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O artigo revisita a história dos movimentos sociais de bairros de Fortaleza (CE), tendo como referente em-
pírico o Conjunto Palmeiras, cuja formação territorial remete aos anos 1970. A análise resulta de aproxima-
ções etnográficas que adentram no cenário da mobilização por direitos fundamentais e pela urbanização do
bairro, espaço social que resguarda uma memória de lutas e conquistas, possibilitando identificar agentes
envolvidos na projeção desses movimentos nas décadas de 1980 e 1990. Essa experiência de organização
coletiva segue na formação de espaços de autonomia, com momentos de interlocução e resistência frente ao
Estado, trazendo contribuições para o debate acerca de temas como movimentos sociais, soberania e repre-
sentação popular.
Palavras-chave: Política. Movimentos sociais. Representação. Soberania. Cidade.
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i87.25807 659
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Nesse contexto, configura-se um cres- CONP). Iniciei, então, uma aproximação com
cimento desordenado, que desafia as políticas esse bairro, sistematizando, em 2003, um pro-
de planejamento urbano, intensificando o mo- jeto de pesquisa desenvolvido no Doutorado
vimento de ocupação de terras, edificando na em Sociologia pela UFC, realizando a defesa
paisagem as chamadas “áreas de risco” forma- da tese em 2008.
das às margens de rios, riachos, córregos, la- Embasado em leituras e aportes teórico-
goas, praias, morros, encosta de dunas, dentre -conceituais (Barreira, 1982; Braga, 1995; Dió-
outros terrenos supostamente pertencentes a genes, 1992), interessei-me pela dinâmica dos
particulares ou de domínio da União. movimentos sociais de bairros em Fortaleza,
Nos anos 1990, integrei uma equipe de quando pude identificar uma singularidade na
estudantes de Ciências Sociais, sob a coorde- história do Conjunto Palmeiras. Embora mar-
nação da Profa. Elza Braga, que atuou na in- cado por características mencionadas acima
vestigação do fenômeno da ocupação de terras no que se refere ao contexto da Brisa da Praia
urbanas na Barra do Ceará1 – periferia oeste de (Barra do Ceará, periferia oeste), o Conjunto
Fortaleza –, objetivando compreender as ten- Palmeiras (Jangurussu, periferia sul) desenvol-
sões entre o que é considerado legal e o que é veu uma relação profícua junto aos movimen-
significado como legítimo na luta por terra e tos sociais e partidos políticos de esquerda,
habitação, em face das bases legais da Consti- pondo em cena ousadia nas suas ações, atrain-
tuição de 1988. do a colaboração técnica de ONGs e tecendo
Entre 1993 e 1999, com alguns interva- um percurso de autonomia face ao assédio de
los, foi possível conhecer a experiência de li- forças políticas da direita.
deranças ligadas à Associação dos Moradores Assim, a conquista de uma infraestru-
da Brisa da Praia, na Barra do Ceará. A história tura urbana mínima para o bairro é destacada
dessa associação traz características comuns à como experiência que dá origem a uma asso-
maioria dos movimentos sociais de bairros de ciação de moradores orientada pelo princípio
Fortaleza: vulnerabilidade à violência e ameaça da autonomia e da soberania, ainda que hou-
de expulsão, atrelada à ausência do documento vesse mediações com o espaço da política par-
de posse do imóvel pelos moradores; mediação tidária. Todavia essa comunicação se fez, his-
de atores sociais externos, como a Igreja Cató- toricamente, pela proposição de ideias e pro-
lica; apoio de assessores de políticos; interlo- jetos e não simplesmente pela troca pontual e
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cução com o Estado na demanda por serviços, eleitoreira firmada com agentes vinculados ao
equipamentos públicos e urbanização. Estado. Eis o diferencial que emerge quando se
No ano de 1999, em atividade de exten- polariza a história do Conjunto Palmeiras com
são vinculada a esse projeto de pesquisa, lide- a da Brisa da Praia. No desdobramento desse
ranças e moradores da Brisa da Praia visitaram modo propositivo de atuar, a ASMOCONP des-
a Organização Não Governamental Cearah Pe- lanchou um movimento de economia solidária
riferia, onde se apresentou um líder comunitá- no bairro, conhecido como referência nacional
rio convidado a essa instituição para descrever e internacional.
