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Fatos e Atos Jurídicos

Introdução
Os atos e fatos jurídicos rodeiam toda a nossa vida, por isso o Direito se
dedica a regular essas categorias. Seja o simples fato de uma transação
em um estabelecimento comercial ou a assinatura de um contrato, uma
promessa feita a terceiro ou o reconhecimento da paternidade de um
filho, todas essas ações se encaixam no contexto de atos e fatos jurídicos
e têm repercussões na esfera jurídica.
Os atos jurídicos ainda podem ser lícitos ou ilícitos, dando ensejo para
que o Direito atue na proteção de terceiro e responsabilização pelos
atos praticados.
Neste capítulo, você vai ler sobre os meios de diferenciar atos e fatos
jurídicos conforme os elementos de cada um, as suas subdivisões e a sua
classificação. Aprenderá, ainda, sobre os atos ilícitos, os seus elementos
e modalidades.

Elementos e classificação
O estudo sobre o que se compreende por fato e ato jurídico, bem como as suas
subdivisões, começa pelo entendimento de que todas essas ocorrências possuem
relevância jurídica. O Direito se preocupa com essas figuras porque — quer
sejam ocorrências da natureza ou advindas da vontade humana, com efeitos
definidos em lei ou que podem ser modificados pelas partes — os atos e fatos
jurídicos não podem ficar sem normatização. A figura básica desse sistema, a
teoria geral do negócio jurídico, é o pró- prio fato jurídico. Por
consequência, o fato jurídico é todo aquele, ocasionado pelo homem ou não,
que possui o condão de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas.
O fato jurídico se divide em outras classificações conforme a presença
ou não de alguns elementos. A Figura 1 apresenta a classificação completa.
Ordinário
Fato jurídico em
sentido estrito
Extraordinário

Fato jurídico
(sentido amplo) Ato-fato
Ato jurídico
em sentido estrito
Lícito
Ato jurídico Negócio jurídico
(sentido amplo)
Ilícito

Figura 1. Classificação dos fatos jurídicos.

Como demonstrado na Figura 1, o fato jurídico, em sentido amplo, serve


como base para todas as classificações posteriores. Assim, o fato jurídico se
divide em fato jurídico em:

 sentido estrito;
 ato-fato;
 ato jurídico.

O fato jurídico em sentido estrito é aquele acontecimento com rele-


vância jurídica que ocorre independentemente da vontade humana, ou seja,
é um acontecimento natural que tem consequências jurídicas. Pode haver a
participação humana no fato, mas sua ocorrência não depende da emissão de
vontade. Exemplos de fatos jurídicos em sentido estrito são:

 nascimento;
 morte;
 aluvião;
 avulsão.
A fórmula do fato jurídico pode ser descrita da seguinte maneira:fato jurídico =
fatodireito

Os fatos jurídicos em sentido estrito podem ainda ser divididos em ordi-


nários e extraordinários. Os fatos ordinários são aqueles que decorrem de
situações comuns, inevitáveis e esperadas, como a morte. Já os fatos jurídicos
extraordinários são aqueles que não se tem previsibilidade, ou seja, os casos
fortuitos ou de força maior, como uma enchente.
Por sua vez, os atos jurídicos em sentido amplo são aqueles que dependem
da emissão de vontade pelo sujeito para que se realizem. Dividem-se entre
atos lícitos e ilícitos. Os atos lícitos são aqueles em que não há consequências
contrárias às disposições do ordenamento nacional. Por sua vez, os atos
ilícitos são aqueles realizados contrariamente às disposições do ordenamento
jurídico nacional, violando os direitos de terceiros e ocasionando danos, ou
pelo abuso de direito, conforme prescrevem os arts. 186 e 187 do Código
Civil, in verbis:

Art. 186 Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou im-
prudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito.
Art. 187 Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-
-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico
ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (BRASIL, 2002, documento
on-line).

Devemos destacar, no entanto, que alguns atos, embora ocasionem danos


a terceiros, não implicam em atos ilícitos, como prevê o Código Civil, em seu
art. 188, em relação ao estado de necessidade e à legítima defesa:

Art. 188 Não constituem atos ilícitos:


I — os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido;
II — a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim
de remover perigo iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as
circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites
do indispensável para a remoção do perigo (BRASIL, 2002, documento on-line).

