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Efeitos substantivos da declaração de

falência*

LUÍS CARVALHO FERNANDES

I
PRELIMINARES

1. Colocação do problema1

A declaração de falência envolve a constituição de um estado


pessoal do devedor insolvente, titular de empresa não recuperável ou que,
não existindo empresa, não obteve a homologação prévia de uma
concordata particular.
Há, assim, como que uma jurisdicionalização de uma situação de
facto - a insolvência —, própria do devedor que, carenciado de meios
patrimoniais e de crédito, está impossibilitado de cumprir pontualmente
as suas obrigações (cfr. art° 3°).

* O presente texto reproduz, salvo alguns aspectos de pormenor, nomeadamente


quanto a certas notas complementares, a exposição oral feita no Seminário sobre
Recuperação de Empresas e Falência organizado pela Faculdade de Direito da Universi­
dade Católica Portuguesa.
1 Os preceitos indicados sem outra menção são do Código dos Processos Especiais
dc Recuperação da Empresa e de Falência. A identificação deste diploma, por seu tumo.
far-se-á por Código.
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Sem prejuízo das consequências jurídicas desde logo emergentes


desta situação de facto, é o estatuto jurídico do falido que mais importa
fixar. Para tanto, toma-se necessário averiguar quais os efeitos da
declaração de falência, para além dos que se projectam no campo
processual, determinando, nomeadamente, a sequência dos corres­
pondentes actos ou fases.
Os efeitos extraprocessuais da declaração de falência são, em rigor,
de duas ordens: de natureza privada (em múltiplos aspectos, mesmo
estritamente civis ou de direito comum) e de natureza penal. No âmbito
deste Seminário os aspectos penais da insolvência e da falência, bem
como as consequências da declaração de falência - e ainda as das medi­
das de recuperação - nas relações laborais de que o falido é sujeito são
objecto de exposição autónoma, pelo que é nos efeitos substantivos de
direito comum que vamos centrar a nossa atenção.

2. Razão de ordem
Os efeitos substantivos da falência (breviter), mesmo no plano do
direito privado, desenvolvem-se em mais de um sentido, pelo que se jus­
tifica, em breve nota prévia, uma palavra dirigida à ordenação da matéria.
Do nosso ponto de vista, esses múltiplos efeitos podem arrumar-se
em três grupos.
Primariamente, a declaração de falência interfere, sem dúvida, com
o estado pessoal do falido.
Independentemente de qual seja a qualificação jurídica dessa nova
situação jurídica, este ponto não pode deixar de merecer primazia, até por,
em alguma medida, interferir com certos aspectos do regime de outros
efeitos.
O segundo momento a considerar relaciona-se com o próprio fim
que comanda o processo de falência. Está em causa a liquidação universal
do património do falido e a satisfação, à sua custa, dos direitos dos
credores. Justifica-se, assim, a nosso ver, a análise em separado dos
efeitos da falência no património do falido.
Embora, tal como o anterior, revele uma clara conexão com a
maneira de ser da liquidação judicial do património do falido, um terceiro
grupo de efeitos merece referência à parte. Como logo se deixa ver, é
provável que estejam em curso de execução, no momento da declara­
ção de falência, negócios anteriormente celebrados pelo falido. O seu
destino, rectius, a sua subsistência ou não, após a declaração de falência,
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 21

bem como o regime do seu cumprimento, não é, por certo, uma das
questões menos relevantes neste domínio. Podem aqui verificar-se efei­
tos de vária ordem, em função de factores em que interfere a forma como
esses actos se projectam nos interesses dos credores.
Sendo eles prejudiciais aos credores, sempre estaria aberta a via
comum da impugnação pauliana; mas o julgador entendeu adequado,
para além de estabelecer algumas especialidades nesse domínio, admitir
também a resolução de actos do falido praticados antes da declaração de
falência. Noutro plano, há negócios jurídicos do falido cuja manutenção
ou se mostra inadequada, ou não faz sentido após a declaração de falência;
por isso se extinguem por efeito dela. Finalmente, não sendo aplicável
qualquer destas soluções, o legislador entendeu preferível, em relação a
certos actos, deixar à apreciação do liquidatário judicial a escolha do
caminho mais adequado aos interesses da massa falida quanto ao destino
de negócios celebrados pelo falido, antes da declaração de falência. Não
está mesmo excluída a hipótese de elas se manterem e serem cumpridas
as obrigações deles emergentes.
A este esquema obedece a exposição subsequente.

n
A SITUAÇÃO JURÍDICA DO FALIDO

3. Limitações à capacidade do falido

I. A declaração de falência interfere em múltiplos aspectos com a


capacidade do falido, sendo uma vexata quaestio da doutrina portuguesa,
neste domínio, a de saber como qualificar a situação jurídica do falido.
Não pode tomar-se posição neste debate, nem apurar se a nova lei
trouxe sobre ele elementos desconhecidos da anterior, sem ter analisado
o tipo e alcance das alterações que a declaração de falência acarreta em
sede de capacidade do falido.
Procurando uma fórmula neutra, legitimada pela epígrafe do art°
147°, vejamos as limitações resultantes da declaração de falência, quanto
aos poderes de actuação jurídica do falido.

II. Determina o n° 1 do art° 147° que, por efeito da declaração de


falência, o falido fica privado da administração e da disposição dos seus
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bens presentes ou futuros. Por outro lado, resulta do n° 2 do mesmo


preceito que estas limitações do falido se projectam sobre todos os actos
“de carácter patrimonial que interessem à falência”.
Este regime vale tanto para o caso de o falido ser uma pessoa
singular como uma pessoa colectiva2, com a natural particularidade de,
neste caso, a limitação repercutir na competência dos seus órgãos.
Por outro lado, o n° 1 do art° 148° faz decorrer da declaração de
falência a “inibição” de exercício do comércio ou de qualquer cargo de
titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de
actividade económica, empresa pública ou cooperativa. Sendo o falido
uma pessoa colectiva esta “inibição” recai sobre os seus “administra­
dores”3.
Esta não é, porém, uma “inibição” absoluta no caso de o falido ser
pessoa singular, porquanto o n° 2 do art° 148° permite o seu afastamento,
mediante autorização do juiz, a requerimento do falido ou sob proposta
do liquidatário judicial. A autorização só deverá, porém, ser concedida
quando o exercício do comércio ou das mencionadas funções seja
justificada pela necessidade de o falido adquirir meios indispensáveis à
sua subsistência. Ainda assim, a autorização deve ser recusada se o
afastamento da “inibição” prejudicar a boa liquidação da massa falida.

III. Não se esgotam, porém, nestas normas do Código os efeitos


substantivos da falência referidos à situação jurídica do falido.
Em verdade, não se verificam, nesta matéria, em relação ao regime
anterior, alterações de vulto que justifiquem o afastamento de outras
limitações previstas, para o falido, na lei civil. Deste modo, continua o
falido impedido de:
a) ser nomeado tutor, salvo se as respecti vas funções forem limitadas
à guarda e regência da pessoa do menor (art° 1933°, n° 2, do Código Ci­
vil);

2 O legislador entendeu dizer “sociedade ou pessoa colectiva”, pagando tributo a


uma prática legislativa que vem mantendo em aberto a questão de saber se todas as
sociedades são pessoas colectivas.
3 O legislador, “esquecendo" o alargamento do âmbito da falência operado pelo
Código, usa com frequência terminologia menos adequada a certas categorias de
entidades colectivas agora sujeitas ao instituto. Nem por isso pode deixar de se entender
que o preceito se aplica genericamente aos titulares dos órgãos de gestão próprios de cada
tipo de pessoa colectiva.
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b) ser nomeado vogal do conselho de família, com o consequente


afastamento do exercício do cargo de protutor (art°s 1953°, n° 1, e 1955°,
n° 1, do citado Código);
c) ser nomeado administrador de bens (art° 1970°, al. a), ainda deste
Código).
Este regime vale plenamente no suprimento da incapacidade dos
interditos, por força do art° 139° do Código Civil, e aplica-se ao curador
dos inabilitados e, sendo caso disso (art° 154° do Código Civil), ao
subcurador e aos vogais do conselho de família, pela remissão conjugada
dos art°s 156° e 139° do mesmo Código.
A interpretação actualista destes preceitos, à luz do novo Código,
impõe apenas que se entendam exclusivamente feitas à falência as
referências que anteriormente também abrangiam a insolvência.