a história do Conjunto Palmeiras e as diretrizes A configuração de um movimento social
de ação do Banco Palmas, espaço de economia com particularidades e elementos comuns à
solidária criado no âmbito da Associação de dinâmica de uma cidade justifica o recorte que
Moradores do Conjunto Palmeiras (ASMO- proponho. Referenciar o Conjunto Palmeiras
como portador de uma história singular não
1
Pesquisa desenvolvida através do projeto “Ocupações de significa dizer que as histórias tecidas em ou-
terras urbanas em Fortaleza: o legal e o legítimo em ques-
tão”, no Programa de Iniciação Científica da UFC, com bol- tros bairros são menos importantes. Focalizo o
sas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq). recorte empírico que me foi mais acessível em
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numa superfície demarcada em 180 hectares. Trata-se de uma história iniciada numa
Inicialmente, 1,5 mil famílias foram removi- cidade marcada por um processo de cresci-
das para o loteamento, provenientes da favela mento demográfico intenso, onde se percebe
do Lagamar, Aldeota, Poço da Draga, Arraial profunda desigualdade na apropriação dos es-
Moura Brasil e favela Verdes Mares. As causas paços para a habitação. Enquanto a média na-
da remoção dessas famílias variam: algumas cional de população concentrada em favelas é
estavam desabrigadas em decorrência de en- de 6%, em Fortaleza, esse índice alcança 16%.
chentes, sobretudo as que foram retiradas do Ao todo, 509 comunidades dessa urbe são con-
Lagamar, e outras passaram por processos de sideradas como favelas, abrigando precaria-
desapropriação de terrenos nas favelas de ori- mente 396.370 pessoas.5 Esse processo de fa-
gem. Em determinados casos, a desapropria- velização observado em Fortaleza remonta aos
ção ocorreu em áreas de crescente especulação anos 1930, quando o fluxo migratório de famí-
e valorização imobiliária (cf. Associação..., lias que partiam do sertão cearense em direção
1990; Melo Neto Segundo; Magalhães, 2003). ao litoral começa a tornar-se expressivo, resul-
Com população estimada em 36.599 tando, inicialmente, dentre outros fatores, na
moradores,3 em termos de infraestrutura urba- ocupação desordenada da zona costeira oeste.
na, o bairro4, que hoje tem mais de 40 anos, em Na segunda metade do século XX, as
nada se assemelha ao loteamento iniciado nos migrações internas no Ceará intensificam-se,
anos 1970. As lutas da comunidade organizada com enorme impacto sobre a capital, onde a
levaram à conquista de energia elétrica, abas- ocupação irregular do solo resultará na forma-
tecimento de água, drenagem, calçamento e ção de comunidades desprovidas de condições
pavimentação de ruas, construção de escolas, de habitabilidade. Como efeito, a organização
praça, transporte público, dentre outros equi- do território urbano em Fortaleza, nos anos
pamentos e serviços. 1970, levou ao reforço da lógica de segregação
Nas atividades de pesquisa, observei dos espaços da cidade, fato que impulsionou
a visibilidade de um mercado local, onde se políticas de erradicação das favelas em áreas
movimentam diversos pontos de negócio: que passavam a interessar ao processo de es-
mercearias, mercadinhos, lanchonetes, bares, peculação imobiliária.
