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Encontro orí: fruto do movimento negro educador

1 – Raça: estrutural e estruturante da modernidade


“Escolhi refletir o tempo e as situações em que me encontro. Para mim,
isso é o meu dever, e neste momento crucial de nossas vidas, quando tudo
é tão desesperador, quando tentamos apenas sobreviver a cada dia, não
tem como não se envolver. Jovens e negros sabem disso, e é por isso que
estão envolvidos com a política. (...) Não se tem escolha ... Como ser
artista e não refletir a época?”
Nina Simone apud banner de divulgação do encontro orí

É com as frases de Nima Simone que o encontro orí – Encontro de Estudantes de


História da África e das relações étnico-raciais se apresenta ao mundo. Como iremos ver
ao longo dessa dissertação nós, idealizadores a organizadores do encontro orí, jovens e
majoritariamente negros, entendemos que era necessário se envolvemo-nos com política. O
encontro orí desde sua concepção foi entendido como fruto direto de políticas públicas,
principalmente a Lei 10.639/03 e a Lei de Cotas – ambas apresentada e discutidas mais a
frente neste capítulo.
Contudo, para iniciar essa dissertação é preciso demarcar que o racismo na
sociedade brasileira é estrutural e estruturante. Para o filósofo Silvio de Almeida o racismo
é sempre estrutural e “se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e
jurídica” (ALMEIDA, 2019, p.50), sendo assim, racismo é processo político e histórico.
Esse processo histórico no qual se desenvolve um projeto de poder, baseado na
ideia de raça, é o que hoje chamamos de modernidade. A modernidade que tem como
marco temporal inicial à chegada de Cristóvão Colombo nas Américas, ou seja, ao
“descobrimento” do Novo Mundo. Esse marco histórico tão celebrado, presente nos livros
didáticos como o momento em que se inicia a história desse continente, na verdade
esconde outra face.
A América e os povos originários desse continente foram os primeiros a
sentir mais fortemente o impacto do esforço salvacionista, civilizatório e
desenvolvimentista dos europeus ocidentais. [...] Submetidos a um
esmagador processo de dominação cultural, suas vozes foram silenciadas,
suas memórias – inclusive de resistência – foram apagadas, suas crianças
lhes foram arrancadas e internadas em escolas-fábricas de
ocidentalizados. Sem passado nem futuro, os que não foram confinados,
foram submetidos a trabalho forçado, e os que sobreviveram ao
extermínio – e muitos milhões foram exterminados já nos primeiros
contatos com os europeus ocidentais – foram reduzidos à condição de
“índios”. (PINTO e MIGNOLO, 2015, p.389)
Esse discurso “salvacionista, civilizatório e desenvolvimentista” usado na América
com os povos originários, exerceu papel brutal nos continentes africanos e asiáticos em
meados do século XIX com o Imperialismo. A justificativa que sustenta toda essa narrativa
se baseia na ideia de que essas populações pertenciam a “raças inferiores” e,
consequentemente, precisavam ser convertidas à “civilização europeia”. Dentro dessa
perspectiva racialista europeia, o ápice da humanidade seria o homem branco europeu,
seguido das populações nativas americanas (que ainda poderiam alcançar a salvação), e na
categoria mais inferior, a população africana. Essa classificação racial já foi vinculada à
narrativa bíblica sobre Noé e seus filhos, em que Can carregaria a marca de uma maldição
por ter desrespeitado seu pai. Sua pele negra seria o registo de sua inferioridade e pecado.
Raça, como afirma o sociólogo Stuart Hall (2003, p.69), é “uma construção política e
social. É uma categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder
socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo”. Apesar dessa categoria
discursiva ser muito recente na história da humanidade, desempenhou e desempenha um
papel de grande destaque na história recente. Sua relevância se faz presente quando
pensamos na construção do conceito “Povo”. Segundo o filósofo Giorgio Agamben (2011),
no momento da criação dos Estados-Nação, nos séculos XVIII e XIX, foi preciso definir
quem pertencia à nação. “Povo” se refere a esse conjunto de sujeitos pertencentes que
simbolizam o Estado-nação por compartilharem ideais, valores e características comuns,
podendo ser a raça um critério de exclusão. Contudo, ao construir esse ideal, despreza-se
parte da população, ou seja, consolidando o que Agamben chama de “povo”, isto é, os que
estão fora dessa construção abstrata idealizada.
No Brasil, a questão racial é um elemento constituinte da sociedade. O Brasil, país que
mais recebeu africanos escravizados no mundo, sempre foi marcado pela presença de um
número de brancos europeus, detentores de privilégios, muito inferior ao contingente de
africanos e indígena, marcados pela falta e direitos. Essa presença de “não brancos” no
“Povo” brasileiro foi “controlada” até o momento do fim da escravidão, que fez com que
os escravizados não pudessem ser considerados cidadãos já que eram “objetos”
pertencentes a outrem.
Com o advento da república mais uma vez a questão racial foi determinante. De acordo
com a antropóloga Mariza Corrêa:
Antes de ser pensada em termos de cultura, ou em termos econômicos, a
nação foi pensada em termos de raça. Dominante, a noção de raça não
excluía no entendo uma reflexão a respeito da economia, da política ou
da cultura, mas as subordinava ao âmbito da discussão. Talvez justamente
por ser dominante, esta é uma noção quase sempre implícita: é difícil
encontrar uma definição do que estes autores entendiam por “raça”, a não
ser indiretamente, ou através de suas propostas políticas,
indiscutivelmente “racistas”. (2013, p.41)

A questão racial influenciou diretamente as políticas implementadas pelo Estado


brasileiro no inicio da república. Apesar das discussões raciais sempre estarem presentes
nos debates políticos brasileiros, diretamente ou indiretamente, segundo Lilia Shwarcz
(1994), é no período entre 1870 e 1930 que as teorias raciais, que na Europa eram um
grande sucesso, chegaram ao Brasil. Agora em caráter científico, elas atestavam a
existência de diferentes raças humanas a partir da medição de características físicas e
biológicas – a “ciência” eugênica1.
A “ciência” eugênica influenciou diretamente diversas políticas públicas em diferentes
áreas, como por exemplo, o incentivo a imigração de homens brancos, solteiros, como
pode-se observar no Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, o primeiro capítulo se refere
à entrada desses imigrantes:
Art. 1º E' inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos
individuos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos á
acção criminal do seu paiz, exceptuados os indigenas da Asia, ou da
Africa que sómente mediante autorização do Congresso Nacional
poderão ser admittidos de accordo com as condições que forem então
estipuladas.
[...]
Art. 5º Sómente terão passagem integral ou reduzida, por conta do
Governo Federal:
1º As familias de agricultores, limitados aos respectivos chefes, ou aos
seus ascendentes os individuos maiores de 50 annos;
2º Os varões solteiros maiores de 18 annos e menores de 50, uma vez
que sejam trabalhadores agricolas;
3º Os operarios de artes mecanicas ou industriaes, artezãos e os
individuos que se destinarem ao serviço domestico, cujas idades se
acharem comprehendidas entre os limites do paragrapho precedente.