IV. A primeira observação a fazer ao regime actual, no seu con­


fronto com o direito pregresso, é a de o legislador se ter abstido, ao
identificar a situação jurídica do falido, de fazer uso do termo “inibição”,
que era genericamente usado no preceito do Código de Processo Civil
correspondente ao art° 147° (art° 1189°). Esta palavra apenas aparece no
art° 148°, n° 1, e em contexto claramente diverso.
Por outro lado, deixou de haver menção expressa à possibilidade de
o falido angariar meios pelo seu trabalho (cfr. art° 1189°, n° 2, do Código
de Processo Civil). Não pode, porém, ver-se aí uma intenção inovatória,
mantendo-se a permissão de exercício de actividades não abrangidas na
inibição do art° 148o4.

4. Residência do falido

I. Para completar o quadro das limitações que a declaração de


falência acarreta para o falido, justifica-se uma referência autónoma ao

4 A possibilidade de o falido angariar meios de subsistência pelo seu trabalho


resulta do art° 150°, n° 1. De resto, a privação absoluta do direito ao trabalho, de
constitucionalidade mais do que duvidosa (cfr. art° 58°, n° 1, da Constituição), só
redundaria em prejuízo da “massa”, por aumentar a probabilidade de ficar a seu cargo
a prestação de alimentos ao falido (citado preceito do Código). No sentido do texto,
vd. Norberto Severino e A. Barros Lima Guerreiro, “Código dos Processos Especiais de
Recuperação da Empresa e de Falência”, anotado, Lisboa, 1993, pág. 150.
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regime da sua residência. Nos termos da al. a) do n° 1 do art° 128°, a


sentença declaratória da falência deve fixar “residência ao falido”.
Apesar da sua formulação ampla, a norma não significa que o
tribunal possa “fixar” ao falido uma residência diferente da que ele tenha.
Quando muito, tendo o falido mais de uma residência, a sentença pode
“fixar”, para os efeitos da falência, uma delas.
Se se tratar de pessoa colectiva, coloca-se a questão de saber se a
fixação de “residência” respeita só a ela ou também aos seus
administradores. O regime estatuído no art° 149°, quanto ao dever de
apresentação, aponta no segundo sentido. Valem, para este caso, as
observações antes feitas sobre o sentido da “fixação” de residência.
A fixação de residência do falido, para satisfazer as finalidades
que a determinam, tem de implicar a proibição de o falido a mudar ou dela
se ausentar, mesmo temporariamente, sem autorização do tribunal. O
facto de a nova lei, ao contrário do n° 2 do art° 1192° do Código de
Processo Civil, não o dizer expressamente, não pode significar alteração
do regime5. A finalidade da lei seria frustrada, se o falido pudesse mudar
a sua residência sem autorização do tribunal. Para este efeito, pode
entender-se à letra o vocábulo “fixar”.

II. A fixação de residência ao falido visa facilitar os contactos que


no decurso do processo com ele devam ser mantidos. Assim se dizia no
n° 2 do acima citado art° 1192°, preceito não incluído na nova lei, de certo
por se ter entendido desnecessário.
Na verdade, a medida em análise, constitui claramente um
instrumento do dever de apresentação estabelecido no art° 149°.

5. Regime de suprimento

I. Os poderes jurídicos de que o falido fica privado, e que não sejam


de exercício meramente pessoal, são atribuídos ao liquidatário judicial

5 A única dúvida que poderia levantar-se era a de saber se os poderes antes


atribuídos ao síndico valem hoje para a comissão de credores. A diferente qualidade
jurídica destes órgãos e a natureza da matéria em causa não são de molde a justificar, sem
lei expressa, essa “transferência” de poderes. Nem se vê que exista aqui interesse dos
credores a justificar a intervenção da comissão.
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(n°s 1 e 2 do art° 147°), que age em sua representação, mesmo em juízo,


activa ou passivamente (art° 134°, n° 4, al. b)6).
Os poderes assim atribuídos ao liquidatário judicial são de exercício
estritamente pessoal, ficando vedado o substabelecimento, salvo num
caso particular e, mesmo assim, decorrente da lei: constituição de
mandatário judicial, quando obrigatório (n° 2 do art° 134°). São, por outro
lado, poderes funcionais ou poderes-deveres, por manifestamente serem
atribuídos em benefício de terceiros - primordialmente os credores, mas
também o próprio falido. Não podendo deixar de se entender que neste
sentido aponta o regime jurídico relativo à actuação do liquidatário
judicial, no seu conjunto, pode invocar-se especificamente o estatuído no
Código em matéria de destituição do liquidatário judicial e de impugna­
ção dos seus actos (respectivamente, art°s 137° e 136°).

II. As funções atribuídas ao liquidatário judicial, como bem se


compreende, são fundamentalmente dirigidas ao pagamento das dívidas
do falido, à custa do seu património, apreendido para a massa, e que para
esse efeito deve ser alienado (art° 134°, n° 1).
Deste modo, o núcleo central dos poderes atribuídos ao liquidatário
é orientado para a prática de actos de disposição. Acontece, porém, que
se toma necessário assegurar a administração do património do falido,
enquanto a sua alienação não tenha lugar. Por isso, ao liquidatário judicial
cabem também poderes de administração.

III. Os poderes de disposição envolvem a alienação dos bens


apreendidos para a massa falida (art°s 134°, n° 1, e 179°, n° 1), observadas
as regras decorrentes dos art°s 145°, n° 1, al. b), e 180° e seguintes.
Pelo que respeita especificamente à administração de bens7, o art°
141° esclarece ser ela atribuída ao liquidatário judicial, sob a direcção do
juiz, com a cooperação da comissão de credores e sob a fiscalização
desta. A lei reconhece ao liquidatário legitimidade para a prática de todos
os actos de administração ordinária, necessários ao exercício da sua

6 Numa fórmula que temos por menos feliz, este último preceito diz “representar
a massa”. Ora, a massa falida, como já escrevemos noutro local, não é mais que o
“conjunto dos bens do falido, sujeitos ao processo de falência” (“Teoria Geral do Direito
Civil”, vol. I, 2a ed., Lisboa, 1995, nota (2), pág. 309). Estes bens são os susceptíveis de
penhora, embora possam compreender outros (n°s l e 2 do art° 175°).
7 Sobre o regime da administração, havendo “falências derivadas", cfr. art° 142°.
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função, sendo-lhe aplicáveis subsidiariamente as regras do mandato


(art° 143°).
Neste sentido, deve o liquidatário assegurar a frutificação e
conservação dos bens (art° 145°, n° 1, al. a)), podendo, com intervenção
da comissão de credores, cumprir obrigações do falido que interesse
satisfazer rapidamente e encerrar temporária ou definitivamente
estabelecimentos (ais. c) e d) do mesmo preceito). Relativamente à
cobrança de créditos do falido sobre terceiros rege o art° 146°.
Há, porém, certos actos que o administrador só pode praticar com
autorização do juiz, que deve, para o efeito, ouvir previamente a comissão
de credores e, se o entender necessário, o próprio falido. Assim acontece
quanto a actos que envolvam redução de créditos ou a extinção de
garantias do falido, à transacção, à aceitação de liberalidades e à cele­
bração de convenções de arbitragem (art° 144°).
Na sua actuação, o liquidatário deve observar as regras de um gestor
diligente (art° 145°, n° 1), sendo havido como depositário dos bens
recebidos, segundo as regras do depósito em geral e, em particular, as do
depósito judicial de bens penhorados (art° 145°, n° 2).

II. Salvo as diferenças decorrentes das alterações introduzidas pelo


novo Código quanto aos órgãos da falência, não se verificam neste
domínio alterações substanciais em relação ao direito anterior.
Assim, continua a qualificar-se de representação o modo de actua­
ção do liquidatário em relação aos poderes de que o falido fica privado.
Por outro lado, para além dos poderes atribuídos ao juiz do processo,
mantém-se a existência de um órgão de fiscalização da actividade do
liquidatário. Resulta apenas mais claro, por ser esse órgão a comissão de
credores, que se visa primariamente o interesse destes, ainda que nesta
matéria ele seja, em geral, coincidente com o do falido.

6. Valor dos actos do falido

I. A privação de poderes de actuação sofrida pelo falido, no


respeitante à administração e disposição dos seus bens apreendidos
para a massa falida, levanta, naturalmente, a questão de saber qual o
valor dos actos por ele praticados, nesse domínio, após a declaração de
falência.
Esta era uma das pedras de toque usadas pela doutrina, na vigência
do direito anterior, na qualificação da situação jurídica do falido. Sendo,

. i
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assim, uma área sensível, ganham particular relevo as alterações, nem


sempre de pormenor, nela introduzidas pelo legislador.

