Você está na página 1de 13

'I

~
EDIÇÕES ASA

Chalm Perelman
1, :

O IMPÉRIO
RETÓRICO
RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO

UNWERSlDADE NOVA DE LISBOA


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Instituto de Filosofia da Linguagem

19 -09- \997
. Introdução à
tradução portuguesa

Título original
L'empire rhétorique
© Librairie Philosophique J. Vrin
Tradutores
Fernando Trindade e Rui Alexandre Grácio
Colecção
1. A actual reabilitação e renovação da retórica deve-se, em
Argumentos grande parte, ao trabalho desenvolvido por Chaün Perelman (1912-
Direcção de -1984), autor de uma vasta e variada obra, na qual se podem desta-
Manuel Maria Carrilho car Rhétorique et philosophie. Pour une théorie de l'argumentation
Direcção gráfica en philosophie (em colaboração com Lucie Olbrechts-Tyteca), de
Atelier Henrique Cayatte
1952, o Traité de l'argumentation. La nouvelle rhétorique (em cola-
colaboração de Patricia Proença
. boração com L. Olbrechts-Tyteca), de 1958, Justice et raison, de
Composto por
X&P Design de Comunicação 1963, Logique et argumentation, de 1968, Droit, Mora/e et Philoso-
Rua Campo Alegre, 823 phie, de 1968, Éléments d'une théorie de l'argumentation, de 1968,
4100 Porto
Le Champ de l'argumentation, de 1970, Logique juridique -Nou-
Impresso e acabado por
velle Rhétorique, de 1976, L'empire rhétorique - Rhétorique et
Edições ASA/Divisão Gráfica
Rua O. Afonso Henriques, 742 Argumentatio_n, de 1977 e Le raisonnable et le déraisonnable en
4435 Rio Tinto droit. Au-delà du positivisme juridique, de 1984.
!~edição: Fevereiro de 1993 Se quisermos assinalar a questão de fundo que subjaz a todo este
Depósito legal n? 55 931192 trabalho, teremos de dizer, sem qualquer hesitação, que ela é a ques-
ISBN 972-41-1128-8
Reservados todos os direitos
tão da racionalidade. Como compreender a actividade racional?
Como conceber a nossa faculdade de raciocinar e de provar? Em que
consiste a competência racional e que domínios podem ser abran-
gidos por ela? Como conceber a razão?

~
EDIÇÕES ASA
Todas estas questões são colocadas a partir de uma perspectiva
crítica relativamente ao racionalismo clássico e de um esforço de
superação das limitações que este impôs à ideia (e ao alcance) de
SEDE
razão. Estas limitações são, segundo Perelman, indevidas e injus-
R. Mártires da Liberdade, n
Apanado 4263/4004 PORTO CODEX tificadas, acabando desastrosamente por conduzir a ~a concepção
PORTUGAL
acanhada da actividade racional, incapaz de articular a dimensão

5
/
O IMPÉRIO RETÓRICO
INTRODUÇÃO À TRADUÇÃO PORTUGUESA

teórico-formal dos raciocínios e a dimensão pragmática de que, na de Perelman oferece-nos, assim, uma proposta fecunda e sólida para
prática, os raciocínios se revestem. que hoje se possa repensar a racionalidade.
Não é assim de estranhar que, logo no início do Traité de l'argu-
mentatioh, se anuncie uma «ruptura com uma concepção de razão e 2. Mas, perguntar-se-á, se se trata da questão da racionalidade,
de raciocínio proveniente de Descartes»1, e que neste último encon- por que falar de retórica e de argumentação? Não é à lógica que tra-
tremos o interlocutor polémico mais directa e insistentemente criti- dicionalmente compete a definição dos critérios que definem a acti-
cado por Perelman. Isso mesmo não passará certamente desaperce- vidade racional?
bido ao leitor da obra cuja tradução agora se apresenta e na qual os Esta mesma questão terá surgido ao próprio Perelman no
dois últimos capítulos são contundentemente críticos do cartesia- momento em que, depois de inicialmente ter aceite ser a lógica a
nismo.
detentora do monopólio da racionalidade, acabou por verificar o
Crítica a Descartes mas, também, resposta ao cepticismo de reducionismo desta perspectiva e experimentou a insatisfação face
Hume que, afirmando que a razão é impotente quando se trata da ao formalismo de que, sob a influência da lógica matemática, a
orientação ou da avaliação das nossas acções, afasta a possibilidade lógica se tinha revestido. Se a teoria da demonstração, núcleo duro
de um uso prático da razão. da lógica, se prestava exemplarmente ao formalismo, esta mesma
A estratégia de Perelman será, por um lado, a de propor uma exigência de formalismo fazia com que se deixasse de lado todo o
concepção alargada de razão que a elaboração de uma teoria da tipo de raciocínio em que a forma não se pode separar do conteúdo,
argumentação permitirá compreender e sustentar e, por outro, insis- e em que a compreensão dos raciocínios não se pode dissociar dos
tindo sobretudo no estudo das características do raciocínio prático, seus efeitos práticos. Ora, ainda que a lógica formal não contemple a
a de mostrar a aptidão da razão para lidar com valores, para organi- dimensão pragmática ou os efeitos práticos dos raciocínios, de racio-
zar as nossas preferências e para fundar, com razoabilidade, as nos- cínios relativos a situações concretas, deverá todavia o seu estudo
sas decisões. ser negligenciado e considerados tais raciocínios como desprovidos
Rejeitando a identificação do racional com o necessário e do de lógica? É precisamente na recusa da redução do lógico à lógica
não-necessário com o irracional, Perelman procura abrir uma "ter- formal que encontramos a razão que originou a elaboração de uma
ceira via", a via do razoável. Por isso, em vez de ver na evidência e teoria da argumentação, considerada por Perelman como com- .
na necessidade dos raciocínios as marcas distintivas da razão, e re- plementar da teoria da demonstração. «Üs lógicos, escreveu, devem
jeitando a ideia de que tudo o que não seja necessário é arbitrário, o completar a teoria da demonstração [... ] com uma teoria da argu-
autor de O Império Retórico reivindica que entre esses dois extre- mentação»3. Através desta última abriam-se as portas à racionali-
mos absolutos há todo um imenso campo - o campo magnético, dade argumentativa, que a redescoberta da retórica permitiu tematizar.
como escreveu Robinet, no qual a argumentação capta a limalha não
matemática e não experimental do espíritü2 - em que a nossa acti- 3. O alvo visado foi, então, a constituição de uma "lógica do pre-
vidade racional se exerce com, e como, razoabilidade. A reabilitação ferível". A que processos recorremos quando pretendemos mostrar o
e a renovação da retórica, que Perelman identifica com a argumenta- bem fundado das nossas opções, ou quando rejeitamos teses com que
ção (e atente-se, a este propósito, no subtítulo da presente obra), visa não concordamos? Como procuramos fazer prevalecer certàs opiniões
precisamente esclarecer e desenvolver esta tese. Apresentando uma e de que forma as justificamos? De que maneira procedemos quando
teoria da argumentação e uma filosofia. do razoável, a Nova Retórica tentamos provar a superioridade de uma tese relativamente a outras?

