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Resumo:

Direito Penal Brasileiro - I (Capítulos I, II, e IV)

Zaffaroni et al.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro.
Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria Geral do Direito Penal. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2011. Caps. I, II e IV.

CAPÍTULO I: DIREITO PENAL E PODER PUNITIVO

§ 1. Teoria do direito penal


I. Definição: direito penal e poder punitivo
O uso da expressão direito penal é equívoco, pois confunde a lei penal (objeto do saber
do direito penal e um ato político) com o próprio direito penal (discurso dos juristas), e, por
conseguinte, confunde direito penal com poder punitivo.
Assim como a expressão direito criminal, direito penal também abarca as medidas (de
segurança), uma vez que essas também são penas.
Para Zaffaroni et al., o direito penal deve responder a três perguntas: a) o que é o direito
penal? (teoria do direito penal); b) sob quais pressupostos pode ser requerida a aplicação da
pena? (teoria do delito); e c) como a agência judicial correspondente deve responder a esse
requerimento? (teoria da responsabilidade penal).
Por fim, o define como o ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis
penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder
punitivo, para impulsionar o progresso do estado constitucional de direito.

II. Elementos da definição


Esse ramo do saber jurídico ou dos juristas, visa a orientar as decisões judiciais, e
assim o faz na forma de sistema, construído a partir da interpretação das leis penais. Estas se
diferenciam das demais na medida em que instituem penas. O conceito de pena, por sua vez,
necessário para delimitar o direito penal, deve abarcar tanto as penas lícitas quanto as
ilícitas, para que seja possível distinguir o poder punitivo lícito do ilícito.
O objeto desse sistema orientador deve ser conter e reduzir o poder punitivo e assim
impulsionar o estado de direito, uma vez que um poder punitivo desenfreado é típico de um
estado de polícia.
Há que se considerar que o poder punitivo não resolve os conflitos, mas apenas
suspende-os, porquanto deixa a vítima fora do processo.
Também há que se distinguir o direito penal histórico (diacrônico) do direito penal atual
(sincrônico), que não são antagônicos, representando apenas duas visões temporais de um
mesmo processo do conhecimento. Por eles, é possível entender seus progressos e suas
regressões, percebendo o direito penal como um processo histórico conflitivo.

§ 2. O poder punitivo
I. Criminalização primária e secundária
A criminalização primária se dá com a elaboração de leis penais que incriminam ou
permitem a punição de certas pessoas, enquanto a criminalização secundária é a ação exercida
sobre pessoas concretas, desde a descoberta do delito, com a atuação das agências policiais,
passando pelas agências judiciais, às agências penitenciárias.

II. A orientação seletiva da criminalização secundária


A criminalização primária é demasiado abrangente frente à capacidade das agências de
criminalização secundária. Com efeito, a disparidade entre a quantidade de delitos que
realmente acontecem e a quantidade que chega ao conhecimento dessas agências (cifra oculta
da criminalidade) é sempre enorme. “Em qualquer sistema penal do mundo, a impunidade é
sempre a regra e a criminalização secundária a exceção”.
Assim, a natural deficiência das agências de controle obriga-as a selecionar as pessoas
criminalizadas e vitimazadas, ou senão nada fariam. Nessa seleção, são fortemente
influenciadas pelos critérios de outras agências, como as de comunicação social, as políticas
etc., chamadas empresários morais. Consequentemente, essa seleção acaba recaindo sobre: a)
fatos grosseiros (obra tosca da criminalidade); e b) pessoas que causam menos problemas, por
sua incapacidade de acesso ao poder político e econômico ou à comunicação de massa;
resultando na violação do princípio da isonomia.

III. Seletividade e vulnerabilidade


Os delitos grosseiros são divulgados pelas agências de comunicação como os únicos
delitos e seus autores como os únicos delinquentes, contribuindo para a formação de uma
imagem pública destes baseada em preconceitos de classe, etnia etc., reforçando os estereótipos,
os quais se tornam o principal critério seletivo para a criminalização secundária, condicionando
todo o funcionamento do sistema penal, tornando-o inoperante para as demais clientelas, como
nos casos de crimes do poder econômico e delitos excepcionais em que o autor não se enquadra
nos padrões do estereótipo.
Algumas pessoas são mais vulneráveis à criminalização secundária, porque: a)
enquadram-se nos estereótipos criminais; b) por sua educação, somente conseguem cometer
delitos toscos; e c) a etiquetagem faz com que assumam para si o papel correspondente ao
estereótipo (profecia que se autorrealiza).
Todavia, é preciso não incorrer no erro de se creditar as causas desse tipo de
criminalidade alvo das agências de controle secundário à falta de educação, pobreza etc., uma
vez que estes são, na verdade, fatores condicionantes da criminalização (e não do delito).

IV. O poder das agências de criminalização secundária


Os casos que chegam ao conhecimento das agências policiais são ínfimos em relação à
totalidade de delitos realmente cometidos. As agências judiciais, a seu turno, limitam-se a
resolver os delitos já selecionados, restando às agências penitenciárias recolher um número
ainda menor de pessoas que passaram pelo crivo das agências anteriores. Por esse motivo,
afirmam Zaffaroni et al. que “o poder das agências do sistema penal é pouco significativo
no quadro completo do controle social”.
Por outro lado, sob a justificativa do exercício do controle social, são dados a essas
agências um poder muito maior de interferir na liberdade e na intimidade da população, com
interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário, detenção arbitrária de suspeitos etc.,
medidas que, segundo o autor, revelam o seu verdadeiro poder: um “poder configurador
positivo da vida social”, um “poder político do sistema penal”.
Tal poder é um poder legal, o que, contudo, não impede a existência de atuações
paralelas, definidas como ilegais por parte das agências, fazendo com que elas próprias incidam
em atos abarcados pela criminalização primária: é o que se chama de sistema penal
subterrâneo.

V. Seleção vitimizante
Não só a criminalização é seletiva, mas também a vitimização. A vitimização primária
ocorre nos casos em que uma situação de poder exercido contra um grupo deixa de ser
considerada normal e há uma renormatização no sentido de criminalizá-la, fazendo com que a
parte subjugada dessa relação de poder adquira status de vítima1.
A vitimização secundária (ou seja, as vítimas reais de fatos criminalizados
primariamente), porém, também passa por um processo de seleção proporcional à

1
Por exemplo, a Lei Maria da Penha. Com as conquistas de direitos pelas mulheres, a relação de subjugação
feminina pelo homem deixou de ser encarada como normal.
vulnerabilidade ao delito. Desse modo, aqueles com condições de sustentar uma segurança
privada são menos propensos a ser vítimas. Na verdade, as próprias agências de segurança
pública passam a direcionar seus esforços de proteção aos mais ricos, devido a sua maior
capacidade de reivindicação comunicacional.
Por conseguinte, as classes mais desfavorecidas, além de mais criminalizadas também
são mais vitimizadas. Ademais, a vulnerabilidade vitimizante também é maior segundo critérios
de gênero, de raça, de faixa etária, de etnia etc.

