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Po
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O que podemos esperar dos deuses? Perguntinha difícil — não é como se tivéssemos
deuses morando na casa ao lado para observar ou entrevistar. Como uma enormidade de
elementos em fantasia, a coisa acaba se baseando em mitologias, com adendos e
customizações por parte da criatividade do autor. Deuses mitológicos costumam ser um
bocado humanos — o panteão greco-romano é recheado de intriga, politicagem e doses
enormes de ciúme patológico; mesmo o Jeová do judeo-cristianismo, em todo seu
conceito de divindade platônica, é, no Antigo Testamento, passional até dizer chega — é
ciumento, raivoso, violento…
Nenhum problema até termos acesso às eventuais fichas dos deuses — se, no sistema d20,
pode-se dizer que alguém com Inteligência 20 é algo na divisão do Stephen W. Hawking,
cujo alcance intelectual é confuso para a maioria de nós (ao menos o é para mim), o que
esperar de um ente com Inteligência 40? Ou cento-e-lá-vai-pedrada? Minha primeira
aposta — algo essencialmente não-humano, alienígena demais para compreender. Ou será
que não?
(…)
“Então,” (…) “nós chegamos ao pós-humano. Não apenas nossos implantes neurais,
mapeados até o nível sub-celular e executados em um ambiente emulado em um enorme
computador como esse: Isto não é pós-humano, é uma enganação. Estou falando de seres
que são melhores máquinas de consciência que nós, tipos meramente humanos,
melhorados ou não. Eles não são apenas melhores na cooperação — veja a Economia 2.0
para uma demonstração clássica disso –, mas melhores na simulação. Um pós-humano
pode construir um modelo interno de uma inteligência humana que é, bem, tão
cognitivamente forte quanto o original. Você ou eu podemos pensar que sabemos o que
move outras pessoas, mas geralmente erramos, ao passo que verdadeiros pós-humanos
podem realmente nos simular, estados internos e tudo o mais, e acertar. (…)”
Juízo final!
Em relação a consciências assim, somos como uma rã em comparação com um humano.
Eles poderiam simplesmente se livrar de nós. Se o cenário possui deuses e seres humanos
(atarracados ou não, com ou sem orelhas estranhas), quer dizer que aqueles decidiram não
fazê-lo. Por quê? Vai saber. Algum tipo de excentricidade, filantropia greenpeaceana, ou
só o prazer de possuir uma fazenda de formigas. Talvez curta animais de estimação — ou
seja um sádico que “esmaga formigas” explodindo cidades. Tudo isso apoiado em
motivos que não podemos sequer imaginar.
O Charless Stross chega a desenvolver uma situação em que há uma dessas A.I.s
“divinas” que escolhe ter humanos zanzando por aí. O tema aparece nos romances
Singularity Sky e Iron Sunrise, na forma do Escathon, um plot device poderosíssimo —
essa A.I. descomunal resolveu, em certo momento (lá pelo fim do séc. XXI ou um pouco
depois, não recordo) reduzir a população da Terra (então uns 10 bilhões) para algo em
torno de 2 bi. Como? Transportou populações inteiras, via wormhole, para outros planetas
habitáveis (ou não-habitáveis com suficiente terraforming feita de antemão), resultando
em um universo bem aasimoviano de “humanos em tudo o que é planeta”. O Escathon já
deixa claro “Não sou seu deus, eu descendi de vocês”, e, escrito em monolitos enormes
em cada planeta, faz sua única exigência — “Não violarás a causalidade dentro do meu
cone de luz. Caso contrário…” O motivo é fácil de se entender — com a possibilidade de
viajar mais rápido que a luz, tem-se, efetivamente, viagem no tempo. Então é
perfeitamente possível “voltar no tempo” e editar o Escathon fora da história. E ele, claro,
não gosta da idéia — e tem por hábito explodir sistemas solares que contenham planetas
com gente que tente fazê-lo. Ou, em casos mais brandos, emprega agentes (humanos que
não querem sistemas solares explodindo) para frustrar, de forma discreta, tais tentativas.
Esta última frase me deixa com uma pulga atrás da orelha — divindades seriam, em teoria,
ótimas na cooperação e fariam a alocação de recursos da forma perfeitamente eficaz*.
Mas… e se os recursos de que elas dependem forem escassos? Escassos a ponto de,
mesmo com uma divisão otimizada, não serem suficientes para garantir a sobrevivência
de todos, fazendo necessário algo barbárico como a competição, uma relação de soma
zero? Entra em cena o mercado de fiéis.