lojas de material de construção, vendas de fru- Essas políticas de controle social con-
tas, verduras e legumes, açougue, farmácias, textualizam-se no período da ditadura mili-
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posto de combustíveis, revendedores de gás tar, quando foram criados, pela Lei Federal
de cozinha, pequenas unidades informais de Nº. 4.380 de 21 de agosto de 1964, o Sistema
produção, lojas de vestuário, além de estabe- Financeiro de Habitação (SFH) e o Banco Na-
lecimentos de serviços, tais como salões de cional de Habitação (BNH). Considerando-se
cabeleireiros e acesso a jogos de informática e a lógica desenvolvimentista que marcou esse
internet. Ademais, o bairro conta com a pre- período, é importante observar que a preocu-
sença de diversas organizações e equipamen- pação do governo com a política habitacional
tos: igrejas, entidades e associações populares, não surgia como resposta sensibilizada às ne-
postos de saúde, Centro de Nutrição e Centro cessidades da população empobrecida. Havia,
Social Urbano. sobretudo, um cuidado em conter a expansão
de espaços onde se difundiria a possibilidade
3
Informação extraída dos dados referentes ao Censo De-
mográfico de 2010, divulgado pelo Instituto Brasileiro de
5
Dados extraídos da publicação Aglomerados Subnormais
Geografia e Estatística (IBGE). – Informações Territoriais, relativos ao Censo IBGE 2010.
O documento refere-se a “áreas conhecidas ao longo do
4
O Conjunto Palmeiras esteve oficialmente inserido, até país por diversos nomes, como favela, comunidade, gro-
o final de outubro de 2007, na área do bairro Jangurussu. tão, vila, mocambo, entre outros”.
Essa situação dificultou, por décadas, a sistematização de Disponível em: <https://ww2.ibge.gov.br/home/presiden-
dados socioeconômicos que tratassem de forma desagrega- cia/noticias/imprensa/ppts/0000001516481120201348010
da sua realidade específica. 5748802.pdf>. Acesso em 13. 11. 2017.
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partidos e movimentos de esquerda, que então toral praticada com associações de moradores,
articulavam ações de construção de uma cons- cujo histórico configurou uma identidade polí-
ciência aplicável à transformação da realidade tica significada em demandas imediatistas.
social marcada pela desigualdade, reproduzi- Numa retrospectiva, cabe olhar para
da no modo de produção capitalista. No caso trás, desde o momento presente até os anos
da Brisa da Praia, essa intermediação se fazia 1990, com a lucidez necessária para que não
diante das investidas praticadas por lideranças se trate a cena política de forma maniqueísta e
de partidos ligados às forças da direita. normativa. Nesse sentido, é preciso considerar
O papel da esquerda, nos movimen- a ascensão do PT ao executivo federal em 2003
tos de bairros em Fortaleza, foi determinante e a ocupação de cargos executivos em diferen-
tes estados e municípios do país por esse parti-
6
Categoria que atua dentro e fora do tempo de campanhas
eleitorais, constituindo uma espécie de correia de ligação do e por outras denominações da chamada es-
para a troca de interesses entre eleitor e candidato. Nor-
malmente, os indivíduos aplicados a essa tarefa são bene- querda, numa escalada lenta, com a conquista
ficiados com algum ganho material ou prestígio junto ao de prefeituras iniciada na década de 1980. O
político para o qual trabalham. Uma versão mais atual des-
se tipo apresenta-se sob a figura de “apoio” ou “assessor”, poder de influência desses partidos estende-
termos que, de alguma forma, disfarçam a carga simbólica
negativa da condição de cabo eleitoral. -se até o momento recente de 2016, quando
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expandir o ensino superior incluindo segmen- carioca para pesquisar o cotidiano da política,
tos menos favorecidos, conduzir ações afirma- ela polarizou o modo de fazer política do PT
tivas e reparatórias com cotas nas universida- com o perfil de atuação de uma vereadora local,
des e no serviço público, além de investir na vista como política tradicional, em virtude do
valorização do salário mínimo e na elevação trabalho de assistência oferecido aos eleitores.