II. O valor dos actos praticados pelo falido, abrangidos pelas


limitações da sua capacidade e inerente representação do liquida­
tário judicial, reparte-se, no art° 155°, pelos seus quatro números, os
dois primeiros de ordem geral e os restantes relativos a casos parti­
culares.
Em geral, o n° 1 do art° 155° declara a inoponibilidade, à massa,
dos negócios praticados pelo falido posteriormente à declaração de
falência8. Este regime só vale, porém, de pleno, para os actos gratuitos;
para os onerosos, depende de a outra parte ou a pessoa a quem o acto se
dirige estar ou não de boa fé. Havendo boa fé, há ainda que distinguir
consoante o acto seja anterior ou posterior ao registo da sentença: no
primeiro caso, o acto é oponível; no segundo, não9.
Usando uma técnica mais correcta e mais clara do que a da lei
anterior, o n° 2 do art° 155° admite a confirmação, pelo liquidatário
judicial, dos negócios jurídicos do falido, quando inoponíveis, já se
deixa ver. Este regime, acoplado ao de inoponibilidade - por contra­
posição ao da lei anterior, que se referia a ineficácia e rectificação dá,
a nosso ver, um contributo positivo para o esclarecimento do problema
da qualificação da situação jurídica do falido.
Para além disso, a solução agora consignada é mais operacional.
Com efeito, um regime de inoponibilidade actua independentemente
de qualquer intervenção positiva do liquidatário, que se pode limitar a
ignorar o acto. Por outro lado, tomando-se desnecessário qualquer ata­
que judicial ao negócio para impedir que os seus efeitos se projectem na
massa falida, resulta mais cristalina a possibilidade da sua confirmação
e, também, da invocação do negócio se, por qualquer circunstância, a
causa da inoponibilidade cessar.

III. A mesma ideia de inoponibilidade subjaz ao regime do art°


155°, n° 3, quanto ao valor liberatório do cumprimento, feito directa-

s Deve entender-se: os actos abrangidos pelas limitações antes analisadas.


’ A lei refere-se, com alguma impropriedade, a terceiros. Trata-se, primaria-
mente, de quem é parte no acto, além do falido; só em relação à “massa falida” ele é
terceiro.
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mente ao falido, de obrigações de que este seja credor10. O recebimento


da prestação por parte do falido não exonera, em princípio, o devedor, por
ser o liquidatário quem para tanto tem poderes.
À semelhança do que se passa com outros actos do falido, este
regime tem de ser aferido em função da boa ou má fé do devedor e do
registo da sentença. Por outro lado, há também aqui uma solução
sucedânea da confirmação, temperada pela consideração do interesse
dos devedores, em determinadas circunstâncias.
Assim, se a sentença não tiver ainda sido registada e se o devedor
estiver de boa fé, o cumprimento é oponível à massa falida. Mas, ainda
quando, na falta destes requisitos, ele não fosse em regra liberatório, o
devedor pode invocá-lo e valer-se dele, se provar “que o respectivo
montante11 deu efectiva entrada na massa falida”. É que, neste caso, o
interesse que o regime de não exoneração do devedor tinha em vista está
assegurado.

IV. O n° 4 do art° 155° refere-se ao caso muito particular de


negócios de aquisição de “coisa determinada” (sic) pelo falido, cele­
brados com reserva de propriedade. Segundo o preceito, esta cláusula
só é oponível quando, para além de ser estipulada por escrito, seja
acordada “até ao momento da entrega da coisa”. A parte final do preceito,
ressalva a aplicabilidade do regime fixado nos artigos seguintes.
Este é um preceito que está longe de se poder considerar modelar,
a vários títulos. Desde logo, pela sua inserção sistemática, estão em causa
actos de aquisição praticados pelo falido posterionnente à declaração de
falência. Referindo-se a norma apenas ao problema da oponibilidade, à
massa falida, da cláusula de reserva da propriedade aposta a tais negó­
cios, fica a ideia de que o legislador admite o falido, qua tale, a praticar,
sem quaisquer limites, actos aquisitivos, solução que temos por inade­
quada.

10 A lei não usa aexpressão cumprimento, mas sim pagamento', embora em sentido
técnico-jurídico as duas palavras apareçam muitas vezes como sinónimos, em linguagem
comum a segunda é ligada ao cumprimento das obrigações pecuniárias. O Código Civil
reserva, em regra, a palavra pagamento para esta modalidade de obrigações, embora use
também, a respeito delas, falar em cumprimento (cfr. Almeida Costa, “Direito das
Obrigações”. 5* ed„ Coimbra, 1991, pág. 844).
11 Esta expressão do legislador não é muito fel iz por sugerir a ideia de cumprimento
em dinheiro, reforçada, como se salientou na nota anterior, por o preceito já antes falar
em "pagamento". Melhor seria ter usado a palavra "bem”.
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 29

Noutro plano, a referência a coisa determinada é supérflua, dado o


regime estatuído no art° 408° do Código Civil quanto à eficácia real de
negócios translativos da propriedade.
A colocação da frase “até ao momento da entrega da coisa” dá lugar
a equívocos. Ela não pode referir-se ao momento da estipulação, por
escrito, da cláusula12, mas à sua eficácia, traduzindo, neste sentido, uma
limitação ao regime do n° 1 do art° 409° do Código Civil. Na verdade,
neste diploma, a reserva pode manter-se até ao cumprimento total ou
parcial das obrigações do adquirente ou até à verificação de outro evento.
Não podemos assim acompanhar Norberto Severino e A. Barroa
Lima Guerreiro no diferente alcance que atribuem ao preceito (ob. cit.,
pág. 156).
Deve ainda entender-se que a necessidade de redução da cláusula a
escrito não dispensa o seu registo, quando exigido segundo a lei civil,
porquanto não está aqui em causa, em rigor, a eficácia da cláusula inter
partes, mas sim em relação a terceiros - à “massa falida” ou, melhor, aos
credores do falido.
Não é também muito claro o sentido da ressalva da parte final do
n° 4 do art° 155°. Tenha-se presente que nele se trata de negócio posterior
à declaração de falência, enquanto os “artigos seguintes” traçam o regime
de negócios anteriores a esse momento. Vários requisitos dos art°s 156°
e seguintes não fazem aqui sentido. Segundo cremos, o alcance do
preceito é o de atribuir ao liquidatário judicial a faculdade de, consoante
os casos, atacar o acto ou optar pelo seu não cumprimento.

7. Cessação dos efeitos da falência quanto ao falido

I. O novo Código introduziu uma significativa simplificação no


complexo regime da lei anterior, relativo à cessação dos efeitos da
falência quanto ao falido, nomeadamente pelo que respeita aos eventos
que a determinam.

12 Na verdade, a cláusula só pode ser contemporânea do negócio, pois que, a não


ser assim, tratando-se de coisa determinada, a aquisição da sua propriedade por parte do
falido deu-se “por mero efeito do contrato” (n° 1 do art° 408° do C. Civil). Nem seria
razoável admitir a intenção de o legislador abrir aqui uma excepção a esse regime, pois
ela envolveria a abertura de uma porta fácil à fraude, num domínio sensível, em que só
pode haver razões para a prevenir.
30 DIREITO E JUSTIÇA

Manteve, porém, a distinção entre a cessação desses efeitos — antes


levantamento da inibição - e a reabilitação do falido, pelo que vamos
referir separadamente estes dois institutos.

II. Tendo deixado de qualificar como inibição a situação jurídica


do falido, o n° 1 do art° 238° usa de um circunlóquio equivalente ao da
epígrafe deste número para identificar a primeira situação.
Mais do que analisar aqui os eventos determinantes da cessação
dos efeitos da falência, que não levantam dificuldades significativas,
interessa anotar que ela não se dá automaticamente, dependendo de
decisão judicial. O levantamento dos efeitos da falência só se verifica,
pois, após decisão judicial, proferida em incidente do processo de
falência, a requerimento do interessado13.
Há, porém um caso que merece referência particular, decorrente da
necessidade de conciliar o art° 238° com o art° 237°.
Como se diz na al. a) do n° 1 do primeiro daqueles preceitos, o
levantamento dos efeitos da falência, quanto ao falido, pode ter na sua
origem, um acordo extraordinário (art° 231°), devidamente homolo­
gado. Ora, o n° 2 do art° 237° fixa, como efeitos da homologação do
acordo extraordinário:
a) a recuperação, pelo falido, nos termos do acordo, do direito de
disposição dos bens e da livre gestão dos seus negócios;
b) a cessação das funções da comissão de credores e do liquidatário
judicial, salvo pelo que respeita à apresentação de contas ou às funções
previstas no próprio acordo.
Deste modo, a subsequente decisão de levantamento dos efeitos
da falência assume, neste caso, o carácter de mera formalidade, que
apenas vai constituir título bastante do respectivo registo (n° 2 do
art° 238°).
A decisão que determinar a cessação dos efeitos da falência quanto
ao falido está sujeita a registo, por averbamento à inscrição registai
da falência. O registo deve ser requerido pelo interessado (art° 238°,
n° 2).

