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organizar-o-estudo-nos-anos-iniciais-do-fundamental
Publicado em NOVA ESCOLA 11 de Agosto | 2022

Arte

Folclore nas artes: como


organizar o estudo nos
Anos Iniciais do
Fundamental
Em agosto, celebramos o Dia do Folclore, uma data
importante para o trabalho e o planejamento docente.
Inspire-se em práticas para abordar a temática sob a
perspectiva das artes
Nairim Bernardo

As ilustrações desta reportagem foram inspiradas no Movimento Armorial.


Lançado no Recife, em 1970, esse movimento artístico foi criado e liderado pelo
dramaturgo, escritor e pintor Ariano Suassuna (1927-2014). Imagem: Clara
Gastelois/NOVA ESCOLA
O calendário escolar é repleto de datas comemorativas, e o Dia Nacional do
Folclore, celebrado em 22 de agosto, é uma delas. Em muitas escolas, durante
este mês, cabe aos professores de Arte a preparação de material decorativo, de
figurinos típicos e da própria festa. Entretanto, é preciso atenção para que a
importância da data seja respeitada, assim como a valorização do componente
curricular enquanto área de estudo para o trabalho com o tema.
O termo folclore surgiu como um neologismo criado pelo inglês William John
Thoms, então bibliotecário da Câmara dos Lordes, em Londres. Em 22 de agosto
de 1846, uma carta assinada por ele foi publicada na revista Athenaeum, e nela
aparecia pela primeira vez a expressão folklore, junção dos termos ingleses folk
(em tradução literal, povo, mas geralmente usado para designar grupos em
ambientes rurais, ligados à agricultura e com pouca instrução) e lore (sabedoria
ou conhecimento).
Dessa forma, o intuito de Thoms era dar um novo nome para o saber
tradicional do povo e incentivar seu estudo. Deu certo: o Dia Nacional do
Folclore está incorporado ao calendário escolar de muitos países. Conheça mais
sobre a instituição dessa data aqui.
Andriolli Costa, jornalista, professor e consultor de folclore, ressalta a
importância de considerar, a partir do fato histórico que fez surgir o termo, os
novos significados que ele ganha ao longo do tempo. “O termo folclore surge
em um contexto romântico e burguês, onde o folk, o povo, era visto como
objeto de interesse, não como parte integrante da cultura. Hoje, precisamos
considerar que também estamos dentro dessa dinâmica do popular. Não existe
quem esteja apartado do folk.” Assim, estando intimamente ligado à vida
cotidiana de todos, o folclore não deve ser trabalhado apenas em uma data
específica, salienta o especialista.
O que diz a BNCC?
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) enfatiza em diversos trechos a
necessidade de que as vivências e experiências das crianças em seus contextos
familiar, social e cultural sejam respeitadas e utilizadas pela escola para a
construção de novos conhecimentos.
A primeira competência específica de Arte para o Ensino Fundamental cita as
“produções artísticas e culturais do seu entorno social, dos povos indígenas, das
comunidades tradicionais brasileiras e de diversas sociedades”. No trabalho
com o folclore nos Anos Iniciais, assim como com outras temáticas, é
interessante partir do que está próximo do aluno – ou seja, as manifestações
folclóricas que ele já conhece ou pode observar com facilidade em seu entorno.
“Geralmente, quando estudamos cultura, falamos mais da cultura erudita e da
indústria cultural. Já a cultura que é passada de geração para geração de forma
mais espontânea é quase renegada dentro do ensino formal. As pessoas têm o
folclore dentro de casa e não se dão conta. Precisamos entender a importância
da cultura popular tradicional para a composição da identidade cultural de uma
cidade, região, país. Para as crianças, um bom trabalho com o folclore mostra
que elas pertencem àquele lugar, que seus antepassados cresceram ali e
legaram uma cultura”, comenta Marlei Sigrist, folclórologa, pesquisadora,
membro da Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore (CSMFL) e autora do livro
Chão batido: a cultura popular de Mato Grosso do Sul: folclore, tradição.