do poder de consumo de bens e serviços pela Percebendo o juízo de valor da pesquisadora, a
classe trabalhadora, dentre outros feitos, como vereadora levou-a a rever suas prenoções. In-
as oportunidades abertas em diferentes regiões serida em seu universo semântico, a vereado-
com o Programa Luz para Todos. ra elaborava um juízo sobre a atuação política
Ressalto a pertinência dessa retrospec- própria, ressignificando o rótulo de assisten-
tiva como forma de facilitar o entendimento cialista, ao defender-se como mediadora cujo
sobre uma cena política que não parece nova. objetivo era conquistar investimentos públicos
Os movimentos sociais de bairros cresceram para a região do subúrbio. A antropóloga, por
na relação com partidos de esquerda, mas essa sua vez, passou a estranhar o que até então lhe
não é uma faceta única das chamadas entida- era familiar: o fazer política de um parlamen-
des comunitárias. A comunicação clientelista tar vinculado ao PT, seu universo de inserção
com assessores políticos alinhados a forças de partidária como eleitora. A experiência vivida
direita também é um dado importante no con- na observação participante fez a pesquisadora
texto das associações de moradores. Não se tra- notar que também se afetava pela “crença nas
ta de uma história de feições puras. Entretanto, dicotomias Zona Sul e Zona Norte, cidade e
a dimensão pedagógica e formativa das lutas subúrbio, político moderno e político tradicio-
sociais aponta para outras identidades políti- nal” (Kuschnir, 2003, p. 25).
cas possíveis, que resultam em escolhas mais Esse episódio sugere uma reflexão sobre
delineadas e propositivas. a leitura maniqueísta que polariza a atuação de
No percurso de pesquisa que tenho tri- lideranças comunitárias pelos qualificativos
lhado, observo que a relação de lideranças do de esquerda ou direita, simplificando a análise
Conjunto Palmeiras com a política partidária do papel das associações de bairro. Ao pesqui-
é heterogênea, abrigando, em seu território, sar a comunidade Brisa da Praia, observei que
entidades dos mais diversos carizes. Todavia a relação de troca de interesses entre lideran-
essa relação se destaca pelos contornos das ças comunitárias e representantes do governo
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lutas históricas travadas por justiça social e não é vista ali sob a ótica negativa do assis-
pela construção da cidadania, em que o apoio tencialismo ou do clientelismo, ainda que, em
a candidaturas ditas de esquerda transparece diversas situações, essa troca esteja circunscri-
de forma declarada e reconhecida como meio ta ao compromisso eleitoral firmado diante de
legítimo de influenciar tendências sensíveis a uma promessa pontual.
causas favoráveis às demandas do bairro. Nesse caso, o líder comunitário ressalta a
Estudo realizado pela antropóloga Kus- figura do apoio externo como assessor político
chnir (2003), na cidade do Rio de Janeiro, que facilita a conquista de recursos para a co-
aponta como a pesquisadora buscou relativizar munidade: “[...] ele como assessor do prefeito
prenoções que carregava consigo, pelo fato de [...], nós tivemo muito apoio da Prefeitura. [...] É
sempre ter votado em candidatos da esquerda, tanto que as drenagem nós tivemo o apoio ma-
especificamente do PT e, familiarizada com o ciço do Dr. A. C., ajudano a gente pra que os
universo simbólico esquerdista, ter incorrido processo e os pedido dos aufício da gente che-
na tendência de analisar de modo normativo a gasse mais fácil na mão do prefeito” (Trecho de
ação dos chamados políticos tradicionais. entrevista gravada em 25/11/2003 com José Lú-
Ao ingressar no subúrbio da Zona Norte cio, da União dos Moradores da Brisa da Praia).