VI. Seleção policizante


A policização diz respeito ao processo de escolha, treinamento e condicionamento
estrutural dos quadros das agências policiais. Assim como a criminalização, a policização
também é seletiva e recai quase sempre sobre indivíduos pertencentes às mesmas classes
criminalizadas, particularmente vulneráveis em razão dos índices de desemprego.
Geralmente os agentes policiais são mal remunerados, fazendo com que se abra espaço
ao surgimento de práticas subterrâneas para suprir a ineficiência do salário estatal, o que,
consequentemente desgasta sua imagem frente à opinião pública.
Desse modo, cria-se também um estereótipo policial, vistos como corruptos, incultos,
brutos, pouco confiáveis etc., situação que, da mesma maneira que a criminalização e a
vitimização, é seletiva e violadora dos direitos humanos.

VII. A imagem bélica e sua função política


O exercício do poder punitivo é atualmente assimilado como uma guerra contra a
criminalidade e os criminosos. Considerando que os atores dessa guerra (os criminalizados, os
vitimizados e os policizados) advêm do mesmo estrato social, o que ocorre, na verdade, é a auto
aniquilação dos mais pobres.
A perspectiva bélica legitima a atuação ilegal das agências policiais: se o inimigo não
joga limpo, o estado não está obrigado a respeitar as leis da guerra (guerra suja). À semelhança
da ideologia da segurança nacional, nos tempos da ditadura, ergue-se hoje uma ideologia da
segurança cidadã, que constitui “uma das mais graves ameaças ao estado de direito
contemporâneo” e que pode conduzir a uma “ditadura da segurança urbana”, com a prevalência
do estado de polícia.

§ 3. Os sistemas penais e o poder dos juristas


I. Sistema penal
O sistema penal é o conjunto das agências que operam a criminalização (primária e
secundária) ou que convergem na sua produção. Em cada sistema penal devem ser observadas
as agências: a) políticas; b) judiciais; c) policiais; d) penitenciárias; e) de comunicação social;
f) de reprodução ideológica (universidades etc.); e f) as internacionais.
Zaffaroni et al. advertem que não se pode esperar uma cooperação harmônica entre elas,
pelo contrário, a competição entre si e dentro de suas próprias estruturas é predominante.

II. O poder dos juristas e o direito penal


O poder não é algo que se tem, mas que exerce, e possui duas manifestações, a
discursiva (ou de legitimação) e a direta. Os juristas (penalistas) exercem tradicionalmente o
poder discursivo de legitimação do âmbito punitivo, por meio das agências de reprodução
ideológica, mas muito pouco poder direto, que está a cargo de outras agências. Para cumprir
funções no exercício direto de poder, constroem uma teoria jurídica (ciência do direito penal,
ou direito penal), elaborada sobre o material básico composto dos atos de criminalização
primária e secundária, que vai orientar as decisões jurídicas (que fazem parte do processo de
criminalização secundária). Por esse motivo, afirma o autor que o direito penal é um discurso.
Mas também é uma programação, pois projeta um exercício de poder (o dos juristas),
por meio do método dogmático, “construído racionalmente, partindo do material legal, a fim de
proporcionar aos juízes critérios não contraditórios e previsíveis de decisão dos casos
concretos”. Para ser efetivo e congruente com o estado de direito, afirmam Zaffaroni et al., o
método dogmático deve necessariamente incorporar dados da realidade (ser) e não se isolar no
dever-ser, como se esse fosse mais “puro” que o ser.

III - O direito penal e os dados sociais


A construção do direito penal deve levar em conta o comportamento real das pessoas,
suas motivações, relações sociais etc., de forma que ele depende de dados sociais, embora não
deva ser limitado a eles, como se tudo no direito penal fosse sociologia (reducionismo
sociológico).
Porém, o que a dogmática tradicional historicamente tem feito, em sua tentativa de
“purificar” o direito, foi ignorá-los, tarefa que é impossível e que acaba contribuindo para a
utilização de dados sociais falsos no direito penal, além de promover a subordinação do poder
judiciário ao legislativo.
O afastamento das ciências aptas a constatar a verdade dos dados sociais utilizados,
como a sociologia, faz com que o direito penal se valha, em sua praxis, de assertivas não
submetidas a verificação científica (“a pena dissuade”, “o usuário de drogas se converte em
delinquente”, “a impunidade é a causa da violência”). Por outro lado, afasta os dados sociais
verdadeiros argumentando intromissão de uma ciência do ser no campo de uma ciência do dever
ser. Para os autores, “esta é a melhor prova do erro metodológico que consiste em inventar
dados sociais falsos como próprios do saber jurídico e refutar dados sociais verdadeiros
argumentando que são sociológicos, recurso que conduz o juiz a subordinar-se definitivamente
a qualquer invenção arbitrária do mundo que faça um legislador iludido ou alucinado”.
Zaffaroni et al. apontam dois principais dados falsos assimilados pelo erro metodológico
acima transcrito: a) a suposta realização natural da criminalização secundária (que oculta seu
mecanismo seletivo de filtragem); e b) a partir dela, a ilusão de sua capacidade para resolver os
mais complexos problemas e conflitos sociais (o discurso jurídico-penal não pode assumir a
existência da seletividade, pois não pode compatibilizá-lo com a premissa da igualdade perante
a lei prevista no estado de direito).

IV. Sistemas penais paralelos e subterrâneos


A verdadeira dimensão política do poder punitivo está no poder configurador-
positivo da vigilância e não no exercício repressivo-seletivo da criminalização secundária,
de modo que a atenção centrada ao discurso do sistema penal formal deixa de lado grande parte
do poder punitivo exercido por outras agências, com funções manifestamente bem diversas,
mas cuja função latente de controle social não é diferente da penal, sob o ângulo das ciências
sociais.
Os sistemas penais paralelos atuam, então, fora da extensão do direito penal, mas,
muitas vezes, são por ele legitimados (embora com o timbre de “alheios ao direito penal”). São
exemplos as federações desportivas que banem um atleta da prática de determinado esporte por
ele recorrer à justiça comum, as autoridades assistenciais que decidem a institucionalização dos
pobres urbanos etc. Tais sistemas põem em cheque a proclamação do monopólio do poder
punitivo do estado.
Já os sistemas penais subterrâneos dizem respeito às atuações das próprias agências
executivas quando adotam práticas ilegais no exercício de seu poder discricionário, como no
caso de formação de grupos de extermínio e paraoficiais (Ku-Klux-Klan), de aplicação de
tortura etc.