13 Interessados, para além do falido, seu representante e, eventual mente, herdeiros,


quando seja pessoa singular, são-no também, como se vê da al. d) do n° 1 do art° 238°, as
pessoas colectivas públicas e os titulares dos respectivos cargos de gestão (a lei fala em
“administradores") atingidos pelos efeitos da falência, nos termos do n° 1 do art° 148°.
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 31

8. Reabilitação do falido

A autonomia da reabilitação do falido em relação ao levantamento


dos efeitos da falência resulta claramente da conjugação dos art°s 238° e
239°. Mas há, entre elas, uma bem compreensível ligação.
A reabilitação do falido só pode ter lugar após o levantamento dos
efeitos da falência; mas não se segue necessariamente a ele.
Como se diz no n° 1 do art° 239°, o juiz só pode decretar a reabilitação
do falido quando se mostrarem extintos os efeitos penais da indicia-
ção do falido pelas infracções previstas e punidas nos art°s 325° a 327°
do Código Penal (hoje, art°s 227° a 229°).
Assim, em rigor, pode haver dois incidentes processuais distintos e
há, por certo, duas decisões judiciais, embora porventura formalmente
constituam um único acto judicial.
A decisão de reabilitação está sujeita a registo, seguindo regime
igual ao do levantamento dos efeitos.

9. Qualificação da situação jurídica do falido


I. A qualificação da situação jurídica do falido decorrente da
declaração de falência constituía, por certo, uma das questões dogmá­
ticas mais debatidas na doutrina portuguesa durante a vigência do Có­
digo de Processo Civil.
Não cabendo recordar aqui, nos seus concretos termos, essa polémica
- nem os limites temporais desta exposição o permitiriam importa
sobretudo veri ficar se o novo Código, levando em conta o regime exposto
nos números anteriores, introduziu no debate elementos de relevo.

II. Desde logo, não pode deixar de se salientar o abandono da


anterior qualificação jurídica legal da situação do falido como inibição,
expressão banida do art° 147°, que constitui o lugar paralelo do antigo art°
1189°doC.P.Civ.. Ela só surge, num contexto bem diverso, no art° 148°,
não já para identificar a situação (geral) do falido, mas com um alcance
que não anda longe do sentido corrente da palavra: proibição, impedimento
ou interdição.
Por outro lado, já sabemos que ao anterior regime dos actos do falido
- ineficácia -, se substitui a sua inoponibilidade. Deve, pois, continuar a
entender-se, a nosso ver, que os negócios do falido não são, em si
mesmos, inválidos, só não podendo ser opostos à massa falida; este o
32 DIREITO E JUSTIÇA

regime que se mostra adequado à protecção dos interesses dos credores,


que aqui estão em jogo.
Para além disso, mantiveram-se análogas, nas suas linhas gerais:
a) as limitações dos poderes de disposição e administração, pelo
falido, dos seus bens;
b) as limitações à capacidade do falido fixadas na lei civil;
c) outras proibições, no campo patrimonial, relativas ao exercício
do comércio e de cargos em órgãos de sociedade comercial ou civil, asso­
ciação privada de actividade económica, empresa pública ou coope­
rativa;
d) a representação do falido, pelo que respeita aos actos da al. a), por
parte do liquidatário judicial;
e) a fiscalização dos actos do liquidatário, embora hoje atribuída à
comissão de credores, em substituição do juiz síndico;
f) a dependência do levantamento das limitações referidas nas ais.
a) a c) e da reabilitação do falido de uma decisão judicial.

III. Tudo ponderado, e revendo em pontos de pormenor a posição


defendida em escrito anterior sobre a matéria14, entendemos que:
a) o falido sofre de limitações à sua capacidade de gozo e, em
particular, de exercício, que afectam o seu hemisfério patrimonial;
b) essas limitações, enquanto tal seja juridicamente viável, nos
termos gerais de direito, são supridas segundo um regime próximo do
das incapacidades jurídicas13.
O regime dessas limitações e do seu suprimento aproxima a situação
do falido da do inabilitado16, quando o conteúdo desta incapacidade
assume a sua maior extensão, nos termos consagrados nos art°s 153° e
154° do Código Civil.
Contudo, o falido não é um incapaz proprio sensu, ou seja, no
sentido em que esta expressão é usada nos textos legais.

14 Em “Teoria Geral do Direito Civil", 1* ed„ vol. 1,1.1, Lisboa, 1983, págs. 355
e segs.. Na 2* ed., cfr. vol. I, pág. 313.
15 Por oposição à incapacidade natural do menor.
16 É, aliás, significativo o facto de a lei civil aproximar o falido do pródigo, quanto
às limitações supra enumeradas (n° 3.III).
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 33

III
EFEITOS QUANTO AO PATRIMÓNIO DO FALIDO

10. A apreensão de bens

I. O primeiro dos efeitos da declaração da falência, pelo que


respeita ao património do falido - tomado na sua acepção de património
bruto - é a apreensão judicial dos seus bens.
Segundo resulta do n° 1, al. c), segunda parte, do art° 128°, o juiz
deve, na sentença que declarar a falência, determinar a apreensão de todos
os bens do falido, “ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer
forma apreendidos ou detidos”. Como se vê do n° 1 do art° 175°, que na
sua primeira parte retoma o texto da al. c) do art° 128°, apenas releva,
como causa da exclusão da apreensão, o facto de eles já estarem
arrestados, penhorados ou por outra forma apreendidos por virtude de
infracção criminal ou de mera ordenação social. Por outras palavras, é
irrelevante o facto de os bens estarem anteriormente apreendidos em
execução fiscal17.
São objecto necessário da apreensão, como se estatui no art° 175°,
n° 1, todos os bens susceptíveis de penhora, passando no seu conjunto a
constituir a massa falida. Quanto aos demais bens do falido, a sua
apreensão e integração na massa falida só tem lugar quando o devedor
voluntariamente os apresentar (n° 2 do art° 175°).
A apreensão faz-se nos termos dosart°s 176° e 177°, e, como decorre
do n° 1 do art° 178°, está sujeita a registo nos mesmos termos em que o
esteja a penhora.

II. Como facilmente se compreende, a apreensão de bens visa duas


finalidades distintas, embora complementares: a da sua preservação e
subsequente venda.
Da primeira função dá nota a própria epígrafe do capítulo que dela
se ocupa, ao designá-la como providência conservatória'3; da segunda,
como instrumento da realização da função última da execução universal

17 Daí a nova redacção que o art° 4o do diploma preambular deu aos art°s 264° e 300°
do Código do Processo Tributário.
18 Outra providência do mesmo tipo é a de apreensão dos elementos da contabilidade
do falido.
34 DIREITO E JUSTIÇA

que a falência é, dá conta o n° 1 do art° 179°, quando determina a “venda


de todos os bens arrolados para a massa falida”.
Cabe, porém, referir que a operação de liquidação compreende uma
actividade mais ampla do que a da venda dos bens apreendidos, pois
abrange, desde logo, a cobrança dos créditos do falido (art° 146°), para
além de exigir, como mais atrás foi evidenciado, uma actividade referida
à administração do património do falido, enquanto não se proceder à sua
venda.

11. A estabilização do passivo

I. A declaração da falência importa também, como efeito muito


relevante quanto à situação patrimonial do falido - e para usar a linguagem
da própria lei - a “estabilização do passivo” (vd. epígrafe do art° 151°).
Este efeito desdobra-se em três aspectos distintos, mas todos eles
conducentes, neste domínio, ao tratamento igualitário dos credores:
exigibilidade de todas as obrigações do falido; encerramento das contas
correntes e cessação da contagem dos juros e liquidação de dívidas em
moeda estrangeira ou sujeitas a factor de actualização.

II. Oprimeiroefeitoexplica-seporsimesmo. A falência, importando


a liquidação universal do património do falido, exige não só que se
apreendam os bens susceptíveis de concretizar a função externa do
património, mas o apuramento, para efeito de subsequente satisfação,
quanto possível, de todo o passivo do falido.
Ora, em plena coerência jurídica, isso só é possível se se declararem
exigíveis todos os créditos de terceiros, ainda que sujeitos a prazo não
vencido (art° 151°, n° 1).