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ro de 1998, como estratégia focada na inclusão de ação do Banco Palmas em nenhum momen-
econômica pela via do microcrédito solidário. to se mostrou insensível ou distante das pautas
Desde então, iniciou-se um processo de orga- de reivindicação de um bairro que, situado na
nização voltado para o desenvolvimento socio- área Regional VI (uma das unidades de admi-
econômico, produzindo-se métodos de traba- nistração da Prefeitura Municipal), caracteriza-
lho posteriormente denominados como tecno- -se como um dos territórios mais empobrecidos
logias sociais, estando em destaque o passo a de Fortaleza, onde se localiza a população mais
passo para a criação de bancos comunitários jovem da cidade e se registram os maiores índi-
(cf. Paulino, 2012). ces de analfabetismo, sendo que no bairro pre-
Tais tecnologias atraíram parceiros locais dominam baixos indicadores de renda média
e internacionais, como a Rede Latino-america- familiar, com 54,7% da população (pessoas de
na de Socioeconomia Solidária (REDLASES), 10 anos ou mais de idade) incluída na categoria
ONGs e agências de fomento bilateral e mul- dos que declaram não ter nenhum rendimen-
tilateral, priorizando-se eixos de ação, como o to – dados referentes ao Censo 2010 do IBGE,
apoio a mulheres vítimas de violência e social- citados por Fernanda Rodrigues (2016) –, além
mente vulneráveis, o trabalho com juventudes de ser apontado como um dos espaços de Forta-
e, principalmente, o incentivo à produção e ao leza mais vulneráveis à violência urbana.
consumo interno, como vetor de fortalecimento No capítulo seguinte, busco mostrar que
da economia do bairro, ancorado na circulação o Instituto Palmas e a ASMOCONP continuam
da moeda Palmas. E, durante o governo do pre- como referências na organização comunitária
sidente Lula, quando foi criada a Secretaria Na- do bairro, inclusive como agentes de incentivo
cional de Economia Solidária (SENAES), essa à formação de outras entidades representati-
experiência ganhou mais fôlego, pois o Banco vas, articulando-se em momentos de interlo-
Palmas passou a coordenar a Rede de Bancos cução ou de enfrentamento e resistência em
Comunitários, surgindo, então, o Instituto Pal- face do poder público, configurando uma es-
mas de Desenvolvimento e Socioeconomia fera pública local ativa, onde é possível pensar
Solidária, responsável pela operacionalização sobre os sentidos de um movimento social que
de projetos sociais no espaço local, atendendo ressalta, em sua dinâmica discursiva, uma alu-
também a comunidades circunvizinhas.9 são à soberania popular.
A ênfase na dimensão econômica da or-
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bilização mais abrangente. Atualmente, um dos protegem, vigiam, plantam, varrem, regam, pintam,
principais vetores de organização da população deixam tudo bonito. O poder público chega de re-
pente e “desempodera”. (Joaquim Melo. Depoimen-
local se difunde na formação de Conselhos de
to publicado em 28/10/2017, disponível em: <ht-
Quarteirão.11 Cada conselho abrange um deter- tps://www.facebook.com/joaquim.melo.750>. Acesso
minado quarteirão do bairro, encarregando-se em 05/11/2017).
de fiscalizar, reivindicar e realizar ações de lim-
peza e paisagem urbana na área, mobilidade, A comunidade não aceitou o fato. Com
cultura e lazer, dentre outras. O primeiro ato do rapidez, lideranças do Banco Palmas, da AS-
primeiro conselho foi um mutirão de limpeza e MOCONP e da Associação das Mulheres
jardinagem na Avenida Valparaíso. Emancipadas do Conjunto Palmeiras fizeram
Uma das ações destacáveis no âmbito um apelo à desobediência civil, caso o governo
desses espaços é a articulação com outras ins- se fechasse ao diálogo:
tâncias comunitárias para pressionar o Comitê O Palmeiras é um bairro que aprendeu fazer-se res-
Estadual de Regularização Fundiária no que peitado. A gente não vai permitir ter a obra sem o
concerne à conquista do “papel da terra”, em governador negociar com a comunidade, explicar
outras palavras, o título definitivo de posse de pra comunidade o que é essa obra e também atender
à pauta da comunidade. A gente tem reivindicações
imóvel, com matrícula e registro, para famílias
históricas: o sistema de esgoto do bairro, que tá todo
de baixa renda que vivem em terrenos públicos,
estourado. [...]. A gente quer que a mão de obra uti-
o que fica assegurado pela Lei 0369/2017, apro- lizada seja da comunidade. [...]. Ou vai explicar pra
vada na Câmara dos Vereadores de Fortaleza. A comunidade a obra, ou vai ter negociação, ou vai ter
mobilização formada em torno dessa demanda resistência na rua e não vai ter obra. Então, estamos
trouxe à tona uma antiga questão. Os morado- aqui com o presidente da Associação de Morado-
res, nós estamos com a Associação Emancipada das
res que se encontravam em estado de alerta em
Mulheres do Bairro [...]. E nós tamos fazendo uma
relação à questão fundiária, depararam-se com
convocação pra hoje, seis horas da noite, plenária
uma intervenção do governo estadual, através popular do povo soberano do Conjunto Palmeiras,
de uma obra de duplicação da Adutora do An- aqui na Castelo de Castro [...], todo mundo lá hoje
curi, realizada sob a gestão da Companhia de seis e meia da noite, pra discutir sobre essa obra [...].