Já no primeiro artigo observamos um ponto crucial do pensamento eugenista do


período: a proibição da entrada de asiáticos e africanos. Afinal, o intuito era embranquecer
a população, e não receber mais indivíduos “inferiores”. O artigo 5º nos ajuda a perceber o

1
“Eugenia trata-se do termo cunhado por Francis Galton (1822-1911). Francis Galton afirmava que
a eugenia era um estudo cientifico que poderia melhorar ou piorar as qualidades raciais, físicas e
mentais das gerações futuras. Logo, eugenia, para ele e os seus seguidores, é sinônimo de
melhoramento genético das raças.” CASTRO, Celso; MARQUES, Juliana. Interpretações do
Brasil. Rio de Janeiro. FGV, 2016. Disponível em: <
https://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/u1882/interpretacoes_do_brasil_2016-1.pdf>.
Acesso em: 06 set. 2020
projeto dos intelectuais brasileiros, visto que, o Estado financiaria a passagem dos
imigrantes europeus, principalmente homens solteiros, para trabalharem no campo ou em
funções técnicas especializadas.
Já na área da educação, um elemento importante das escolas primárias do início da
república, segundo Schueler e Magaldi (2008), é o “papel assumido por essa instituição na
formação do caráter e no desenvolvimento de virtudes morais, de sentimentos patrióticos e
de disciplina na criança” (p.45). Nesse sentindo, podemos compreender de acordo com
Dávila (2006), que as escolas deveriam proporcionar às crianças “independentemente de
sua cor, a categoria social de brancas.” (p. 28). A escola nos primeiros anos da república,
buscava responder a uma das questões centrais do período: como construir a nação
brasileira? O entendimento de que a humanidade caminhava em direção ao progresso era
comum no pensamento social da época, e cabia a à escola garantir esse processo.
A escola foi pensada como uma importante ferramenta para a formação do cidadão
nacional. Não é a toa que Getúlio Vargas, através do Decreto n° 19.402 de novembro de
1930, criou o Ministério da Educação e Saúde Pública (MES). A importância desse
ministério para a política nacional pode ser entendida a partir da carta escrita por Gustavo
Capanema a Getúlio Vargas, em 1937, na qual Capanema explica que o “Ministério da
Educação e Saúde se destina a preparar, a compor, a afeiçoar o homem do Brasil. Ele é
verdadeiramente o ‘ministério do homem’”. (DÁVILA, 2006, p. 48)
Mas como “preparar, compor, a afeiçoar” o homem do Brasil? Segundo Dávila
(2006), essa resposta passa pelo processo de eugenia, no qual a educação pública tornaria
os cidadãos nacionais “brancos” e fortes. As políticas de imigração de europeus,
apresentadas anteriormente, passam a compartilhar espaços com novas políticas que
também buscavam embranquecer o comportamento e as condições sociais, pois não
bastava apenas embranquecer a cor de pele, era necessário embranquecer a mentalidade e o
comportamento social.
Como podemos observar as políticas racialista estão presentes na história do Brasil
desde o seu “descobrimento”, e se intensificam a partir do início da República. De acordo
com o historiador Amilcar Pereira (2021), a ideia de raça foi utilizada:
politicamente na construção do Estado-Nação brasileiro: de um lado, nas
primeiras décadas da República, pelo que buscavam construir uma nação
moderna e embranquecida, como as nações europeia, já que acreditavam
na superioridade racial dos brancos; e, de outro, posteriormente, elos que
passaram a utilizar a ideia de raça de uma maneira completamente
ressignificada como um instrumento de luta por direitos, para afirmação
de valores étnicos e para a construção de identidades por meio de suas
próprias narrativas de (re)existência, como é o caso do Movimento Negro
brasileiro” (PEREIRA, 2021, p.58)

É a histórica luta do Movimento Negro brasileiro que irei me concentrar agora, com o
enfoque na luta no campo educacional que era e é vista como o principal caminho para o
combate do ao racismo no Brasil.

1.1 – “Nossos passos vem de longe”: Movimento Negro e educação


“É impossível nossas elaborações não refletirem o tempo e o espaço onde
estamos inseridos; A ideia de “ciência isenta de valores”, presente no
senso comum, é algo que precisa ser cada vez mais enfrentada. No
sentido acadêmico, encontros e simpósios podem demonstrar o que se
acumulou até ali e quais são as principais temáticas que estão sendo
debatidas naquele momento”
Banner de apresentação do encontro orí

Desde sua concepção, o encontro orí flertou com a luta histórica do movimento
negro no campo da educação. Tento em vista que os sujeitos afetam suas produções, a luta
do Movimento Negro para a inserção de negros na educação e para a modificação do
sistema educacional brasileiro é responsável direito para a realização de um evento como o
encontro orí.
É importante demarcar que para essa pesquisa entendo Movimento Negro
organizado como “um movimento social que tem como particularidade a atuação em
relação a questão racial” (PEREIRA, 2013, p.110). De acordo com Joel Rufino dos Santos,
em O Movimento Negro e a Crise Brasileira (1985), existem duas definições para o
conceito de movimento negro. O primeiro, mais estrito e excludente, considera movimento
negro “exclusivamente o conjunto de entidades e ações dos últimos cinquenta anos,
consagrados explicitamente à luta contra o racismo” (SANTOS, 1985, p.287). O segundo é
mais amplo e considera movimento negro como “todas as entidades, de qualquer natureza,
e todas as ações, de qualquer tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que visam à
autodefesa física e cultural do negro), fundadas e promovidas por pretos e negros”
(SANTOS, 1985, p.287). Para esta pesquisa mobilizarei a definição mais ampla de
Movimento Negro, concordando com a pedagoga Nilma Lino Gomes (2019, p.24),
“movimento negro as mais diversas formas de organização e articulação das negras e
negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse
perverso fenômeno na sociedade”, sendo que, “movimento negro é, antes de mais nada,
aquilo que seus protagonistas dizem que é” (SANTOS, 1985, p.287).
O discurso que a educação é o melhor, ou até o único, caminho para a ascensão
social e para melhorar a vida é algo muito presente no dia a dia da camada pobres e média
da sociedade brasileira, como pode ser visto na fala de Mayara dos Nascimento
É ... a outra pergunta dos meus pais, né?! Cara, sim a gente já teve muitas
conversas do meu pai falando: “cara, você precisa estudar. Se você não
estudar você vai ser ninguém, assim como eu”. Assim, esse papo duro
mesmo, sabe?! Tipo: “você não vai a lugar nenhum. Eu não quero que
você fica quebrando pedra, eu não quero que você se sacrifique para de
fato dar comida para os seus filhos. Eu não quero essa vida que eu tenho,
sabe?!”. E a gente sempre teve uma vida, assim, bem difícil mesmo. Aí
gente, não quero chorar não ... bem difícil de, tipo, ter só que comer ...
Bem difícil. É .. ele tinha esses papos assim com a gente, de tipo: “cara,
você precisa estudar, porque é isso que vai mudar sua vida. Eu não
estudei, eu não tive oportunidade e olha no que deu”. 2

A lutas da população negra no campo da educação vêm de longe. Como afirmam


Pereira, Maia e Lima (2020, p.165),
Em cada momento da história do Brasil no século XX, de acordo com as
diferentes conjunturas sócio-históricas e com as possibilidades de atuação
construídas, o movimento negro organizado possuía características
distintas. Contudo, sem dúvida, podemos afirmar a importância da
educação, seja como bandeira de política, seja como estratégia de luta,
para a própria constituição desse movimento social, ao menos desde
meados do século XIX.

Há anos a população negra vem se organizando e lutando pelo acesso à educação


formal, em seus diferentes níveis, e pelo aperfeiçoamento do sistema educacional
brasileiro. Já no início do século XX, diferentes grupos de “pessoas de cor” 3 começaram a
se organizar para lutar contra a desigualdade, pelo acesso ao mercado de trabalho, por
dignidade, educação, reconhecimento e participação política. Nesse contexto, a educação é
apresentada como um mecanismo primordial, pois como afirma o historiador Petrônio
Domingues (2008, p.518)
As associações negras que floresceram nas primeiras décadas do século
XX vislumbravam, na educação, se não a solução, pelo menos um pré-
requisito indispensável para a resolução dos problemas da “gente de cor”
na sociedade brasileira.