6 7
- - -· ---------------------...,
O IMPÉRIO RETÓRICO
INTRODUÇÃO À TRADUÇÃO PORTUGUESA

A grande originalidade de Perelman na abordagem destas ques- que todo o discurso que não aspira a uma validade impessoal
tões reside numa deslocação essencial. Vimos já que se tratava de depende da retórica. Desde que uma comunicação tenda a influen-
salvaguardar a racionalidade presente em todos aqueles raciocínios ciar uma ou várias pessoas, a orientar os seus pensamentos, a excitar
que, por fazerem intervir valores e pela sua aplicação situada e con- ou a apaziguar as emoções, a dirigir uma acção, ela é do domínio da
creta, eram insusceptíveis de formalização; de, portanto, conciliar a retórica>>s. Que império é este? Um império sem imperador, o impé-
sua dimensão pragmática com um estudo teórico que os permitisse rio da discutibilidade, o império cuja organização razoável reclama
tematizar. Ora, será o encontro com a retórica que fornecerá os ter- incessantemente a conjunção do diálogo e da razão que, assumida na
mos adequados para proceder a essa tematização e para formular os sua condição histórica, perpetua, pelo direito à palavra e à questão,
problemas aqui em jogo. A deslocação essencial, inspirada na retó- a construção de um pluralismo e a exigência, sempre em renovação,
rica, arte de persuadir um auditório, foi justamente a de trazer a de um pensamento crítico. «Ü pluralismo apura o sentido crítico. É gra-
questão da adesão para primeiro plano. O que se joga em todos ças à intervenção sempre renovada, dos outros, que melhor se pode
esses raciocínios, que não são nem necessários nem arbitrários, é a distinguir, até nova ordem, o subjectivo do objectivo»6.
adesão que eles visam promover relativamente ao auditório para o
qual o orador - aquele que fala ou que escreve - se dirige. 5. Mas, suspeitar-se-á ainda: não pode a retórica servir para
Sendo assim, a razão não é apenas uma faculdade que, para ser enganar os outros, conduzindo-os de acordo com as conveniências
racional, deve engendrar provas necessárias que ninguém pode con- de cada um? Não é a retórica demagógica, sempre sujeita a ser um
testar. A actividade racional não é apenas cálculo (e a isso se reduz, instrumento ao serviço de interesseiros?
em última análise, a lógica formal), antes se encontra ligada à arte A isto, poder-se-á replicar: por que deveria a retórica estar ao
da persuasão, às técnicas discursivas que visam obter a adesão de abrigo dos seus maus usos? E não será a competência retórico-argu-
um auditório.
mentativa aquela que contra eles nos pode, precisamente, prevenir,
Vista a esta luz, a razão toma-se uma instância histórica e dialó- premunindo-nos de eventuais abusos? A questão não parece, pois,
gica reguladora das nossas crenças ou convicções e da liberdade que ser uma questão relativa à retórica, mas à avaliação do humano. Não
relativamente a elas possuímos. Liberdade de aderir e liberdade de se devendo esquecer que aquele que pretenda realçar o lado maligno
rejeitar - a argumentação, conferindo um sentido à liberdade da retórica e que o queira expurgar de toda a relação com a natureza
humana, toma-se, nesta perspectiva, concij.ção de exercício da esco- humana, só retoricamente o pode fazer. É que no império retórico -
lha razoável4.
ter-se-á já percebido - de verdade só há as opiniões que, por entre
muita discussão, vão sendo admitidas e aceites (até ver!) como tal.
4. O Império Retórico: retórica e argumentação. Sob este título
encontramos, de uma forma abreviada, o imenso inventário das téc- 6. Estas últimas considerações conduzem, finalmente, à questão do
nicas argumentativas, dos procedimentos argumentativos e dos gran- interesse filosófico da teoria da argumentação. É sabido que as rela-
des princípios argumentativos, feito já no Traité de l'argumentation. ções -entre retórica e filosofia nunca foram pacíficas. Como podem,
Mas, mais do que isso, a nova retórica revela-se-nos agora com a pois, ter a retórica e o estudo da argumentação um interesse filosó-
sua face "imperial": «Identificando esta (nova retórica) com a teoria fico? E quais as condições requeridas para que isso possa acontecer?
geral do discurso persuasivo, que visa ganhar a adesão, tanto intelec- Diga-se, antes de mais, que para que se possa considerar o
tual como emotiva, de um auditório, seja ele qual for, afirmamos estudo da argumentação como filosoficamente relevante, é preciso