A realização de um ato jurídico ilícito acarreta o dever de reparação,


constituído no art. 927 do Código Civil.
A fórmula do ato jurídico pode ser descrita da seguinte maneira:

ato jurídico = fato + direito + vontade

Os atos jurídicos lícitos dividem-se atos jurídicos estrito senso e


negóciosjurídicos, diferenciando-se conforme o poder da parte de moldar as
conse- quências do ato. Marcos Bernardes de Mello, ao conceituar a figura
do ato jurídico em sentido estrito, afirma que este é:

[...] fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fático a manifestação
ou declaração unilateral de vontade cujos efeitos jurídicos são prefixados
pelas normas jurídicas e invariáveis, não cabendo às pessoas qualquer poder
de escolha da categoria jurídica ou de estruturação do conteúdo das relações
respectivas (MELLO, 1995, p. 137).

Ao praticar um ato jurídico em sentido estrito, a parte não tem o poder


de escolher os efeitos do ato, pois estes são predeterminados em lei, como
ocorre nas hipóteses de:

 adoção;
 reconhecimento de paternidade;
 constituição de domicílio;
 pagamento de tributos.

Os atos jurídicos em sentido estrito se subdividem em cinco categorias:


 Reclam ativos — são reclamações ou provocações, como a interpelação realizada
para constituir o devedor em mora.
 Com unicativos — comunicam a vontade do agente para dar ciência a outrem.
Por exemplo, a comunicação de escolha da prestação.
 Enunciativos — expressam um conhecimento ou sentimento, como o reconhe-
cimento de paternidade.
 M andam entais — expressam uma imposição ou proibição a determinado com-
portamento, como a determinação para que o vizinho repare o prédio quando
há ameaça de ruína.
 Com pósitos — manifestações de vontade que dependem de outras circunstâncias
para se completarem, como a constituição de domicílio, que depende da fixação
de residência e ânimo definitivo.
Por fim, temos ainda, como parte dos atos jurídicos lícitos, os negócios
jurídicos, que se caracterizam pela definição conforme a vontade das partes
dos efeitos do ato praticado. O negócio jurídico é a composição de interesses
das partes com uma finalidade específica, sendo a principal forma de exercício
da autonomia privada.
A fórmula do negócio jurídico pode ser descrita da seguinte maneira:

negócio jurídico = fato + direito + vontade + licitude + composição


de interesses

A última espécie de fato jurídico é o ato-fato jurídico. Essa categoria não é


contemplada pelo Código Civil, no entanto, a doutrina se utiliza dessa classi-
ficação para se referir a atos humanos em que está ausente a manifestação da
vontade humana ou, se presente, o Direito a desconsidera. Assim, a vontade
não faz parte do suporte fático, assim, suas consequências são determinadas
pela lei. Por exemplo, quando uma criança de 7 anos vai à padaria comprar
balas, não há voluntariedade e consciência, o que é, portanto, um ato-fato e não
um negócio jurídico. Nesse sentido, manifestou-se Paulo Lôbo (2009, p. 232):

Os atos-fatos jurídicos são atos ou comportamentos humanos em que não houve


vontade, ou, se houve, o direito não as considerou. Nos atos-fatos jurídicos
a vontade não integra o suporte fático. É a lei que os faz jurídicos e atribui
consequências ou efeitos, independentemente de estes terem sido queridos
ou não. O ato ou a vontade é esvaziada e é apenas levada para juridicização
como fato; o ato dissolve-se no fato.

Apesar da referida classificação ser adotada por grande parte da doutrina


civilista, há autores que discordam dos argumentos demonstrados. Pontes de
Miranda (1974) considera que os atos–fatos não devem ser considerados como
atos jurídicos, vez que independem da vontade humana.
Marcos Bernardes de Mello (1995), ao classificar os atos–fatos jurídicos,
divide-os em três categorias:

 atos reais;
 atos-fatos jurídicos indenizativos;
 atos-fatos jurídicos extintivos.

Os atos reais seriam aqueles que decorrem de certos acontecimentos,


dando-se importância ao resultado, independentemente da vontade em obtê-
-lo, como o indivíduo que descobre um tesouro e adquire sua propriedade
mesmo sem ter desejado achá-lo. Os atos–fatos jurídicos indenizativos são
aqueles que surgem de situações em que uma ação do indivíduo, mesmo não
contrária ao direito, resulta em um dever de indenizar o outro, como ocorre
na destruição de propriedade alheia diante do estado de necessidade. Por
fim, os atos–fatos extintivos ocorrem quando a situação implica a extinção
de um direito ou pretensão, como nos casos de prescrição e decadência.
Passaremos agora para o estudo dos atos ilícitos.