III. O encerramento das contas correntes justifica-se, afinal, pela


mesma ordem de considerações.
Conta corrente, em sentido técnico-jurídico, é o contrato pelo qual
“duas pessoas, tendo de entregar valores uma à outra, se obrigam a
transformar os seus créditos em artigos de “deve” e “há-de haver”, de
sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação seja exigível”
(art° 344° do Código Comercial). Daí, e atento o disposto nos art°s 348°
e 349° deste mesmo diploma legal, para se verificar, em tal domínio, o
apuramento de qual das partes é credora ou devedora, é necessário que se
dê o encerramento da conta.

i i
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 35

O efeito da declaração de falência em análise, importa, pois,


duplamente ao andamento da falência, porquanto permite saber se o
falido tem, nesse contrato, a posição de devedor ou de credor, e toma, em
qualquer caso, exigível o seu saldo.

IV. O terceiro efeito de estabilização do património do falido


desdobra-se em mais de um ponto. Comecemos pelo que respeita à
contagem de juros e outros encargos que incidam sobre as obrigações do
falido.
É fácil identificar, neste regime, duas preocupações do legislador.
Uma é a de permitir apurar, num momento certo e comum a todos os
devedores o montante do seu passivo. O outro é o de igualização da
posição dos credores19. Verificada, pela declaração da falência, a insufi­
ciência patrimonial do devedor e a sua irrecuperabilidade, é razoável que
os credores passem a ter todos o mesmo tratamento. Para se atingir este
desiderato, sendo fácil verificarem-se, em matéria de juros e ‘"outros
encargos”, tratamentos diferenciados, parece adequado que cesse a sua
contagem num momento igual para todos.
O legislador revela a preocupação de ligar esse efeito da falência ao
primeiro momento em que seja razoável fazê-lo, ao referi-lo à “data da
sentença da declaração de falência”. Deste modo, tem de se entender ser
irrelevante o facto de terem ou não sido deduzidos embargos e de ter
havido recurso da decisão sobre eles proferida.
A necessidade de se proceder à fixação rigorosa do passivo do falido
toma ainda necessário determinar, em escudos, o valor de obrigações em
moeda estrangeira e de proceder à actualização das que possam benefi­
ciar deste regime (obrigações de valor).
Valem para estas duas matérias as considerações anteriores quanto
ao tratamento igualitário dos credores e ao momento relevante para o
efeito.

19 O legislador não reproduziu no novo Código o regime do 1221° do Código de


Processo Civil, que continha uma norma que a doutrina considerava relevante em matéria
dc interusurium (cfr., por todos, Almeida Costa, ob. cit., nota 1 da pág. 863). Entendemos,
porém, que o n° 2 do art° 151° assegura a mesma solução do preceito anterior (cfr., neste
sentido. Carvalho Femandcs e João Labareda, “Código dos Processos Especiais de
Recuperação da Empresa e de Falência Anotado”, 2a ed., Lisboa, 1995, nota 6. ao art° 151°
(pág. 380)).
36 DIREITO E JUSTIÇA

12. A extinção dos privilégios creditórios


I. Um efeito sem dúvida marcante do novo regime da falência, a
que o legislador logo deu um grande realce - e que tem vindo a ser
saudado, pela doutrina, como a sua invocação mais significativa20 -, é a
estatuída no art° 152°.
Segundo este preceito, declarada a falência, “extinguem-se
imediatamente os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais
e das instituições da Segurança Social”. Para não deixar quaisquer
dúvidas, esse mesmo preceito logo acrescenta que os respectivos créditos
recebem, na liquidação do património do falido, o mesmo tratamento dos
créditos comuns.
Sem desmerecer da importância do preceito, que deixa margem a
algumas dúvidas, ele está longe, porém, de consagrar a par conditio
creditorum21.

II. No primeiro plano, a questão que imediatamente se coloca é a


de saber se deve ou não considerar-se abrangida, na estatuição desta
norma, a extinção de hipotecas legais existentes a favor das mesmas
categorias de entidades que gozam de privilégio. Não se vislumbrando
fundamento sério para estabelecer aqui alguma destrinça de regime, e
para não fazer o legislador incorrer na reprovável conduta de retirar com
uma mão o que dá com a outra, impõe-se uma interpretação extensiva do
preceito por forma a alcançar aqueles dois tipos de garantias22.

20 Vd. Norberto Severino e A. Barros Lima Guerreiro, ob. cit., pág. 153; Manuel
A. Gama Prazeres. “Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de
Falência", anot. e act., Porto Editora, pág. 125; e Américo Bacelar, “Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado", Lisboa, 1993, pág. 122.
Quanto às reacções favoráveis da doutrina, a esta medida, perante o projecto do Código,
vd. Abílio M. Almeida Morgado, “Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de
Falência. Uma apreciação do novo regime”, in Estudos efectuados por ocasião XXX
Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1993, págs. 60-61; e António Campos,
“Projecto do novo diploma regulador dos «Processos Especiais de Recuperação da
Empresa e de Falência»”, in Revista da Banca, n° 22 (1992), pág. 81.
De resto, a medida vinha já sendo reclamada pela doutrina (cfr. J. Pinto Furtado,
“Perspectivas e Tendências do Modemo Direito da Falência”, in Revista da Banca, n° 11
(1989), pág. 27.
21 Neste sentido, são excessivas as afirmações de Américo Bacelar, em nota ao art°
153° (ob. cit., pág. 122), e de Manuel A. Gama Prazeres, ob. cit. pág. 125.
22 Assim o sustentámos, juntamente com o Dr. João Labareda, na Anotação ao
Código que temos vindo a citar (notas 5. e 6. ao art° 152°, págs. 381-382).

li!
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 37

Não vale o argumento que se pretenda retirar do facto de a hipoteca


legal, ao contrário dos privilégios, estar sujeita a registo, e de, assim, ela
não constituir, para os demais credores, um factor de surpresa.
A questão não é essa. Como claramente resulta dos considerandos
do diploma preambular (n° 6), a preocupação do legislador foi a de
afastar, quanto a certas entidades (Estado, autarquias locais e instituições
de segurança social), uma posição proeminente em relação ao património
do falido, que, na prática, dificultava, quando não inviabilizava, a
adopção de medidas de recuperação e conduzia ao desinteresse dos
demais credores relativamente ao processo de falência.
Como aí se diz expressamente, “não faria realmente grande sentido
que o legislador, a braços com a tutela necessária das empresas em
situação financeira difícil desde 1977 até hoje, continuasse a apelar
vivamente para os deveres de solidariedade económica e social que
recaem sobre os credores e mantivesse inteiramente fora das exigências
desse dever de cooperação quer o Estado, quer as instituições de segurança
social, que deveriam ser as primeiras a dar exemplo da participação no
sacrifício comum.”.
Para dar expressão a esta verdadeira ratio da norma é que, por certo,
o art° 152° não se limita a determinar a extinção dos privilégios de que
gozam os créditos do Estado, das autarquias locais e das instituições da
segurança social, mas acrescenta que eles passam a “ser exigíveis como
créditos comuns”23. Aqui está um caso de plena validade do conhecido
brocardo segundo o qual quod abundat non nocet...

III. Ultrapassada esta questão, restam ainda, porém, em matéria de


falência, várias e relevantes excepções que afastam o princípio geral,
contido no art° 601° do C.Civ., segundo o qual o património do devedor
constitui garantia geral e comum dos credores.
A razão de ser desta afirmação reside na circunstância de a declaração
de falência não determinar a extinção das garantias especiais dos credores,
sejam reais ou pessoais, para além do que se dispõe no art° 152° em
análise24 e no art° 200°, n° 3, quanto à hipoteca judicial e à penhora.

23 Manifestamente, a letra da lei, mesmo sem curar da ratio do preceito, aponta


também no sentido sustentado no texto. A manter-se a hipoteca legal, os créditos não
seriam tratados como comuns e é este o resultado que o legislador pretende assegurar.
24 A este respeito cabe ainda salientar que, mesmo em relação às entidades
referidas neste preceito, se mantêm as garantias prestadas em relação a créditos de
38 DIREITO E JUSTIÇA

Como manifestações deste regime podem apontar-se o art° 200°,


n°s 1 e 2, quanto à graduação dos créditos reclamados, e os art°s 209°
e seguintes, quanto ao pagamento dos credores.

13. O carácter universal do processo de falência

I. Da exposição feita nos números anteriores resulta claramente a


característica própria do processo de falência, como execução universal.
Esta nota manifesta-se desde logo no facto de a declaração de
falência implicar a apreensão e liquidação de todos os bens penhoráveis.
Mas, para ela ganhar a sua plena consagração, toma-se necessário que se
criem mecanismos que assegurem:
a) a participação de todos os credores no processo;
b) o tratamento igualitário dos credores, segundo a qualidade dos
seus créditos.
A matéria da apreensão e liquidação dos bens do falido já atrás
fizemos referência. Vejamos, pois, os restantes pontos acima referidos.