V. A construção do discurso jurídico-penal e seu poder


O discurso jurídico-penal aceita a naturalidade da criminalização secundária, criando
uma sociologia própria, e desconsiderando as limitações do poder jurídico dos operadores aos
quais se dirige programaticamente. Como resultado, ao legitimar todo o poder punitivo,
reduz progressivamente o próprio poder jurídico (o poder das agências judiciais).
O discurso penal está, então, se debilitando e ampliando sua distância em relação às
ciências sociais, de modo que não atende mais de maneira satisfatória às exigências de uma
sociedade cada vez mais complexa. Diante dessa lacuna, dá-se lugar às perspectivas simplistas
e bélicas das agências de comunicação, por ele muitas vezes incorporadas.

VI. Opções construtivas básicas


Zaffaroni et al. terminam o capítulo perguntando qual tipo de direito penal queremos
construir - um que naturaliza a criminalização secundária, se baseia em dados sociais falsos e
legitima discursivamente o exercício do poder punitivo por todas as agências do sistema, ou um
que reconhece as limitações das funções da pena, reconhece a seletividade e os sistemas
paralelos e subterrâneos e que limita a legitimação do poder conferido às agências -
apresentando razões éticas, científicas, políticas e pragmáticas para a escolha do segundo
modelo.

CAPÍTULO II - PENA E HORIZONTE DE PROJEÇÃO DO DIREITO PENAL

§ 4. O horizonte como condicionante da compreensão


I. Funções punitivas manifestas e latentes
Existem dispositivos de poder que intervêm nos conflitos como solução ou mera
decisão. Os principais modelos decisórios são a) o reparador, b) o conciliador, c) o corretivo,
d) o terapêutico e e) o punitivo. Ao contrário dos demais modelos, o punitivo não resolve o
conflito, mas o suspende, deixando que a própria dinâmica social o dissolva no tempo.
O poder estatal concede às suas instituições funções manifestas (declaradas e públicas),
por uma necessidade republicana de transparência e racionalização. Todavia, na prática, tais
funções nem sempre correspondem a sua previsão inicial, o que constitui a função latente ou
real do poder estatal2.

2
Ex.: A função manifesta da pena privativa de liberdade é ressocializar o condenado. Suas funções latentes,
entretanto, são outras, como o controle social da população marginalizada etc.
II. Leis penais manifestas, latentes e eventuais
As leis penais manifestas são aquelas que orientam as funções manifestas propriamente
penais das agências estatais. As leis penais latentes são aquelas que não possuem função
punitiva manifesta, mas, na prática, acabam exercendo-a. As leis penais eventuais são aquelas
que não possuem função punitiva manifesta nem latente, mas, eventualmente, acabam por
exercê-la (como por exemplo o exercício do poder psiquiátrico, do poder assistencial
concernente aos velhos etc.).

III. O problemático horizonte de projeção do direito penal


O horizonte de projeção do direito penal é limitado pelo conceito e pelo que se atribui
como as funções da pena, o que é notadamente problemático, tendo em vista a ausência de
consenso teórico e político a respeito destes.
Porém, sabe-se que o paradigma causal da pena (conceito mecânico neutralizador) já foi
superado com a derrocada da física newtoniana (ação e reação), que consequentemente
implicou a queda do positivismo filosófico.

IV. Direito penal e modelo de estado de polícia


Diversas teorias se debruçaram sobre o conceito de pena, diferenciando-as das outras
formas de coerção estatal. Para todas elas, a pena cumpre uma função positiva (representam um
bem para alguém) e racional: a função mais difundida ultimamente é a simbólica. De cada
teoria positiva da pena, pode-se derivar uma teoria do direito penal.
Para precisar o conceito de pena, é preciso examinar a função política do direito penal,
o que remete aos conceitos de estado de polícia e estado de direito. O primeiro é aquele regido
pelas decisões do governante (a submissão à lei é sinônimo de obediência ao governo) e no qual
um grupo hegemônico encarna o saber do que é bom ou possível. O segundo é regido pelas
decisões da maioria, que decide o bom e o possível respeitando os direitos das minorias. O
primeiro tende a uma justiça substancialista, a um direito transpersonalista e a uma política
paternalista. O segundo tende a uma justiça procedimentalista, a um direito personalista e a uma
política fraterna. Ambos os modelos, porém, são ideais, e existem em maior ou menor escala
em qualquer estado, em permanente conflito. Em todo estado de direito ocorrem progressos e
retrocessos em relação ao estado de polícia.
O exercício do poder punitivo identifica-se como uma fração do estado de polícia que
existe dentro do estado de direito. Mesmo o direito penal liberal, que busca impor maiores
limites ao poder punitivo, contém elementos do estado de polícia, sendo, inclusive mais
contraditórios do ponto de vista de sua coerência interna que as variantes que assumem funções
manifestas claramente policiais (direito penal autoritário). Não obstante, ele é preferível aos
outros.
Zaffaroni et al. afirmam ser muito mais transparente renunciar, então, a qualquer teoria
positiva da pena, porque a) todas elas de algum modo legitimam o estado de polícia, b) suas
funções positivas são falsas do ponto de vista das ciências sociais, c) todas elas ocultam o modo
real do exercício do poder punitivo e com isso o legitimam e d) suas funções manifestas só são
cumpridas ocasionalmente.

§ 5. Direito penal e modelo de estado de direito


I. Delimitação do horizonte por uma teoria negativa da pena
As teorias positivas da pena deixam de fora do direito penal toda coerção estatal que é
pena, mas que foge de sua função atribuída. Além disso, como é “positiva”, autoriza o estado a
utilizá-la indiscriminadamente. Todas elas, porém, são um fracasso, pois suas funções
manifestas são impossíveis ou não generalizáveis.
Para superar as teorias positivas, e, consequentemente, os modelos de direito penal delas
decorrentes, Zaffaroni et al. propõem uma teoria negativa ou agnóstica da pena. Por ela, o
conceito de pena é negativo pois a) não concede qualquer função positiva à pena e b) é obtido
por exclusão (não tem função reparadora, restitutiva nem é coerção administrativa direta). E é
agnóstico pois admite não conhecer sua própria função.