Atos ilícitos
Como mencionado, os atos jurídicos podem constituir ilícitos civis. Conforme
os arts. 186 e 187 do Código Civil, os atos ilícitos decorrem de um ato que
viole direito de outrem ou de um abuso de direito pelo agente. Neste capítulo,
destrincharemos os elementos configuradores do ato ilícito.
Serão analisados primeiro os elementos presentes no art. 186 e posterior-
mente aqueles constantes no art. 187 do Código Civil: “Aquele que, por ação
ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (BRASIL,
2002, documento on-line).
O primeiro elemento configurador do ato ilícito é, portanto, a ação ou
omissão voluntária do agente. Entende-se por ação a conduta ativa, consubs-
tanciada em um ato único ou em uma série de atos, que viole direito alheio
e cause dano. As omissões são os atos que deveriam ser realizados diante de
um dever de agir, ocasionando também dano a terceiro. Incluem-se nessas
condutas os atos negligentes e imprudentes. A conduta deve ser voluntária,
ou seja, realizada pelo agente segundo a sua própria vontade.

 Condutas negligentes — ocorrem quando o agente deixa de realizar algo que


deveria ter feito por ausência de cuidado e atenção. Por exemplo, babá que,
ao ver a criança brincando próxima ao fogão, não a afasta, vindo a acontecer
um acidente.
 Condutas im prudentes — ocorrem quando o agente realiza uma ação sem o
devido zelo e cautela necessários. Por exemplo, motorista devidamente habilitado
que ultrapassa o sinal vermelho e provoca acidente de trânsito.
O segundo elemento do ato ilícito é o dano. Este pode ser material ou pu-
ramente moral. Esse dano deve se ligar à ação do agente pelo nexo causal, o
terceiro elemento do ato ilícito. Caso o dano tenha ocorrido por culpa exclusiva
da vítima ou de terceiro, não haverá a responsabilização do agente por ato ilícito.
O nexo causal também pode ser rompido caso se trate de dano ocasionado por:

 força maior, isto é, um evento previsível ou imprevisível, inevitável e


advindo das forças da natureza, como um raio;
 caso fortuito, isto é, ato humano, imprevisível e inevitável que impede
o cumprimento de uma obrigação.

O último elemento presente no ato ilícito é a culpa. A culpa, nesse caso,


abarca tanto o dolo quanto a culpa em sentido estrito. Ressaltamos, no entanto,
que existem casos em que os atos ilícitos independem de culpa para ocasionarem
a indenização, chamada de responsabilidade objetiva.
Como prescreve o art. 187 do Código Civil, o ato ilícito também pode ser
ocasionado pelo abuso de direito. O ato ilícito decorrente do abuso de direito
é independente de culpa, sendo esse um elemento acidental.
Segundo prevê o referido artigo, age com abuso de direito aquele que exerce
para além da boa-fé ou dos bons costumes.
Um exemplo recente de configuração de ato ilícito por abuso de direito é
a propositura de ação por terceiro para impedir que mulher realize o aborto,
conforme Recurso Especial (REsp) 1.467.888–GO, julgado pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ):

Caracteriza abuso de direito ou ação passível de gerar responsabilidade civil


pelos danos causados a impetração do habeas corpus por terceiro com o fim
de impedir a interrupção, deferida judicialmente, de gestação de feto portador
de síndrome incompatível com a vida extrauterina. Caso concreto: uma mulher
descobriu que o bebê que ela estava esperando possuía uma má-formação
conhecida como “Síndrome de Body Stalk”, que torna inviável à vida extrau-
terina. Ela conseguiu uma autorização judicial para interromper a gestação e
foi internada com esse objetivo. Ocorre que um padre descobriu a situação e
impetrou um habeas corpus em favor do feto pedindo que o Poder Judiciário
impedisse o aborto. Quando a mulher já estava há três dias no hospital fazendo
o procedimento de aborto, foi deferida a liminar no HC e determinou-se que
o procedimento fosse suspenso e que a gravidez prosseguisse. A mulher teve
que voltar para casa. Alguns dias após, nasceu a criança, mas morreu menos
de duas horas depois do parto. STJ. 3ª Turma. REsp 1.467.888-GO, Rel. Min.
Nancy Andrighi, julgado em 20/10/2016 (CAVALCANTE, 2016, p. 7).
A seguir, serão abordados os principais meios de abuso de direito que
ocorrem por serem contrários à boa-fé.