II. A via adequada para repartir o património do falido pelos seus


credores, segundo o mérito dos seus créditos, é a de os admitir a todos a
reclamá-los. A esta matéria se referem os art°s 188° e seguintes.
Para dar seguimento a esta fase do processo de falência, a lei prevê:
a) a fixação de um prazo para reclamação dos créditos, que deve ser
feita na sentença declarativa da falência (al. e) do n° 1 do art° 128°; cfr.
também art° 188°);
b) a publicitação adequada da declaração da falência e, por inerên­
cia, desse mesmo prazo, assegurada pelo n° 2 daquele preceito.
O legislador, na sequência de um regime que vem do direito
anterior, levou tão longe quanto admissível esta preocupação de trazer ao
processo de falência a generalidade dos credores. Para o efeito, e contra
o que seria o regime normal em relação a matérias deixadas na livre
disponibilidade das partes e ao efeito preclusivo dos prazos processuais,
prevêem-se dois meios adicionais de preenchimento da plenitude das
reclamações de créditos.

natureza diferente dos cobertos pelas garantias aí previstas, ou, ainda quanto aos créditos
do art° 152°, garantias constituídas contratual mente, nos termos gerais de direito (cfr.,
neste sentido. Norberto Severino e A. Barros Lima Guerreiro, ob. cit., pág. 153).

íi
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 39

Quanto ao primeiro aspecto, há a salientar o regime do art° 19 Io. Nos


termos do seu n° 1, o liquidatário judicial deve dar nota no processo, além
dos créditos reclamados, dos que lhe “conste existirem e se lhe afigure
terem alguma consistência”. Verificada esta situação, o n° 2 do mesmo
preceito manda citar os respectivos credores porcaria registada, podendo
eles então, no prazo de sete dias, vir ainda reclamar os seus créditos. Se
o fizerem, diz a mesma norma que vale “como apresentada em tempo útil
a reclamação que entreguem na sequência do aviso”.
Como se vê, a parte final do preceito, além do mais, já permite que
seja considerado tempestivo um acto praticado para além do prazo para
ele fixado. Este regime particular vem ainda reforçado pelo facto de o
Código admitir reclamações tardias, para além do respectivo prazo,
embora sujeitando-as a formalidades complementares (art°s 205° e
206°, al. a)).

III. O tratamento igualitário dos credores, segundo a qualidade dos


seus créditos, tem como primeira garantia o princípio da legalidade a que
o juiz deve obediência, na sua graduação (art° 200°, n°s 1 e 2, em
particular).
Por outro lado, para o efeito de permitir uma melhor apreciação da
consistência dos créditos reclamados, a lei admite que a sua contestação
seja feita tanto pelo falido como pela generalidade dos credores (art°
192°). Para além disso, este mesmo preceito não exclui a contestação
mesmo de créditos já reconhecidos em outros processos.
Mas, para funcionarem pleno, o tratamento igualitário dos credores
exige também que o pagamento, ou seja, a participação dos credores na
divisão do valor de realização da massa falida, seja feito segundo o
mesmo critério.
Ora, este resultado ficaria frustrado se se mantivesse o direito de
compensação; por isso, o art° 153° exclui a faculdade de o invocar a partir
da data da sentença declarativa da falência. A importância deste efeito da
falência leva o legislador a fazê-lo funcionar ainda antes do trânsito em
julgado da sentença e, mais ainda, antes da sua publicação25.

25 Segue-se, pois, o critério igual ao do art° 151°, em matéria de fixação do


passivo.
40 DIREITO E JUSTIÇA

IV. A característica universal da falência manifesta-se ainda pela


atracção que ela exerce sobre os processos em que estejam envolvidas
questões relativas a bens apreendidos para a massa falida26.
Há aqui a distinguir dois tipos de acções: as executivas e as demais.
O seu regime não é compreensivelmente o mesmo, por virtude da
diferente forma como elas se projectam sobre a falência.
As acções executivas incidem necessariamente sobre a massa falida
e concorreriam com a própria falência, pondo em causa o seu carácter
universal. Por isso, elas não podem ser instauradas e se estiverem em
curso não podem prosseguir (n° 2 do art° 154°). Há aqui apenas que dar
atenção ao interesse dos credores contra outros executados, além do
falido, assegurado na parte final do preceito - a acção segue ou prossegue
contra eles.
Por outro lado, e por razões correspondentes, todos os processos
em que se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de
bens do falido devem ser apensados ao processo de falência, devendo o
juiz requisitá-los oficiosamente (n° 3 do art° 175°).
Nas demais acções, a sua interferência com a massa falida e os
interesses dos credores é de outra ordem. Não há, por isso, razão para
afastar a sua instauração ou o seu seguimento. Basta que seja o juiz da
falência a apreciar as questões que nelas estão em causa. Daí, o n° 1 do
art° 154° limita-se a determinar a sua apensação ao processo de falência.
Mas há mais. A projecção do resultado dessas acções no processo
de falência não se verifica necessariamente em todos os casos. Por isso,
a apensação só tem lugar quando o liquidatário judicial o requeira, com
fundamento na “conveniência para a liquidação”. A lei não o diz, mas a
última palavra cabe aqui ao juiz da falência.
A mesma ideia preside à circunstância de, quando não sejam meros
incidentes processuais sem autonomia, a generalidade das questões
relativas à falência, em si mesmas, correrem por apenso ao respectivo
processo.

26 Ficam excluídas, como se estatui expressamente no n° 2 do art° 154°, as acções


relativas ao estado e capacidade das pessoas.
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 41

IV
EFEITOS QUANTO AOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
ANTERIORES À DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA

14. Generalidades

A manutenção indiscriminada dos actos judiciais praticados pelo


falido em momentos anteriores à declaração da falência não podia ser ad­
mitida pelo legislador. Seria, na verdade, meramente formal o argumento
com base no qual, em sentido contrário, se pretendesse fundar a subsistência
ou eficácia de tais actos na circunstância de eles terem sido praticados num
momento em que o falido não sofria de quaisquer limitações da sua capacidade.
Não pode aqui esquecer-se que a falência pressupõe uma situação
de facto necessariamente anterior - a insolvência — e que esta não se
constitui num só momento.
Por outro lado, importa que, sem plena subordinação ao regime dos
meios comuns - sem dúvida invocável —, se estabeleçam soluções
especiais para defesa dos interesses dos credores contra actuações do
falido que os possam afectar, quer mediante o favorecimento de alguns
credores, quer mediante a subtracção de bens à apreensão para a massa
falida. Esses meios especiais funcionam a um tempo como dissuasores e
como repressivos de tal tipo de actuação por parte do falido.
À semelhança do que já se verificava no Direito anterior, o legislador
do novo Código atendeu a estas considerações, quando se limitou a
estabelecer regimes particulares de certos meios comuns - resolução e
impugnação pauliana - e quando fixou soluções específicas da situação
de falência.

15. A resolução em benefício da massa falida

I. São de duas ordens as causas de suspeição de actos praticados


pelo falido antes da declaração de falência, justificativas da sua resolução
pelo liquidatário judicial: a natureza dos actos e a qualidade das pessoas
com quem foram praticados27.

27 Para maiores desenvolvimentos, nesta matéria da resolução, vd. Carvalho


Femandes e João Labareda, ob. cit., notas aos art°s 156° (págs. 388-392), e 160° (págs.
398-400).
42 DIREITO E JUSTIÇA

Independentemente, porém, destas circunstâncias, há um relevante


aspecto comum que importa referir liminarmente.
Requisito geral da resolubilidade é o tempo em que o acto foi
praticado em relação à falência. O prazo relevante nem sempre é o
mesmo, mas já a forma da sua contagem é comum a todos os casos. Para
além disso, verifica-se uma importante inovação em relação ao regime
anterior, que tem o sentido geral de facilitar a resolubilidade dos actos do
falido praticados antes da declaração de falência.
Está em causa o seguinte ponto. Na lei anterior (n° 1 do art° 1200°
do Código de Processo Civil), o prazo contava-se, regressivamente como
hoje, mas a partir da sentença declarativa da falência. No regime vigente,
e segundo as várias alíneas do n° 1 do art° 156°, o prazo, qualquer que ele
seja, conta-se da “data da abertura do processo conducente à falência”.
Ora, segundo o novo enquadramento do Código, o processo conducente
à falência pode ser o processo de recuperação que veio a degenerar em
processo de falência28.