Mercado da fé
Se você já leu sobre os deuses de um dado cenário, você certamente esbarrou com esta
informação: os deuses dependem da crença dos fiéis para existir. Se a divindade perde
popularidade demais, ela fica subnutrida e caquética; se o seu culto bomba, ela fica
bombadona. No Tormenta isso fica bem evidente — a Glórienn, a deusa dos elfos, perdeu
enorme quantidade de poder quando a fé nela foi severamente abalada, por pouco não
perdendo seu status de divindade. A razão disso nunca é explicada, mas é incontestável o
fato de que, em cenários que seguem esse modelo, deuses terão interesse em interferir nos
assuntos humanos/óides visto que, por alguma razão, eles dependem da crença das
“formiguinhas”. E somos levados a crer que a fé das criaturas do plano material é um
recurso escasso.
Deuses-memes
Este paradigma, deuses dependem de fé para existir, optei por usar no Romância, com
uma tentativa de explicação pseudo-científica-mirabolante. Funciona mais ou menos
assim: é postulada a existência do éter — semelhante ao éter luminífero dos vitorianos, é
o meio em que se propagam ondas eletromagnéticas (luz, eletricidade, magnetismo…),
que são, com algumas forçações de barra, a base da magia no cenário. Para ferrar ainda
mais, esse éter é semelhante aos componentes subatômicos descritos no livro charlatão
Occult Chemistry — “partículas de éter” podem se agregar, formando prótons e seus
coleguinhas (e estes formam os átomos, que formam moléculas que compõem as coisas
que existem por aí). Estas “moléculas de éter” podem formar estruturas que não são
compostas por suficientes partículas a ponto de formar um próton (ou nêutron, etc.). Estas
estruturas “semi-materiais”, em suas formas mais simples, são usadas como “alavancas”
telecinéticas, “martelos” de força invisível, “canaletas” para guiar descargas
energéticas… — mas, da mesma forma que a evolução, em milhões de anos, fez surgir
nós e outros organismos vivos a partir de átomos e moléculas simples, essas “moléculas
de éter” semi-materiais deram origem a uma “fauna etérica”. A maioria não passa de
“bactérias” (que podem ou não causar “doenças mágicas”), “animais” como elementais
que “pegam carona” em fogo, eletricidade, terra, etc. — mas se formaram também uns
poucos organismos realmente complexos — deuses.
Eles não criaram o mundo nem nada assim — mas eles querem que você acredite nisso
porque lhes é conveniente. Os deuses descobriram que podiam aumentar de tamanho
anexando certas estruturas a si — os memes. Como a atividade cerebral consiste de
impulsos elétricos (que, como eletromagnetismo, se propagam dentro do éter, segundo o
modelo do cenário), idéias e pensamentos na mente das pessoas possuem estrutura etérica,
e os deuses, “programas de computador”, “inteligências artificiais” etéricas, são feitos de
estrutura parecida, logo, podem se anexar a memes ou memeplexos (conjuntos de memes)
— que passam a se comportar como prolongamentos da divindade, facilitando a
onipresença pois, se alguém contaminado pelos memes do deus está em algum lugar,
parte do deus também está lá.
Aí a escolha de memeplexos (pense nos “portfólios” das divindadades) vai pelo gosto de
cada deus — deuses mais palatáveis, como Vitória ou Sophia, se anexaram a memes de
esclarecimento, auto-perfeição e liberdade de pensamento, de modo que seus
“hospedeiros” sejam mais flexíveis e vivam vidas melhores — não por afeição ou coisa
assim, mas sim porque apostam que agentes mais satisfeitos são melhores trabalhadores.
Outros mais expansionistas, como Morgenstern, se anexaram a memes atraentes, mas que
não correspondem a fatos da realidade, como uma vida após a morte (com recompensa
ou punições de acordo com ações em vida), repúdio ao conhecimento (de modo que os
fiéis não “esbarrem” em informação que contradiga os memes eficazes-mas-falsos),
divisão rígida de gêneros (homens são “guerreiros defensores” e “chefes”; mulheres são
“parideiras” — para gerar mais fiéis e soldados), entre outros, eficazes para aumentar e
controlar a massa de fiéis, mas não necessariamente bons para os hospedeiros.
Nesta situação, faz sentido que os deuses queiram se meter nos assuntos mortais. Claro
que isto dá margem para que os deuses se tornem titereiros invisíveis dentro do cenário,
moldando as idéias das pessoas e até culturas inteiras para que se conformem a seus
propósitos. Embora isto possa parecer indesejável para muitos (ninguém quer que sua
liberdade seja apenas ilusória), a conjuntura do “titereiro invisível” pode gerar boas idéias
de histórias:
c. Conserto de deuses: similar aos dois primeiros, mas sem criar ou extinguir ninguém.
Um governo pode estar preocupado com o rumo que uma dada religião está tomando, e
os personagens são incluídos em uma enorme operação cujo objetivo é fazer cair em
descrença um ou mais memes considerados perigosos no memeplexo de uma divindade,
retirando as presas venenosas da serpente.
