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INTRODUÇÃO

Em meados do século XX, emergiu, no âmbito do saber humano, uma nova ma-
neira de pesquisar e compreender os fenômenos que a ciência estudava. Para se
aquilatar o significado dessa verdadeira revolução epistemológica basta recordar
que, desde a mais remota antiguidade até então, a Ciência procurava entender
os fenômenos naturais que investigava segundo um padrão que denominamos
causa à efeito, ou seja, partia-se de um fato ou evento natural (efeito) e procu-
rava-se o que o determinara (causa). Esse procedimento era universal e abrangia
não só a natureza física, mas também o comportamento dos seres vivos. É o que
se convencionou chamar pensamento cartesiano, por ter Descartes como seu
ícone e sua máxima “penso, logo existo” como divisa.
Com a evolução do conhecimento científico e dos instrumentos de avaliação
de que as ciências em geral passaram a dispor, houve um momento em que se
constatou que muitos fenômenos não se comportavam segundo a interpretação
simplista de que a cada efeito correspondia uma única e determinada causa. Isso
ocorreu a partir dos estudos que deram origem à física quântica e à teoria geral
dos sistemas vivos, sistemas esses que estão em permanentes trocas, influências
recíprocas e mutações, não se comportando, portanto, segundo as leis determi-
nísticas do padrão causa à efeito.
Essa mudança de perspectiva na forma de encarar o estudo da natureza
causou grande impacto no mundo científico, que até hoje não foi assimilado
por muitos cientistas que trabalham em disciplinas solidamente alicerçadas no
padrão determinista que pautou sua origem e desenvolvimento. Mas já não há
como dar seguimento à evolução do pensamento científico em qualquer área do
conhecimento humano sem levar em conta os subsídios desse novo enfoque, que
corresponde ao que denominamos padrão retroalimentação (ou feedback), que
questiona o determinismo cartesiano calcado na lógica causa à efeito.
Enquanto a ciência tradicional, cartesiana, isolava os fenômenos para po-
der estudá-los e acreditava que era examinando isoladamente as partes consti-

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tuintes da natureza que poderíamos entender seu comportamento no todo, a no-


va ciência, se assim a podemos denominar, foca a relação dessas partes entre si
para compreender o funcionamento do conjunto de que fazem parte.
Sumariamente, essa é a essência da mutação no pensamento científico que
deu origem ao que vamos referir como paradigma sistêmico-relacional. A práxis
interdisciplinar é a resultante desse paradigma que postula que só com a interação
das disciplinas criaremos um contexto capaz de levar o conhecimento científico
a transcender o plano bidimensional, linear, em que operou até agora. Metafo-
ricamente poderíamos dizer que é como acrescentar uma terceira dimensão ao
conhecimento, que nos permite visualizar os fenômenos, quer da natureza física,
quer da natureza humana, em uma perspectiva mais próxima da realidade com
que se nos apresentam.
Este livro pretende enfocar os microssistemas humanos (grupos em geral,
famílias, organizações) sob o influxo da visão neoparadigmática, enfatizando o
viés interdisciplinar com que nos aproximamos a seu estudo e sua abordagem.
Para tanto, foi organizado em blocos sequenciais, que vão abordar sucessi­
vamente os substratos teórico-conceituais sob os quais examinaremos os sistemas
humanos considerados, as particularidades desses sistemas e de nossa experiên-
cia ao longo de mais de quatro décadas trabalhando com grupos, casais, famí-
lias e empresas.
Ressalve-se que parte dos conteúdos deste livro já foi abordada em outros
livros do autor publicados pela Artmed Editora: Grupos: teorias e técnicas,* Ca-
sais e famílias: uma visão contemporânea,** Psicologia grupal*** e Grupoterapias:
abordagens atuais.****

*
OSORIO, L. C. Grupos: teorias e práticas: acessando a era da grupalidade. Porto Alegre: Artmed, 2000.
**
OSORIO, L. C. Casais e famílias: uma visão contemporânea. Porto alegre: Artmed, 2002.
***
OSORIO, L. C. Psicologia grupal: uma nova disciplina para o advento de uma nova era. Porto
alegre: Artmed, 2003.
****
OSORIO, L. C. Grupoterapias: abordagens atuais. Porto Alegre: Artmed, 2007.