2
Entrevista com Mayara Cristina Bernardo do Nascimento, estudante do curso de história da UFRJ
e participante como ouvinte do encontro orí. A entrevista foi realizada por Odara Philomena e
Jorge Maia, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ – IFCS/UFRJ, no Rio de Janeiro,
no dia 13 de maio de 2022.
3
“Homens de cor”, “pessoas de cor” são expressões utilizadas no século XIX e início do século
XX para se referenciar a população negra.
Dentre essas associações, merece destaque a Frente Negra Brasileira (FNB), que,
de acordo com Domingues (2008), foi a maior e a mais importante entidade negra no pós-
abolição. Fundada no dia 16 de setembro de 1931 na cidade de São Paulo, a FNB se
identificava como uma união política e social da população negra brasileira. Essa entidade
se espalhou para outras regiões do país, como Rio de Janeiro e Minas Gerais e, de acordo
com o historiador inspirou “a criação de entidades homônimas em Rio Grande do Sul
Salvador e Recife”. São desencontradas as estimativas dos estudiosos quanto aos números
de sócios da agremiação. Investigações indicam valores que variam entre 10 mil e 200 mil.
A associação foi extinta em 1937 devido ao golpe do Estado Novo.
De acordo com o pesquisador George Andrews (1998), citado por Domingues
(2008), a Frente Negra Brasileira reuniu uma série de programas “ascensão moral e
progresso material da raça negra” (DOMINGUES, 2008, p.522). Uma das instâncias de
luta mais importantes da FNB voltada para o ensino formal, era conhecida como
Departamento de Instrução. A FNB também entendia educação como “a principal arma na
‘cruzada’ contra o ‘preconceito de cor’” (DOMINGUES, 2008, p. 522). Suas lideranças
tinham uma visão crítica sobre a falta de políticas educacionais voltadas aos
afrodescendentes. Assumindo para si a responsabilidade de educar os seus, em 1932, a
FNB criou um curso de alfabetização para todas as idades, sexos e raças.
O jornal A Voz da Raça, de acordo com o historiador Alex Benjamim de Lima
(2011), merece destaque devido à “sua longevidade, estrutura, organização e prestígio
político-social”, chegando ao total de 70 edições, entre 1933 e 1937. Por meio do
periódico, a Frente Negra Brasileira incentivou a população de cor a procurar o ensino
formal, chegando a anunciar, em uma matéria do dia 11 de agosto de 1933, a abertura de
uma escola. Uma iniciativa importante da escola da FNB, era a doação gratuita do material
escolar e do uniforme que era um grande empecilho para as camadas populares
frequentarem os espaços escolares.
Apesar de não ter uma atuação revolucionária, a Frente Negra Brasileira não
deixava de questionar alguns elementos estruturais da sociedade da época. No campo da
educação, por exemplo, de acordo com Domingues (2008), a FNB não construiu “um
projeto pedagógico centrado na questão do negro, nem desenvolveu material didático
específico, uma grade curricular alternativa ou se debruçou em torno de uma prática de
ensino totalmente inovadora”. Contudo, ela propunha a incorporação da população negra
que deveria ser valorizada e respeitada como parte da nação brasileira.
A Frente Negra Brasileira não é um caso isolado. Se voltarmos um pouquinho no
tempo, temos, por exemplo, a Escola de Primeiras Letras, de Pretextato dos Passos e Silva,
“professor negro que lecionava para crianças negras em 1856, na então capital do império,
o Rio de Janeiro” (PEREIRA; MAIA; LIMA, 2020, p.165)4. E avançando no tempo,
podemos destacar a iniciativa educacional do Teatro Experimental do Negro (1944-1961),
que de acordo com seu fundador, Abdias do Nascimento (2004, p.211), alfabetizou “cerca
de seiscentas pessoas, entre homens e mulheres”5. Esses são só alguns exemplos de ações
diretas do movimento negro no campo da educação na primeira metade do século XX.
A partir dos anos 1970 é possível perceber uma virada na luta do movimento negro
brasileiro. Rosangela Ferreira de Souza, em sua tese de doutorado intitulada Pelas páginas
dos jornais: recortes identitários e escolarização do social do negro em São Paulo (1920-
1940), afirma que o movimento negro nas primeiras décadas do século XX não
apresentava um cunho revolucionário contra a ordem social vigente, mas sim um caráter de
protesto contra as injustiças e diferenças sociais mais profundas da sociedade. Ou seja, a
ideia era a integração da população negra à sociedade como ela era. O ‘movimento negro
contemporâneo’6 potencializa a denúncia do chamado “mito da democracia racial”7, isto é,
uma crítica ao discurso nacional hegemônico. A ideia era uma transformação social, não
bastava se inserir na sociedade como ela é, sendo necessário sua transformação. Trata-se
da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

4
Para mais informações sobre a Escola de Primeiras Letras, de Pretextado dos Passos e Silva ver:
FERREIRA, Hugor Figueira. A construção do currículo em uma experiência escolar para meninos
pretos e pardos na corte em meados do século XIX. Orientadora: Ana Maria Ferreira da Costa
Monteiro. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2014.
5
Para mais informações sobre o Teatro Experimental do Negro (TEM) ver: NASCIMENTO,
Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetórias e reflexões. Estudos avançados, v. 18, p. 209-
224, 2004.
6
Nesse projeto o uso de “movimento negro contemporâneo” se refere a luta do movimento negro
entre 1970 e 1995
7
“Fábula sobre a nossa formação, segundo a qual os três elementos formadores ocuparam papéis e
funções distintas, correspondentes ao valor de suas raças. Assim, conforme o “mito”, ao branco
coube os atributos estruturantes da civilização – especialmente a herança europeia – e ais demais os
caracteres secundários da nossa formação, quando não a responsabilidade por boa parte de nossos
vícios.” (COELHO, C.; COELHO, W., 2018, p.4)
Não se deve ignorar o contexto histórico em que o movimento negro
contemporâneo (170-1995) se constitui. Estamos falando do período em que o país estava
passando por uma ditadura civil-militar, onde era
proibido qualquer evento ou publicação relacionado à questão racial –
que poderia ser visto pelo regime como algo que pudesse “incentivar ao
ódio ou à discriminação racial” e, segundo o Decreto-Lei nº 510, de 20 de
março de 1969 em seu artigo 33º, poderia levar à pena de detenção de 1 a
3 anos (PEREIRA, 2013, p.220)

Neste país que vendia ao mundo a imagem de país racialmente democrático. A ação
do Movimento Negro contemporâneo para denunciar essa história hegemônica pode ser
exemplificada no ato público realizado no dia 07 de julho de 1978 nas escadarias do Teatro
Municipal de São Paulo. Este ato foi o lançamento do Movimento Unificado Contra a
Discriminação Racial (MUCDR) – que depois “ganha” a palavra “negro” e transforma-se
em Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), e
posteriormente, se intitula somente como Movimento Negro Unificado (MNU) – e que
representa um marco fundamental do movimento negro contemporâneo brasileiro8, já que a
criação do MNU “possibilitou, ou ao menos incentivou, a formação de muitas outras
organizações em diferentes estados do país.” (PEREIRA, 2013, p.266).
Outra característica diferente do movimento negro a partir da década de 1970 está
na luta no campo da educação. Se antes o movimento negro estava preocupado com o
acesso da sua população ao sistema educacional, observa-se a partir daí uma crítica ao
eurocentrismo presente nos currículos escolares. A própria Carta de princípios do MNU,
elaborada em 1978, pode ser vista como a referência dessa virada, pois entre suas
reinvindicações se encontra a luta pela “reavaliação do papel do negro na história do
Brasil”, que de acordo com o Amilcar Pereira (2012) está relacionada diretamente com a
história ensinada nas escolas.
Como exemplo da ação direta do movimento negro nas escolas e pela “reavaliação
do papel do negro na história do Brasil” temos a ação do Centro de Cultura Negra (CCN),
no Maranhão, que atuava “diretamente nas escolas, não somente dando palestras e
informando professores e alunos sobre a história dos negros no Brasil, mas também
produzindo material didático para este fim.” (PERERA, 20212, p.277). O relato de Magno
Cruz, presidente do CCN de 1984 a 1988, demonstra como que essa temática era
8
Para saber mais sobre a criação do MNU ver: PEREIRA, Amilcar Araujo. O mundo negro:
relações raciais e a constituição do movimento negro no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/FAPERJ,
2013. Capitulo 4
negligenciada nas escolas: “Porque tudo era novidade, ninguém discutia a questão dos
negros. Então, ir para a escola, falar da história do negro, desmistificar a história oficial
não era uma tarefa fácil” (PEREIRA, 2013, p.278).
Todo esse apanhado histórico da luta do movimento negro mostra como a educação
sempre foi entendida como um instrumento primordial de luta para uma sociedade mais
igualitária. Inclusive a participação direta de intelectuais e ativistas negros nos debates da
assembleia constituinte foi de extrema importância. Prova disto é que estes garantiram que
o Art. 242, da Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã’, estabelecesse
que “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes
culturas e etnias para a formação do povo brasileiro” (BRASIL, 1988). Fica evidente
portanto que a criação da Lei 10.639/03 pode ser percebida como resultado de um longo
processo de disputa do movimento negro. A obrigatoriedade do “estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.” (BRASIL, 2003). Para além do
cumprimento legal da Constituição, representa uma conquista histórica desse movimento
social.

