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Fontes de fonte  adaptado de vanzolini & williams, 1970 e Haffer, 2002  ilustração abiuro

diversidade
Áreas de especiação

Refúgios (proposta do zoólogo brasileiro)

Refúgios (proposta do geólogo alemão)

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_ A MBIENTE

O fôlego de
uma teoria
Um lagarto da Amazônia estudado por
Vanzolini reforçou a proposta de geólogo
alemão sobre refúgios florestais

Eduardo Geraque

E
laborada há mais de 40 anos pelo geólogo alemão
Jürgen Haffer e indiretamente pelo zoólogo brasilei-
ro e sambista Paulo Vanzolini, a Teoria dos Refúgios,
que associa a diversidade biológica na Amazônia aos
períodos de clima seco e isolamento geográfico,  aca-
bou declarada como morta várias vezes ao longo destes anos
por vários outros pesquisadores. Mas, como diz a música do
próprio Vanzolini, ela deu a volta por cima e, com um certo
grau de atualização, é considerada válida por vários grupos de
pesquisa, não apenas para explicar o surgimento de espécies
na Amazônia, mas também na floresta atlântica, onde tem
sido aplicada.
Instalado em sua poltrona favorita na sala de seu sobrado
em uma antiga vila do bairro da Aclimação, zona sul de São
Paulo, Vanzolini, aos 88 anos, afirma que não fez teoria ne-
nhuma: “Era apenas um trabalho com uma espécie de bicho.
O que fiz acabou sendo trazer um exemplo prático, daquilo
que o Haffer havia proposto do ponto de vista teórico. Nada

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mais é do que um modelo [conceitual], das e razoavelmente regionais. É claro
que pode ser replicado, inclusive, para que extensas áreas de floresta pluvial,
outras regiões”. Em, 1970, um ano depois que é muito antiga, sempre existiram
de a revista Science ter publicado o artigo Teoria explica na Amazônia”.
de Haffer propondo a teoria, Vanzolini Nos últimos anos, estudos realizados
e o pesquisador norte-americano Er- a grande por grupos de pesquisa de São Paulo
nest Williams publicaram um estudo de sobre o surgimento de novas espécies
cerca de 300 páginas sobre o surgimen-
biodiversidade na mata atlântica ajudaram a reforçar
to de uma espécie de lagarto do gênero da floresta a importância do modelo teórico pro-
Anolis – e em momento algum usaram a posto no final dos anos 1960. Pelo me-
expressão Teoria dos Refúgios. amazônica nos a ideia de Vanzolini e do seu colega
Geólogo que havia estudado a distri- alemão ainda pode ser considerada vá-
buição geográfica das aves amazônicas, como resultado lida ou, no mínimo, é interessante para
Haffer teorizava que as mudanças na suscitar o debate.
vegetação seguiram reversões climáticas
de instabilidades Depois de trocarem correspondência
em virtude dos ciclos naturais duran- climáticas há sobre seus estudos por volta de 1970, eles
te algum período da história da Terra, ficaram amigos. Vanzolini gosta de dizer
causando fragmentação dos centros de milhões de anos que Haffer mostrou generosidade, além
origem das espécies e o isolamento de de ser um cientista de primeiro time. “E,
parte das respectivas biotas em refúgios como bom alemão, gostava muito de cer-
ecológicos separados entre si. Na prá- veja”, diz. Vanzolini conta que recebeu o
tica, o implacável curso das mudanças artigo do cientista alemão pelo correio
climáticas teria pulverizado zonas com quando seu artigo com Williams estava
floresta por áreas da Amazônia. Essas pronto. “Ernest, acharam que passaram a
manchas, separadas por zonas sem ve- perna na gente”, disse Vanzolini, quando
getação serviram de palco para novas es- leu a publicação. Em pouco tempo, Van-
pécies e subespécies se desenvolverem. zolini fez contato com Haffer, que ime-
É provável que três processos tenham diatamente abandonou uma pesquisa de
ocorrido nestas regiões: a especiação ou campo na África do Sul e veio ao Brasil
formação de novas espécies, a extinção para conhecer em detalhes os refúgios
de certas espécies e a adaptação de ou- dos lagartos de Vanzolini.
tras, que teriam passado sem mudanças

N
genéticas importantes pelas alterações ovos tempos e estudos seguem
do ecossistema. mais ou menos o mesmo cami-
nho. Em um artigo sobre saúvas
Manchas menos definidas na Amazônia publicado em 2008 na re-
Haffer, em uma entrevista que me con- vista PLoS One, cientistas brasileiros e
cedeu em 2005 para uma reportagem norte-americanos propuseram uma es-
no jornal Folha de S.Paulo, defendeu a pécie de reconsideração da teoria dos
Teoria dos Refúgios, mas não deixou refúgios. Na Amazônia, segundo Mau-
de propor algumas correções de rota rício Bacci Jr., bioquímico da Univer-
para o seu trabalho: “É provável que o sidade Estadual Paulista em Rio Claro,
tamanho dessas manchas de floresta a grande explosão de diversidade das
úmida durante os períodos secos fosse formigas ocorreu mesmo com a barreira
maior e bem menos definido do que é geográfica imposta no momento em que
mostrado em muitos mapas que ilustram os rios da região estavam em formação.
a localização dos refúgios na floresta Segundo ele, a superdiversificação de
pluvial tropical”. Haffer morreu em 2010, espécies de saúvas seria algo recente,
aos 77 anos. ocorrida por volta de 2 milhões de anos
Uma das críticas feitas ao longo dos atrás. Entre os rios da região, é possível
anos contra as propostas de Haffer e de que os ninhos de saúva tenham se des-
Vanzolini é exatamente sobre a locali- locado boiando, sobre plantas.
zação dessas tais áreas secas da Ama- As análises genéticas indicaram que,
zônia, que nunca teriam sido realmen- Anolis chrysolepis, além da Teoria dos Refúgios, outro pro-
te registradas. Haffer diz que, ao longo espécie em cesso importante – e anterior – de mu-
que Vanzolini
dos anos, muitas interpretações erradas dança na paisagem amazônica foi de-
se baseou para
foram feitas sobre a ideia dos refúgios: entender a terminante para a diversificação das
“Nossos dados indicam alterações cli- especiação na formigas na região. Há 15 milhões de
máticas pelo menos em áreas localiza- Amazônia anos, antes de o rio Amazonas se for-