A principal proposta do Movimento Armorial era criar uma arte erudita com
base na cultura popular, exaltando os elementos da música, da dança, da
literatura e de outras manifestações artísticas, principalmente do Nordeste
brasileiro. Imagem: Clara Gastelois/NOVA ESCOLA
Arte e folclore: uma parceria que pode durar o ano
todo
Para que as manifestações populares sejam trabalhadas durante o ano todo,
Marlei recomenda que os professores dos Anos Iniciais vejam o folclore não
enquanto um conteúdo, mas como rica fonte de materiais para o
desenvolvimento de diversas habilidades. “É importante que a criança tenha
contato com as manifestações folclóricas. Já as questões mais teóricas em torno
disso podem esperar. Se o folclore auxiliar várias áreas de conhecimento, a
criança vai sentir que ele está ligado a tudo: história, língua, meio ambiente,
artes”, diz a especialista.
Para fazer isso, o professor de Arte pode começar planejando quais habilidades
precisa trabalhar com a turma e, a partir delas, selecionar manifestações
tradicionais e elementos da cultura popular para ajudar a desenvolvê-las.
Mesmo que a habilidade não cite o repertório tradicional, nada impede que o
professor dê preferência para elementos da cultura popular ao selecionar os
materiais com os quais construirá suas aulas.
Como na BNCC o componente curricular Arte está centrado em quatro
linguagens (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), não é difícil encontrar
manifestações folclóricas que abarquem uma ou mais delas. Mitos, lendas,
canções, danças, artesanatos, festas populares e brincadeiras são exemplos de
manifestações folclóricas presentes no cotidiano e que podem ser levadas para
as aulas de Arte em diversos momentos. Por exemplo, ao selecionar uma festa
popular, o professor poderá trabalhar sua visualidade, as letras e ritmos de
suas músicas, sua dança e a performance do festejo escolhido.
“Arte e cultura popular são inseparáveis. É importante dar valor para o saber
tradicional e para as práticas populares. A escola precisa mostrar que a cultura
popular não é inferior à erudita. Às vezes, as crianças pensam assim porque o
menosprezo à própria cultura foi repassado a elas”, diz Andriolli. “Temos de dar
valor ao que está próximo. O folclore é como se fosse um móvel antigo que
você herdou, deixou parado em casa e foi jogando muitas coisas por cima sem
nem perceber. Quando alguém vai lá e passa um verniz, você dá valor a ele, e
essa é uma função da educação: dar um novo olhar para esse conjunto de
manifestações.”
Um cuidado importante para os professores dos Anos Iniciais é pesquisar
manifestações folclóricas da cidade ou região onde a escola está localizada.
Além de valorizar os saberes locais, essa atitude é importante pois facilitará a
identificação e o entendimento dos alunos sobre o que está sendo estudado.
Por exemplo, o congado é uma importante manifestação popular brasileira,
mas caso não seja próprio da região da escola, poderá ser estudado apenas por
vídeos e materiais escritos. O mesmo pode ser feito com lendas como a do Saci,
do Curupira e da Mula Sem-Cabeça, que fazem parte do imaginário nacional e
podem dar espaço para outras narrativas tradicionais da região.
Além de construir seu próprio repertório – relembrando narrativas que ouviu ao
longo da vida, por meio de grupos tradicionais dos quais participa e pesquisas
realizadas –, também é interessante que o professor investigue quais
manifestações folclóricas os alunos e suas famílias conhecem. Talvez eles não
saibam que isso faz parte do folclore de um povo, mas o professor pode traçar
estratégias para levantar o repertório de tradições populares da comunidade
escolar.
Segundo Marlei, o folclore só existe onde tradicionalmente acontece. Quando
transposto para outro lugar, não se vive mais o folclore, e sim uma projeção
dele. Sendo assim, para que o folclore não seja transformado apenas em objeto
de estudo e de reprodução em ambiente escolar, é interessante organizar
visitas a lugares importantes para a memória da comunidade e, quando
possível, convidar mestres da cultura local (músicos, contadores de história,
artistas) para se apresentarem na escola.
FOLCLORE: 14 MATERIAIS PARA TRABALHAR O TEMA O ANO
TODO

O que não fazer ao trabalhar o folclore em


suas aulas
Andriolli Costa visita diversas escolas pelo país para conhecer e dar
consultoria sobre folclore. Ele citou os erros mais comuns e razões para
evitá-los
Reduzir a Arte à organização de festas para o Dia do Folclore
Assim como os demais, a Arte deve ser valorizada enquanto
componente curricular e área de estudos importante para a formação
do sujeito. Caso a escola resolva fazer uma festa para celebrar esse dia,
a função do professor de Arte deve ser a de organizar a apresentação
do trabalho que foi desenvolvido com os alunos ao longo de várias
aulas, e não a de ensaiar algo exclusivamente para a ocasião ou de
apenas produzir material decorativo.
Confundir folclore com cultura indígena
Há muitas narrativas indígenas famosas e bastante recontadas pelas
escolas, como a da Iara e a do Curupira. Elas fazem parte do folclore
nacional, mas isso não significa que folclore seja sinônimo de cultura
indígena. Além de desrespeitar uma cultura, esse pensamento gera
desinformação e afasta os alunos do olhar para as manifestações
folclóricas que o cercam.
Resumir folclore a uma mera curiosidade
Ao apresentar lendas e tradições para as crianças, alguns adultos
dizem que são apenas “historinhas” e “mentirinhas”. As histórias não
são “mentirinhas” contadas para diversão, mas carregam significados
importantes para uma comunidade. Por exemplo: que diálogo
podemos estabelecer entre a história do Curupira e a importância da
preservação ambiental?
Cópias de desenhos
Pedir que o aluno copie ou apenas pinte o desenho de um personagem
folclórico faz com que ele reconheça a imagem, mas não ajuda a
conhecer a narrativa, seu propósito e sua importância. A partir do que
foi estudado, os estudantes precisam ser convidados a se expressar
criativamente por meio de diversos tipos de linguagem artística.