8
9
,,
O IMPÉRIO RETÓRICO
INTRODUÇÃO À TRADUÇÃO PORTUGUESA
1

não tomar a filosofia nem como um discurso do mestre nem ver o


filosofia, a saber, qual é o método da filosofia, estaríamos em condi~
:1 filósofo como porta-voz da verdade.
ções para responder que o método próprio da filosofia é a argumen-
li No primeiro caso, a autoridade prevaleceria sobre ·o livre exame e
taçãos.
o filosofar não poderia deixar de estar preso à tirania do dogmatismo.
Desta forma, é possível fazer uma nova abordagem do discurso
No segundo caso, os filósofos, considerando que o seu discurso é o
filosófico, dizendo que: a) ele se dirige a um auditório que procura
discurso da verdade, transportam para a filosofia a necessidade da
persuadir; b) só pode persuadir partindo daquilo que esse auditório
i: revelação e apresentam-se eles mesmos como os mediadores dessa
revelação. já admite; isto é, estabelecendo um laço entre o que se quer fazer
admitir e aquilo em que, à partida, se acredita.
Quer no primeiro quer i:J.o segundo caso deparamo-nos com um
E o que desta caracterização do discurso filosófico se pode con-
inconveniente dificilmente aceitável: é que, assim considerada, a filo-
cluir é que a filosofia, encarada numa perspectiva retórica, não pode
sofia fica destituída de toda a competência crítica a qual, todavia,
negligenciar a sua submissão às regras da arte da persuasão e da
sempre figurou como uma das suas notas caracterizadoras.
argumentação.
Ora, se a filosofia está essencialmente ligada a uma atitude crítica,
Podemos dizer que o interesse filosófico da teoria da argu-
facilmente perceberemos que ela não pode, para se desenvolver,
mentação reside no facto desta permitir compreender melhor a natu~
nem fundar-se no recurso à autoridade que põe fim às discussões,
reza do próprio empreendimento filosófico, definindo-o em função
nem na pretensão do filósofo ser um iluminado ou um eleito a
de uma racionalidade que ultrapassa a ideia de verdade e que toma a
quem a luz da verdade guia as palavras e confere um fundamento
profético. actividade filosófica compreensível a partir da ideia de que o dis-
curso filosófico é um discurso que se dirige a um auditório, que quer
A filosofia toma-se realmente uma actividade crítica quando,
persuadir e convencer - eventualmente o auditório universal9 - e
descartadas as ideias de que o filósofo não é nem um tirano nem um
que para isso tem que recorrer a procedimentos argumentativos.
profeta, despertamos para a constatação de que não há verdade
A teoria da argumentação é também filosoficamente importante
senão admitida1, ou, dito de outra maneira, de que não há diferença
porque nos permite uma nova abordagem da própria história da filo-
de natureza, mas apenas de grau, entre verdade e opinião.
sofia, a qual consistiria em ver quais são os argumentos valorizados
Tal não quer dizer que a filosofia se confunda com toda a argu-
e desvalorizados pelos filósofos e em estabelecer uma correlação.
mentação retórica, mas apenas que ela não é compreensível sem
esta. entre a ontologia de um pensador e os preceitos metodológicos por
ele utilizados para a sustentar10.
A filosofia, mais do que encontrar-se ligada à posse da verdade,
Para concluir: só à luz dos contributos de uma teoria da argu-
associa-se à crença na verdade e à aspiração de tomar a verdade, em
mentação a filosofia poderá ser, efectivamente, compreendida como
que o filósofo crê, admitida por outras pessoas, e, eventualmente,
atitude crítica e aberta.
por todas as pessoas (ou, em termos perelmanianos, pelo chamado
auditório universal). Ora, esta admissão, esta tentativa de fazer
admitir certas teses, só pode ser realizada através de meios argumen- Rui Alexa.ndre Grácio
.tativos.
E se quiséssemos agora, como durante muito tempo se fez, decal-
car do modelo das ciências uma pergunta que permita caracterizar a

':
,, 1

10
li
------------------------ --------------
Prefácio

O bom homem do século XX, para quem o termo "retórica"


evoca palavras vazias e floridas, figuras com nomes estranhos e
incompreensíveis, poder-se-ia interrogar, não sem razão, por que é
que um filósofo, sobretudo um lógico, sente a necessidade de asso-
ciar argumentação e retórica. Há um século, em França, esta era
ensinada na aula com esse nome, mas foi depois eliminada dos pro-
gramas porque desprovida de valor educativo.
Pessoalmente, o meu breve contacto com a retórica, há cerca de
cinquenta anos - pois nessa época o seu ensino era ainda obrigató-
rio na Bélgica-, consistiu no estudo de um pequeno manµal que
juntava o estudo do silogismo com o das figuras de estilo. Aquando
dos meus estudos de filosofia, ninguém me falou de retórica senão
em termos pejorativos, e eu sabia que, em vários dos seus diálogos,
Platão atacava os sofistas e os mestres de retórica por estarem mais
preocupados em lisonjear os seus auditores do que em ensinar-lhes a
verdade, cara a Sócrates. Além do mais, o termo "retórica" não consta
do Vocabulário filosófico de Lalande, o que indica claramente que, a
seu ver, ele não apresenta nenhum interesse para o filósofo.
Se, no entanto, faço hoje questão em insistir no papel da retórica,
é porque as minhas investigações me convénceram da importância
desta disciplina para o pensamento contemporâneo.
Há cerca de trinta anos, um estudo sobre a justiça, empreendido
num espírito positivista, permitiu-me extrair uma regra de justiça
forinal segundo a qual «Os seres de uma mesma categoria essencial
devem ser tratados da mesma forma» 1• Mas como distinguir o que é