1.2 – Agora é Lei: Estudo da História e cultura da África e dos afro-brasileiros


“No atual momento da ciência brasileira, podemos afirmar com
tranquilidade o quanto o lugar social, econômico e político de quem
produz determina, consciente ou inconscientemente, a produção”
Banner de apresentação do encontro orí

A Lei 10.639, foi sancionada no dia 09 de janeiro de 2003 pelo Presidente da


República, Luiz Inácio Lula da Silva, como cumprimento de uma promessa de campanha
do então candidato, que havia assumido compromissos públicos de apoio à luta da
população negra. Porém, o processo de promulgação da lei que altera a Lei de Diretrizes e
Bases (LDB), de 1996, e institui a obrigatoriedade no ensino fundamental e médio, público
e particular, do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, não foi feito da
noite para o dia.
A partir da década de 1980, o movimento negro brasileiro, principalmente a partir
da abertura política e do retorno das eleições, passa a estabelecer articulações com “as
diferentes instâncias e/ou organizações do Estado nos âmbitos municipal, estadual e
federal, bem como deste com os partidos políticos e organizações da sociedade civil”
(PEREIRA, 2017, p.15), com o objetivo de construir políticas públicas para defender
demandas emergenciais da população negra. É nesse contexto que o movimento negro,
majoritariamente, passa defender como tática política a luta por ações afirmativas para
negros no Brasil. Políticas de ação afirmativa são políticas focais que alocam recursos em
benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão
socioeconômica no passado ou no presente, isto é, são políticas de reparação,
conhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade. É importante não perder de
vista que o movimento negro brasileiro é um movimento social muito diverso e plural,
como todos os movimentos socias, por isso, nem todos os seus integrantes concordaram
com esse tipo de articulação, sendo que alguns defendiam que o movimento deveria lutar
contra o racismo de maneira independente.
Assim como apresentado no epígrafe o lugar social, econômico e político de quem
produz interfere na produção científica, como também na elaboração de leis. A Lei
10.639/03 é um exemplo da ação afirmativa e um dos maiores resultados das articulações
entre o movimento negro e o Estado brasileiro, tendo em sua construção a ação direta de
militantes do movimento negro contemporâneo. Mas a preocupação com o resgate do
passado, da importância do ensino da história da África, da história e cultura afro-brasileira
sempre foi uma questão pautada na luta do movimento negro. Antes da aprovação da Lei
10.639/03, muitos outros Projetos de Lei (PL) foram apresentadas e defendidas por
representantes do movimento negro. De acordo com Marcia de Albuquerque Alves (2017)
esse processo se inicia em 1983, com a apresentação, na Câmara dos Deputados, do
Projeto de Lei (PL) 1332/1983 de autoria de Abdias do Nascimento (PDT-RJ), que “dispõe
sobre ação compensatória, visando a implementação do principio da isonomia social do
negro, em relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira, conforme direito
assegurado pelo artigo 153, paragrafo primeiro, da constituição da republica.”9. Esse
projeto buscava combater a discriminação racial principalmente em três dimensões: no
trabalho, na educação e no tratamento policial. No campo educacional, destaca-se o Artigo
8º:
O Ministério da Educação e Cultura, bem como as Secretarias Estaduais e
Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das
entidades negras e com intelectuais negros comprovadamente engajados
no estudo da matéria, estudarão e implementarão modificações nos
currículos escolares acadêmicos, em todos os níveis (primário,

9
Disponível em: <https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/190742>. Acesso em: 13 set.
2022
secundário, superior e de pós-graduação (...) (PL 1332/1983, p.09 apud
Alves, 2017, p.53)

Dentre as modificações almejadas no currículo, nesse PL, está


Registrada a necessidade de incorporação do conteúdo de História do
Brasil, de contribuições positivas dos africanos e seus descendentes, sua
resistência e suas lutas; os avanços tecnológicos e culturais da África;
conceitos espirituais específicos de religiões de matrizes africanas;
eliminar dos currículos referenciais ao africano como submisso; eliminar
formas preconceituosas; incentivar a criação do Centro de Estudos, ou de
Pesquisas Africanas, ou Afro-brasileiras como parte integral e normativa
da estrutura universitária, particularmente nas Universidades públicas.
(ALVES, 2017, p.53-54)

Esse projeto tramitou por cinco anos em várias comissões da Câmara dos
Deputados, até ser arquivado em 1989.
Em 1988, o Deputado Paulo Paim (PT/RS) apresenta a PL 678/1988 que objetivava
estabelecer “a inclusão de matérias da historia geral da África e historia do negro no Brasil
como disciplinas integrantes do currículo escolar obrigatório.” 10. Esse projeto tramitou por
oito anos e também foi arquivado.
Ainda em 1988, a Deputada Benedita da Silva (PT/RJ) apresenta o PL 967/1988
com o intuito de “criar, nas Universidades Federais, Núcleos Etnológicos, visando estudo
dos grupos e sub grupos de origem africana e de índios que participaram na formação de
nossa sociedade”11. Contudo, em 1990, esse projeto foi arquivado com a justificativa que
feria os princípios de autonomia universitária.
Já em 1993, a Deputada Benedita da Silva, apresenta a PL 3621/1993:
objetivamos, como presente projeto de lei, a inclusão da disciplina
“História e cultura da África" nos currículos de 1º e 2º graus, e no curso
de Graduação em História, como meio de formara consciência do papel
que as culturas africanas desempenharam na formação da nossa
sociedade e da nossa própria cultura”.12

Esse projeto foi arquivado em 1995, depois de esgotado o prazo de apresentação de


ementas. Ainda nesse 1995, o Deputado Humberto Costa (PT/ES) apresenta o PL
859/1995:

10
Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?
idProposicao=180723>. Acesso em: 13 set. 2022
11
Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/?wicket:interface=:1::::>. Acesso
em: 13 set. 2022
12
Disponível em: < efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/
pdf/DCD27MAR1993.pdf>. Acesso em 13 set. 2022
Dispõe sobre a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da Rede
de Ensino, da disciplina “História da Cultura Afro-Brasileira" e dá outras
providências:
Art.1°-Nos estabelecimento de ensino de 1° e 2° graus oficial e
particulares torna-se obrigatório o ensino sobre a HISTÓRIADA
CULTURA AFRO-BRASILEIRA.
$1ºO ensino a que se refere o caput deste artigo deverá ser
ministrado junto às disciplinas de História do Brasil e Educação Artística
do Brasil no 2° grau. Abrangendo, pelo menos, 10% do conteúdo
programático no ano ou semestre em que for a matéria incluída.
$2° O conteúdo programático incluirá o estudo da História a da
África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resguardando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinente à memória do Brasil.
Art.2°- A elaboração dos cursos de capacitação para professores deverá
ter a participação de entidades do movimento afro-brasileiro.
Art.3°- O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como "Dia
Nacional de Consciência Negra".13

Essa proposta foi aprovada na Comissão de Educação, todavia, como seu autor não
foi reeleito deputado, assim como as outros projetos de leis anteriores, esse foi arquivado
em 1999 por não ter passado em outra comissões.
Por fim, ou melhor, por início, chegamos ao Projeto de Lei 259/1999, apresentado
pelos parlamentares Esther Grossi (PT/RS) e Bem-Hur Ferreira (PT/MS). Esse projeto
dispõe “sobre a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da
temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e dá outras providências.”:
Art.1° Nos estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.
§1º - O conteúdo programático a que se refere o "caput" deste
artigo incluirá o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
nacional, resgatando a contribuição do povo negro na áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§2º - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-
Brasileiras serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História
Brasileiras.
§3º - As disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no
ensino de2º grau, deverão dedicar, pelo menos, 10% de seu conteúdo
programático anual ou semestral à temática referida nesta lei.
Art.2º Os cursos de capacitação para professores deverão contar com a
participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das
universidades e de outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria.

