minha voz (que Deus ouvisse a
Eu tô pra vê ali igual, no futebol minha voz)
Sair um dia das ruas é a meta final Num Mundo Mágico de Oz (um Mundo Mágico de Oz)
Viver decente, sem ter na mente o mal
Tem o instinto que a liberdade deu Ei mano, será que ele terá uma chance?
Tem a malicia, que cada esquina deu Quem vive nessa porra, merece uma revanche
Conhece puta, traficante e ladrão É um dom que você tem de viver
Toda raça, uma par de alucinado e nunca embaçou É um dom que você recebe pra sobreviver
Confia neles mais do que na polícia História chata, mas cê tá ligado
Quem confia em polícia? Eu não sou louco Que é bom lembrar: Quem entra, é um em cem pra voltar
A noite chega e o frio também Quer dinheiro pra vender? Tem um monte aí
Sem demora, ai a pedra Tem dinheiro, quer usar? Tem um monte aí
O consumo aumenta a cada hora Tudo dentro de casa vira fumaça, é foda
Pra aquecer ou pra esquecer Será que Deus deve estar aprovando minha raça?
Viciar, deve ser pra se adormecer Só desgraça gira em torno daqui
Pra sonha, viajar, na paranoia, na escuridão Falei do JB ao Piqueri, Mazzei
Um poço fundo de lama, mais um irmão Rezei para o moleque que pediu
Não quer crescer, ser fugitivo do passado
11

Eu gosto de onde eu vou e de onde eu vim


Qualquer trocado, qualquer moeda Ensinamento da favela foi muito bom pra mim
Me ajuda tio
Pra mim não faz falta, uma moeda não neguei Cada lugar, um lugar, cada lugar, uma lei
Não quero saber, o que que pega se eu errei Cada lei uma razão, eu sempre respeitei
Independente, a minha parte eu fiz Qualquer jurisdição, qualquer área
Tirei um sorriso ingênuo, fiquei um terço feliz Jardim Santo Eduardo, Grajaú, Missionária
Se diz que moleque de rua rouba
O governo, a polícia, no Brasil quem não rouba? Funchal, Pedreira e tal, Joaniza
Ele só não tem diploma pra roubar Eu tento adivinhar o que você mais precisa
Ele não esconde atrás de uma farda suja Levantar sua goma ou comprar uns pano
É tudo uma questão de reflexão, irmão Um advogado pra tirar seu mano

É uma questão de pensar No dia da visita você diz que eu vou mandar
A polícia sempre dá o mau exemplo Cigarro pros maluco lá no x
Lava a minha rua de sangue, leva o ódio pra dentro Então, como eu tava dizendo, sangue bom
Pra dentro de cada canto da cidade Isso não é sermão, ouve aí, tem o dom?
Pra cima dos quatro extremos da simplicidade
A minha liberdade foi roubada Eu sei como é que é, é foda, parceiro
Minha dignidade violentada É a maldade na cabeça o dia inteiro
Que nada dos manos se ligar Nada de roupa, nada de carro, sem emprego
Parar de se matar Não tem ibope, não tem rolê sem dinheiro
Amaldiçoar, levar pra longe daqui essa porra Sendo assim, sem chance, sem mulher
Não quero que um filho meu um dia Deus me livre morra Você sabe muito bem o que ela quer, é
Ou um parente meu acabe com um tiro na boca
É preciso eu morrer pra Deus ouvir minha voz Encontre uma de caráter se você puder
Ou transformar aqui no Mundo Mágico de Oz? É embaçado ou não é?
Ninguém é mais que ninguém, absolutamente
Queria que Deus ouvisse a minha voz (que Deus ouvisse a Aqui quem fala é mais um sobrevivente
minha voz) Eu era só um moleque, só pensava em dançar
Num Mundo Mágico de Oz (um Mundo Mágico de Oz) Cabelo black e tênis All Star

Jardim Filhos da Terra e tal Na roda da função, mó zoeira!