13
O IMPÉRIO RETÓRICO PREFÁCIO

essencial do que o não é, o que é importante do que é negligenciá- estudado e que, há cerca de um século, a si mesmo tinha colocado
vel? Apercebia-me de que esta distinção não se podia fazer sem uma questão análoga a propósito da lógica empregue pelos matemá-
recorrer a juízos de valor que, nesta época, me pareciam perfeita- ticos. Para a destacar, analisou rnicroscopicamente todas as opera-
mente arbitrários e logicamente indeterminados2. ções que permitiam aos matemáticos demonstrar os seus teoremas: o
Como se pode raciocinar sobre valores? Existem métodos racio- resultado dessas análises foi a renovação da lógica formal, conce-
nalmente aceitáveis que permitam preferir o bem ao mal, a justiça à bida como uma lógica operatória, permitindo cálculos, e não uma
injustiça, a democracia à ditadura? Insatisfeito com a resposta céptica ( lógica da classificação, como a lógica clássica de Aristóteles. Não
dos positivistas, pus-me em busca de uma lógica dos juízos de valor. . seria possível retomar estes mesmos métodos, aplicando-os, desta
A obra de Goblot, publicada em 1927 com o título Logique des juge- vez, a textos que procuram fazer prevalecer um valor, uma regra, .
ments de valeur, parecia-me tratar de uma forma satisfatória apenas os . mostrar que uma determinada acção ou escolha é preferível a outra?
juízos de valor derivados, aqueles que apreciam os meios ou os obstá- Não seria possível, analisando os escritos de moralistas e de polí-
culos em relação a um fim, isto é, os juízos tecnológicos, mas não ticos, de oradores que preconizam determinada linha de conduta, ar-
apresentava nenhum raciocínio que justificasse a preferência conce- tigos de fundo dos jornais, justificações de toda a espécie, destacar
dida a um determinado fim em preterimento de outro. Ora, na ausência esta lógica dos juízos de valor, cuja ausência se fazia tão cruelmente
de técnicas de raciocínio aceitáveis concernentes aos fins, a filosofia sentir?
prática deveria renunciar ao seu objecto tradicional, a busca da sa- Este trabalho de grande fôlego, empreendido com Lucie
bedoria, guiando a acção pela razão, não podendo a filosofia moral, Olbrechts-Tyteca, levou-nos a conclusões completamente inespera-
a filosofia política e a filosofia do direito desenvolverem-se como dis- das e que constituíram para nos uma revelação, a saber, de que não
ciplinas sérias. Foi precisamente a esta conclusão que tinham chegado existia uma lógica específica dos juízos de valor, mas que aquilo que
os positivistas, para os quais os juízos de valor não tinham qualquer procurávamos tinha sido desenvolvido numa disciplina muito antiga,
valor cognitivo, qualquer valor verificável. Mas, então, ou os seus pró- actualmente esquecida e menosprezada, a saber, a retórica, a antiga
prios raciocínios, que culminavam na condenação da filosofia prática, arte de persuadir e de convencer. Esta revelação surgiu-nos por oca-
eram igualmente desprovidos de valor, ou - se se admitissem - tes- sião da leitura do livro de Jean Paulhan, Lesfleurs de Tarbes. O autor
temunhavam que se podiam justificar filosoficamente conclusões com tinha aí publicado, em apêndice, extractos da retórica de Brunetto
importância prática. Não podia, pois, resignar-me à sua conclusão, Latini, o mestre de Dante. Deste texto, foi-nos fácil remontar à retó-
simultaneamente paradoxal e desesperante para um filósofo., tanto rica de Aristóteles e a toda a tradição greco-latj.na da retórica e dos
mais que parecia admitido não se poder fundar um juízo de valor tópicosJ. Verificámos que nos domínios em que se trata de estabele-
unicamente sobre juízos de facto. Seriam os juízos de valor primitivos, cer aquilo que é preferível, o que é aceitável e razoável, os racio-
os princípios da moral e de toda a conduta, puramente irracionais, cínios não são nem deduções formalmente correctas nem induções
expressão das nossas tradições, dos nossos preconceitos e das nossas do particular para o geral, mas argumentações de toda a espécie,
paixões? Em caso de desacordo, apenas a violência seria capaz de visando ganhar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam ao
resolver os conflitos, e seria a razão do mais forte a melhor? Ou existe seu assentimento.
uma lógica dos juízos de valor e, nesta hipótese, como constituí-la? Esta técnica do discurso persuasivo, indispensável na discussão
Decidi consagrar-me a esta tarefa e, para a levar a bom termo, prévia a toda a tomada de decisão reflectida, tinham-na os antigos
tentei imitar o lógico alemão Gottlob Frege, cujos trabalhos havia desenvolvido longamente como a técnica por excelência, a de àgir

