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MANUAL DE DIREITO PENAL 1

AUTORIA: ALBANO MACIE, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO


2019
PARTE II
TEORIA GERAL DO CRIME OU DELITO

CAPÍTULO I
ASPECTOS GERAIS

50. Teoria do crime. Significado

Todo o Direito penal alicerça-se no binómio “crime e pena” e “perigosidade e medidas


de segurança”. A teoria geral do crime reúne num sistema os elementos que, com base no
direito positivo, podem considerar-se comuns a todo o delito e a certos grupos de delitos1.
Então, a função da teoria do delito é, precisamente, “… a determinação e definição das
características, elementos ou categorias essenciais e comuns a todo e qualquer crime
(homicídio, roubo, poluição, fraude fiscal, etc.), bem como a caracterização da relação
recíproca entre estas categorias”2.
A teoria do delito é a parte da ciência do direito penal que explica o que é crime, as suas
características ou elementos, visando averiguar a presença ou não do crime em cada facto
humano concreto3.
Na verdade, a teoria de delito constitui a manifestação mais característica e elaborada
da dogmática do Direito penal, com função dupla: i) no plano prático de aplicação do direito
penal ao caso concreto, “é factor de certeza e segurança jurídica, evitando a mera intuição, a
improvisação e a eventual arbitrariedade nas decisões judiciais; é também condição da
igualdade no tratamento de casos criminais “idênticos”; e contribui, ainda, para a economia na
análise de casos práticos. ii) no plano didáctico, tem a vantagem de propiciar uma visão de
conjunto das características essenciais da infracção criminal, logo no início da disciplina sobre
a Parte Geral do Código Penal … “4.
É na linha da teoria geral do delito que vamos procurar definir o crime e apresentar os
seus elementos básicos ou características, que vão ocupar esta parte de estudo do crime.

1
PUIG, Santiago Mir, Derecho …, ob. cit., p. 108.
2
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito penal …, ob. cit., p. 241.
3
Cfr. SILVA, Germano Marques da, Direito penal …, ob. cit., p. 13.
4
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal …, ob. cit., p. 243.

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51. Definição do crime ou delito

Neste ponto, é importante, antes de apresentar o conceito de crime, desfazer algumas


zonas de penumbra relativamente a certas expressões que o Código penal utiliza, às vezes para
designar mesma realidade, e noutras situações para referir-se a essa realidade e outra. São as
expressões crime, delito, contravenção e infracção criminal.
O crime é sinónimo de delito, nos termos do nosso Código. Daí que, no seu artigo 1,
define o crime ou delito como sendo “… o facto voluntário declarado punível pela lei penal”5.
Portanto, quando nos referirmos a crime, estamos a falar de delito.
Ora, o Código, por exemplo, no artigo 27, utiliza a expressão “infracção criminal”. Diz-
se lá que “Somente pode ser sujeito da infracção criminal …”. A que se refere?
Ao crime ou delito ou ainda à contravenção?
Pensamos, data venia, que se refere tanto ao crime, como à contravenção. Portanto,
quando falamos no nosso ordenamento jurídico, no âmbito do Código penal, de infracção
criminal referimo-nos aos crimes ou delitos e às contravenções.
Feito este excurso explicativo no âmbito do direito positivo, podemos conceituar o
crime ou delito na perspectiva doutrinária. Ou melhor! Quid est crimen?
Os autores seguem vários critérios para definir o crime. Existe o critério formal, ou seja,
sob o prisma da técnica jurídica; alguns distinguem a noção formal da substancial; outros nem
tanto, conjugam os dois critérios.

I. Do ponto de vista formal, o crime é visto sob aspecto da técnica jurídica, isto é, da
lei. Assim, crime ou delito será um facto voluntário declarado punível pela lei penal (art. 1);
ou “acção ou omissão proibida por lei, sob condenação de uma pena”6 ; Crime para Manzini é
“facto individual pelo qual se viola preceito jurídico provido daquela sanção específica, que é
a pena em sentido próprio”; para Von Liszt, delito é “o facto a que o ordenamento jurídico
atribui, como consequência jurídica, a pena”.