Água e Esgoto do Ceará (CAGECE): (Depoimento de Joaquim Melo, postado em vídeo
no dia 31/10/2017, disponível em: <https://www.
O Conjunto Palmeira foi invadido essa semana! De facebook.com/joaquim.melo.750>, com 57 compar-
uma hora pra outra começaram a cavar o asfalto, tilhamentos e 4,9 mil visualizações. Verificado em
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da pauta de reivindicações apresentada pelos Nosso projeto de esgotamento sanitário [...] não foi
reclamantes, a qual incluiu a contratação de contemplado. Demanda antiga dos moradores, sem-
pre a resposta do Governo foi: “Não temos dinhei-
mão de obra local, a reparação dos danos nos
ro”. Agora que 2 bi estão disponíveis, lançamos o
canteiros ajardinados e nas residências atingi- movimento ‘ABRACE O CONJUNTO PALMEIRA,
das pela trepidação causada pelas máquinas e, ESGOTO JÁ’! Objetiva incluir no programa Juntos
principalmente, a requalificação do sistema de por Fortaleza, as obras de saneamento do Conjun-
esgoto do bairro. to Palmeira. Veja a programação: 07/12 - Reunião
A obra em questão objetivou insta- com deputados para mediar uma audiência com
o Governador (8h30min) / 13/12 - Ato na praça do
lar novas adutoras para aumentar a vasão da
Palmeiras para entrega do abaixo assinado para a
água que abastece Fortaleza a partir do Siste- Presidente Geral da Defensoria Pública do Estado
ma Ancuri. A passagem dessa tubulação pelo (8h) / 18/01/18 - Manifestação na obra de duplicação
Conjunto Palmeiras remete a uma antiga cena, da adutora (caso não haja negociação). (Depoimen-
quando os moradores lutavam pela água enca- to de Joaquim Melo, publicado em 05/12/2017, dis-
nada da qual não dispunham, embora a aduto- ponível em: <https://www.facebook.com/joaquim.
melo.750>. Acesso em 08/12/2017).
ra passasse naquele território:
“Caso não haja negociação”. Esse trecho
[...] A água que veio pra Fortaleza passa no coração
do Palmeira e nós num temo água. O que é que nós
da fala citada acima é tomado como um emble-
íamo fazer? Nós começamo a se articular. E foi um ma importante. Embora, em diversas ocasiões,
momento tão bom [...] com aquela força mesmo da o movimento sugira chamados à desobediência
gente conseguir... Conseguimos a água com mui- civil, isso não significa demarcar uma postura
ta luta. E na época a polícia veio, queria prender de oposição radical em face do poder público
a nossa presidente da Associação [...]. A gente foi
estadual e municipal. Todavia, mesmo na si-
na CAGECE pra negociar [...]. A CAGECE não ne-
gociou com a gente. A gente foi até o governador
tuação de diálogo, símbolos de que a memória
[...] e ele conversou com a gente e deu um prazo de das lutas sociais no Conjunto Palmeiras é res-
30 dias pra colocar água no Palmeiras. [...]. Com 30 guardada, num discurso que evoca coragem e
dias o governo não instalou a água. E a gente voltou ousadia, são postos em movimento. Cabe aqui a
pra lá: olha, nós agora não vamo se responsabilizar descrição de uma cena, registrada na televisão,
pelo que a gente fizer com os canos que passam pra
ocorrida em audiência pública na Assembleia
Fortaleza. Aí nós já tinha se articulado, técnicos já
tinham avisado a gente que a gente tivesse muito
Legislativa do Ceará, no dia 12/09/2017, com o
cuidado, porque a gente ia estourar os canos [...]. Aí tema Regularização Fundiária do Conjunto Pal-
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com 15 dia o governo mandou fazer o trabalho de meiras. Dona Dacília, da ASMOCONP, no calor
instalação de água no Palmeira e nós exigimo: e nós do debate, lembra aos políticos presentes que a
queremos... todos funcionários lá tem que ser mora- comunidade ali representada tem uma história
dor do Palmeira e ainda com carteira assinada. [...]