II. Pena, coerção reparadora ou restitutiva e coerção direta


É preciso diferir a pena de outras duas formas de coerção estatal, a reparadora ou
restitutiva e a coerção direta.
O modelo reparador restitutivo é dominante no direito privado e implica a solução dos
conflitos, enquanto a pena, por subtrair a vítima, resume-se à decisão dos conflitos,
suspendendo-o no tempo. A supervalorização da pena pelo estado, em vez de resolver os
conflitos e melhorar a convivência, amplia os atos unilaterais de poder, deteriora a coexistência
e abre brechas ao estado de polícia.
A coerção direta, por sua vez, é a que mais se aproxima da pena, e é empregada ante
um iminente perigo de lesão, ou porque urge interromper uma que se acha em curso. Seu
pressuposto é a mera existência do perigo. Sua utilização aproxima-se muito, portanto, do
chamado perigo abstrato do direito penal (perigo de perigo).
Disso decorre que parte do poder punitivo atribuído às agências judiciais, muitas vezes,
não passa de coerção direta. Todavia, esses dois conceitos (coerção direta e poder punitivo) não
devem ser confundidos. Quando um agente policial intervém para impedir a prática de um
delito, trata-se de uma coerção direta. Cessado o deleito ou o perigo, qualquer intervenção passa
a ser punitiva.
A coerção direta pode ser instantânea, como no caso descrito acima, ou diferida, a qual
prolonga-se no tempo em razão do tipo de delito (como o terrorismo), sendo que esta última é
mais problemática.
A crescente utilização de instrumentos de coerção direta diferida como formas de
punição - como o funcionário delinquente (agente infiltrado) e o participante delator
(arrependido) -, que muitas vezes têm espaço na legislação penal, são exemplos do ardil do
estado de polícia para reduzir o estado de direito.
As legislações que habilitam as coerções diretas diferidas caracterizam-se como
eventualmente penais, pois sempre há a possibilidade de que sejam utilizadas no caso concreto
como pena (como exemplo a prisão preventiva).
O que se deve ter em mente, sempre, é que, cessada lesão ou o risco de lesão, qualquer
interferência do estado é punição e não coerção direta.

III. Elementos orientadores e teoria negativa da pena: o direito penal como provedor
de segurança jurídica
O direito penal tem como tarefa legitimar “a única coisa que realmente pode programar:
as decisões das agências jurídicas”. Estas, por sua vez, devem agir limitando e contendo as
manifestações de poder próprias do estado de polícia para assim serem legítimas. Trata-se de
um ramo do direito que programa um exercício de poder (de contenção das manifestações do
estado de polícia) que se legitima à medida que sofreia o exercício de outro poder (o poder
punitivo). Zaffaroni et al. o comparam, no plano internacional, com o direito humanitário.
Ambos visam conter o exercício de poderes não-legitimados (o poder punitivo e a guerra), mas
sabem que não podem eliminá-los.
Como programação limitadora do poder punitivo, o direito penal cumpre uma função
de segurança jurídica dos bens jurídicos individuais e coletivos de todos os habitantes à medida
que neutraliza os elementos do estado de polícia contidos no estado de direito. Não tutela,
portanto, os bens jurídicos da vítima, uma vez que a exclui do conflito, nem de eventuais vítimas
futuras imaginárias, mas sim o de todos habitantes.
IV. Possíveis argumentos exegéticos contra a teoria negativa
Para Zaffaroni et al. argumentações contrárias à teoria negativa que se baseiam na
legislação posta não constituem uma crítica positivista, mas sim exegética, de modo que
alegações como a de que “a pena cumpre uma função retributiva e preventiva, pois assim prevê
o Código Penal” deve ser respondida com a afirmação de que o direito penal não se encerra nos
códigos e que, se há avanços das outras ciências demonstrando a impossibilidade de
cumprimento das metas traçadas nos códigos, deve-se proceder com uma interpretação
progressiva de tais normas.

Excursus: Modelos de discursos legitimantes do poder punitivo


§ 6. Referências às principais teorias

I. Necessidade de sua menção


Para Zaffaroni, é preciso mencionar os discursos legitimantes do poder punitivo porque
eles continuam em vigência, mas não são enunciados de forma pura, conforme as teorias que
os conceberam. As diferenças entre eles são significativas, mas a prática os tem misturado de
maneira irresponsável, dando azo a uma pluralidade de discursos que possibilitam
“racionalizar” qualquer decisão: o operador escolhe primeiro a decisão e depois seleciona, entre
os discursos disponíveis, o que mais se adequa a ela (prática tópica).
Todos esses discursos, porém, têm em comum uma função geral de defesa social (a
pena funciona para, de algum modo, defender a sociedade), característica essa que contribui
para racionalizar a exclusão da vítima do modelo punitivo (protege-se uma coletividade abstrata
e não a vítima).
Quadro geral das teorias de legitimação da pena:
a) teorias absolutas (Kant): as penas têm uma função de retribuição para garantir
externamente a prevalência de valores éticos, e são aplicadas quando uma ação contradiz esses
valores, infligindo um sofrimento equivalente ao sofrimento produzido.
b) teorias da prevenção geral negativa (Feuerbach e Romagnosi): as penas têm uma
função de dissuasão (da coletividade) para assegurar os bens jurídicos das prováveis futuras
vítimas, em perigo pelo risco da imitação da ação que lesou os direitos da vítima, e a punição
deve se dar na medida da injustiça e da culpabilidade pelo ato.
c) teorias da prevenção geral positiva (Welzel): as penas têm a função de reforçar
simbolicamente internalizações valorativas do não delinquente para conservar e fortalecer os
valores ético-sociais em face de ações que lesionam bens ou agridem tais valores, e devem ser
aplicadas na medida necessária para obter esse reforço.
d) teorias da prevenção especial negativa (Garofalo): a pena tem uma função de
eliminação ou neutralização física do delinquente para conservar a sociedade (vista como um
organismo), atingida por uma pessoa biopsicossocialmente inferior, e deve ser aplicada na
medida necessária para neutralizar o perigo.
e) teorias da prevenção especial positiva (Ferri, von Liszt, Ancel): a pena tem a função
de reparar a inferioridade perigosa da pessoa para impedi-la de praticar as mesmas ações
diante dos mesmos conflitos, e deve ser aplicada na medida necessária para ressocializá-la,
repersonalizá-la, reeducá-la, reinseri-la etc. (teorias re).