14 15
O IMPÉRIO RETÓRICO PREFÁCIO

sobre os outros homens através do logos, termo que designa simulta- Roland Barthes, que na retórica antiga não vê mais que um
neamente, de forma equívoca, a palavra e a razão. objecto histórico, isto é, actualmente ultrapassado, afirma todavia
Foi assim que compreendi a rivalidade que opôs durante toda a que é um contra-senso limitar a retórica às figuras?. No mesmo
antiguidade greco-latina os retóricos aos filósofos, aspirando uns e número da revista Communications, Gérard Genette insurge-se con-
outros ao direito de formar a juventude, o filósofo preconizando a tra esta tendência - para a qual, aliás, muito contribuiu com os seus
busca da verdade e a vida contemplativa, os retóricos concedendo, próprios trabalhos (ele considera a sua exposição como uma forma
pelo contrário, o primado à técnica de influenciar os homens pela de autocríticas) - num artigo notável intitulado "La rhétorique res-
palavra, essencial na vida activa e especialmente na política4. treinte" e do qual me permito citar este extracto, bastante longo, mas
. O que é que fez com que esta técnica do discurso persuasivo significativo:
1lvesse desaparecido do nosso horizonte intelectual e que a retórica «Ü ano de 1969-70 viu aparecer quase simultaneamente três tex-
dita clássica, que se opôs à retórica antiga, tenha sido reduzida ~ tos de amplitude desigual, mas cujos títulos convergem de maneira
uma retórica das figuras, consagrando-se à classificação das diversas ( bem sintomática: trata-se da Rhétorique générale do grupo de Liege,
maneiras com que se podia ornamentar o estilo? cujo título inicial era Rhétorique généralisée; do artigo de Michel
Já na antiguidade, certos retóricos se tinham especializado na Deguy "Pour une théorie de la figure généralisée"; e do de Jacques
declamação e nas exibições literárias, sem grande alcance, e os filó- Sojcher, "La métaphore généralisée": retórica-figura-metáfora: sob a
sofos, tais como Epicteto, não hesitaram em escarnecer deles: «É capa denegativa, ou compensatória, duma generalização pseudo-einstei-
esta arte de dizer e de ornamentar a nossa linguagem, se nisso há niana, eis traçado nas suas principais etapas o percurso (aproximati-
uma arte particular, que outra coisa faz, quando os nossos propósitos vamente) histórico de uma disciplina que, no decurso dos séculos,
encontram alguém, senão enfeitar e arranjar a nossa linguagem não deixou de ver encolher, como pele de chagrém, o campo da sua
como um cabeleireiro faz a uma cabeleira?»s. competência, ou pelo menos da sua acção. A Retórica de Aristóteles
O que é que fez, então, com que grandes autores, como Aristó- não se pretendia "geral" (e ainda menos "generalizada"): ela era-o, e
teles, Cícero e Quintiliano, tenham consagrado obras notáveis à ret& de tal modo o era na amplitude da sua intenção, que uma teoria
rica, como arte de persuadir, que a retórica clássica se tenha limitado das figuras ainda aí não merecia qualquer menção particular; algu-
ao estudo das figuras de estilo, que as obras de retórica mais conheci- mas páginas apenas sobre a comparação e a metáfora, num livro (em
das em França nos séculos XVIII e XIX fossem as de Dumarsais (Des três) consagrado ao estilo e à composição, território exíguo, cantão
tropes ou des différents Sens dans lesquels on peut prendre un même afastado, perdido na imensidão de um Império. Hoje, intitulamos
mot dans une même Zangue, 1730) e de P. Fontanier (aparecidas em retórica geral o que de facto é um tratado das figuras. E se temos
1821 e 1827 e reeditadas em 1969 por G. Genette sob o título Les tanto para generalizar, é evidentemente por termos restringido dema-
figures du discours), que na retórica apenas viam ornamento e artifí- siado: '.de Corax aos nossos dias, a história da retórica é a de uma
cio? Esta perspectiva valeu à retórica clássica a repulsa dos românticos restrição generalizada».
(«guerra à retórica, paz à gramática») e o desprezo dos nossos con- «Aparentemente, é desde o início da Idade Média que começa a
temporâneos, amantes da simplicidade e do natural. E como acreditar desfazer-se o equilíbrio próprio da retórica antiga, que as obras de
que a reabilitação da retórica, que uma nova retórica, se possa limitar Aristóteles e, melhor ainda, de Quintiliano, testemunham: o equilí-
a pôr em dia a retórica das figuras, a «renovar o empreendimento brio entre os géneros (deliberativo, judiciário, epidíctico), em pri-
essencialmente taxinómico da retórica clássica»6. meiro lugar, porque a morte das instituições republicanas, na qual já

16 17
O IMPÉRIO RETÓRICO
PREFÁCIO

Tácito via uma das causas do declínio da eloquência, conduz ao


técnica de acção, mas técnica de criação, que corresponde à tríade
desaparecimento do género deliberativo, e também, ao que parece,
poiésis-mimésis-catharsis u. Ora, Aristóteles trata da metáfora nos
do epidíctico, ligado às grandes circunstâncias da vida cívica:
dois tratados, mostrando que a mesma figura pertence aos dois
Martianus Capella, depois Isidoro de Sevilha, tomaram nota destas
domínios, logo, exercendo uma acção retórica e desempenhando,
defecções, rhetorica est bene dicendi scientia in civilibus quaestio-,
além disso, um papel na criação poética. Foi este duplo aspecto das
nibus; o equiHbrio entre as "partes" (inventio, dispositio, elocutio), figuras que igualmente sublinhámos ao distinguir nitidamente as
em segundo lugar, porque a retórica do trivium, esmagada entre gra-
figuras de retórica das figuras de estilo:
mática e dialéctica, rapidamente se vê confinada ao estudo da elocu-
«Consideramos uma figura como argumentativa se o seu
tio, dos ornamentos do discurso, colores rhetorici. A época clássica, emprego, implicando uma mudança de perspectiva, parece normal
particularmente em França, e mais particularmente ainda no século
em relação à nova situação sugerida. Se, pelo contrário, o discurso
XVIII, herda esta situação, acentuando-a ao privilegiar incessante-
não implica a adesão do auditor a esta forma argumentativa, a figura
mente nos seus exemplos o corpus literário (e especialmente poé-
será entendida como ornamento, como figura de estilo. Ela poderá
tico) relativamente à oratória: Homero e Virgílio (e em breve ,
suscitar a admiração, mas no plano estético, ou comO<'testemunho da
Racine) suplantam Demóstenes e Cícero; a retórica tende a tomar-se, originalidade do orador.»12
no essencial, um estudo da lexis poética>>9.
Examinando as figuras fora do seu contexto, como flores resse-
Na sua recente obra consagrada à metáfora, P. Ricreur, reto- quidas num ervanário, perde-se de vista o papel dinâmico das figu-
mando a análise de Genette, lembra que «a retórica de Aristóteles ras: todas se tomam figuras de estilo.
cobre três campos: uma teoria da argumentação que constitui o seu
Se não estão integradas numa retórica concebida como a arte de
eixo principal e que fornece ao mesmo tempo o nó da sua articula-
persuadir e de convencer, deixam de ser figuras de retórica e tor-
ção com a lógica demons.trativa e com a filosofia (esta teoria da
nam-se ornamentos respeitantes apenas à forma do discurso: não é,
argumentação cobre, por si só, dois terços do tratado), uma teoria da
pois, digno de consideração encarar uma recuperação moderna,
elocução e uma teoria da composição do discurso. Aquilo que os
mesmo duma retórica das figuras, fora do contexto argumentativo.
últimos tratados de retórica nos oferecem é, na feliz expressão de G.
É essa a razão pela qual me parece vão esperar a renovação da
Genette, uma "retórica restrita", restringida em primeiro lugar à teo-
retórica, de uma retórica das figuras, mesmo que estas sejam estuda-
ria da elocução, depois à teoria dos tropos. A história da retórica é a
das na perspectiva da linguística estrutural e da teoria literária, sem
história da pele de chagrém. Uma das causas da morte da retórica
preocupação com a importância, para o estudo das figuras de retó-
reside aí: ao reduzir-se, assim, a uma das suas partes, a retórica per-
rica, duma concepção dinâmica das mesmas: não basta afirmar
dia ao mesmo tempo o nexus que a ligava à filosofia através da dia- peremptoriamente que um estudo assim concebido «se situa na mar-
léctica; perdida esta ligação, a retórica tomou-se uma disciplina
gem da maioria das recuperações modernas da retórica>>B para dele
errática e fútil. A retórica morreu quando o gosto de classificar as fi-
nos podermos desinteressar.
guras suplantou inteiramente o sentido filosófico que animava o
Mas há mais. Nos Estados Unidos da América, o ensino da retó-
vasto império retórico, mantinha unidas as suas partes e ligava o
rica, que estava integrado nos cursos de inglês, separou-se destes, há
todo ao organon e à filosofia primeira.»10
cerca de 60 anos, e organizou-se em departamentos especializados
Ao lado da retórica, fundada na tríade "retórica-prova-persua- consagrados à retórica, como técnica da comunicação e do discurso
são", Ricreur lembra que Aristóteles elaborou uma poética que não é persuasivo: aí ensinam, actualmente, mais de cinco mil professores.