II. No primeiro grupo de negócios resolúveis cabem os gratuitos


em geral (art° 156°, n° 1, al. a», seguindo o mesmo regime, por concreta
indicação da lei, o repúdio. Por outro lado, há exclusão expressa dos
donativos conformes aos usos sociais e do cumprimento de obrigações
naturais (n° 2 do mesmo preceito)29.
Tratando-se de “actos que envolvam diminuição do património,
celebrados a título gratuito”, para usar as palavras da lei, a resolubilidade
do acto depende de um requisito de ordem temporal: o ter ele sido
celebrado dois anos antes da abertura do processo conducente à
falência.

Hl. No segundo grupo estão contemplados actos praticados com


pessoas que, pelas suas relações com o falido, podem ter facilitado um
resultado concreto capaz de afectar os interesses dos credores: partilha e
actos a título oneroso.

a No sentido do texto, vd. Carvalho Femandes e João Labareda, ob. cit., nota 1.
ao art° 156 (págs. 388-389). Quanto ao momento concreto que constitui o terminus a quo
do prazo - abertura do processo - vale o n° 1 do art° 267° do Código de Processo Civil.
29 Sobre as razões que justificam a resolubilidade, sem mais requisitos, dos actos
gratuitos, e que justamente se não verificam nas exclusões contempladas no n° 2 do art°
156°, vd. Manuel A. Gama Prazeres, ob. cit., pág. 126.
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 43

A partilha, feita um ano antes, é resolúvel quando o quinhão do


falido seja essencialmente preenchido com bens de fácil sonegação e os
demais interessados recebam a generalidade dos bens imóveis e valores
nominativos (al. b) do n° 1 do art° 156°). Embora a letra da lei não cubra,
porventura, directamente o caso30, não se vê razão para não alargar o seu
regime à partilha judicial. Neste sentido aponta mesmo claramente o
confronto do preceito com a norma anterior, porquanto a al. c) do n° 1 do
art° 1200° do Código de Processo Civil apenas se referia às “partilhas
amigáveis”. Para além disso, saliente-se não haver razão de fundo para
manter a distinção, pois a intervenção do juiz não é, só por si, garantia de
seriedade da partilha, mesmo quanto tenham lugar licitações.
Dos actos onerosos do falido, celebrados seis meses antes, são
resokíveis aqueles em que sejam parte:
a) sendo o falido pessoa singular, sociedades por ele dominadas,
directa ou indirectamente;
b) sendo o falido sociedade ou pessoa colectiva,
1 - sociedades que dominem, directa ou indirectamente, o capital da
falida;
2 - sociedades dominadas pela falida;
3 - administradores, gerentes ou directores de sociedades domi­
nantes da falida ou por esta dominadas.

IV. Como pontos particulares do regime da resolução, salientem-


-se o meio de a operar e o respectivo prazo (n° 3 do art° 156°). Quanto ao
primeiro, a resolução é extrajudicial e pode ser feita por carta registada
com aviso de recepção31. O prazo de resolução é de três meses contados
do conhecimento do respectivo acto pelo liquidatário judicial32.

30 Estamos a considerar a terminologia legal, mais própria de negócio jurídico que


de acto judicial: “partilha celebrada”.
31 Sobre a contagem deste prazo, havendo processo de recuperação antes da
declaração de falência, vd. Carvalho Fernandos e João Labareda, ob. cit., nota 7. ao art°
156°, págs. 391-392.
32 Ocarácter extrajudicial da resolução não exclui, como é manifesto, a possibilidade
de a seu respeito se suscitarem divergências entre os interessados, a dirimir judicialmente.
Prevenindo esta hipótese, o art° 160° estabelece o correspondente regime; mas. ao fazê-
-lo juntamente com a acção de impugnação pauliana. não regula a matéria da forma mais
adequada. Com efeito, o n° 1 do citado preceito, na sua parte final, apenas se refere ao
liquidatário judicial ou a qualquer credor com crédito já reconhecido. Pode, porém, a
acção ser da iniciativa de quem celebrou o acto com o falido, quando se não conforme com
a resolução declarada pelo liquidatário, como se estatui no n° 3 do art° 160°.
44 DIREITO E JUSTIÇA

Os efeitos da resolução apuram-se a partir do regime fixado no art°


159°. Os bens ou valores que o negócio resolvido tem por objecto passam
a integrar a massa falida. Por isso, devem ser entregues ao liquidatário,
incorrendo o seu possuidor, se os não apresentar no prazo fixado na
sentença, nas sanções fixadas no art° 854° do Código de Processo Civil
para o infiel depositário.
A resolução pode, quanto à outra parte, fazer nascer um direito à
restituição de bens ou valores. Nesse caso, o correspondente crédito vale,
na falência, como crédito comum.

16. A impugnação pauliana

I. A impugnação pauliana, como meio específico de tutela dos


credores, na falência, apresenta particularidades não muito significativas
em relação ao seu regime comum, na lei civil, aplicável em tudo o que não
esteja contemplado nos art°s 158° a 160°. De resto, o art° 157° assim o
determina expressamente33.
O afastamento de maior relevo verifica-se, neste domínio, quanto à
presunção (iuris et de iure) de má fé estatuída no art° 158°.
Essa presunção assenta também, à semelhança do que se passa
quanto à resolução, numa suspeição de inadequação de certos actos do
falido, do ponto de vista do interesse dos credores. Numa aproximação
ao que vimos passar-se no regime da resolução, releva aqui, para além
do momento em que o acto foi praticado, variável segundo os casos, a sua
natureza e a qualidade das pessoas que nele intervieram, além do falido.
A semelhança do que acontece em matéria de resolução, um dos re­
quisitos relevantes da impugnação é o do tempo de celebração dos negó­
cios em causa. Como seria de esperar, os prazos de impugnação contam-
-se a partir do mesmo momento que releva em matéria de resolução, pelo
que são aqui pertinentes as considerações a esse respeito feitas.

II. Em relação aos demais pontos acima referidos, e quanto à


natureza do acto, há a assinalar o regime de impugnação das garantias
reais constituídas antes da abertura do processo conducente à falência
(al. c) do art° 158°), em prazo que varia consoante a garantia seja poste-

33 Para maiores desenvolvimentos nesta matéria da impugnação, vd. Carvalho


Femandes e João Labareda, ob. cit., notas aos art°s 158° a 160° (págs. 393-400).

11
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 45

rior ao acto garantido ou contemporânea dele. Como é manifesto, é em


relação às garantias posteriores à celebração do negócio principal que o
legislador é mais exigente, por ser menos corrente - segundo id quod
plerumque accidit - a prática desses actos em tais circunstâncias,
logo, mais provável a existência de intuito fraudatório.
Próximo deste caso, e por razões análogas, está o tratamento das
garantias pessoais prestadas pelo falido e concedidas nos dois anos
anteriores “à abertura do processo conducente à falência”, se as “operações”
garantidas não tiverem, para o falido, real interesse (al. e)).
Por este último requisito, aproximam-se destes negócios do falido
aqueles em que relevam circunstâncias particulares da sua celebração:
pagamento ou compensação convencional de dívida não vencida, e
também de dívida vencida, ocorrido no ano anterior, quando feito com
recurso a valores usualmente não destinados a esse fim (al. b)), e os actos
a título oneroso realizados até dois anos antes, se houver manifesta
desproporção, em desfavor do falido, entre o valor das obrigações por ele
assumidas e as assumidas pela outra parte (al. d)).

III. Com base na qualidade das pessoas que negociaram com o


falido são impugnáveis, quando celebrados nos dois anos anteriores, os
actos a título oneroso, de que sejam parte certos familiares do falido
(cônjuge, parente ou afim até ao 4o grau), ou pessoas que com ele
mantenham vínculo de prestação de serviços ou laborai. Regime igual
seguem os actos onerosos celebrados pelo falido com sociedades coli­
gadas ou dominadas por ele (al. a) do art° 158°).

IV. A impugnação pauliana, como é próprio deste instituto, é


actuada judicialmente, seguindo-se na falência, neste domínio, o seu
regime normal.
Os efeitos da procedência desta acção são decalcados, sobre os da
resolução, j á acima analisados, sendo, aliás, o regime do art° 159° comum
aos dois institutos.

17. Extinção de negócios jurídicos

I. O efeito mais radical da declaração de falência, neste domínio


dos actos do falido a ela anteriores, traduz-se na sua extinção ou na das
relações deles emergentes.
46 DIREITO E JUSTIÇA

A análise das normas do novo Código reguladoras de tal matéria re­


vela que em alguns casos essa extinção actua automaticamente, enquanto, nou­
tros, apenas se confere ao liquidatário o direito potestativo de a operar.
Ainda quando se não projecte na manutenção do negócio, por
qualquer das duas assinaladas vias, a declaração de falência pode ter
outros efeitos sobre o regime da sua extinção.