5
Esta definição legal não é a mais completa, mas tem a função de apoio para as causas de justificação
do facto, pois exclui todos os comportamentos que são sejam voluntários, isto é, que excluem a acção
(v.g., forças irresistíveis). Ora, a definição é completada por tantos outros dispositivos, como os que
exigem o dolo e a culpa.
6
HARRIS, Principles of the Criminal Law, p. 1.

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II. No sentido substancial ou material, olha-se para o sentido ontológico, a razão que
levou o legislador a determinar como criminosa uma conduta humana, a sua natureza danosa e
as suas consequências. É o conceito material que tem maior relevância jurídica, pois coloca em
destaque o seu conteúdo teleológico, a razão determinante de constituir uma conduta
penalmente censurável. Assim, segundo Manzini “delito é acção ou omissão, imputável a uma
pessoa, lesiva ou perigosa a interesse penalmente protegido, constituída de determinados
elementos e eventualmente integrada por certas condições, ou acompanhada de determinadas
circunstâncias previstas em lei7.

Portanto, este conceito de crime tem em conta a necessidade de protecção dos bens
fundamentais da sociedade.

III. O terceiro sentido é aquele que constitui a miscigenação do aspecto formal e


material ou substancial, e tem-se por crime, segundo Carrara, “a infracção da lei do Estado,
promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um acto externo do homem,
positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso”.
Em conclusão, crime ou delito deverá ser definido, tendo em conta o direito positivo ou
constituído, pois é ele que delimita o âmbito do conceito. Assim, crime ou delito será um facto
voluntário, típico, ilícito e culpável, declarado punível pela lei penal.

Portanto, são estes quatro elementos que vão constituir o objecto da presente parte II,
nomeadamente: i) o facto voluntário; ii) a tipicidade; iii) a ilicitude e iv) a culpabilidade.

51. Crime e contravenção


O Código penal divide as infracções criminais em crimes ou delitos e contravenções.
Mas outras nações usam um critério tripartido que divide entre crimes, delitos e contravenções
ou faltas. O nosso sistema utiliza a classificação bipartida.
Ora, qual é o critério de distinção entre crimes e contravenções?

7
JESUS, Damásio E. de, Direito …, ob. cit., pp. 150-151.

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Primeiro a história! No Estado-Polícia, no chamado despotismo iluminado e até à
última fase do absolutismo monárquico, o Estado interveio acentuadamente na economia e na
sociedade. Do intervencionismo, resultou a criação de uma ampla gama de normas jurídicas
reguladoras de vários sectores da vida económica e social. Sem preocupações com os direitos
e liberdades fundamentais dos cidadãos, a punição das violações a estas normas jurídicas, que
por natureza são administrativas, cabia às diversas autoridades policiais. Com o surgimento do
Estado de Direito e com a consequente consagração dos direitos, liberdades e garantias
fundamentais e da limitação da actuação da Administração pública ao princípio da juridicidade,
as sanções pelas transgressões àquelas normas passaram a ser aplicadas pelos tribunais, sob a
categorização de contravenções8.
As contravenções surgem neste contexto e se colocam ao lado do crime. Assim, nasceu
a infracção criminal; sendo que as contravenções são menos graves que o crime.
As contravenções nascem com o objectivo de proteger os interesses da Administração
pública e constituíram consequências pela violação de normas administrativas. As suas sanções
consistiam em aplicação de penas curtas de prisão e multas.
Com a entrega aos tribunais da função punitiva das contravenções, ao lado do crime, a
doutrina começou a construir dois tipos de ilícitos: o ilícito penal administrativo e o ilícito
penal de justiça.
Por isso, o primeiro critério de distinção entre as contravenções e o crime, o mesmo que
ilícito penal administrativo e o ilícito penal de justiça, era quantitativo: segundo Ferri, até
determinada pena, a infracção constituiria contravenção e desse ponto em diante, traduzir-se-
ia em crime.
O segundo critério foi material. Defendido por Goldschmidt e Wolf, assenta no que a
contravenção viola os comandos administrativos destinados a promover o bem-estar social
(interesses da Administração pública); já o crime consistiria na violação de valores da justiça,
isto é, na violação de normas protectoras de direitos e liberdades fundamentais ou bens
jurídicos fundamentais. Mas é como assinala Taipa de CARVALHO “sobre este critério …, há
que dizer o seguinte: não satisfaz plenamente, uma vez que não existe uma antinomia ou,
sequer, uma total autonomia entre «interesse da administração pública» e «valores da justiça»,
uma vez que os interesses da administração não podem ser alheios ao valor da justiça”9.