18
19
O IMPÉRIO RETÓRICO

Publicaram milhares de obras consagradas a esta matéria. Há nove


anos, apareceu na Pensilvânia uma revista intitulada Philosophy and
Rhetoric, dirigida por filósofos e retóricos, na qual o estudo das 1.
figuras ocupa um lugar muito reduzido.
O renascimento e a reabilitação da retórica no pensamento con: Lógica, Dialéctica,
temporâneo, a que assistimos actua1Iilentei4, só foram possíveis após
Filosofia e Retórica
um reexame das relações entre a retórica e a dialéctica, tal como
foram estabelecidas por Aristóteles e profundamente modificadas
por Pedro Ramo num sentido desfavorável à retórica. É a um reexa-
me semelhante que nos propomos proceder: ele explicará as causas
do declínio da retórica e elucidará sobre as relações da nova retórica
com a teoria da argumentação.
No seu memorando consagrado à retórica antiga, Roland Barthes
observa com razão que «a retórica deve ser sempre lida no jogo
estrutural das suas vizinhas (Gramática, Lógica, Poética,
Filosofia)» 1• Pelo meu lado, acrescentaria que, para bem situar a
retórica e bem a definir, é igualmente necessário precisar as suas
relações com a dialéctica.
Aristóteles distinguiu, no seu Organon, duas espécies de raciocí-
nios: os raciocínios analíticos e os raciocínios dialécticos. O estudo
que daqueles empreendeu nos Primeiros e nos Segundos Analíticos
valeu-lhe ser considerado, na história da filosofia, como o pai da
lógica formal. Mas os lógicos modernos esqueceram, porque não
lhes tinham percebido a importância, que ele tinha estudado os racio-
cínios dialécticos nos Tópicos, na Retórica e nas Refutações sofisti-
cas, o que faz dele, igualiilente, o pai da teoria da argumentação.
Nos seus Analíticos, Aristóteles estuda formas de inferência
válida e, especialmente, o silogismo, que permitem, dadas deter-
minadas hipóteses, delas inferir uma conclusão de forma necessária:
se todos os A são B e se todos os B são C, daí resulta necessa-
riamente que todos os A são C. A inferência é válida seja qual for a
verdade ou a falsidade das premissas, mas a conclusão só é verda-
deira se as premissas forem verdadeiras. Esta inferência caracteriza-
-se, simultaneamente, pelo facto de ser puramente formal, pois é
válida seja qual for o conteúdo dos termos A, B e C (na condição de
que cada letra seja substituída pelo mesmo valor sempre que ela se
apresente) e pelo facto de estabelecer uma relação entre a verdade
20
21
O IMPÉRIO RETÓRICO LóGICA. DIALÉCUCA. FILOSOFIA E RETÓRICA