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Parte I
FUNDAMENTOS

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O QUE SÃO SISTEMAS HUMANOS

O que distingue um conjunto de pessoas de um sistema humano?


Sistema humano é todo aquele conjunto de pessoas capazes de se reconhe-
cerem em sua singularidade, que exercem uma ação interativa e se influenciam
reciprocamente em busca de um objetivo compartilhado.
Sempre que nos referirmos a “grupo” ou “equipe” nesta obra, estaremos nos
reportando ao conceito externado anteriormente.
O conjunto de pessoas que viajam em um ônibus não constitui um grupo no
sentido aqui referido. Tal conjunto pode ter um objetivo compartilhado (chegar a
seu destino), mas essas pessoas não se reconhecem em sua singularidade, nem inte-
ragem coletivamente (se o fazem, é cada qual com seu vizinho de poltrona).
Agora, se o ônibus sofre um acidente, então podemos ter a constituição de um
grupo com um objetivo compartilhado, com interações em busca desse objetivo,
e os passageiros podendo se reconhecer em sua singularidade. Vamos exemplifi-
car começando por este último tópico: o acidente põe à mostra as peculiaridades
do funcionamento de cada indivíduo em sua inserção grupal. Assim, temos, por
exemplo, o corajoso altruísta (que arrisca a própria vida para salvar a dos demais
passageiros, tomando um extintor de incêndio e tentando apagar o fogo que se
inicia nas proximidades do tanque de combustível); o covarde egoísta, que foge
para o mato com medo que o ônibus pegue fogo; o provedor de ajuda, que pro-
cura atender e amparar os passageiros feridos; o buscador de ajuda, que vai pa-
ra a estrada deter outros carros e pedir socorro; o pragmático providenciador, que
sai em busca de um telefone para chamar a polícia rodoviária e solicitar uma am-
bulância; o que se deixa tomar pelo pânico e fica paralisado; o histérico, que se põe
aos gritos, não auxilia ninguém e ainda demanda ajuda, e assim por diante.
O grupo que se constitui visando ao atendimento dos acidentados inclui-
rá o médico, os enfermeiros e outros circunstantes que vierem prestar socorro,
embora exclua os que, por suas singularidades, se impedem de prestá-lo. Con-
sequentemente, do conjunto de pessoas que originalmente viajavam no ônibus,

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nem todas fazem parte do grupo ou sistema humano que se constitui em torno
da referente interação grupal com um determinado propósito compartilhado. Nesse
sentido, qualquer conjunto de pessoas será um sistema humano sempre e quan-
do preencher os critérios que o definem.
A configuração de um sistema humano é ainda função do número de par-
ticipantes, do tempo de convivência, do padrão das interações e de objetivos em
comum. Assim, dez pessoas, após alguns dias de interação estimulada, poderão se
conhecer em suas singularidades e, se tiverem um objetivo compartilhado, cons-
tituirão um sistema humano; mas se forem, por exemplo, 50 indivíduos, mesmo
que tenham um objetivo em comum, necessitarão de semanas, ou até meses, de
convívio para que todos interajam o suficiente para se conhecerem em suas sin-
gularidades e possam se tornar um sistema humano.
O conceito de sistemas humanos apresentado corresponde aos microssis-
temas. Reservamos a denominação macrossistemas às nações, às multinacionais,
aos organismos internacionais e às entidades políticas, religiosas, esportivas e ou-
tras similares, que, por seu gigantismo, precisam se subdividir em setores opera-
cionais para realizar seus propósitos.
Uma empresa, à medida que cresce e se expande, torna-se um macrossiste-
ma humano, necessitando criar departamentos para otimizar seu desempenho.
Cada setor, ou departamento, constitui-se em um microssistema ou uma célu-
la funcional do todo.

Os fenômenos e as leis do funcionamento dos microssistemas humanos são objeto de estudo da


disciplina que designamos como psicologia grupal (Osorio, 2003), enquanto a sociologia se ocupa
dos macrossistemas, e a psicologia individual, do que se passa na mente dos indivíduos que
compõem os sistemas humanos.

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