13
Disponível em: < efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/
pdf/DCD01SET1995.pdf>. Acesso em 13 set 2022
Art.3º O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como "Dia
Nacional da Consciência Negra".14

Na própria justificativa, os parlamentares Esther Grossi (PT/RS) e Bem-Hur


Ferreira indicam que o projeto é originalmente do Deputado Humberto Costa, ou seja, o PL
859/1995. A diferença dos projetos anteriores é que este tramitou, sofrendo alguma
transformações, e foi aprovado, transformando-se na Lei 10.639/03.
É interessante observar que todos os projetos de leis aqui anunciados, que são
apenas alguns dentre tantos apresentados pelo movimento negro brasileiro, a existência de
uma preocupação com o sistema oficial de ensino como veículo de sustentação do racismo.
Então desde o PL 1332/1983, de autoria de Abdias do Nascimento (PDT-RJ), observa-se
uma preocupação com o currículo prescrito ensinado em todos os níveis de ensino, isto é,
desde a formação de professores até a educação básica. Assim como Edson Cardoso 15
aponta:
É importante recuperar as iniciativa outras, porque revelam que esse
resgate do passado sempre foi uma preocupação do movimento negro.
Falar da história da África, de história e cultura afro-brasileira, isso não é
uma coisa de uma pessoa, isso sempre veio por várias gerações do
movimento (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.432 apud PEREIRA, 2017,
p.24)

A aprovação da lei não encerra a luta em questão, pelo contrário, a aplicação


efetiva da Lei 10.639/03 ainda é um campo de disputas muito forte para o movimento
negro brasileiro. Logo após a promulgação da lei foram elaborados documentos
normativos para auxiliarem na implementação da mesma. Ainda em 2003, é aprovado o
Decreto nº 4.886 que “Institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial”
(PNPIR), com o objetivo principal de reduzir as desigualdades raciais no Brasil. Além
disso, a articulação e o conjuntura política à época, garantiram a indicação da professora e
intelectual negra Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva como membro Conselho Nacional
de Educação, entre 2004 e 2006.
O Conselho Nacional de Educação, diante da lei, aprovou o Parecer CNE/CP
nº1/2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares para a Educação da Relações Étnico-
Raciais, que contou com a relatoria de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Além disso, a
resolução do CNE/CP nº1/2004 estendeu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura

14
Disponível em: < http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD20MAR1999.pdf>. Acesso
em: 22 set. 2022
15
Edson Cardoso, liderança do movimento negro em Brasília, atuou como chefe de gabinete do
deputado federal Bem-Hur Ferreira (PT/MS) entre 1999 e 2000 e entre 2002 e 2003.
africana e afro-brasileira que pela Lei 10.639/03 estava prevista apenas “nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares”16, para todos os
níveis e modalidades da educação brasileira, com destaque “Instituições que desenvolvem
programas de formação inicial e continuada de professores” (BRASIL, 2004). O § 1°desse
artigo dispõe:
As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas
e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das
Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas
que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no
Parecer CNE/CP 3/2004.17

Tendo isso em vista, as instituições de ensino superior devem estimular a inclusão


de conteúdos e disciplinas, bem como desenvolver atividades acadêmicas como
conferências, simpósios e colóquios que discutam as relações raciais e garantam a
formação adequada de professores em história e cultura afro-brasileira e africana. Devem
também impulsionar a pesquisa e desenvolver habilidades e atitudes que permitam aos
acadêmicas(os) e licenciadas(os) contribuírem para a educação das relações étnico-raciais.
(BRASIL, 2004)
Os cursos de professores das instituições de ensino superior são os principais
responsáveis pela oferta de profissionais para a Educação Básica. Por isso, desempenham
um papel fundamental na efetivação dos princípios apresentados nas Diretrizes
Curriculares para a Educação da Relações Étnico-Raciais. Em primeiro lugar, porque os
alunos matriculados em cursos de licenciatura têm acesso a discussões consideradas
fundamentais para a prática profissional. Em segundo lugar, porque os professoras(os) são
responsáveis pelo desenvolvimento de processos de ensino-aprendizagem, por meio dos
quais crianças, adolescentes e adultos matriculados na Educação Básica têm acesso ao
mundo do conhecimento formal. (COELHO, M; COELHO, W, 2018)
Isso demonstra a importância de haver nos cursos de formação inicial, principalmente
de licenciatura, em suas grades curriculares conteúdos sobre a história e cultura dos afro-
brasileiros e da História da África. Para além do cumprimento de uma exigência legal, o
ensino baseado no respeito à diferença e no reconhecimento das múltiplas subjetividades é
o que garante uma educação inclusiva e verdadeiramente democrática.

16
Art. 26-A da Lei 10.630/03. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 22 set. 2022
17
RESOLUÇÃO Nº 1, DE 17 DE JUNHO DE 2004. Disponível:<
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf>. Acesso em: 23 set. 2022
Entendo que o currículo é campo de disputas, não se deve perder de vista que o
currículo não é neutro, logo este reflete interesses. Se desejamos construir uma sociedade
mais igualitária é necessário, diante do que foi exposto, que para além de disciplinas
específicas sobre as temáticas da Lei 10.639/93, toda a grade curricular precisa ser
alterada, pois precisamos que o eurocentrismo seja combatido. Pensando especificamente
nas grades curriculares do curso de História, nas quais eu irei me debruçar ao longo da
pesquisa, podemos pensar a exemplo, as disciplinas sobre História do Brasil que devem
abordar a história dos negros no Brasil, afinal, como exigia o MNU é necessário a
“reavaliação do papel do negro na história do Brasil”. Mas não é só a história do Brasil,
disciplinas como História Contemporânea, História Moderna, e todas as demais, devem ir
além da história do continente europeu e incluir as demais partes do mundo. 18 Precisamos
assumir uma perspectiva histórica que abandone a percepção de Europa como epicentro do
mundo.
Concordo com a avaliação de Oliveira e Silva (2017, p.185) quando afirmam que a
implementação da Lei 10.639/03 só terá eficácia quando tivermos reais mudanças nas
“práticas discursivas e na descolonização dos currículos da educação básica e superior em
relação à África e aos afro-brasileiros”. Por isso, entendo que a luta histórica movimento
negro brasileiro tem uma agenda de disputa de poder.

1.3 – Constatanto privilégios: Lei de Cotas


“É visível a mudança da cara e conteúdo que as universidades públicas,
pioneiras da produção acadêmica brasileira, tiveram após a
implementação das políticas de ação afirmativas, fruto das lutas históricas
dos movimentos sociais”
Banner de apresentação do encontro orí

Outra conquista histórica, da agenda de disputa de poder, do movimento negro


brasileiro foi a aprovação da Lei 12.711/12, também conhecida como Lei de cotas. A
referida Lei decretou em seu artigo primeiro que, no prazo de quatro anos, as instituições
federais de educação superior deveriam oferecer em cada processo seletivo para ingresso
nos cursos de graduação no mínimo 50% das vagas para estudantes que tenham cursado
todo o ensino médio na rede pública de ensino. Dentro da reserva de vagas para alunos(as)
18
Não cabe a justificativa de que não existem materiais para trabalhar com tais temáticas, a
exemplo disso, a Coleção História Geral da África com oito volumes, desde a pré-história até 1935,
está disponível em português para download gratuito. Inclusive, de acordo com Almeida e Sanchez
(2017), a produção dessa coleção está vinculada as políticas públicas de implementação da Lei
10.639/03.
de escola pública há dois critérios: contemplar, em 50% delas, estudantes com renda
familiar per capita inferior a 1,5 salário-mínimo; beneficiar pretos pardos, indígenas e
pessoas com deficiência, em proporção igual ou superior à de cada uma dessas populações
na Unidade da Federação (UF) onde está instalada a instituição de ensino (BRASIL, 2012).
O debate em torno da Lei de cotas raciais tem mobilizado boa parte da sociedade
brasileira desde o início do século XXI. Em virtude da pressão do movimento negro
durante a III Conferência Mundial da ONU Contra o Racismo, a Discriminação Racial e a
Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul, realizada em 2001, o Brasil tornou-se
signatário do documento final formulado naquela conferência, reconhecendo oficialmente
a existência do racismo no país e se responsabilizou em criar ações afirmativas, incluindo
cotas, em benefícios das minorias (MUNANGA, 2015).
É importante ressaltar que a ideia de adesão de cotas nas universidades públicas no
Brasil não ocorreu isoladamente do restante do mundo. Outros países como Estados
Unidos e África do Sul tiveram experiência de ações afirmativas na educação antes ao
Brasil. Inclusive, de acordo com o historiador Matheus de Carvalho Leibão (2018, p. 28)
“o termo ação afirmativa surgiu nos EUA na década de 1960, em um contexto político de
reinvindicações de políticas como resposta à segregação racial explícita que assolou o país
durante décadas após o fim da escravidão”. Atualmente, cerca de um quarto das nações em
todo mundo usam algum tipo de ação afirmativa com objetivo de aumentar os números de
estudantes sub representados no ensino superior 19. A adoção de ações afirmativas no Brasil
é possível, em certa medida, a partir de experiências em outros países, mas elas se inserem
no contexto brasileiro com o proposito de dar respostas a questões internas e graças a luta
do movimento negro brasileiro.
Além disso, a lei federal 12.711/12 não foi a primeira experiência de
implementação de critérios raciais no ensino superior no Brasil. Em 2003 as universidades
estaduais do Rio de Janeiro, e em 2004 a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade
Estadual da Bahia (UEBA) adotaram políticas de cota raciais. Esses casos “inauguram um