Jardim Hebron, Jaçanã e Jova Rural Tomando vinho seco em volta da fogueira
Piqueri, Mazzei, Nova Galvão A noite inteira, só contando história
Jardim Corisco, Fontális e então Sobre o crime, sobre as treta na escola
Campo Limpo, Guarulhos, Jardim Peri
JB, Edu Chaves e Tucuruvi Não tava nem aí, nem levava nada a sério
Alô Doze, Mimosa, São Rafael Admirava os ladrão e os malandro mais velho
Zaki Narchi, tem um lugar no céu Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga
O que melhorou? Da função, quem sobrou?
Às vezes eu fico pensando Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá
Se Deus existe mesmo, morô? Qual a próxima mãe que vai chorar?
Porque meu povo já sofreu demais
E continua sofrendo até hoje Há! Demorou, mas hoje eu posso compreender
Só que ai eu vejo os moleque nos farol, na rua Que malandragem de verdade é viver
Muito louco de cola, de pedra
E eu penso que poderia ser um filho meu, morô? Agradeço a Deus e aos orixás
Mas aí, eu tenho fé Parei no meio do caminho e olhei pra trás
Eu tenho fé em Deus Meus outros manos todos foram longe demais
Cemitério São Luis, aqui jaz

Fórmula Mágica da Paz Mas que merda, meu oitão tá até a boca, que vida louca!
Essa porra é um campo minado Por que é que tem que ser assim?
Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui? Ontem eu sonhei que um fulano aproximou de mim
Mas aí, minha área é tudo o que eu tenho Agora eu quero ver ladrão
A minha vida é aqui, eu não consigo sair Pá! Pá! Pá! Pá!
Fim
É muito fácil fugir, mas eu não vou
Não vou trair quem eu fui, quem eu sou É, sonho é sonho, deixa quieto
12

Sexto sentido é um dom, eu tô esperto Procure a sua, da minha eu vou atrás, até mais
Morrer é um fator, mas conforme for Da fórmula mágica da paz
Tem no bolso, na agulha e mais cinco no tambor
(Eu vou procurar, sei que vou encontrar)
Joga o jogo, vamos lá, caiu a oito eu mato a par (Eu vou procurar, eu vou procurar)
Eu não preciso de muito pra sentir-me capaz (Você não bota uma fé, mas eu vou atrás)
De encontrar a fórmula mágica da paz Da fórmula mágica da paz

(Eu vou procurar, sei que vou encontrar) (Eu vou procurar, sei que vou encontrar)
(Eu vou procurar, eu vou procurar) (Eu vou procurar, eu vou procurar)
(Você não bota uma fé, mas eu vou atrás) (Você não bota uma fé, mas eu vou atrás)
Da minha fórmula mágica da paz
Choro e correria no saguão do hospital
(Eu vou procurar, sei que vou encontrar) Dia das criança, feriado e luto final
Procure a sua Sangue e agonia entra pelo corredor
(Eu vou procurar, eu vou procurar) Ele tá vivo! Pelo amor de Deus, doutor!
(Você não bota uma fé)
Eu vou atrás da minha Quatro Tiros do pescoço pra cima
(Você não bota uma fé) Puta que pariu, a chance é mínima!
Aqui fora, revolta e dor
Caralho! Que calor, que horas são agora? Lá dentro, estado desesperador
Dá pra ouvir a pivetada gritando lá fora
Hoje acordei cedo pra ver Eu percebi quem eu sou realmente
Sentir a brisa de manhã e o sol nascer Quando eu ouvi o meu subconsciente
E aí mano Brown, cuzão? Cadê você?
É época de pipa, o céu tá cheio Seu mano tá morrendo, o que você vai fazer?
Quinze anos atrás, eu tava ali no meio
Lembrei de quando era pequeno, eu e os cara Pode crê, eu me senti inútil
(Faz tempo), faz tempo Eu me senti pequeno, mais um cuzão vingativo (mais um)
E o tempo não para Puta desespero, não dá pra acreditar
Que pesadelo, eu quero acordar
Hoje tá da hora o esquema pra sair, é
Vamo, não demora, mano, chega aí! Não dá, não deu
Cê viu ontem? Os tiro, ouvi um monte! Não daria de jeito nenhum
Então, diz que tem uma pá de sangue no campão O Derlei era só mais um rapaz comum!
Mas ih, mano, toda mão Dali a poucos minutos, mais uma dona Maria de luto!
É sempre a mesma ideia junto
Treta, tiro, sangue, aí, muda de assunto Na parede o sinal da cruz
Traz a fita pra eu ouvir porque eu tô sem Que porra é essa?
Principalmente aquela lá do Jorge Ben Que mundo é esse?
Onde tá Jesus?
Uma pá de mano preso chora a solidão Mais uma vez o emissário
Uma pá de mano solto sem disposição Não incluiu Capão Redondo em seu itinerário
Empenhorando por aí, rádio, tênis, calça
Acende num cachimbo Porra, eu tô confuso, preciso pensar
Virou fumaça! Me dá um tempo pra eu raciocinar
Eu já não sei distinguir quem tá errado
Não é por nada não, mas aí, nem me liga, ô Sei lá, minha ideologia enfraqueceu
A minha liberdade eu curto bem melhor Preto, branco, polícia, ladrão ou eu
Eu não tô nem aí pra o que os outros fala Quem é mais filha da puta, eu não sei!
Quatro, cinco, seis preto num Opala Aí fudeu, fudeu, decepção essas hora
A depressão quer me pegar, vou sair fora
Pode vir, gambé, paga pau
Tô na minha, na moral, na maior Dois de novembro era finados
Sem goró, sem pacau, sem pó Eu parei em frente ao são Luis do outro lado
Eu tô ligeiro, eu tenho a minha regra E durante uma meia hora, olhei um por um
Não sou pedreiro, não fumo pedra E o que todas as senhoras tinham em comum
A roupa humilde, a pele escura
Um rolê com os aliados já me faz feliz O rosto abatido pela vida dura
Respeito mútuo é a chave, é o que eu sempre quis (diz) Colocando flores sobre a sepultura
13