8
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito penal, …, ob. cit., p. 118.
9
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito penal, …, ob. cit., p. 119.

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Qual é o critério do nosso Código. O Legislador moçambicano não tomou posição
relativamente a este assunto. Por exemplo, no Brasil o critério é quantitativo. Diz o artigo 1.º
da Lei de Introdução do Código Penal que: “Considera-se crime a infracção penal a que a lei
comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou
cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infracção penal a que a lei comina,
isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou
cumulativamente”.

51.1. Definição da contravenção

O artigo 5 do nosso Código penal prescreve que “Considera-se contravenção o facto


voluntário punível, que unicamente consiste na violação, ou na falta de observância das
disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção
maléfica”.
Tal como o crime definido no artigo 1, a contravenção é também um facto voluntário,
contudo, mais do que violar as leis, como ocorre nos crimes, nas contravenções conta a violação
dos regulamentos, como fontes de incriminação.
Contudo, o Código limita-se a definir a contravenção, sem estabelecer um critério
preciso, o que se pode retirar é que o critério é o da natureza das normas violadas,
nomeadamente as preventivas e que a sua punição não depende de no seu cometimento ter
havido intenção maléfica, bastará a intenção de violar ou falta de observância (d)as disposições
preventivas das leis e (d)os regulamentos ou a negligência na sua violação. Está ainda em causa
o perigo de lesão dos bens fundamentais, pois “os actos contravencionais não constituem, na
sua essência, actos reprováveis, e apenas são puníveis porque as leis e os regulamentos assim
o determinam, como medida preventiva de certos males que poderiam resultar de tais actos”10.

51.2. Regime jurídico das contravenções

A distinção entre crime e contravenção é de grande importância prática pelo facto de


serem duas espécies de infracções penais reguladas por normas diversas, quer do ponto de vista
substancial, quer processual. Ora vejamos:

10
GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, Código …, ob. cit., p. 14.

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a) as contravenções podem ser previstas em leis ou regulamentos;


b) nas contravenções é sempre punida a negligência (art. 6);
c) “nas contravenções, não há que fazer prova da culpa ou negligência,
porque esta se presume, embora se admitindo prova em contrário. Assim, é o
contraventor que tem de fazer a prova de que procedeu com diligência necessária, a fim
de se justificar”11.
d) nas contravenções não é punida a tentativa, nem a frustração, pois elas
consistem unicamente na violação ou na falta de observância das disposições
preventivas das leis ou regulamentos; pelo facto de constituírem actos de bagatela ou
de menor importância e previnem perigos indeterminados (art. 16);
e) as contravenções nunca são punidas com pena maior;
f) nas contravenções não é punível a cumplicidade, nem o encobrimento
(art. 26);
g) a responsabilidade criminal por contravenção é agravada ou atenuada
em função da gravidade do facto, da culpa, da situação económica do agente e do
benefício económico retirado da prática da contravenção (art. 36);
h) a reincidência nas contravenções ocorre quando o agente comete
infracção idêntica antes de decorrerem seis meses, contados desde a punição (art. 39);
i) as contravenções prescrevem, quanto ao procedimento, passados três
anos (n.º 3 do art. 151);
j) nas contravenções, o contraventor só perde os instrumentos da
contravenção se assim a lei o declarar;
k) as contravenções são julgadas em processo de transgressões, salvo
havendo conexão objectiva e subjectiva que determine o julgamento conjunto com o
crime, momento em que serão julgadas na forma do processo do crime em causa.

52. Características ou elementos do crime

Recordar que definimos o crime ou delito como facto voluntário, típico, ilícito e
culpável, declarado punível pela lei penal.

11
GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, Código …, ob. cit., p. 14.

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Portanto, são características do crime:
1. O facto voluntário, que é composto:

• pela conduta voluntária;


• pelo resultado ou evento;
• pelo nexo causal entre a acção e o resultado ou imputação do
resultado à conduta.