das premissas e a da conclusão. Sendo a verdade uma propriedade artes do discurso, artes disserendi, ele define a gramática como a
das proposições, independente da opinião dos homens, os raciocí- arte de bem falar, isto é, de falar correctamente, a dialéctica como a
nios analíticos são demonstrativos e impessoais. Esse não é, con- arte de bem raciocinar e a retórica como a arte de bem dizer, do uso
tudo, o caso dos raciocínios dialécticos. Um raciocí~o é dialéctico, eloquente e ornamentado da linguagem6.
diz Aristóteles, se as suas premissas forem constituídas por opiniões Considerando a dialéctica como «a arte geral para inventar e jul-
geralmente aceites2: define desta forma as opiniões aceites por gar todas as coisas»1, pretende que «há apenas um método, que foi o
todos, pela maior parte ou pelos filósofos, isto é, por todos, pela de Platão e de Aristóteles, [ ... ]este método encontra-se em Virgílio
maioria, ou pelos mais notáveis e mais ilustres entre elesJ. e Cícero, em Homero e Demóstenes, preside às matemáticas, à filo-
Em certos "casos, aquilo que é geralmente aceite é verosímil, mas sofia, aos juízos e à conduta dos homens.»s
não se deve confundir esta verosimilhança com uma probabilidade Rejeita com estrépito a distinção aristotélica entre juízos analíti-
calculável: pelo contrário, o sentido do termo "euÃoyoç", que se, cos e dialécticos, justificando assim a sua atitude: <<pois ainda que as
traduziu por "geralmente aceite" ou "aceitável", tem um aspecto' coisas cognoscíveis sejam umas necessárias e ci~ntíficas, outras con-
qualitativo, o que o aproxima mais do termo "razoável" do que do tingentes e opináveis, tal como a vista é comum à visão que vê todas ·
termo "provável''. Notemos, além disso, que a probabilidade só diz as cores, mutáveis ou imutáveis, também a arte de conhecer, isto é, a
respeito a factos ou acontecimentos, passados ou futuros, enquanto Dialéctica ou Lógica, é uma e a mesma doutrina para perceber todas
as teses em discussão podem dizer respeito a qualificações in- as coisas [ ... )»9.
temporais, tais como «Ü mundo é finito ou infinito?», «A democra- A amplitude assim dada à dialéctica, que tanto comporta o
cia é ou não a melhor forma de governo?». estudo das inferências válidas como a arte de encontrar e julgar os
Vemos imediatamente que os raciocínios dialécticos partem do argumentos, tira à retórica de Aristóteles as suas duas partes es-
que é aceite, sendo o seu fim o de fazer admitir outras teses que são senciais, a invenção e a disposição, deixando-lhe apenas a elocu-
ou podem ser controversas: têm, pois, o propósito de persuadir ou de ção, estudo das formas da linguagem ornamentada. É neste espírito,
convencer. Não consistem em inferências válidas e constringentes, depois desta redução filosoficamente justificada, que o amigo de
mas apresentam argumentos mais ou menos fortes, mais ou menos Pedro Ramo, Omer Talon, publica em Colónia, em 1572, a primeira
convincentes, e que não são nunca puramente formais. Um argu~ retórica sistematicamente limitada ao estudo das figuras, sendo a fi-
mento persuasivo é o que persuade aquele a quem se dirige4: contra- gura, segundo a definição de Talou, «uma expressão pela qual o
riamente ao raciocínio analítico, o raciocínio dialéctico não é impes- desenvolvimento do discurso difere do recio e simples hábito»'º·
soal, pois é apreciado pela sua acção sobre um espírito. Daqui Assim foi instaurada a retórica clássica, essa retórica das figuras
resulta que é preciso distinguir nitidamente os raciocínios analíticos que, pela degenerescência, conduziu progressivamente à morte da
dos raciocínios dialécticos, incidindo uns sobre a verdade e os outros retórica.
sobre a opinião. Exigindo cada domínio um tipo de discurso dife- É sabido que a lógica moderna, tal como se desenvolveu desde
rente, é tão ridículo contentarmo-nos com argumentações razoáveis meados do século XIX, identificou, sob a influência de Kant e dos
por parte de um matemático como exigir provas científicas a um lógicos matemáticos, a lógica, não com a dialéctica, mas com a
orador5. lógica formal, isto é, com os raciocínios analíticos de Aristóteles,
Ora, é neste ponto que se situa a novidade, mas também o erro, de e negligenciou completamente os raciocínios dialécticos, considera-
Pedro Ramo, que se tomaria fatal para a retórica. Partindo do trivium, dos como estranhos à lógica. Nisso parece-me ter cometido um erro,

22 23
O IMPÉRIO RETÓRICO
LÓOICA. DIALÉC'CICA. Fll..OSOFIA E RETÓRICA

simétrico do de Ramo. Pois se é inegável que a lógica formal constitui completar, se parecer útil, o estudo geral da argumentação com
uma disciplina separada que se pr~sta, como as matemáticas, a opera- metodologias especializadas segundo e tipo de auditório e o género
ções e ao cálculo, é também inegável que raciocinamos, mesmo de disciplina. Poder-se-ia, assim, elaborar uma lógica jurídica13 ou
quando não calculamos, aquando de uma deliberação íntima ou de uma lógica filosófica, que mais não seriam do que aplicações parti-
uma discussão pública, apresentando argumentos a favor ou contra culares da nova retórica ao direito e à filosofia.
uma tese, criticando ou refutando uma crítica. Em todos estes casos, _ Subordinando a lógica filosófica à nova retórica, tomo partido no
não se demonstra, como em matemática, mas argumenta-se. É pois / debate secular que opôs a filqsofia à retórica, e isto desde o grande
normal, se se concebe a lógica como estudo do raciocínio sob todas , poema de Parménides.
as suas formas, completar a teoria da demonstração, desenvolvida Este, e a grande tradição da metafísica ocidental, ilustrada pelos
pela lógica formal, com uma teoria da argumentação, estudando os nomes de Platão, Descartes e Kant, opôs sempre a busca da verdade,
raciocínios dialécticos de Aristóteles. objecto proclamado da filosofia, às técnicas dos retóricos e dos
Estes consistem em argumentações visando a aceitação ou a sofistas, que se contentam em fazer admitir opiniões tão variadas
rejeição duma tese em debate: o seu estudo, assim como o das con- quanto enganadoras. Parménides prefere o caminho da verdade ao
dições de sua apresentação, é o objecto da nova retórica que pro- da aparência; Platão opõe o saber à opinião comum; Descartes funda
longa, amplificando mesmo, a de Aristóteles. a ciência sobre evidências irrefragáveis, tomando quase por falso tu-
Com efeito, este tinha oposto a retórica à dialéctica, tal como a do o que fosse apenas verosímil; Kant, por fim, elaborando a sua
tinha examinado nos Tópicos, vendo mesmo nela o reverso (&.\ltlcr- metafísica, que é essencialmente uma epistemologia, inventário de
i:pocpoç) da dialéctica11 : esta interessa-se pelos argumentos utilizados todos os conhecimentos que, «tendo um fundamento a priori, devem
numa controvérsia ou numa discussão com um único interlocutor, ser tidos à partida como absolutamente necessários», propõe-se
enquanto a retórica diz respeito às técnicas do orador dirigindo-se a banir as opiniões da filosofia.
uma turba reunida na praça pública, a qual não possui nenhum saber Para se assegurar de que as teses preconizadas pelos filósofos
especializado e que é incapaz de seguir um raciocínio um pouco não constituem opiniões incertas e falaciosas mas verdades indiscu-
mais elaborado12.
tíveis, é preciso que elas beneficiem de um fundamento sólido e
Mas a nova retórica, em oposição à antiga, diz respeito aos dis- indiscutível, de uma intuição evidente, que garanta a verdade do que
cursos dirigidos a todas as espécies de auditórios, trate-se duma é percebido como evidente. A evidência, assim concebida, não é um
turba reunida na praça pública ou duma reunião de especialistas, estado subjectivo que possa variar dum momento para o outro e de
quer nos dirijamos a um único indivíduo ou a toda a humanidade; indivíduo para indivíduo: o seu papel, com efeito, é o de estabelecer
ela examinará inclusivamente os argumentos que dirigimos a nós uma ponte entre o que é percebido como evidente pelo sujeito cog-
mesmos, aquando duma deliberação íntima. Considerando que o seu noscente e a verdade da proposição evidente que deve impor-se da
objecto é o estudo do discurso não-demonstrativo, a análise dos mesma maneira a todo o ser de razão 14 •
raciocínios que não se limitam a inferências formalmente correctas, Uma argumentação nunca é capaz de proporcionar a evidência e
a cálculos mais ou menos mecanizados, a teoria da argumentação não está em questão argumentar contra o que é evidente. Aquele que
concebida como uma nova retórica (ou uma nova dialéctica) cobre se atém à evidência está certo de que ela se imporá com a mesma
todo o campo do discurso que visa convencer ou persuadir; seja qual evidência a todos os seus interlocutores; a argumentação não pode
for o auditório a que se dirige e a matéria a que se refere. Poder-se-á intervir, a menos que a evidência seja contestada. É o que já tinha