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centro, novas áreas secas surgiram. Elas
passaram a ficar florestadas por mais
tempo e, neste caso, a colonização por
parte das espécies também começou a
ocorrer nessas regiões. É mais ou menos
como Vanzolini e Haffer pensaram para
a questão da especiação que ocorreu na
região amazônica.
Independentemente de o modelo pro-
posto ser 100% válido, está claro que de-
finições como fragmentos, isolamentos,
alterações climáticas e estabilidade am-
biental estão sempre envolvidas com
o desenvolvimento de novas espécies.
O que significa dizer que o debate le-
vantado pelos refúgios passa a ser mais
atual do que nunca. Como as atividades
antrópicas estão aumentando a velocida-
de das mudanças climáticas e, também,
diminuindo a área florestada em várias
regiões do mundo, é provável que exista
um processo, até certo ponto oculto, con-
Aos 88 anos, tra a especiação também em curso. Os
Paulo Vanzolini resultados disso ainda são imprevisíveis.
está pessimista
Esses temas como mudança climáti-
quanto à
preservação da ca e extinção da biodiversidade deixam
Amazônia Vanzolini bastante pessimista com a pre-
servação do ambiente amazônico, que
mar, o aumento do nível dos oceanos fez A hipótese dos refúgios para a flores- ele conheceu tão bem em expedições
as águas marinhas invadirem a região, ta atlântica ganhou forma com base na quase anuais, durante décadas – cada
o que, para os cientistas, teria iniciado avaliação de dados genéticos de duas vez ele ficava por lá no mínimo três me-
o isolamento de certas áreas amazôni- espécies de rãs. O estudo de filogeogra- ses. “A Amazônia acabou”, diz ele. “Tem
cas, que viraram ver- fia (mapeamento das muita soja e gado por lá. O povo amazô-
dadeiras ilhas. A frag- diversidades genéti- nico, que precisa sobreviver, também é
mentação do ambien- cas de uma espécie o maior interessado em que essas ati-
te, depois, teria então ao longo do tempo) vidades econômicas entrem cada vez
sido realçada pelos indica que realmen- mais por lá.” n
refúgios. De acordo te algumas áreas da
com esse trabalho, a Modelo proposto mata permaneceram
Artigos científicos
grande diversificação florestadas e mais ou
de espécies de formi-
também é menos estáveis do 1. HAFFER, J. e PRANCE, G. T. Impulsos climáticos da
gas ocorreu entre 14 válido para a ponto vista climá- evolução na Amazônia durante o Cenozoico: sobre
milhões e 8 milhões tico por milhões de a Teoria dos Refúgios da diferenciação biótica,

de anos atrás. evolução anos. Nesses locais,


Estudos Avançados. v. 16, n. 46, 2002.

O modelo de áreas não houve grandes 2. SCHULTZ T. R. e BRADY, S.G. Major evolutionary

isoladas durante certo observada em secas, nem épocas de


transitions in ant agriculture. Proceedings of the
National Academy of Sciences of the USA. Early
desenho  estraído do artigo vanzolini & williams, 1970 foto  léo ramos

tempo proposto para frio excessivo. O nível


a Amazônia, guarda-
outras regiões, do oceano, também,
Edition (March 24), 2008.

3. VANZOLINI, P. E. e WILLIAMS, E. E. South American


das as devidas propor­ como a mata não registrou grandes anoles: the geographic differentiation and evolution
ções, pode ajudar a oscilações. of the Anolis chrysolepis species group (Sauria,

explicar muito o por- atlântica Ao longo dos úl-


Iguanidae). Arq. Zool. v.19, n. 1-2, p. 1-176, 1970.

quê de a mata atlân- timos 12 milhões de


tica ser tão diversifi- anos, vários refúgios De nosso arquivo
cada. A ecóloga Cinthia Brasileiro, da existiram em regiões geográficas dife- A obra de uma vida
Universidade Federal de São Paulo (Uni- rentes do litoral brasileiro, portanto. Edição nº 175 – setembro de 2010
fesp), defende que vários centros de es- No caso do litoral paulista, é provável Refúgios abalados
peciação, verdadeiros núcleos de fabri- que uma área tenha se formado entre Edição nº 129 – novembro de 2006
car espécies, devem ter existido entre a São Sebastião e Cananeia. Quando, por Um tesouro à beira do Velho Chico
Bahia e São Paulo. exemplo, o mar desceu ao redor desse Edição nº 57 – setembro de 2000

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