2. A tipicidade, que é a adequação do facto voluntário aos requisitos ou


pressupostos definidos pela lei penal.

3. A ilicitude, que é a antijuridicidade, ou a desconformidade da conduta


voluntária com as normas jurídico-penais. Corresponde à ilegalidade da conduta.

4. A culpabilidade, que é a relação subjectiva entre o facto típico e o seu


agente, que permite responsabilizá-lo pela prática do crime.

No próximo capítulo vamo-nos ocupar das características ou elementos do crime.

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CAPÍTULO II
CARACTERÍSTICAS GERAIS DO CRIME

SECÇÃO I
Crime como facto voluntário

Caso prático: “António e Bernardo vagueiam pela exposição anual de produtos na


Feira de Maputo. Em frente ao “stand” do Comerciante Vasco, em sequência à uma troca de
palavras entre os dois, Bernardo desfere, repentinamente, um violento soco no peito de
António. Este (António) cai sobre os produtos de Vasco, que se encontravam expostos e
destrói-os de forma desaproveitada. Bernardo foge do local, enquanto António presta
declarações e explicações ao agente da PRM solicitado. para o efeito, por Vasco”12.

53. Conduta humana como pressuposto do facto punível

No caso prático é somente questionada a punibilidade da conduta de António, pois o


ponto de referência são os danos causados nos produtos de Vasco através da sua conduta.
Assim, como escreve WESSELS “Toda a investigação jurídico-penal parte da questão de se
um determinado acontecimento preenche os elementos de um facto punível e de se isto deve
ser imputado a uma pessoa determinada como sua «obra de livre vontade» ”13.
Com isto queremos afirmar que o Direito Penal tem como ponto de referência a conduta
humana ligada às consequências socialmente danosas.
A conduta é, por definição, a acção ou omissão humana, voluntária e consciente, activa
(um fazer) ou negativa (um não fazer, inactividade), dirigida a uma determinada finalidade, ou
que altera o mundo exterior.
A conduta é constituída por dois elementos:
• a acção;
• a omissão.

12
Adaptado de WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 16.
13
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 16.

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Portanto, todas as situações de ausência de conduta ficam excluídas do Direito Penal.
Então, no caso prático 3, é preciso investigar se haverá ou não na conduta de António uma
“acção”.
Por isso, devem ser excluídos do conceito da conduta: “i) Os puros actos reflexos e os
cometidos em estado de inconsciência (…); ii) os movimentos praticados sob o impulso de
forças irresistíveis, como é o caso da «vis absoluta» (…)”14.

53.1. Acção em Direito Penal

O Direito penal não constrói nem cria o conceito de acção, mas ele retira este conceito
do mundo dos factos, pois ainda que não existisse o Direito, as acções teriam lugar.
Portanto, antes de conceituarmos a acção, vamos analisá-la segundo a sua evolução
dogmática. Assim, temos as seguintes escolas.

53.1.1. Teoria causal-naturalistica da acção

A escola causal nasce no século XIX, pois a ciência jurídica, nessa época, estava
impregnada de ideias positivistas. Isto é, no Direito ainda se adoptava a mesma metodologia
das ciências da natureza. Recorde-se que mesmo a sociologia era designada como física social,
como leis gerais válidas para todas as sociedades. Aliás, nesta época foram as ciências da
natureza (física) que possibilitaram a industrialização, o desenvolvimento da indústria de
transportes, etc.
Portanto, é neste contexto de êxito das ciências da natureza que é desenvolvido o
conceito de acção para o Direito Penal. É, por isso, que o nome da teoria é causalista, que deriva
da causalidade, que faz nascer a lei da causalidade que rege as ciências da natureza, baseando-
se na relação causa e efeito.
Assim, segundo a escola causal, a acção é movimento corpóreo voluntário que causa a
modificação do mundo exterior.
Os mestres desta teoria são dois alemães, nomeadamente, Franz von LISZT e Ernest
von BELING.