19
Maiores informações disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2022-
04/lei-de-cotas-ajuda-reduzir-desigualdades-diz-universidade-americana#:~:text=Segundo%20a
%20pesquisa%2C%20a%C3%A7%C3%B5es%20afirmativas,de%20determinados%20grupos
%20de%20estudantes.> e < https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/international-higher-
education/iniciativas-de-acoes-afirmativas-ao-redor-do-mundo#:~:text=Embora%20algumas%20na
%C3%A7%C3%B5es%20tais%20como,d%C3%A9cadas%20de%201990%20ou
%202000.>.Acesso em: 29 set. 2022
período de grandes especulações acerca das consequências desses programas”
(GUARNIERI; MELO-SILVA, 2017, p.184).
As discussões sobre as cotas no ensino superior perpassaram o universo acadêmico
e político, ganhando espaço nos principais jornais. Disputas em torno dessa lei provocou
um debate sobre diversos aspectos da realidade social brasileira, em especial no que diz
respeito às relações raciais e à desigualdade social. Posicionamentos contra e a favor das
cotas raciais ainda podem ser observados em diferentes setores da sociedade brasileira.
Entre os que se posicionam contra as cotas, alguns ainda acreditam, de acordo com
o antropólogo Kabengele Munanga (2015), no chamado “mito da democracia racial” e que
o Brasil é um país sem raças, ou seja, a “sociedade de mistura de sangue altamente
mestiça, onde os indícios da discriminação devem ser buscados nas diferenças
socioeconômicas e não nas diferenças raciais” (MUNANGA, 2015, p. 23), ou seja, cotas
raciais não fariam sentido. Outra parcela da população admite a existência do racismo no
Brasil, mas esse racismo seria um racismo “à brasileira”. Para esses indivíduos é preciso
defender um universalismo baseado na ideia de que “perante a lei somos todos iguais”, por
isso, se opõem à ideia de que existem diferenças entre pretos e brancos. As políticas
públicas para diminuição das desigualdades devem, portanto, ser aplicadas para toda a
sociedade e não a uma parcela específica. Vale ressaltar que esse posicionamento
ocasionou, em 2006, até em um manifesto, sob o título “Todos têm direito iguais na
República”20, que contou com 114 assinatura de intelectuais, professores, pesquisadores e
artistas. Parte desse grupo defendiam que as cotas raciais estariam contempladas, em
alguma medida, pelas cotas sociais
Além dessas críticas apresentadas por Munanga (2015), alguns grupos da sociedade
também acreditam que as cotas prejudicam a qualidade do ensino superior, entendendo que
os alunos cotistas não têm capacidade para acompanhar os demais estudantes devido seu
baixo capital cultural e social (SILAME; MARTINS; FONSECA, 2020, p. 3).
Em contrapartida, os que defendem a implementação da Lei 12.711/12, entendem
que se trata de uma reparação de desigualdades históricas, provocadas por mais de 300
anos de escravidão da população negra. E que mesmo após o fim deste período o Estado
brasileiro não se preocupou em oferecer nenhum tipo de assistência que garantiria a
inclusão da população negra, recém liberta, na dinâmica social. Logo, a Lei de cotas

20
Disponível em: < https://www.nacaomestica.org/abaixo_assinado_contra_cotas.htm>. Acesso
em: 01 out. 2022
poderia “contribuir para a democratização do acesso [ao ensino superior] e para a
promoção da igualdade e da justiça social” (SOUZA; BRANDALISE, 2015, p. 181), já
que tem por finalidade propiciar oportunidades antes dificultadas e/ou negadas à população
negra.
A verdade é que a Lei 12.711/12 beneficiou uma diversidade de sujeitos por mirar
diferentes expressões das desigualdades sociais, sendo esse um fator de destaque dessa
política afirmativa (PASSOS, 2015, p. 161). Estudos mostraram que a política aumentou
de forma significativa a proporção de estudantes negros nas universidades públicas, isso
pode ser observado no dia a dia das instituições. De acordo com estudo desenvolvido por
Fernanda Estevan, Thomas Gall e Louis-Philippe Morin (2019) aproximadamente 10%
dos estudantes admitidos não teriam entrado sem a política de cotas.
Além disso, diversos estudos indicam que apesar dos estudantes cotistas
demonstrarem maior dificuldade no inicio do curso, isso diminui consideravelmente ao
longo da graduação. Consequentemente o desempenho acadêmico no final do curso é
similar entre os estudantes cotistas e os alunos(as) da ampla concorrência 21, o que faz com
que a preocupação de parte do setor que se opunha a cota caia por terra. Inclusive, alguns
dos signatários do manifesto contras as cotas que hoje se colocam a favor da política,
entendo que as cotas raciais se mostrou eficiente e democratizante 22. Diante disso, o
movimento negro entende, de acordo com a pesquisa desenvolvida por Pereira, Maia e
Lima (2020) que a aprovação das cotas representa a maior conquista na luta antirracista no
Brasil, seguida da Lei 10.639/03, mostrando mais uma vez a importância da educação para
o movimento negro.
Apesar disso, não podemos esquecer que essa luta ainda está em processo, tendo
em vista que os dados apresentados em 2019 pelo IBGE, na pesquisa Desigualdades
Sociais por Cor ou Raça no Brasil, que apontam que negros são pela primeira vez maioria

21
Dentre estes estudos temos: PENA, Mariza Aparecida Costa; MATOS, Daniel Abud Seabra;
COUTRIM, Rosa Maria da Exaltação. Percurso de estudantes cotistas: ingresso, permanência e
oportunidades no ensino superior. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior
(Campinas), v. 25, p. 27-51, 2020. PEIXOTO, Adriano de Lemos Alves et al. Cotas e desempenho
acadêmico na UFBA: um estudo a partir dos coeficientes de rendimento. Avaliação: Revista da
Avaliação da Educação Superior (Campinas), v. 21, p. 569-592, 2016. WAINER, Jacques;
MELGUIZO, Tatiana. Políticas de inclusão no ensino superior: avaliação do desempenho dos
alunos baseado no Enade de 2012 a 2014. Educação e Pesquisa, v. 44, 2017.
22
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/11-signatarios-de-carta-de-
2006-contra-cotas-raciais-dizem-por-que-mudaram-de-posicao.shtml>. Acesso em: 01 out. 2022
nas universidades públicas, representando 50,3% dos estudantes23. Entretanto a população
negra ainda está sub-representada, já que equivalem a 55,8% da nação brasileira. Além
disso, a Lei 12.711/12 em seu artigo 7º prevê que após a conclusão do primeiro decênio de
vigência deve ser realizada uma revisão dos avanços e obstáculos da reserva de vagas para
acesso à graduação nas instituições federais de educação superior. Contudo, estudos como
a do pesquisador Adriano Senkevics (2018) apontam que há dificuldades em conseguir
dados para avaliação e monitoramento efetivo da lei
Exemplo disso são as dificuldades ainda existentes para a composição de
um amplo retrato do perfil racial dos estudantes em nível superior, como
se esperaria obter por meio do Censo de Educação Superior (CES),
levantamento censitário de matrículas, cursos, funções docentes e
instituições em nível superior realizado anualmente pelo Instituto
Nacional e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
(SENKEVICS, 2018, p.4)