II. A função de prevenção geral negativa


A prevenção geral negativa pretende obter com a pena a dissuasão dos que não
delinquiram e podem se sentir tentados a fazê-lo. Parte, portanto, de uma concepção mecânico-
racional do homem, copiada de um modelo econômico, enxergando o infrator como um sujeito
racional capaz de avaliar e escolher como agir, com base nos custos e benefícios que decorrerão
de sua ação.
Contudo, quando se observa o grosso da atividade criminalizada, em sua maioria delitos
patrimoniais cometidos por pessoas socialmente vulneráveis, percebe-se que a dissuasão
também seria seletiva. Mesmo dentro dos grupos socialmente vulneráveis, haveria uma outra
seleção: ao serem punidos apenas aqueles efetivamente capturados pelo estado, geralmente
autores de obras toscas, a dissuasão, na verdade, estimula os demais a se aperfeiçoarem no
cometimento do delito. Por essa perspectiva, a prevenção geral negativa não teria efeito
propriamente dissuasivo, mas propulsor de maior elaboração delituosa.
Com efeito, as únicas experiências comprovadas de eficiência da prevenção geral
negativa ocorrem com a aplicação de penas cruéis e indiscriminadas, próprias de um estado de
terror, prática que, entretanto, aniquila as liberdades sociais e neutraliza as agências judiciais,
sendo incompatíveis com o estado de direito.
Eventualmente, principalmente em delitos de menor gravidade, o temor da pena pode
dissuadir determinado indivíduo de cometer um crime. Contudo, esse efeito não pode ser
generalizado para todos os indivíduos que poderiam (e queriam) cometer um crime e não o
fazem, uma vez que a própria pressão social eticizante, que ultrapassa o âmbito penal, também
atua como força dissuasora. Assim, afirmar que as pessoas deixariam de cometer um delito
porque existe uma pena para ele cominada seria superestimar o direito penal em
detrimento dessa reprovação social, como se o poder punitivo fosse o maior responsável
pela dissuasão (pan-penalismo). Com efeito, “existe uma prevenção geral negativa que
ultrapassa o mero sistema penal e que é fruto da cominação de sanções éticas e jurídicas não-
penais, assim como há um processo de introjeção de pautas éticas que não provém da lei penal.
No plano político e teórico, por sua vez, essa teoria permite a aplicação de penas cada
vez mais graves, porquanto nunca é possível obter uma dissuasão total, o que exigiria cada vez
mais rigor na punição. De fato, observa-se na realidade que a existência de penas, por mais
graves que sejam, nunca impediu a existência de delitos.
Por outro lado, ao infligir dor a uma pessoa para desestimular outras, a punição faz
daquela um mero instrumento do estado para difundir determinada cultura ou moral
prevalecente, elidindo, assim, a humanidade do condenado.

III. A função de prevenção geral positiva


Se na prevenção geral negativa a pena tem uma função de dissuasão dos não-
criminalizados, na prevenção geral positiva ela funciona como elemento simbólico de um
processo comunicativo de produção de consenso para reforçar a confiança no sistema
social em geral. A criminalização, assim, visa a normatização da opinião pública.
Uma crítica que se faz a essa teoria, com base na realidade social, é a de que, utilizando
a criminalidade tosca como bode expiatório para a manutenção do consenso e da coesão social,
a criminalidade mais elaborada deixaria de ser enxergada como delituosa, como nos crimes de
colarinho branco.
No plano teórico, a prevenção geral positiva também midiatiza a pessoa, utilizando sua
dor como símbolo. O crime não é mais uma simples lesão a bens jurídicos, a não ser que essa
lesão fira a confiança no sistema.
Em sua versão eticizante, a prevenção geral positiva tem por função incrementar os
valores ético-sociais mediante o fortalecimento da consciência jurídica da população, de modo
que, quanto mais elementar a ação (latrocínio, parricídio, infanticídio, etc.) maior a necessidade
de penas mais severas. A efetividade da função ético-social se vincula ao grau de firmeza com
que a ação estatal pretende fortalecer os valores, o que dependeria da gravidade das penas.
Na realidade social, porém, observa-se que a gravidade das penas de nada adianta se não
houver a certeza da criminalização secundária. Dessa forma, sendo notório que esta é a exceção
e não a regra (cifra negra), a prevenção geral positiva não se sustenta concretamente.

IV. A função de prevenção especial positiva


A função de prevenção especial positiva busca atribuir à pena um papel positivo de
melhoramento do próprio infrator. Constituem as chamadas teorias re: ressocialização,
reeducação, reinserção etc.
Sabe-se, entretanto, que a prisão é um espaço deteriorante, incompatível com qualquer
dos objetivos das teorias re, de modo que estas estão completamente deslegitimadas frente às
ciências sociais, de modo que a prevenção especial positiva não passa de um discurso.
No plano teórico, esse discurso pressupõe que a pena é um bem para quem a sofre, e é
o estado quem sabe como modificar o ser da pessoa para lhe impor seu modelo de humano. As
células imperfeitas do corpo social seriam, então, melhoradas, retornando a saúde para todo o
organismo.
Com esse discurso, afirmam Zaffaroni et al., “o estado de direito é substituído por um
estado de polícia paternalista clínico ou moral, conforme seja o melhoramento policial-
biológico-materialista (positivismo criminológico) ou ético-idealista (correcionalista).

V. A função de prevenção especial negativa


Quando as ideologias re fracassam (ou seja, sempre...) apela-se para a prevenção
especial negativa, a qual também age sobre a pessoa criminalizada, mas não para “melhorá-la”
e sim para “neutralizá-la” ou “eliminá-la”. As células imperfeitas do corpo social devem ser
descartadas ou neutralizadas.
Geralmente, se traduzem em penas atrozes impostas por seleção arbitrária. A pena de
morte, obviamente, é eficiente para prevenir outras condutas em relação ao mesmo indivíduo.
Todavia, uma sanção jurídica deve agir sobre o comportamento e não como obstáculo físico ou
mecânico, o que feriria o conceito de pessoa, segundo os direitos humanos, uma vez que a
autonomia ética para orientar-se conforme os sentidos a todos deve ser garantida.
A prevenção especial negativa, portanto, é a redução da pena a coerção direta
(neutralizar um perigo atual).