14
CORREIA, Eduardo, Direito …, ob. cit., pp. 236-237.

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Para von LISZT a acção consiste na “conduta voluntária no mundo exterior; causa
voluntária ou não impediente de uma modificação no mundo exterior”15. Para ele, a acção é
composta por actos de vontade e o resultado (modificação do mundo exterior) e à estes dois
elementos acresce a relação necessária (nexo de causalidade) para que eles formem um todo.
Diz von LISZT que “Em dois casos referimos a mudança do mundo exterior à vontade: 1.º
quando a mudança foi causada voluntariamente; 2.º quando voluntariamente não foi impedida.
A comissão e a omissão são as duas formas fundamentais da acção e consequentemente do
crime”16.
Para BELING, a acção é “um comportamento corporal voluntário ou a causação
voluntária de uma modificação do mundo exterior”: o comportamento corporal corresponde à
fase externa da acção; a voluntariedade indica que essa fase externa é produzida pelo domínio
sobre o corpo, pela liberdade de intervenção muscular. A acção pode constituir-se em um fazer,
que é uma acção positiva, ou um não-fazer, que é uma omissão, isto é, a distensão dos
músculos17. Para BELING, como a acção tem uma fase objectiva e subjectiva, exclui-se do seu
conceito fenómenos humanos que são somente objectivos ou somente subjectivos, como18:
a) uma mera propriedade do homem (sua perigosidade não-manifestada);
b) um mero estado do homem (enfermidade);
c) um simples querer ou pensar puramente interno;
d) os estados de inconsciência (por exemplo, um dano causado por um
desmaio);
e) aqueles comportamentos que são provenientes de excitações irresistíveis
(por exemplo, os movimentos reflexos).

Como se nota, esta teoria incorpora no Direito Penal as leis da natureza e, por isso, a
acção é um puro factor de causalidade, sendo que a conduta é o efeito da vontade e a causa do
resultado, não se preocupando com a valoração normativa.
Esta teoria tem sido criticada: “A crítica que deve ser feita a essa teoria é que o conteúdo
da volição não deve ser analisado na acção, mas na culpabilidade. Destarte, não se deve
investigar no âmbito da multirreferida acção se a modificação no mundo exterior foi produto

15
LISZT, Franz von, Tratado de Derecho Penal, Tomo 2, Madrid, Reus, s/d, p. 297.
16
LISZT, Franz von, Tratado de Direito …, ob. cit., pp. 193-194.
17
BELING, Ernest von, Esquema de Derecho Penal, Buenos Aires, Depalma, 1944, pp. 20-21.
18
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta no Direito Penal, in Revista de Informação Legislativa,
Brasilia, a. 37, n.º148 out/dez, 2000, p. 91.

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da finalidade do agente (dolo) ou se a finalidade foi dirigida para um fato lícito, sendo
censurados os meios que o agente utilizou (culpa). A falha da teoria causalista da acção é que
ela esvazia o conteúdo da vontade. A intenção dos causalistas é imputar todos os juízos
objectivos à acção típica e antijurídica e todos os juízos subjectivos à culpabilidade, como se
pudesse haver uma separação perfeita e peremptória entre o objectivo e o subjectivo. Se todo
o subjectivo deve ser analisado na culpabilidade, deve-se deslocar o estudo do conteúdo da
vontade da acção para a culpabilidade, esvaziando-se, enfatize-se, o conteúdo da própria
acção”19.

53.1.2. Teoria finalista da acção

Esta teoria é criada por Welzel, Weber, Busch, Maurach, Kaufmann, Stratenwerth e
outros, na primeira metade do século XX e pretendiam com ela romper com o direito penal
nazista na Alemanha. Aduz WELZEL que:

“se nós desejamos, porém, superar a corrupção do direito


operada pelo totalitarismo, não podemos simplesmente retornar ao
estado existente antes de sua aparição, mas devemos examinar a
doutrina precedente, que em parte nós mesmos tínhamos defendido, ou
na qual crescemos, recercando os seus limites”.

Portanto, o finalismo vem acrescentar na teoria causal-naturalistica as valorações ético-


sociais e rompe com o direito nazista que através da pena pretendia purificar biologicamente o
povo alemão.
A acção é, para a escola finalista, o exercício da actividade finalística, portanto
acontecimento final e não somente causal. A finalidade20 da acção se baseia na capacidade do
homem de prever as possíveis consequências de sua actividade, em extensão consciente, de
assentar diversos objectivos e conduzir sua conduta, conforme um plano, no sentido do
objectivo desejado. A acção finalista é, pois, um agir consciente e conduzido ao objectivo: a
vontade condutora do acontecimento causal é considerada como a “espinha dorsal da acção
finalista” (WELZEL).