O CES ainda registra índices elevados de não declarantes raciais, devido a uma
subnotificação do quesito cor/raça por parte das universidades. Ademais, embora haja uma
crescente no número de pesquisas que examinam esses 10 anos das políticas de cotas,
ainda existem lacunas a serem analisadas, como por exemplo, pesquisas sobre a evasão,
permanência e diplomação dos estudantes que ingressaram via cotas, entendermos quais
cursos e carreiras estão sendo escolhidos e como essas escolhas afetam as ocupações e a
vida desses estudantes após a universidade. Talvez observar a demanda crescente para
cotas na pós-graduação e para a docência seja um caminho.
Apesar das dificuldades para uma avaliação ampla da política, podemos afirmar
que há uma mudança no perfil dos discentes das universidades públicas devido a
implementação de políticas de ação afirmativa (SENKEVICS, 2022). A entrada dos
discentes cotistas e negros(as) nas universidades públicas tem gerado tensionamentos.
Esses novos alunos(as) cuja presença é vista como discrepante, diante do fato das
universidades públicas terem sido ocupadas historicamente pelas elites brasileiras, fazem
com que os espaços de privilégios dessa elite sejam disputados. Privilégios esses que eram
entendidos como legítimos e naturais de um grupo social, como dizia Lima Barreto, no
início do século XX: “Só os ricos podem formar-se e nós já sabemos como, em geral, eles
se formam.” (BARRETO,1961, p. 48 apud, MAGNONI, 2016, p. 303). Podemos perceber
como a ocupação dos espaços de ensino superior exclusivamente pela elite é questionado

23
Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdfl>.
Acesso em: 29 set. 2022.
há bastante tempo. A entrada de estudantes pobres, periféricos e negros(as), nos espaços
universitários têm crescentemente contestado esses privilégios.
A resistência à presença desses alunos e alunas evidencia que o espaço universitário
é, assim como a maioria das instituições brasileiras, fruto de uma sociedade
estruturalmente racista e, por isso, o racismo marca sua organização institucional e práticas
cotidianas, inclusive no que tange a produção de conhecimentos, que “define como
subalternos sujeitos e conhecimentos diferentes da ciência ocidental e da branquitude”
(BARCELLOS, 2018, p. 10). Os currículos universitários, em suas diferentes dimensões,
por muito tempo, também vêm perpetuando as práticas racistas e passam a ser fortemente
contestados com a entrada desses estudantes beneficiados pela Lei de cotas, que trazem
para a academia novas experiências, novos objetos e novas maneiras de se produzir
ciência, questionando assim os currículos predominantemente eurocêntricos. Concluímos
então, que a lei de cotas tem sim mudado a cara e o conteúdo das universidades brasileiras,
como apresentado na epígrafe.

1.4. – Raízes do encontro orí: Movimento negro educador e a cultura de luta


antirracista
“E aqui, entendendo pesquisa e movimento social como indissociáveis,
escolhemos Beatriz do Nascimento, historiadora e militante negra
formada na UFRJ, para nos “orientar” nesse projeto que leva o nome de
uma das suas produções, o documentário “Ori”. Em yorubã, “orí”
significa “cabeça”, “topo” (no sentido físico), “destino, “intuição” (no
sentindo metafísico). Inspirados, também pelos encontros de estudantes
de história da África da década de 1990, o encontro orí, portanto, tem
como objetivo refletir o que graduandos em história e áreas relacionadas
estão pensando e produzindo no campo da historiografia sobre África e
das relações étnico-raciais”
Banner de apresentação do encontro orí

Como pode ser observado ao longo das epígrafes deste primeiro capítulo nós,
organizadores do encontro orí – Encontro de Estudantes de História da África e das
relações étnico-raciais, entendemos desde a idealização do evento que estese insere em um
campo de conquistas históricas do Movimento Negro no campo da educação.
Reconhecendo a importância dessa história de luta que buscamos o nome do evento no
documentário da historiadora e militante do movimento negro Beatriz do Nascimento. Ao
analisar o encontro orí hoje, vejo que Beatriz do Nascimento não inspirou apenas o nome,
mas que sua trajetória de vida e luta também orientou o evento,
Maria Beatriz Nascimento nasceu em Aracaju, Sergipe, em 17 de julho
de 1942. Oitava filha do casal formado por Rubina Pereira do
Nascimento e Francisco Xavier do Nascimento, teve nove irmãos. Assim
como milhares de famílias nordestinas da época, em 1949, Nascimento
migrou para a região Sudeste, mais precisamente para o Cordovil, bairro
do subúrbio carioca.
Em 1969, aos 28 anos de idade, Beatriz Nascimento é aprovada para o
vestibular do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), graduação que conclui em 1971. No mesmo período, fez estágio
em pesquisa no Arquivo Nacional, sob orientação do historiador José
Honório Rodrigues. Tempos depois, torna-se professora da rede estadual
fluminense.24

A Lei de cotas sem dúvida permitiu um crescimento sem precedentes de estudantes


negros/as nos espaços acadêmicos, contudo, não significa que antes não haviam estudantes
nesses espaços. Durante os “anos de chumbo” da ditadura civil-militar brasileira,
principalmente entre 1968 e 1973, o Brasil viveu um período de crescimento econômico
que ficou conhecido “milagre econômico”25. Esse crescimento possibilitou um aumento,
ainda que tímido, no número de estudantes negros/as no mundo acadêmico, em especial no
setor privado e em menor abrangência nas instituições públicas.
As entrevistas com as lideranças negras permitiram observar algumas
trajetórias comuns. De fato, entre as lideranças entrevistadas para esta
pesquisa, embora muitas fossem de origem humilde e ainda vivessem em
situação de pobreza, a maioria cursava o ensino superior nas décadas de
1970 e 1980. Fato que as levava a construir uma “elite intelectual negra”
que “desempenhou uma função pedagógica – esta entendida enquanto
relação dinâmica – que se configurou no seu inicio [nos anos 1970] como
de ensino e aprendizagem”, em várias partes do país (MONTEIRO,
1991:13) (PEREIRA, 2013, p.232)

Maria Beatriz do Nascimento, assim como outros estudantes universitários


negras/os que vieram a se tornar importantes lideranças do Movimento Negro
contemporâneo, ao longo de sua vida uniu uma trajetória de militância com a academia.
Ao longo de sua trajetória, a historiadora sergipana sempre aliou a
militância com a vida acadêmica. Ao lado de pesquisadores e
pesquisadoras negras, fundou o Grupo de Trabalho André Rebouças na
24
Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/literafro/ensaistas/1422-beatriz-nascimento>. Acesso
em: 24 out. 2022
25
As exportações triplicaram, o Produto Interno Bruto ficou acima de dois dígitos e a inflação
recuou para 20% ao ano em média. Grandes obras foram iniciadas nesse momento (Ponte-Rio
Niterói, Itaipu, Transamazônica), revelando a grandeza do Brasil e de sua economia. A conquista
da Copa de 1970 contribuiu para a propaganda oficial, que anunciava o destino do país em ser uma
potência, a começar pelo futebol. Todos os setores da sociedade se beneficiaram do boom
econômico, porém, de maneira crescentemente desigual. Com o passar do tempo, a modernização
conservadora da economia tendeu a aprofundar as desigualdades entre os mais ricos e os mais
pobres. Os efeitos sociais desse processo, como greves por melhores salários, por exemplo, só
puderam ser controlados porque o Brasil vivia sob uma ditadura.
Universidade Federal Fluminense (UFF). Na mesma instituição, em
1981, concluiu o curso de pós-graduação Latu Sensu em História do
Brasil. Entre os anos finais da década de 1970 e o início dos anos 1980,
foi presença constante na retomada dos movimentos sociais negros
organizados, mantendo vínculo inclusive com o Movimento Negro
Contra a Discriminação Racial (MNUCDR, nome mais tarde reduzido
para MNU), fundado em 1978. 26

Uma das principais estratégias de mobilização, nesse contexto, eram as


reuniões de estudo, de leitura e discussão, e os seminários e palestras, que
ocorriam em muitos locais, como por exemplo no Centro de Estudos
Afro-Asiáticos (CEAA), na atual Universidade Candido Mendes, no Rio
de Janeiro, no início da década de 1970. Era preciso estudar, discutir, se
informar sobre “a questão do negro” e as relações raciais no Brasil, sobre
as histórias das lutas dos negros por aqui, na África e nos Estados
Unidos, para informar outros e assim fortalecer o movimento que se
buscava constituir.” (PEREIRA, 2013.p.232-233)