VI. A pena como prevenção da violência


O minimalismo penal (Alessandro Baratta), de nítida inspiração liberal, apregoa que a
intervenção penal só caberia em conflitos muito graves, que comprometessem interesses gerais
ou nos quais surgiria o risco de uma vingança privada. Está, desse modo, sempre do lado do
mais fraco: da vítima no momento da infração e do autor na ocasião da pena. Propõe um
garantismo negativo, no sentido de limitação ao poder punitivo, e um garantismo positivo, no
sentido de proteção dos direitos fundamentais.
Zaffaroni et al. corroboram os pressupostos do minimalismo, mas afirmam que sua
proposta exige um modelo de sociedade bem diverso do atual, motivo pelo qual centrar a
discussão nessa teoria seria pouco profícuo, embora se deva considerá-la seriamente no debate
para um direito penal do futuro.
Advertem, ainda, que uma coerção limitada à evitação de conflitos (vingança) ou a sua
interrupção (defender a vítima) pode não ser considerada como pena, mas como coerção direta.

§ 7. Direito penal de autor e direito penal do ato


I. Direito penal de autor
Para o direito penal do autor, a essência do delito não reside em uma infração ou lesão
jurídica, mas sim em uma característica pessoal de quem o pratica, traduzida como signo de
uma inferioridade moral, biológica ou psicológica. Atribui ao autor, desse modo, um estado de
pecado jurídico, justificando que o poder estatal investigue toda sua vida pecaminosa, ou um
estado de perigo, em que o autor é como uma peça defeituosa que representa perigo para o
mecanismo maior da sociedade.
Em todo caso, por meio dele, pune-se a existência e não o ato: o criminalizado é um ser
inferior. Não obstante, os operadores jurídicos e os doutrinadores também são apagados
enquanto pessoas, pois assumem a forma de representantes da onipotência do estado.
Em sua modalidade mais contemporânea, o direito penal de autor se mescla com o
direito penal do risco, antecipando a tipicidade, punindo atos preparatórios etc., pretendendo
controlar, dessa forma, não apenas a conduta, mas também a lealdade do sujeito ao
ordenamento, culminando com o retorno à presunção de dolo.

II. Direito penal do ato


O direito penal do ato concebe o delito como um conflito que produz uma lesão jurídica,
provocado por um ato humano (conduta) reprovável, cujo mal pode ser retribuído na medida
da culpabilidade do autor.
Não obstante suas qualidades em relação ao direito penal do autor (legalidade,
culpabilidade etc.), Zaffaroni et al. salientam que ele não pode servir para legitimar a pena,
porquanto ignora completamente a seletividade da criminalização secundária, recaindo
preferencialmente sobre as obras toscas.
Do mesmo modo, ele não reconhece que não há diferenças ônticas entre os conflitos
criminalizados e os não criminalizados, salvo pelo ato político da criminalização, o que implica
a ampliação ilimitada do âmbito da matéria criminalizável e, por conseguinte, o aumento do
poder de vigilância e do estado de polícia.

III. Justaposições de elementos antiliberais


Em seu estado puro, nenhuma dessas teorias se sustenta, o que ao longo da história tem
motivado sucessivas tentativas de legitimação por meio da combinação entre elas: os chamados
sistemas pluralistas. Misturam-se, assim, penas retributivas e neutralizantes (medidas) para
imputáveis e inimputáveis, gerando total arbitrariedade punitiva, porém de maneira sempre
“racionalizável”, segundo alguma das teorias justapostas.

IV. Penas sem delito, penas neutralizantes irracionais e institucionalização de


incapazes
As penas neutralizantes (medidas de segurança), classificam-se em: a) pré-delituais, as
quais são consequências do estado perigoso, como na criminalização da vadiagem, do uso de
drogas, da embriaguez etc., b) pós-delituais, impostas ao autor segundo suas características
pessoais, sem relação com a culpabilidade do ato, como no caso da reincidência, da
habitualidade, do profissionalismo etc., e c) para inimputáveis, as quais implicam uma restrição
de liberdade uma privação de liberdade por tempo indeterminado.
Todas elas, segundo o autor, são inconstitucionais, por agredirem garantias
fundamentais, como o ne bis in idem e a vedação de penas perpétuas.

V. As pretensas teorias “combinatórias”


Como as teorias puras da pena são impraticáveis, os legisladores e as agências judiciais
têm buscado a racionalização da aplicação das reprimendas na combinação entre teorias3, o que,
em última análise, termina por conduzir a uma arbitrariedade das decisões, possibilitando aos
julgadores aplicar a pena como bem entendem, justificando-a, depois, com a teoria que lhes
pareça mais adequada.

VI. A pena como “retribuição”


É comum a afirmação de que a pena busca a retribuição. Entretanto, essa frase é
relativamente vazia de sentido. Em seu uso corrente, não deve ser confundida com o sentido

3
Como exemplo o art. 59 do CP, que afirma que a pena deve ser necessária e suficiente para a reprovação
(retribuição) e prevenção (geral) do crime, e o art. 1º da LEP, segundo o qual a execução deve se orientar no
sentido da harmônica integração do condenado (prevenção especial).
kantiano de retribuição, o qual foi elaborado de modo dedutivo e não pode ser aplicado
concretamente. Na verdade, o sentido de retribuição no senso comum sequer pode se relacionar
com o delito, uma vez que, dada a seletividade do sistema penal, o que se retribuiria não é o
delito, mas sim a inabilidade dos que foram pegos.
É equivocado se referir, ainda, a uma função retributiva da pena, porque a retribuição
não é um fim em si mesma, buscando sempre uma reparação (ou a vingança), exigência que é
própria do ofendido e não do estado (como deve ser a pena).
Já a ideia de que a retribuição deve ser o limite da pena ou de sua medida, consiste em
um malabarismo discursivo para afirmar que as penas e o poder punitivo do estado devem ser
contidos e limitados.

CAPÍTULO IV: LIMITES DERIVADOS DA FUNÇÃO POLÍTICA

§ 10. Princípio da legalidade


I. Princípios limitadores: natureza e classificação
É impossível uma aplicação absoluta dos princípios limitadores, devido ao espaço
bastante limitado das agências jurídicas e do fato de que elas não inicializam a criminalização.
Assim sendo, os princípios limitadores impostos ao sistema são sempre inacabados em sua
elaboração e abertos em seu enunciado, consistindo em regras de elaboração progressiva.
É possível classificá-los em três classes: a) os que derivam do princípio da legalidade,
b) os que excluem toda pretensão punitiva incompatível com os direitos humanos, e c) os que
limitam a criminalização, derivando-se do princípio do estado de direito ou do princípio
republicano de governo.