24 25
O IMP!iRIO RETÓRICO
LÓGICA. OIAL!iCTICA. FILOSOFIA E RETÓRICA

· notado Aristóteles, o qual reconhece ser indispensável recorrer aos da acção ora reduzidos a problemas de conhecimento, isto é, de ver-
raciocfuios dialécticos quando os primeiros princípios dwna ciência, que dade ou de probabilidade, ora considerados como em nada rele-
normalmente se impõem por si mesmos, são contestadosis. O mesmo se vando da razão.
passa quando se discute wna definição. Mas todos os que crêem na existência de escolhas razoáveis, pre-
Se, normalmente, é graças à intuição que se apreendem as cedidas por uma deliberação ou por discussões, nas quais as diferen-
noções simples e os primeiros princípios duma ciência teórica, tes soluções são confrontadas umas com as outras, não poderão dis-
Aristóteles reconhece que é nas disciplinas práticas, como a ética e a pensar, se desejam adquirir uma consciência clara dos métodos
política, onde as escolhas e as controvérsias são inevitáveis, que o intelectuais utilizados, uma teoria da argumentação tal como a nova
recurso à argumentação se impõe, trate-se duma deliberação íntima retórica a apresenta.
ou duma discussão pública. Por isso o seu Organon comporta, ao Esta não se limitará, aliás, ao domínio prático, mas estará no
lado dos Analíticos, que dizem respeito ao raciocínio formal, os/ âmago dos problemas teóricos para aquele que tem consciência do
Tópicos, que examinam os raciocínios dialécticos, os quais perrni{ papel que a escolha de definições, de modelos e de analogias, e, de
tem justificar a melhor opinião, a opinião razoável (eoÂoyoç). 1
forma mais geral, a elaboração duma linguagem adequada, adaptada
Todos os que crêem poder determinar a verdade indepen- ao campo das nossas investigações, desempenham nas nossas teo-
dentemente da argumentação menosprezam a retórica, que se refere rias. É neste sentido que se poderia ligar o papel da argumentação à
a opiniões: em rigor, ela poderia servir para propagar verdades razão prática, papel que será fundamental em todos os domínios
garantidas ao orador pela intuição ou pela evidência, mas não para onde se vê operar a razão prática, mesmo quando se trate da resolu-
as estabelecer. Mas, se não se admite que se possam fundar teses ção de problemas teóricos. Insisto em frisar este ponto para evitar
!i filosóficas sobre intuições evidentes, será preciso recorrer a técnicas qualquer mal-entendido quanto ao alcance da argumentação, tal
!I argumentativas para as fazer prevalecer. A nova retórica toma-se,
'li como a concebo2º.
;,Ir'
,, então, instrumento indispensável à filosofia16.
,1::1
Aqueles que, como P. Ricceur, admitem, em filosofia, verdades
metafóricas que não se podem fazer prevalecer por uma evidência
constringente, porque propõem uma reestruturação do real, não
podem normalmente negar a importância das técnicas retóricas que
tendem a fazer prevalecer esta ou aquela metáfora sobre uma outra11:
não poderão negligenciá-las, a menos que admitam a existência
duma intuição que imporia uma única visão do real e excluiria, por
isso mesmo, todas as outrasis.
O declínio da retórica, a partir dos finais do século XVI, deveu-se
à ascensão do pensamento burguês, o qual generalizou o papel da evi-
dência, trate-se da evidência pessoal do protestantismo, da evidência
racional do cartesianismo ou da evidência sensível do empirismoJ9.
O menosprezo pela retórica e o esquecimento da teoria da argu-
mentação levaram à negação da razão ·prática, sendo os problemas

·26
27

. , i,,.,,,,, . ,,~.. ,,.-~

Você também pode gostar