de lutas. E, assim, sua fala sinaliza um signifi-
(Trecho de entrevista gravada com Augusto Barros
Filho em 02/11/2007).
cado nativo de soberania popular. Para pressio-
nar o poder público em face da demanda pela
As cenas que remetem a momentos da regularização fundiária de seu lugar de mora-
luta do Conjunto Palmeiras pela urbanização da, a comunidade estaria disposta a “assanhar
do bairro apresentam um encontro entre pas- o formigueiro”. “Essas formiga aqui ferroa mes-
sado e presente, num processo de organização mo [sic]”, enfatizou Dacília.
comunitária e resistência que segue ativo. Não O movimento de bairro aqui focado segue
obstante o diálogo alcançando no episódio re- num processo organizativo que se pauta na resis-
cente da obra da Adutora do Ancuri, a princi- tência, oportunizando também diálogos que se tor-
pal pauta apresentada pelos moradores duran- nam possíveis, em grande parte, pela visibilidade
te a negociação, qual seja, a requalificação do e legitimidade que a experiência local alcança ao
sistema de esgoto, não foi atendida: projetar-se como produtora de tecnologias sociais.
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The article revisits the history of social movements L’article revisite l’histoire des mouvements sociaux
in neighborhoods in Fortaleza (CE), with the de quartiers de Fortaleza (CE), ayant comme référent
empirical reference to Conjunto Palmeiras, whose empirique le Conjunto Palmeiras, dont la formation
territorial formation goes back to the 1970s. The territoriale se réfère aux années 1970. L’analyse
analysis results from ethnographic approaches that résulte d’approches ethnographiques qui entrent en
enter the scenario of mobilization for fundamental scène de mobilisation pour les droits fondamentaux
rights and the urbanization of the neighborhood, et d’urbanisation du quartier, un espace social qui
a social space that protects a memory of struggles protège une mémoire des luttes et des conquêtes,
and conquests, making it possible to identify agents permettant d’identifier les acteurs impliqués dans
involved in the projection of these movements in la projection de ces mouvements dans les années
the 1980s and 1990s. This experience of collective 1980 et 1990. Cette expérience d’organisation
organization continues in the formation of spaces collective se poursuit dans la formation d’espaces
of autonomy, with moments of dialogue and d’autonomie, avec des moments d’interlocution
resistance towards the State, bringing contributions et de résistance à l’égard de l’État, apportant des
to the debate on topics such as social movements, contributions au débat sur des thèmes tels que
sovereignty and popular representation. les mouvements sociaux, la souveraineté et la
représentation populaire.
Antonio George Lopes Paulino – Doutor em Sociologia. Professor da Universidade Federal do Ceará
(UFC), Departamento de Ciências Sociais. Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
(PPGS) da UFC. Professor permanente do Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia
da UFC – UNILAB. Coordenador do Laboratório de Antropologia e Imagem – LAI/UFC. Interessa-se
pelos temas: cidades, imagens e narrativas, movimentos sociais, religiosidades. Publicou em 2012 pelas
Edições UFC, o livro Economia solidária como projeto cultural e político: a experiência do Banco Palmas.
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