19
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta no Direito Penal, ob.cit., p. 91.
20
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 19.

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WELZEL explica melhor a sua teoria com um exemplo. Diz ele que “Se um raio
electrocuta um homem que trabalha no campo, esse facto se baseia na lei da causalidade, visto
que entre o homem e a nuvem se deu a máxima tensão necessária para a descarga eléctrica.
Essa tensão também poderia ter sido originada por qualquer outro objecto que estivesse a certa
altura da nuvem. Não existe, pois, um acontecer final para determinar a descarga eléctrica. A
situação, nas acções humanas, é totalmente diversa; quem deseja matar outrem elege,
conscientemente para atingir esse fim, os factores causais necessários, como a compra da arma,
averiguação da oportunidade, disparar ao objectivo”21.
Esta teoria baseia-se na distinção entre facto natural, regido por leis da natureza e factos
humanos dirigidos pela necessidade de realizar um propósito ou um fim. Assim, temos nesta
teoria duas estruturas da acção:
I. Estrutura subjectiva da acção, que é a dimensão psicológica da teoria, cujos
elementos são: i) a proposição de um fim a atingir; ii) selecção dos meios adequados para a
realização da finalidade proposta; iii) a representação de efeitos colaterais à realização do fim,
compreendidos em duas categorias, entre efeitos colaterais necessários e possíveis22, isto é, as
consequências resultantes do emprego dos meios seleccionados.
II. Estrutura objectiva da acção, consiste na activação dos meios seleccionados para a
realização do fim proposto. A utilização dos meios (seleccionados, regressivamente, conforme
a natureza do fim proposto) para a realização do projecto de acção permite definir a estrutura
objectiva da acção como realização do projecto de acção23. Isto é, trata-se de realizar o plano
traçado na fase subjectiva no mundo real: “Se não se alcança este domínio final no mundo real
– por exemplo, o resultado não se produz por qualquer causa – a acção final correspondente
fica somente tentada”24.
Na teoria finalista, quando se diz que a acção humana tem em sua estrutura a vontade
dirigida a um fim, diz-se na verdade que o dolo reside na acção, enquanto na teoria causal-
naturalistica não se analisa o conteúdo da vontade que está presente na acção, portanto não se
reconhece que o dolo está na acção; para essa teoria, o dolo deve ser estudado na
culpabilidade25.

21
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta …, ob. cit., pp. 91-92.
22
SANTOS, Juarez Cirino dos, Direito Penal (A nova parte geral), Forense, Rio de Janeiro, 1985, 57.
23
SANTOS, Juarez Cirino dos, Direito Penal, ob. cit., pp. 57-58.
24
WELZEL, Hans, El Nuevo Sistema de Derecho Penal, apud BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta
…, ob. cit., p. 92.
25
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta …, ob. cit., p. 92.

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Nesta escola, a finalista, se a acção é dirigida a um fim, como solucionar a problemática
dos crimes culposos?
Nos crimes culposos, existe uma vontade dirigida a um fim, só que o fim será um fim
conforme o Direito, isto é, não é contrário ao direito. A reprovação jurídica nos crimes culposos
não recai na finalidade do agente, mas nos meios que o agente elegeu para a consecução de seu
fim, sendo eles qualificados como imprudentes, negligentes ou imperitos26.
Podemos rematar com Brandão, o seguinte: “Assim, ressalte-se, na culpa, o direito não
reprova a finalidade do agente, mas reprova os meios que o agente elegeu para a consecução
de seus fins. Por exemplo, se o agente dirige a sua vontade para chegar logo ao seu trabalho,
dirige a sua vontade para um fim lícito, mas se para galgar esse fim o agente elege um meio
imprudente, como dirigir seu veículo acima da velocidade permitida, o Direito reprovará o
meio elegido e imputará ao sujeito uma responsabilidade penal a título de culpa”27.