(Podia ser a minha mãe) (Eu vou procurar)


Que loucura! (Procure a sua paz)
Procure a sua!
Cada lugar uma lei, eu tô ligado (Eu vou encontrar)
No extremo sul da zona sul tá tudo errado
Aqui vale muito pouco a sua vida Você pode encontrar a sua paz, o seu paraíso
Nossa lei é falha, violenta e suicida (Eu vou procurar)
Você pode encontrar o seu inferno
Se diz que me diz que não se revela (A fórmula mágica da paz)
Parágrafo primeiro na lei da favela (legal) (Eu vou procurar e sei que vou encontrar)
Assustador é quando se descobre
Que tudo deu em nada, e que só morre o pobre Eu procuro
A paz
A gente vive se matando irmão, por quê?
Não me olhe assim, eu sou igual a você
Descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho Salve
Entre no trem da malandragem, o meu rap é o trilho Eu vo mandá um salve pra comunidade do outro lado do
muro
Vou dizer As grades nunca vão prender nosso pensamento mano
Se liga ai jardim evana, parque do engenho, gerivá, jardim
(Procure a sua paz) Rosana, pirajusara, santa tereza
Pra todas a famílias aí
Que perderam pessoas importantes, morô, meu? Vaz de lima, parque santo antônio, capelinha, João morá, vila
(Eu vou procurar e sei que vou encontrar) Calu, branca flor, paranapanema, iaracati
Procure a sua paz (paz) Novo oriente, parque arariba, jardim ingá, parque ipê
Não se acostume com esse cotidiano violento Pessoal da sabin, jardim marcelo, cidade ademar
Que essa não é a sua vida Jardim são carlos, jardim primavera, santa amélia
Que essa não é a minha vida, morô, mano? Jardim santa terezinha, jardim míriam, vila Santa Catarina
(Procure a sua paz)
Aí vietinã, cocáia, cipó, colônia
Aí, Derlei, descanse em paz! Campanário em Diadema, calúpso e são bernardo
Aí, Carlinhos, procure a sua paz! Vila industrial santo andré, bairro das pimentas, brasilândia
(Eu vou procurar e sei que vou encontrar) Jardim Japão, jardim ebron, coabi 1, coabi 2, são matheus, itai
Aí, Quico, você deixou saudade, morô, mano? Cidade tiradentes, barueri, coabi de tapas