Não podemos perder de vista, como apresentado anteriormente, que estamos falado
de um período em que o Movimento Negro está passando por uma virada. Era preciso
(re)educar a sociedade sobre a história da população negra no Brasil, ressignifica e politiza
o conceito de raça, comprovando que o racismo brasileiro está presente no dia a dia da
população brasileira (GOMES, 2017). O ensino superior, é historicamente, um espaço de
produção científica e de conhecimento, mas também um importante ambiente político. De
acordo com Lia da Costa, a entrada desses estudantes negros possibilitou a constituição de
um Movimento Negro de base acadêmica,
Essa organização de caráter acadêmico permitiu que diversas áreas de
interesse da população negra fossem profundamente analisadas,
especialmente a questão educacional, evidenciando o racismo presente
nas práticas escolares. (COSTA, 2021, p.44)

Não podemos ignorar que a produção do conhecimento do Movimento Negro, em


grande parte não está vinculada a acadêmica nem aos meios políticos, mas sim aos espaço
de suas vivências cotidianas, ou seja, as periferias (GOMES, 2018), e que muitas vezes
suas elaboração não são reconhecidas. Entretanto, se percebe que a partir da expansão da
graduação e da pós-graduação, alguns ativistas do Movimento Negro se tornam referências
acadêmicas nas pesquisas sobre relações étnico-raciais, desenvolvendo trajetórias
acadêmico-políticas (GOMES, 2017), que vão se mostrar de grande relevância para as
lutas por mudanças internas na estrutura do Estado, como, por exemplo, a cobrança por
cotas raciais.

Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/literafro/ensaistas/1422-beatriz-nascimento>. Acesso


26

em: 24 out. 2022


O aumento de estudantes e pesquisadores/as negros/as nesse período também
possibilitou que esses se organizassem, em coletivos e grupos de estudos, mas também
proporciono um crescimento em eventos voltados para pensar questões raciais e outros
assuntos importantes para a população negra. Como apresentado na epígrafe, o encontro
orí se inspirou em “encontros de estudantes de história da África da década de 1990” que a
professora Monica Lima27 contou em algumas das suas aulas, mas esse também podíamos
dizer que nos inspiramos em outros, como por exemplo, o Congresso Brasileiro de
Pesquisadores Negros (Copene). O Copene é organizado desde 2000, pela Associação
Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), e que
é uma organização sem fins lucrativos e apartidária, que se destina à
defesa da pesquisa acadêmico-científica e/ou espaços afins realizada
prioritariamente por pesquisadores/as negros/as, sobre temas de interesse
direto das populações negras no Brasil e de todos os demais temas
pertinentes à construção e à ampliação do conhecimento humano e,
igualmente, ao desenvolvimento sócio político e cultural da sociedade. 28

O Copene é um exemplo de espaços para reflexão sobre a produção de


pesquisadoras/es negras/os e de estudos que lidam com temáticas relacionadas a essa
população. Como apresenta Nilma Lino Gomes (2017), esses espaços são de grande
importância para a produção de conhecimento científico sobre as relações étnico-raciais,
mas também para o reconhecimento das “experiências do Movimento Negro como
conhecidos válidos” (GOMES, 2017, p.35).
Diante do que foi exposto ao longo desse capítulo, concordo com Nilma Lino
Gomes que o Movimento Negro é um ator político e educador.
Ator político que produz, constrói, sistematiza e articula saberes
emancipatórios produzidos pelos negros e negras ao longo da sua
trajetória na sociedade brasileira. Tais ações têm como foco a população
negra, mas não se restringem a ela. Visam à construção da sociedade e da
educação como espaços/tempo mais igualitários, democráticos e justos.
O Movimento Negro ressignifica e politiza a raça, compreendendo-a
como construção social. Ele reeduca e emancipa a sociedade, a si próprio
e ao Estado, produzindo novos conhecimentos e entendimentos sobre as
relações étnico-raciais e o racismo n Brasil, em conexão com a diáspora
africana (GOMES, 2017, p.38)

Reconhecer a construção de um projeto educativo emancipatório desenvolvida pelo


Movimento Negro, ou seja, compreender a atuação política e educadora do Movimento

27
Mônica Lima e Souza é professora de História da África e Coordenadora do Laboratório de
Estudos Africanos - LEÁFRICA da UFRJ.
28
Sobre o ABNT e o Copene, disponível em: < https://abpn.org.br/institucional/>. Acesso em: 25
out. 2022
Negro foi necessária a realização, em 2019, de um evento idealizado e organizado por
estudantes da graduação com o “como objetivo refletir o que graduandos em história e
áreas relacionadas estão pensando e produzindo no campo da historiografia sobre África e
das relações étnico-raciais”.
Constato a partir da tese desenvolvida por Thayara Lima (2022) que a luta
desenvolvia pelo Movimento Negro produz cultura de luta antirracista. A cultura diz
respeito a significados compartilhados, em outras palavras, cultura corresponde a valores
comuns de um grupo ou sociedade (HALL, 2016), e como apresentado por Thayara Lima,
dialogando com Hall, a
luta cria a exigência e as condições necessárias para a ocorrência de
transformações de determinados códigos, conforme Hall nos indicou
anteriormente, a luta “gera e requer seu próprio universo distinto de
significados e práticas” (HALL, 1997, p.32). Essas transformações
consolidam uma cultura de luta no decorrer deste processo. (LIMA, 2022,
p.64)

De acordo com Hall em seu texto A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções
culturais do nosso tempo (1997, p. 32) “cada instituição ou atividade social gera e requer
seu próprio universo distinto de significados e práticas – sua própria cultura”. Logo, é
correto afirmar que o espaço universitário tem uma cultura própria. Desse modo, a cultura
acadêmica é aqui compreendida:
como a multiplicidade de sentidos, significações e finalidades que ao
longo da história foram atribuídos à universidade em seus principais
eixos de atuação – ensino, pesquisa e extensão -, considerando-se os
sujeitos que fazem o cotidiano da instituição universitária e o contexto
histórico, social, econômico e cultural no qual a universidade está imersa.
Contudo, a cultura acadêmica também é a soma de todo tipo de
aprendizagem e também de ausências e silenciamentos. (PASSOS, 2015,
p. 165-166)

Contudo, o significado nunca é permanentemente fixado, pois a cultura está em


constante transformação (HALL, 1997). Como apresentado anteriormente, nos últimos
anos, o que tem sido observado nas universidades é o aumento da diversidade dos sujeitos
que adentram esses espaços. Esses novos estudantes trazem diferentes elementos culturais,
modificando assim as experiências no interior das universidades.
Entretanto, de acordo com Thayara Lima “para que a libertação de fato se consolide
é preciso que os indivíduos sejam afetados pela cultura de luta, ou seja, é preciso que eles
sejam expostos às transformações que a luta exige” (LIMA, 2022, p.64), por isso, conhecer
a atuação política e educadora do Movimento Negro foi importante para nós organizadores
do encontro orí. Como será apresentado no próximo capítulo, ao idealizarmos o encontro
orí29, mobilizadas para a construção do evento pessoas que já haviam sito afetadas pela
cultura de luta antirracista.
Analiso que a realização do encontro orí – Encontro de Estudantes de História da
África e das relações étnico-raciais está ligado diretamente com os novos códigos de
significados gerados pela cultura de luta antirracista empreendida pelo Movimento Negro
brasileiro, como pode ser observado pela própria temática do evento e as inspirações que
levaram a organização dele. Tendo em vista que “não se trata de uma cultura
essencializada, mas sim, de cultura como um movimento que vai afetando na mesma
medida em que vai se transformando” (LIMA, 2022, p.63) e que “cultura se relaciona a
sentimentos, a emoções, a um senso de pertencimento, bem como a conceitos e ideias”
(HALL, 2019, p.20), defendo nessa dissertação que o encontro orí que surge a partir da
cultura de luta também a “produz” e afeta outros indivíduos.

29
O evento foi inicialmente idealizado por mim e por Douglas Gonçalves, em uma mesa de
bandejão.

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