Como se nota, o finalismo transferiu o dolo e a culpa da culpabilidade para a acção,


mas mantém todos os elementos da teoria causalista (manifestação de vontade no mundo
exterior e nexo de causalidade) e acrescenta mais um elemento a mais: a vontade dirigida a um
fim. Neste sentido se diz que a teoria finalista é uma súmula da teoria naturalista: “O finalismo
não abandona a tradicional tripartição: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Nem
sequer introduz ou suprime novos dados, mantém os mesmos, mas os separa e os redistribui
de outro modo entre os três estados da teoria do delito”28.

53.1.3. Teoria social da acção

A teoria social da acção é da autoria de Eberhard Schmidt, que ao actualizar o Tratado


de Direito Penal de Frans Von Liszt, seu mestre, procurou dar uma nova feição ao conceito
causal-naturalístico, livrando-o da excessiva influência do positivismo naturalista29. Esta teoria
tem seus adeptos, nomeadamente30 Engisch, Jescheck, Mihofer e Kaufmamn.

26
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta …, ob. cit., p. 92.
27
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta …, ob. cit., p. 92.
28
ORDIEG, Enrique Gimbernat, El Sistema de Derecho Penal en la actualidad. In Estudos de Derecho
Penal, Madrid, Tecnos, 1990, p. 164.
29
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta …, ob. cit., p. 93.
30
Para ENGISCH, acção é a causação voluntária de consequências calculáveis e socialmente relevantes;
para MAIHOFER, acção é a conduta objectivamente controlável pelo homem, dirigida a um resultado
social e objectivamente previsível; para SCHMIDT acção é a conduta portadora de vontade, que afecta
a esfera de vida de seus co-sócios através de seus efeitos, e que se apresenta sob aspectos normativos,

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Portanto, a teoria social da acção surge a partir da escola causal-naturalista da acção.
Contudo, Welzel, estrela da teoria finalista, entende que o conceito social da acção não é
antagónico à sua teoria finalista: “Parece haver-se esquecido, hoje, quando se contrapõe à
doutrina da acção finalista um conceito social, que um dos propósitos fundamentais do
finalismo, desde seu começo, foi a compreensão da acção como um fenómeno social. A acção,
como um fenómeno social, não pode ser compreendida senão sobre a base da doutrina da
acção finalista”31.

A escola social faz a síntese entre o comportamento humano e o mundo circundante,


sendo a acção todo o comportamento socialmente relevante32. Segundo este autor (Jescheck)
o comportamento corresponde “(…) a toda a resposta do homem a uma exigência situacional
reconhecida, ou, ao menos reconhecível, mediante a realização de uma possibilidade de
reacção, de que dispõe graças a sua liberdade”33.
O comportamento pode consistir no exercício de uma actividade final (finalidade),
quanto pode limitar-se à causação de uma consequência de um processo dirigido a uma
finalidade (imprudência) e, por último, pode manifestar-se como uma inactividade frente a uma
expectativa de acção (omissão)34.

53.1.4. As funções e considerações das teorias da acção

Estas três teorias (causal-naturalística, finalista e social) da acção exercem as seguintes


funções gerais35:
• constituem a base material do conceito de crime;
• a estrutura de suas categorias internas funciona como parâmetro para
indicar as situações de ausência de acção (excepto a teoria causal que exclui em parte
a dimensão psicológica da acção): nos casos de i) coacção absoluta; ii) movimentos
reflexos; iii) “movimentos sob hipnose”; iv) reacções instintivas de medo (curto-
circuito).

como unidade de sentido social e para KAUFMAMN a acção é a manifestação responsável e sensível da
realidade, com consequências causais domináveis pela vontade.
31
WELZEL, Hans, El Nuevo Sistema, …, ob. cit., p. 93.
32
JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado…, ob. cit., p. 201.
33
JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado…, ob. cit., p. 201.
34
JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado…, ob. cit., p. 201.
35
SANTOS, Juarez Cirino dos, Direito …, ob. cit., p. 61.

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Vamos agora às considerações finais, para depois traçarmos o conceito de acção em


nossa perspectiva.

Das três teorias, a que traça melhor a essência da acção é a teoria finalista. Ora vejamos:
• a teoria causal-naturalística investiga o objecto da acção com o método
das ciências da natureza, procurando simplesmente explicá-la, ao invés de compreendê-
la. A explicação é um acto gnosiológico próprio das ciências naturais, mas não serve
para a investigação nas ciências humanas, que têm um acto gnosológico próprio: a
compreensão.