Narrativas, encenações e danças: conheça


experiências práticas para a valorização do folclore

Exaltando uma arte genuinamente brasileira e de valorização das raízes


populares, o Movimento Armorial uniu elementos literários, do teatro, do
artesanato, da música e da dança para criar narrativas e diálogos visual e
conceitualmente poderosos. Imagem: Clara Gastelois/NOVA ESCOLA
O professor Paulino Rocha Barbosa cresceu no Arquipélago do Bailique (AP) e
partiu para a capital do estado, Macapá, para estudar Pedagogia. Depois de
concluir seus estudos, voltou para a região ribeirinha para realizar o sonho de
contribuir com a educação local.
Na EMEF Vila Progresso, ele se tornou responsável por um projeto de leitura
com os alunos do 5º ano. Ao começar a desenvolver esse trabalho, ele percebeu
que o desafio estava não só na falta do hábito de leitura da turma, mas
também no repertório oferecido pela escola.
“Percebemos que a escola tinha muitos livros de literatura infantil, e alguns
estavam até embalados ainda. Disponibilizei todos para os alunos, mas eles não
gostavam muito de ler aquelas histórias. Comecei a tentar entender o porquê,
até que uma aluna me deu uma pista: disse que não gostava das histórias dos
livros, mas, sim, daquelas que os pais e avós contavam. Então, eu percebi que
no imaginário deles as narrativas do lugar eram muito importantes. Essa aluna
sabia contar muitas dessas histórias, como a lenda do Caranguejo Amazônico, e
quando ela fazia isso chamava a atenção de todo mundo, que também tinha
histórias para compartilhar”, relembra Paulino sobre o projeto “Pequenos
autores: navegando entre mitos e lendas das ilhas que bailam”, realizado em
2018.
Os alunos começaram a trazer histórias tradicionais de casa, contar oralmente
para a turma e complementar as narrativas uns dos outros. Depois, eles
registravam por escrito, cada um à sua maneira, e trabalhavam questões
gramaticais com o professor. Para ampliar o alcance do projeto, todos os
estudantes também eram incentivados a levar a história para ler em casa, para
a família. Depois, faziam uma roda de leitura para as turmas da Educação
Infantil.
Segundo o professor, no contato que tiveram com os livros de literatura
infanto-juvenil, os alunos perceberam que quase todos possuíam ilustrações.
Assim, também quiseram ilustrar todas as histórias que escreviam. O material
foi unificado e transformado em um livro. O projeto também previa transformar
esse material em uma radionovela, cuja narração e os personagens seriam
desenvolvidos pelos próprios alunos, mas um problema de saúde de Paulino
inviabilizou sua continuidade.
“A educação tem um currículo definido que, muitas vezes, parece partir de cima
para baixo, daquilo que a gente acha que é bom para o aluno. Nesse projeto,
fizemos o contrário. A referência foram os rios amazônicos e as histórias dos
avós e dos pais, que em alguns casos nem são alfabetizados. O que fizemos foi
abrir as portas da escola para essas histórias populares”, conta Paulino, que
percebeu um envolvimento significativo das famílias e um avanço muito grande
na alfabetização da turma.
Já na EM Professora Adeir de Oliveira, em Campo Grande (MS), a professora de
Arte Cristiane Aparecida de Luca Lima desenvolve projetos sobre folclore desde
2007. Ela já foi responsável por iniciativas que uniam todas as turmas e
componentes curriculares, da Educação Infantil aos Anos Finais do
Fundamental. Hoje, o projeto está menor, mas não deixa de acontecer.
Cristiane participa de grupos de dança folclórica e leva para os alunos do 4º ao
9º ano aulas teóricas e práticas de danças tradicionais no Mato Grosso do Sul,
como o Siriri, a Catira e a Ciranda Pantaneira.
“No início, sempre noto uma certa dificuldade. Os jovens só querem fazer as
danças que estão nas redes sociais, então temos de conquistá-los. Mas
considero que tive uma adesão boa, quase metade deles quis praticar e ensaiar
para uma apresentação que faremos”, diz a professora. Segundo ela, quem não
quer dançar, participa do projeto de outras maneiras. Além das aulas sobre a
história das danças e das músicas, todos assistem a vídeos, fazem pesquisas,
podem dirigir a apresentação e criam artes visuais que retratam as
manifestações populares.
Em algumas turmas, também estão sendo desenvolvidas pequenas peças de
teatro sobre narrativas da região, como a lenda do Minhocão, que sai à noite
pelo Pantanal e devora pescadores.
“Como eu tenho essa familiaridade com dança, desenvolvo esse trabalho há
anos e gosto de focar o regional. Todo começo de ano os alunos novos já
perguntam se faremos 'aquelas danças'. Mas tem professor que só trabalha
com as lendas folclóricas mais famosas, e eu recebo alunos que só conhecem as
lendas do Saci e do Lobisomem, mas não as nossas lendas regionais. Se o
professor não for um pesquisador e um inventor de atividades, nunca vai sair
da mesmice”, diz a professora Cristiane.

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