(Agradeço a Deus e aos orixás) Mangueira, boréus, cidade de Deus, e ai DF, expansão, P
Eu tenho muito a agradecer por tudo norte, P sul
(Agradeço a Deus e aos orixás) E ai pessoal do sul, restinga
(Eu vou procurar e sei que vou encontrar) E ai quebradas, zona noroeste santos, rádio favela, bh
Cheguei aos vinte e sete E pra todos os aliados espalhados pelas favelas do Brasil
Eu sou um vencedor, tá ligado, mano? Firma!
(Agradeço a Deus e aos orixás)
Aí, procure a sua Todos os DJs, todos os MCs, que fazem do rap a trilha sonora
Eu vou atrás da minha fórmula mágica da paz do gueto
E pros filha da puta que querem jogá minha cabeça pros
(Você não bota uma fé) porco
(Eu vou procurar e sei que vou encontrar) Ai, tenta a sorte mano, eu acredito na palavra de um
Aí, manda um toque na quebrada lá Homem de pele escura, de cabelo crespo, que andava entre
Coab Adventista e pá, rapaziada! Mendigos e leprosos, pregando a igualdade
(Malandragem de verdade é viver) Um homem chamado Jesus
Procure a sua paz! Só ele sabe a minha hora
(Você não bota uma fé) Ai ladrão, tô saindo fora
Paz
Que fala é Mano Brown, mais um sobrevivente
(Agradeço a Deus, agradeço a Deus)
Vinte e sete ano, contrariando a estatística, morô, meu? QUESTÕES UNICAMP
(Agradeço a Deus, agradeço a Deus)
UNICAMP - 2020
(Procure a sua paz)
(Eu vou procurar e sei que vou encontrar)
14

As palavras organizadas comunicam sempre alguma coisa,


que nos toca porque obedece a certa ordem. Quando
recebemos o impacto de uma produção literária, oral ou
escrita, ele é devido à fusão inextricável da mensagem com a
sua organização. Em palavras usuais: o conteúdo de uma obra
literária só atua por causa da forma.
(Adaptado de Antonio Candido, “O direito à literatura”, em
Vários escritos. São Paulo: Ouro sobre azul e Duas Cidades,
2004, p.178.)

A obra Sobrevivendo no inferno do grupo Racionais Mc’s é


composta pelas canções e pelo projeto editorial da capa e
contracapa do CD. Nesse projeto editorial, encontram-se
elementos visuais e verbais que estabelecem um jogo de
formas e sentidos. Com base na afirmação de Antonio
Candido, é correto afirmar que a organização desses
elementos

a) produz uma simetria entre som e sentido, sendo que tal


simetria indica que os símbolos religiosos são uma resposta à
violência.

b) configura um sistema de oposições, uma vez que imagens


e palavras estabelecem tensões materiais e espirituais,
constitutivas do sentido das canções.

c) configura uma sintaxe poética de ordem espiritual. Essa


sintaxe espelha o caos e as injustiças vividos na periferia das
grandes cidades.

d) produz uma lógica poética racional. Essa lógica se explicita


na vitória do crime sobre a visão de mundo presente nos
versículos bíblicos transcritos.
UNICAMP – 2021 2ª FASE
UNICAMP - 2021 –
Questão 01
GÊNESIS (INTRO) É preciso também que nos questionemos sobre a finalidade
última das obras que julgamos dignas de serem estudadas.
Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor Em regra geral, o leitor não profissional, tanto hoje quanto
O homem me deu a favela, o crack, a trairagem ontem, lê essas obras para encontrar um sentido que lhe
As arma, as bebida, as puta permita compreender melhor o homem e o mundo, para
Eu? nelas descobrir uma beleza que enriqueça sua existência; ao
Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo.
Um sentimento de revolta
Eu tô tentando sobreviver no inferno (Adaptado de T. Todorov, A literatura em perigo. São Paulo:
Difel, 2009, p. 32-33.)
(Racionais Mc’s, Sobrevivendo no inferno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018, p. 45.) FÓRMULA MÁGICA DA PAZ