II. Princípio da legalidade formal


A lei penal formal, constitucionalmente delimitada, serve para eliminar as leis penais
ilícitas e impede a retroatividade da que não for benéfica ao réu. A reserva legal complementa
a legalidade formal, ao afirmar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II, CR).
A legalidade também determina que a única fonte produtora de lei penal no ordenamento
brasileiro são os órgãos constitucionalmente determinados, e que os usos, costumes e
jurisprudência não criam leis penais.
Uma questão tormentosa nesse âmbito é a das leis penais em branco, que devem ser
complementadas por outras normas. Para Zaffaroni et al., se a norma que a complementa advém
de outra de mesma hierarquia, ou seja, de outra lei formal, não há inconstitucionalidade
(complementação homóloga). Entretanto, se a norma é de hierarquia inferior, como atos
normativos da administração, há inconstitucionalidade por desrespeito ao princípio da
legalidade, ainda que se argumente que a matéria tratada requeira mudanças rápidas,
incompatíveis com a lentidão do processo legislativo.

III. Princípio da máxima taxatividade legal e interpretação


O princípio da máxima taxatividade cobra do legislador a maior exatidão semântica
possível no texto legal, tendo em vista a natural limitação da linguagem. Dele se extraem os
preceitos na aplicação da analogia no direito penal. A analogia, ou integração analógica, é
instrumento indispensável nesse ramo do direito, na medida em que é inafastável do raciocínio
humano. Não obstante, ela também se limita pelo princípio da legalidade, de forma que sua
aplicação em desfavor do réu vai contra a função de contenção do poder punitivo a ser
desempenhada pelo estado.

IV. Princípio do respeito histórico ao âmbito legal do proibido


O sentido de um texto também é definido pelo seu contexto, e não é diferente com a
elaboração de leis. Conceitos legais criados em certos momentos históricos podem ser
incompatíveis com a cultura do presente (como a definição de “ato obsceno” quando da
publicação do Código Penal e atualmente). Para evitar arbitrariedades na interpretação nesses
casos, deve-se observar o princípio do respeito histórico ao âmbito legal do proibido.

V. A irretroatividade da lei penal como princípio derivado da legalidade e do estado de


direito
O princípio da irretroatividade decorre da legalidade e visa eliminar as leis ex-post facto,
com a única exceção da lei penal mais benigna, já que punir alguém ou continuar punindo por
algo que não se considera mais crime ou cuja a pena tenha se abrandado é um absurdo jurídico4.
Na hipótese em que duas ou mais leis penais, versando sobre a mesma matéria regulada
pela lei penal anterior ao fato, sobrevenham durante o processo ou durante a execução, os

4
CRFB, Art. 5º, XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
autores se mostram favoráveis a que possa haver a combinação entre as normas mais benignas
e entre estas e a própria lei antiga, sempre para beneficiar o agente.
A legislação apresenta uma exceção à retroatividade da lei penal mais benigna nos casos
de leis penais temporárias e excepcionais5. Sem embargo, sustentam os autores que tais leis
não teriam sido recepcionadas pela Constituição de 1988, em razão da expressa vedação da
retroatividade da lei prejudicial ao agente.
Em relação à retroatividade de complementos da lei penal em branco, por vezes negada
com amparo em sua natureza temporária ou excepcional, o entendimento é o mesmo, diante do
caráter imperativo e incondicional da garantia constitucional da retroatividade da lei mais
benéfica.
Nos crimes unissubsistentes, a questão do tempo do crime para a definição de qual lei
aplicar, anterior ou posterior, é relativamente tranquila, pois há apenas uma referência objetivo-
temporal (o tempo de resultado é o mesmo tempo da ação). Em crimes plurissubsistentes, como
os comissivos de resultado e omissivos impróprios, em que há pelo menos duas referências (o
momento da ação/omissão e o momento do resultado), a legislação brasileira optou por
privilegiar o momento da ação/omissão, desprezando o resultado 6. Entretanto, como a
ação/omissão pode se prolongar no tempo, fica a dúvida em relação a qual momento adotar,
sugerindo os autores que se adote o tempo inicial da ação/omissão, uma vez que, no decorrer
desta, o surgimento de lei penal prejudicial seria encarado como retroatividade in pejus e não
surtiria efeito.
Por fim, os autores destacam que o conceito de lei penal, para fins de retroatividade,
deve ser entendida de maneira ampla, abrangendo as leis processuais penais e as leis da
execução penal.

VI. Leis anômalas, descriminalizantes e mais benignas


As leis de anistia são leis anômalas, porque implicam uma descriminalização
temporária, extraordinária ou excepcional (ao contrário das leis temporárias e excepcionais, que
são criminalizantes). Somente a União tem competência para anistiar7 e tal atribuição cabe ao

5
CP, Art. 3º - A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as
circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.
6
CP, Art. 4º - Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento
do resultado.
7
CRFB, Art. 21. Compete à União: XVII - conceder anistia;
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o
especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
VIII - concessão de anistia.
Congresso Nacional. Difere-se a anistia, portanto, da graça e do indulto, que são de
competência do Presidente da República8. Além disso, a anistia descriminaliza, de maneira
geral, enquanto graça e indulto despenalizam, de maneira individual.
A anistia não é própria de crimes políticos, podendo abarcar qualquer tipo de delito.
Ademais, pode ser promulgada, antes, durante ou depois do processo e da sentença
condenatória.

VII. A retroatividade da jurisprudência


“As mudanças de critério jurisprudencial, em particular quando abrangem certa
generalidade, não podem deixar de compartilhar as razões que fundamentam o princípio da
legalidade e a proibição da retroatividade detrimentosa: não é possível que se apene a quem não
poderia conhecer a proibição. Quando uma ação, que até certo momento era considerada lícita,
passa a ser tratado como ilícita em razão de um novo critério interpretativo, ela não pode ser
imputada ao agente [...]”.

§ 11. Princípios limitadores que excluem violações ou disfuncionalidades grosseiras com


os direitos humanos
I. Princípio da lesividade
O estado não pode impor uma moral. Pelo contrário, deve garantir um âmbito de
liberdade moral, não podendo as penas recairem sobre ações que exprimam o exercício dessa
liberdade9. Assim, uma lei que pretenda impor normas morais, aplicando penas que não lesem
ou exponham a perigo direitos alheios é ilícita.
O princípio da lesividade intervém nesse sentido, evitando que se punam ações que não
afetam de alguma maneira um bem jurídico alheio10.