Se assumimos este modelo como verdadeiro, então deuses = religiões. Costumo assumir
que religiões são bastante diferentes dos deuses — divindades são distantes, e, quando os
pais estão fora, as crianças fazem bagunça; as religiões se tornam algo que aos poucos
desvia da personalidade da divindade, a estrutura eclesiástica cada vez mais colorida por
politicagem e mesquinharia tipicamente humanas. Mas se os deuses são os memeplexos
que formam as religiões, então as religiões são indistinguíveis das próprias divindades.
Como divindades são um reflexo da crença das pessoas, elas podem ser absolutamente
boas ou más — elas o são, afinal, dentro dos parâmetros daquilo que as pessoas
consideram bom ou mau. (Claro que, se um ou mais segmentos da sociedade não
concordarem, pode haver edição ou extinção de deuses.)
Deuses alienígenas
Não, eles não chegam em disco voador (em Varginha ou qualquer outro lugar), nem são
cinzentos, cabeçudos e com olhões. É o padrão que se vê por aí — deuses são criaturas
“de fora”, os “extraplanares poderosos”. É possível que ainda se “alimentem de fé”, mas
pode não ser o caso. Isto é espinhoso de desenvolver, já que deuses seriam, de fato,
inteligências realmente alienígenas e incompreensíveis. Religiões podem não
corresponder com exatidão à personalidade do deus — que só vai “sugerir” modificações
caso o rumo das coisas não seja útil para seus objetivos. Objetivos, aliás, que os
personagens podem pensar entender, sem nem sequer imaginar que toda sua teologia e
conhecimento sobre as relações dos deuses são apenas reflexo da camada mais superficial
de uma rede infinitamente complexa de manipulação. Clérigos podem receber poder
desses seres — ou pensar que recebem, sendo as magias divinas meramente magia arcana
cujo domínio é alcançado via auto-sugestão alimentada pela crença na entidade superior.
E esses clérigos podem ser bem atuantes, já que a divindade, inteligência alienígena
demais, não se mete nas picuinhas humanas, raramente (ou nunca) interferindo de forma
direta.
Nesta situação, não tente ludibriar ou lutar contra esses deuses — eles são inumanos
demais para serem seguros, e suficientemente inteligentes para sempre levar a melhor.
Fechando
Lembre-se: deuses são inteligentes demais para serem usados levianamente ou como
NPCs “comuns” que tomaram algumas doses de esteróides de onipotência, só aparecendo
para resolver alguma coisa. Eles são algo realmente diferente e, mesmo sendo
fodidamente poderosos, não precisam necessariamente roubar os holofotes (que devem
ser direcionados aos personagens dos jogadores). Eles não aparecem e resolver ou ferram
algo por nada — ações de deuses são mais críveis se fizerem parte de um programa
realmente complexo, um plano que pode apenas se aproximar de algo que pareça
conclusão após uma campanha inteira. Use a abuse dessas inteligências massivas e
incompreensíveis — aventuras interessantes (e com reviravoltas surpreendentes) podem
sair daí.
Abra seu livro de cenário de fantasia preferido. Não importa o sistema. Há algum tipo de
arquétipo de sacerdote ou religioso? Salvo raríssimas exceções, sim. Somos informados
a respeito do deus ou deuses que esse tipo de personagem venera? Sim novamente. E
ficamos sabendo um bocado sobre esta ou aquela deidade — sua arma preferida,
aparência, os outros deuses de quem ela gosta, aqueles para quem ela faz beicinho e diz
“não brinco mais,” etc. Em algum suplemento, é bem possível até encontrar a ficha de
personagem da divindade. É bastante material a respeito de entes… geralmente distantes,
com quem apenas muito raramente os personagens travam interação direta. Sobre as
religiões erigidas em torno destes tais deuses, isto é, sua estrutura eclesiástica, rituais,
dogmas e práticas, elementos com os quais se esperaria ser comum uma interação direta,
todavia, muito pouco nos é informado. Por quê?
Eu sei que isso vai parecer perseguição, mas aponto o Dungeons & Dragons como um
dos culpados por essa inversão de prioridades. Cito parte do texto sobre a classe Clérigo
do Dungeons & Dragons Rules Cyclopedia, de 1991.
The D&D game does not deal with the ethical and theological beliefs of the characters
in the game.
Em bom português: o jogo de D&D não lida com as crenças éticas e teológicas dos
personagens no jogo.
Por que isso? Se não se quiser religião no jogo, penso em uma estratégia muito simples
— não mencione personagens religiosos em primeiro lugar. Se a função do clérigo se
resume a ser um médico de batalha, por que não um médico de batalha logo de uma vez?
“Científico”