Ato ilícito e boa-fé


Uma parte importante da temática do ato ilícito é entender quando um ato será
assim classificado por ferir a boa-fé objetiva. Desse instituto, surgem diversas
classificações de atos que representam a quebra da boa-fé.
Mostraremos essas diferentes classificações para melhor compreensão da
temática do ato ilícito pelo abuso de direito.
O supressio é um instituto que determina a perda de uma faculdade jurídica
pelo seu não exercício durante o decurso do tempo. O titular de um direito cria
em outrem a expectativa de que não irá exercê-lo, pois tem se comportado
dessa forma repetidamente ao longo do tempo, assim, não pode surpreendê-lo
com o exercício daquela faculdade jurídica, pois essa se perde no decorrer do
tempo. Exercer tal direito contrariaria a boa-fé objetiva.
Um exemplo claro de supressio consta no art. 330 do Código Civil, in verbis:
“O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do cre-
dor relativamente ao previsto no contrato” (BRASIL, 2002, documento on-line).
Nesse caso, o credor que tem recebido o pagamento em local diferente
daquele previsto no contrato sem que faça objeção a tal não poderá exigir
que o devedor passe a realizar o pagamento no local original, uma vez que
ele perdeu essa faculdade com o decurso do tempo.
A jurisprudência adota esse instituto comumente nos seus julgados:

RECURSO ESPECIAL. CONTRATO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA


DE COMBUSTÍVEIS E DERIVADOS. APELAÇÃO. REGRA DO ART. 514
DO CPC. ATENDIMENTO. AQUISIÇÃO DE QUANTIDADE MÍNIMA DE
PRODUTOS. INOBSERVÂNCIA NO CURSO DA RELAÇÃO CONTRATU-
AL. TOLERÂNCIA DO CREDOR. CLÁUSULA PENAL. INAPLICABILI-
DADE. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. INSTITUTO DA SUPPRESSIO.
INCIDÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SÚMULA Nº. 7/STJ.
1. Trata-se de ação de cobrança de multa prevista em contrato de promessa de
compra e venda de combustíveis e produtos derivados sob a alegação de que
o posto de gasolina não adquiriu a quantidade mínima prevista.
2. A mera reiteração, nas razões do recurso de apelação, de argumentos
apresentados na inicial ou na contestação não determina por si só ofensa ao
art. 514 do Código de Processo Civil. Precedentes.
3. Segundo o instituto da suppressio, o não exercício de direito por seu titular,
no curso da relação contratual, gera para a outra parte, em virtude do prin-
cípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava
sujeito ao cumprimento da obrigação, presente a possível deslealdade no seu
exercício posterior.
4. Hipótese em que a recorrente permitiu, por quase toda a vigência do contra-
to, que a aquisição de produtos pelo posto de gasolina ocorresse em patamar
inferior ao pactuado, apresentando-se desleal a exigência, ao fim da relação
contratual, do valor correspondente ao que não foi adquirido, com incidência
de multa. Assim, por força do instituto da suppressio, não há ofensa ao art.
921 do Código Civil de 1916.
5. A revisão do montante fixado a título de honorários advocatícios, exceto
se irrisórios ou exorbitantes, demanda o reexame de provas, atraindo o óbice
da Súmula nº 7/STJ.
6. Recurso especial não provido.
(REsp 1374830/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 23/06/2015, DJe 03/08/2015)” (SUPRESSIO..., 2018, documento
on-line).

A surrectio funciona como a outra face da supressio. Enquanto a supressio


se caracteriza pela perda de um direito pela ausência de seu exercício durante
um período, a surrectio significa que o sujeito adquire um direito pelo seu
exercício repetidamente durante determinado tempo.
É o caso, por exemplo, do devedor que sempre realiza o pagamento de
aluguel em local diferente daquele pactuado no contrato sem que haja mani-
festação contrária por parte do credor. O devedor passa a poder exigir que,
apesar do estipulado no contrato, o credor aceite o pagamento no local em
que tem sido realizado comumente, haja vista que, por boa-fé, tem o condão
de continuar a fazer o pagamento daquela forma.
Confira o posicionamento da jurisprudência sobre esse instituto:

LOCAÇÃO. Shopping center. Alteração do regulamento interno. Proibição


de atendimento direto nas mesas da praça de alimentação, por meio de gar-
çons. Locatária antiga que seguia esse modelo de atendimento há quase duas
décadas. Prática consolidada por lapso considerável de tempo não pode ser
afetada por modificação unilateral posterior. Boa-fé objetiva (art. 422 do CC).
Surrectio. Recurso não provido. (TJSP — Apelação 0001237-31.2010.8.26.0451;
Relator(a): Gilson Delgado Miranda; Comarca: Piracicaba; Órgão julgador:
28ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 23/02/2016; Data de
registro: 23/02/2016) (SUPRESSIO..., 2018, documento on-line).