II. Princípio da proporcionalidade mínima


A aplicação da pena deve guardar relação proporcional com o grau de lesão provocado.
No entanto, isso não quer dizer que a pena seja retributiva, uma vez que continua sendo seletiva

8
CRFB, Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: XII - conceder indulto e comutar penas,
com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei.
CRFB, Art. 5º, XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura,
o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles
respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
9
CRFB, art. 5º, XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
10
O autor acrescenta que o direito penal não tutela o bem jurídico, pois não possui instrumentos para verificar a
efetividade dessa tutela. Prefere, então, falar em bem jurídico afetado (lesionado ou exposto a perigo).
e apenas suspendendo o conflito, ou seja, continua sendo irracional. Assim, tal princípio orienta
a escolha entre irracionalidades, devendo-se optar por aquela de menor conteúdo, ou seja, a
menos irracional.
As lesões devem ser, por conseguinte, hierarquizadas. Crimes contra a vida devem
receber penas mais graves que crimes contra o patrimônio (ao contrário do que acontece no
Brasil com o latrocínio).

III. Princípio da intranscendência (transcendência mínima)


A responsabilidade penal deve ser individual e não pode transcender a pessoa do
delinquente11. Porém, a transcendência é inevitável, já que a pena invariavelmente afeta a
família do acusado, tanto emocionalmente quanto materialmente, com a queda da arrecadação
etc. Nesse contexto, medidas como o auxílio-reclusão serviriam para minimizar esses efeitos.

IV. Princípio da humanidade


O princípio da humanidade se manifesta na Constituição brasileira na proibição de penas
cruéis e tortura12. A previsão de uma pena máxima razoável13 também se relaciona com o
princípio, na medida em que impede penas perpétuas.

V. Princípio da proibição da dupla punição


A proibição da dupla punição não se confunde com o ne bis in idem, embora estejam
intimamente interligados. Este é um princípio processual que opera antes mesmo da punição,
enquanto aquela opera após a aplicação da sanção. Os autores citam três exemplos em que se
aplica a primeira e não o segundo: 1) quando a administração ou a pessoa jurídica aplicam
sanções não penais que, com efeito, acabam sendo mais graves que estas; 2) quando a pessoa
sofre lesão, doença ou prejuízo patrimonial diante da atuação do estado na investigação (como
na tortura), o que deveria atenuar a pena, inclusive reduzindo-a aquém do mínimo legal; e 3)
quando pessoas pertencentes a povos indígenas já sofreram punição em sua cultura.

11
Art. 5º, XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a
decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o
limite do valor do patrimônio transferido.
12
Art. 5º, XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;
XLIII - XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles
respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
13
CP, art. 75 - O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos.
VI. Princípio da boa-fé e pro homine
O princípio da boa-fé se impõe como critério interpretativo de qualquer tratado
internacional14, e o princípio pro homine dele decorre, estabelecendo que, em caso de dúvida,
se decida sempre pelo sentido mais garantidor do direito de que se trate.
No Brasil, tais princípios vêm sendo ignorados pelo STF, que estipula que as normas de
tratados internacionais sobre direitos humanos não têm status constitucional, contrariando o art.
5º, §2º da CRFB15.

§ 12. Princípios limitadores da criminalização que emergem diretamente do estado de


direito
I. A necessidade de princípios de limitação material
Todos os princípios já abordados, em última instância, referem-se ao princípio
republicano. Entretanto, há certos tipos de criminalização que não os violam, mas implicam um
fortalecimento do estado de polícia, que deve ser evitado. Isso porque a maioria dos princípios
limitadores do poder punitivo em nossa Constituição possui natureza formal, deixando de
limitar, todavia, o conteúdo de certos direitos, o que contribui para o avanço desenfreado do
uso da criminalização pelas agências políticas.
Zaffaroni então propõe três enunciados limitadores com os quais as agências judiciais
podem se opor às políticas no que diz respeito ao conteúdo das normas: 1) o princípio de
proscrição da grosseira inidoneidade do poder punitivo, segundo o qual se deve limitar a
criminalização de condutas para tentar resolver um problema de outra esfera que não a penal
(como criminalizar o uso de drogas para combater a toxicomania); 2) o princípio de proscrição
da grosseira inidoneidade da criminalização, segundo o qual as condutas que podem ser
resolvidas por outros modelos de resolução, sobretudo os que não suspendem o conflito, não
devem ser tratadas em âmbito penal; e 3) o princípio de limitação máxima da resposta
contingente, segundo o qual as leis criminalizantes criadas em momentos de pânico social
devem ser limitadas ao máximo.

II. Princípio da superioridade ética do estado

14
Convenção de Viena, art. 31.1. Um tratado deve ser interpretado de boa fé segundo o sentido comum atribuível
aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade.
15
CRFB, art. 5º, §2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte.
O estado de direito implica uma aspiração de eticidade não encontrada no estado de
polícia, cujo único limite é seu próprio poder, a ponto deste não divergir eticamente dos
“criminosos” que combate. Por esse motivo, o estado de direito deve impor a si próprio limites
eticizantes para que se legitime e possa exigir comportamentos adequados ao direito aos seus
cidadãos.

III. Princípio do saneamento genealógico


A criação de qualquer lei é marcada pelo contexto histórico e cultural do lugar em que
foi produzida. Os tipos penais, contudo, são mais estáveis que tais contextos, de modo que estes
passam e os tipos ficam. Levando-se em conta, então, que cada tipo carrega consigo uma carga
ideológica intrínseca a sua criação e que há uma corriqueira utilização do direito comparado
para a elaboração de leis penais (degredo de tipos penais), é preciso investigar a genealogia dos
tipos, em um depurado trabalho interpretativo, a fim de tolher possíveis gérmens do estado de
polícia.

IV. Princípio da culpabilidade (de exclusão da imputação pela mera causação do


resultado e de exigibilidade)
A existência de um vínculo subjetivo entre o autor e o dano/perigo causado a um bem
jurídico é condição necessária para a imputação penal. Não se pode punir danos/perigos
causados por caso fortuito (mera causação do resultado) nem quando o agente não tinha a
possibilidade de prever o resultado da conduta ou de conhecer sua ilicitude para se adequar ao
direito nas circunstâncias concretas (exigibilidade).

Belo Horizonte, 2017


Rafael Maciel Artuzo
macielartuzo@hotmail.com

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