II. A extinção de negócios jurídicos celebrados pelo falido antes da


declaração de falência, quando automática, nem sempre tem lugar nas
mesmas circunstâncias.
Algumas vezes ela decorre directamente da lei, produzindo-se
assim ipso iure. E o que acontece com a associação em participação (art°
166°, n° 1M), o contrato de agência (art° 168o35), os contratos de mandato
ou comissão, quando o falido seja o mandatário (art° 167°, n° 236), e o
contrato de conta corrente (art° 151°, n° 1).
Casos há, porém, em que ela depende de essa causa de extinção estar
prevista no próprio negócio, como se verifica em matéria de agrupamento
complementar de empresa (art° 165°).

III. Para além dos casos da alínea anterior, em que a eficácia


extintiva da declaração de falência se explica por razões objectivas,
ligadas aos negócios aí em causa, outros há em que se justifica uma
ponderação causística dos interesses implicados na manutenção ou
extinção do negócio.
Por assim ser, a declaração de falência apenas atribui ao liquidatário
judicial um poder (potestativo), dependendo da sua decisão o destino do
negócio. É o que se verifica nos contratos de mandato e comissão,
realizados também no interesse do mandatário, quando o falido seja o
mandante (art° 167°, n° 1 )37, no contrato de arrendamento, quando o falido
seja arrendatário e o negócio mantenha ligação com a massa falida ou
relevância em relação a ela (art° 169°, n° 1), e no contrato de compra e

34 Vd. an° 27°, n° 1, al. g), do Dec.-Lei n° 235/81, de 28/JUL.


33 Cfr. art°s 26°, al. c), e 30°do Dec.-Lei n° 178/86, de 3/JUN, e anotação de A. Pinto
Monteiro, “Contrato de Agência”. 2* ed. act.. Coimbra, 1983, pág. 88.
36 Sobre o sentido deste preceito, vd. Carvalho Femandes e João Labareda, ob. cit.,
nota 4. ao art° 167° (pág. 410).
37 Sobre o alcance deste preceito vd. Carvalho Femandes c João Labareda, ob. cit.,
notas 2. e 3. ao art° 167° (págs. 408-409).


EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 47

venda, sendo o falido o vendedor, se o domínio da coisa vendida se não


tiver ainda transferido (art° 161°, n° 3, segunda parte).
Um caso a merecer menção particular é o de o arrendamento,
quando, estando já celebrado o contrato, mas o local arrendado não tenha
sido ainda entregue pelo senhorio ao falido, na data da sentença declarativa
da falência (art° 161°, n°s 3 e 4). Verificada esta hipótese, tanto o senhorio
como o liquidatário podem resolver o contrato, sem prejuízo da
indemnização devida, em qualquer caso, pelo seu não cumprimento. Para
evitar os inconvenientes decorrentes do alongamento da incerteza quanto
à subsistência do negócio, a lei confere, ao senhorio e ao liquidatário, a
faculdade de fixar ao outro um prazo razoável para o resolver, com
carácter coininatório: findo esse prazo, sem que nenhuma declaração haja
sido posta, cessa o direito à resolução.

IV. Final mente, a declaração de falência pode não operar a extinção


do negócio jurídico, mas projectar-se sobre o regime das respectivas
causas de extinção.
Assim, se já depois da declaração de falência for interposta pelo
senhorio uma acção de resolução do arrendamento, com fundamento em
falta de pagamento de rendas, não tem o senhorio direito a indemnização
pela mora anterior à declaração de falência (art° 169°, n° 2).
Sendo o falido o senhorio, e estando pendente acção de despejo,
qualquer que seja o fundamento da resolução, o liquidatário deve fazê-la
prosseguir. Se não estiver pendente acção de resolução, mas houver
rendas em atraso, o liquidatário deve propô-la (art° 170°, n° l)38.

18. Efeitos da falência no cumprimento de negócios jurídicos

I. A declaração de falência, quando não ponha em causa a


subsistência do contrato e das relações dele emergentes, por alguma das
vias analisadas nos números anteriores, pode ainda assim interferir com
o seu cumprimento, quando este esteja em curso no momento da decla­
ração de falência.

38 Havendo outros fundamentos de resolução do contrato de arrendamento, cabe


ao liquidatário decidir sobre a oportunidade da propositura da correspondente acção, ao
abrigo dos poderes que lhe são atribuídos nos art°s 134°, n° 4, 140° e 143°.
48 DIREITO E JUSTIÇA

O novo Código ocupa-se da matéria por referência à compra e venda


(n°s 1 e 2 do art° 161°), mas alarga de seguida o regime fixado nestes
preceitos à venda com entregas periódicas e ao contrato de fornecimento
(art° 162°).
No preceito correspondente do Código de Processo Civil (art°
1197°) continha-se uma norma genérica, relativa a contratos bilaterais
celebrados pelo falido (primeira parte do n° 1), que não transitou para o
novo Código. Este faz um tratamento puramente casuístico da matéria. A
verdade, porém, é que, para além do largamento já referido no texto,
sempre há que atender ao preceituado no art° 939° do Código Civil, do
qual resulta a aplicação subsidiária do regime da compra e venda a outros
contratos onerosos.

II. Sendo o falido o comprador, se o contrato não estiver ainda


integralmente cumprido por ambas as partes à data de declaração da
falência, o vendedor pode cumprir o que por ele for devido, e apresentar-
-se como credor do preço na falência, sendo-lhe aplicável o regime dos
credores comuns39.
Se o vendedor não usar dessa faculdade, o cumprimento fica
suspenso e dependente de opção do liquidatário. Se este optar pelo
cumprimento, mantém-se naturalmente a vinculação das partes, devendo
o vendedor e o liquidatário cumprir as correspondentes obrigações. Caso
contrário, o liquidatário resolverá o contrato, desvinculando a “massa”
das correspondentes vinculações (n° 2 do art° 161°). Deve entender-se
que, neste caso, à semelhança do que acontece em casos paralelos, os
direitos emergentes, para o vendedor, da resolução do contrato serão
considerados na falência como créditos comuns40.
O regime de suspensão do cumprimento, deixando nas mãos do
liquidatário judicial o destino do contrato, pode revelar-se desfavorável
ao vendedor. Acautelando esse interesse, a segunda parte do n° 2 do art°
161° reconhece-lhe a faculdade de fixar ao liquidatário um prazo razoá-

59 É este o alcance da parte final do n° 1 doart° 161°: “sujeitando-se ao recebimento


do preço segundo as forças da massa falida”.
40 Como assinalamNorbertoSeverinoe Lima Guerreiro, emboraonâocumprimento
seja aqui uma faculdade reconhecida por lei, isso não afasta a responsabilidade pelos
prejuízos causados à outra parte (ob. cit., pág. 160). O correspondente crédito valerá na
falência com o regime dos créditos comuns.
EFEITOS SUBSTANTIVOS DA DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA 49

vel para o exercício da opção conferida pela lei. O silêncio do liquida­


tário, decorrido esse prazo, vale como resolução do negócio.

III. Um caso particular é o da venda de coisas móveis, em que o


falido seja o comprador, se elas já tiverem sido remetidas ao falido, no
momento da declaração de falência, sem, contudo, terem sido ainda
recebidas por este (art° 164o)41.
Verificados estes requisitos, a lei dá primazia, quanto ao destino do
contrato, à posição do vendedor, no caso de sobre essas coisas móveis se
não ter ainda constituído um direito adquirido por terceiro, como se
verificará no caso de elas não terem, entretanto, sido vendidas pelo
falido42. Dentro deste condicionalismo, o vendedor poderá optar entre
manter o contrato e ser pago como credor comum, na falência, ou reaver
as coisas vendidas. Como é bom de ver, se esta última for a opção do
vendedor, além de suportar todas as despesas decorrentes do retomo das
coisas, tem ele também de restituir à massa falida o que já houvesse
recebido. É o regime que se extrai do n° 1 do citado preceito.
O liquidatário pode, contudo, evitar o retomo das coisas se, contra
a sua entrega, pagar o preço em dívida (n° 2 do art° 164°).

41 Cfr., a este respeito, o n° 5 do art° 201 °, do qual resulta aplicar-se o regime do arto
164°, mesmo que as mercadorias já tenham sido recebidas pelo falido, se puderem ser
«identificadas e separadas das que pertencerem à parte restante da massa».
42 Se tiver havido essa aquisição, o contrato mantém-se, com o direito de o
vendedor fazer valer o seu crédito, na falência, como credor comum.

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