Essa porra é um campo minado


“Gênesis” é a segunda canção do álbum Sobrevivendo no Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui?
Inferno. É antecedida pela invocação de uma outra canção, Mas, aí, minha área é tudo o que eu tenho
intitulada “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben. É correto A minha vida é aqui e eu não consigo sair
afirmar que as evocações dos elementos religiosos nesse É muito fácil fugir, mas eu não vou
álbum Não vou trair quem eu fui, quem eu sou
Eu gosto de onde eu tô e de onde eu vim
A) legitimam a violência social a que estão submetidos os O ensinamento da favela foi muito bom para mim
pobres. (...)
B) dificultam a tomada de consciência da população negra. A gente vive se matando, irmão, por quê?
C) articulam as esferas ética e estética da experiência humana Não me olhe assim, eu sou igual a você
na poesia. Descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho
D) dissimulam a hipocrisia moral das pessoas religiosas. Entre no trem da malandragem, meu rap é o trilho
15

(Racionais Mc’s, Sobrevivendo no inferno. São Paulo: compreensão a partir do olhar de quem a vive, já que as
Companhia das Letras, 2018, p. 121 e 129.) canções permitem a essa população marginalizada falar
direta e internamente de seus problemas. Por isso, estudar o
a) Identifique, nos versos transcritos acima, uma expressão rap é dar um passo ao encontro do outro. Ao dar voz aos
que se opõe ao título da canção e uma outra que o confirma. excluídos, o gênero clama eticamente por uma abertura à
Explique o título da canção considerando o último verso. diferença. E esse clamor ético se realiza por meio de uma
b) Com base no trecho de Todorov e no excerto da canção, linguagem artística própria, que exige o entendimento de
formule dois argumentos (um ético e um estético) que códigos e convenções estéticas. Ao estudá-los, descobrimos
justifiquem o estudo do rap. uma beleza e uma sensibilidade específicas e somos
convidados a uma melhor compreensão do mundo e de nós
Objetivo da Questão mesmos, segundo o raciocínio de Todorov
Analisar um poema exige atenção disciplinada para com os
elementos fundamentais que caracterizam a sua linguagem.
A questão sobre uma das canções do álbum “Sobrevivendo
no inferno”, dos Racionais Mc’s, exigiu, no item a, que o
candidato compreendesse como o título do poema é
retomado por meio de figuras de linguagem que organizam a
forma da canção e produzem efeitos de sentido para o leitor
ou ouvinte. Portanto, o item a se concentrou nos aspectos
formais do poema com base nas antíteses “paz” e “guerra”.

No item b, o candidato deveria refletir sobre os aspectos


conteudísticos do texto artístico, relacionando o excerto de
Todorov às categorias de ético e estético, ligadas de forma
consistente na obra em análise. No horizonte dessa questão
e do gênero abordado, indicou-se ao candidato a necessidade
de pensar a função da literatura e relacionar o seu estudo
com outras áreas das humanidades, por exemplo, a filosofia
e as ciências sociais.

Resposta Esperada

a) A expressão que se opõe ao título é “um campo minado”.


Esta expressão se refere à favela como um território
conflagrado, em guerra, no qual a violência prevalece (“a
gente vive se matando”) e está indicada na referência ao uso
de armas e explosivos. Já a expressão que concorda com o
título é “descanse seu gatilho”. Ela apresenta uma alternativa
para a comunidade, propondo a deposição das armas como
uma via pacificadora. Note-se, portanto, que essas duas
expressões (“campo minado” e “descanse seu gatilho)
formam uma antítese e concentram a tensão de sentidos que
atravessa o poema. O verso “não me olhe assim, eu sou igual
a você” assinala que a demanda de reconhecimento e de
respeito mútuo entre os membros da comunidade pode
contribuir para a construção da cultura da paz. Todo o
percurso figurativo do poema explora as contradições desse
ambiente hostil, marcado pela violência, reiterando que a
pacificação parece ser algo difícil de se alcançar. Disso
decorre o refrão da canção, que insiste na procura da fórmula
mágica da paz e na sugestão de que o próprio gênero poético-
musical, o rap, fornece aos jovens da comunidade um
caminho possível de ser trilhado (“meu rap é o trilho”).

b) Com sua linguagem e ritmos característicos, o rap aborda


os problemas cotidianos vividos por pessoas marginalizadas
na sociedade. No caso brasileiro, as canções trazem um
retrato da situação em que vivem moradores de bairros de
periferia e de comunidades, mais expostos à precariedade e
à violência urbana. O estudo do rap não somente dá acesso e
visibilidade a essa realidade social, mas amplia a sua

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