O tu quoque visa impedir que aquele que descumpriu norma legal ou


contratual possa exigir do outro o cumprimento do mesmo preceito. Assim,
o violador de determinada norma não pode se valer de situação gerada con-
trariamente à boa-fé.
Um exemplo da aplicação desse instituto pode ser visualizado no cumprimento de
um contrato: se uma parte não realiza as suas obrigações, não há como exigir que a
outra o cumpra, pois configuraria um abuso de direito.

Nesse mesmo sentido, manifesta-se a jurisprudência:

CONTRATO BANCÁRIO. Empréstimo. Antecipação do décimo terceiro


salário. Falha do Banco que só debitou o valor devido no mês de fevereiro
seguinte. Autor que, entretanto, confessadamente se aproveitou dessa falha,
usando o dinheiro para quitar outras dívidas. Pretensão sua de que o Banco
seja condenado a lhe devolver o valor debitado depois, além de pagar com-
pensação por danos morais. Inadmissibilidade do tu quoque, pois a parte
que conscientemente desrespeita um contrato (como o autor, que não pagou
no tempo o que sabia dever), não pode pretender exigir da outra parte que
respeite esse mesmo contrato. Ação improcedente. Recurso não provido. Fere
a sensibilidade ética e jurídica que alguém que não cumpre os seus deveres
venha de forma abusiva exigir a outrem eventuais direitos com base na norma
violada, sob pena de abuso. (Apelação 0002098-71.2013.8.26.0302, Tribunal
de Justiça de São Paulo, Relator: Gilberto dos Santos; Comarca: Jaú; Órgão
julgador: 11ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 25/11/2015; Data
de registro: 25/11/2015) (BREVES..., 2018, documento on-line).

O venire contra factum proprium se assemelha ao tu quoque, mas possui


como diferença o fato de os comportamentos da parte, quando analisados
isoladamente, não serem indevidos, isto é, há apenas a contradição entre eles.
Esse comportamento se caracteriza como abuso de direito por ser um exercício
de direito contrário à uma expectativa gerada.
Um exemplo da aplicação desse instituto é o caso em que a administradora
de cartão de crédito, após aceitar por diversas vezes que o cliente pagasse a
fatura com atraso, resolve invocar cláusula para rescindir o contrato. Naquela
oportunidade, assim se manifestou o Tribunal de Justiça de São Paulo:

Dano moral. Responsabilidade civil. Negativação no Serasa e constrangimento


caracterizado pela recusa do cartão de crédito, cancelado pela ré (administra-
dora). Boa-fé objetiva. Venire contra factum proprium. Administradora que
aceitava pagamento das faturas com atraso. Cobrança dos encargos da mora.
Ocorrência. Repentinamente invoca cláusula contratual para considerar o
contrato rescindido, a conta encerrada e o débito vencido antecipadamente.
Simultaneamente providencia a inclusão do nome do titular no Serasa. Inad-
missibilidade. Inversão do comportamento anteriormente adotado e exercício
abusivo da posição jurídica. Recurso improvido (Tribunal de Justiça de São
Paulo, Apelação Cível 174.305-4/2-00, São Paulo, 3ª Câmara de Direito Pri-
vado A, Relator: Enéas Costa Garcia, J. 16.12.05, V. U. Voto 309) (SALLES,
2009, documento on-line).

O duty to mitigate determina que o credor tem o dever de mitigar a perda.


Nesse contexto, o Enunciado nº 169 do Conselho de Justiça Federal (CJF)
determina que o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o
agravamento do próprio prejuízo.
Isso é, por exemplo, o que acontece quando o credor de aluguéis não recebe
os valores devidos. Ele deve ajuizar a ação de despejo em tempo razoável e
não permitir que corra o contrato de aluguel para depois requerer os valores
atrasados. Veja-se a jurisprudência sobre o assunto:

DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-


-JURÍDICO. OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVE-
RES ANEXOS. DUTY TO MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR
O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR. AGRAVAMENTO DO
DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO IMPROVIDO.
1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico. Observância pelos contratantes
em todas as fases. Condutas pautadas pela probidade, cooperação e lealda-
de. 2. Relações obrigacionais. Atuação das partes. Preservação dos direitos
dos contratantes na consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos
preceitos éticos insertos no ordenamento jurídico. 3. Preceito decorrente
da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio
prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis
para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode
permanecer deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do preju-
ízo, em razão da inércia do credor. Infringência aos deveres de cooperação
e lealdade. 4. Lição da doutrinadora Véra Maria Jacob de Fradera. Descuido
com o dever de mitigar o prejuízo sofrido. O fato de ter deixado o devedor na
posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu
dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra
e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o
consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização
mais célere dos atos de defesa possessória diminuiria a extensão do dano. 5.
Violação ao princípio da boa-fé objetiva. Caracterização de inadimplemento
contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária, (exclusão
de um ano de ressarcimento). 6. Recurso improvido. (STJ - — REsp: 758518
PR 2005/0096775-4, Relator: Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador
Convocado do TJ/RS), Data de Julgamento: 17/06/2010, T3 —- Terceira Tur-
ma, Data de Publicação: DJe 28/06/2010 REPDJe 01/07/2010) (MONTEIRO,
2016, documento on-line).
c) Por não depender da vontade
1. Joana estava dentro de um ônibus humana, a avulsão não pode ser
municipal quando este foi assaltado classificada como ato jurídico.
e levaram todos os pertences que d) A morte, o nascimento
estavam com ela. Inconformada, e o reconhecimento de
Joana processou a empresa de paternidade são todos atos
ônibus requerendo indenização jurídicos em sentido estrito.
por danos morais e materiais. e) A ausência de nexo causal
De acordo com a jurisprudência pode ser ocasionada pela
dominante, o pedido de Joana será: culpa exclusiva de terceiro.
a) procedente, pois a empresa 4. Eduardo contratou um serviço de
cometeu ato ilícito. entrega de marmitas e acordou
b) improcedente, haja vista que contratualmente que efetuaria o
há culpa exclusiva da vítima. pagamento todo dia 15 na sede
c) parcialmente procedente, da empresa credora. Passados
pois o fato não é capaz de alguns meses de vigência do
ensejar danos morais. contrato, Eduardo começou a
d) improcedente, pois realizar o pagamento no dia
ausenta nexo causal. 25, sem que a empresa fizesse
e) improcedente, pois é qualquer contestação por mais
responsabilidade do município de 1 ano. Passado esse período,
garantir a segurança no a empresa exigiu que Eduardo
transporte público. efetuasse o pagamento no dia 15,
2. Se, devido a uma tempestade, mas ele se recusou, alegando que
um poste cair sobre um veículo o ato da empresa se tratava de
estacionado na rua, esse um abuso de direito. Que tipo de
acontecimento será considerado: abuso de direito é caracterizado
a) negócio jurídico. pela conduta da empresa?
b) ato jurídico em sentido estrito. a) Venire contra factum proprium .
c) fato jurídico em sentido estrito. b) Tu quoque.
d) ato ilícito. c) Duty of m itigate the loss.
e) ato-fato jurídico. d) Surrectio.
3. Sobre os atos e fatos jurídicos, e) Su p ressio.
assinale a alternativa incorreta. 5. Classifica-se como ato-
a) O ato-fato independe da fato a seguinte ação:
vontade humana porque seu a) queda de uma árvore
suporte fático é retirado da lei. sobre um carro.
b) Os negócios jurídicos e b) descobrimento de um tesouro.
atos jurídicos em sentido c) assinatura de um contrato.
estrito se diferenciam pelo d) reconhecimento de paternidade.
domínio do sujeito sobre as e) morte.
consequências de seus atos.
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Leituras recomendadas
ATOS ilícitos e abuso de direito. Anotações de Direito, 2016. Disponível em : <https://
m edium .com /anota% C3% A7% C3% B5es-de-direito/atos-il% C3% AD citos-e-abuso -
-de-direito-2c1768add4f5>. Acesso em : 15 m aio 2018.
LUNARDI, F. C. A teoria do abuso de direito no Direito Civil Constitucional: novos
para- digm as para os contratos. Disponível em :
<http://w w w.buscalegis.ufsc.br/revistas/ files/anexos/31284-34889-1-PB.pdf>.
Acesso em : 15 m aio 2018.
STJ m antém indenização para pais e criança por acidente em escola. Consultor Jurídico,
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TARTUCE, F. Manual de Direito Civil: volume único. 7. ed. São Paulo: Forense, 2017.

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