• a teoria social procura um conceito valorativo da acção, valorando a sua


relevância social. “Ora, foi dito que o conceito de acção serve como elo de ligação entre
os elementos do crime, possibilitando sua sistematização. Por isso o conceito de acção
deve ser valorativamente neutro, pois os juízos de valor serão feitos por meio da
tipicidade e da antijuridicidade. Se nós utilizamos um conceito que não seja
valorativamente neutro, poderemos até mesmo pré-julgar a tipicidade e a
antijuridicidade, o que não corresponde às exigências de um direito penal liberal. Por
isso, a teoria social também não é hábil para revelar a substância da acção humana”36.

Portanto, eis a ideia básica da adopção da escola finalística da acção por certa doutrina:
“Quando reflectimos sobre a acção humana, podemos facilmente constatar que ela é dirigida à
consecução de fins. Aristóteles, já na antiguidade grega, elencava entre as causas primeiras do
ser a causa final. Por isso, quando o finalismo atribuiu a finalidade ao conceito de acção, ele
compreendeu que a actividade humana tem um motor propulsor, que, enfatize-se, é a
finalidade. Portanto, quando falamos em acção humana, estamos dizendo que o homem se
propõe a fins, elege os meios para a obtenção de seus fins e modifica o mundo exterior.
Concluímos, por conseguinte, dizendo que a acção humana é finalista”37.

53.1.5. Noção adoptada da acção

36
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta …, ob. cit., p. 94.
37
BRANDÃO, Cláudio, Teorias da Conduta …, ob. cit., p. 94.

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Para nós a noção da acção em Direito penal deve vir da conjugação da teoria social e
finalista. Explicada a escolha da escola finalista, vamos às escolhas da escola social da acção.
A escola social expõe uma posição conciliadora entre a pura consideração ontológica e
normativa. De acordo com a escola social, a acção é a conduta socialmente relevante, dominada
ou dominável pela vontade humana.
No caso prático, António destruiu os produtos de Vasco, mas a acção não lhe pode ser
imputável porque: i) pela escola finalista falta-lhe o elemento subjectivo, que é António ter
traçado um propósito/objectivo a alcançar e elemento objectivo, que é a escolha de meios para
a concretização do objectivo no plano da realidade; ii) pela escola social a acção de António é
socialmente relevante, pois afectou o património de Vasco, mas questionável é se ela era ou
não dominável pela vontade de António. A resposta é negativa. Nas duas teorias, não há acção
relevante para o Direito penal, pois esta acção foi causada por coacção física absoluta (força
externa irresistível – a vis absoluta).

Será acção, na nossa perspectiva, um acontecimento previsto na lei penal e


dependente da vontade humana, adequado a produzir o resultado típico, como também a
omissão de actividade adequada para evitar o resultado típico.

53.1.5.1. Formas da acção

A acção pode consistir na comissão ou omissão de conduta penalmente imposta.

a) Comissão

A comissão consiste em acção no sentido restrito. Isto é, o fazer activo. Nas palavras
de von LISZT, a comissão “é a causação do resultado por um acto de vontade. Este apresenta-
se como movimento corpóreo voluntário, isto é, como tensão (contracção) dos músculos,
determinada, não por coacção mecânica ou psico-física, mas por ideias ou representações e
efectuada pela intervenção dos nervos motores”38. Assim, a comissão abarca:
1.º- um acto de vontade;
2.º - um movimento corporal, quer se trate de um crime de mera actividade, quer
material;

38
LISZT, Franz von, Tratado …, ob. cit., p. 198.

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3.º- o resultado causado pelo movimento corpóreo, numa relação de causalidade.
Portanto, a acção corresponde à ideia de comissão, de fazer algo, que se contrapõe à
ideia de omissão.

b) Omissão em Direito penal

A omissão é uma das formas da conduta ao lado da acção. Quer dizer, a conduta pode
consistir num fazer, numa acção ou comportamento humano positivo, como também pode
consistir num não-fazer, ou omissão de um comportamento juridicamente exigido.
A omissão consiste num não fazer algo adequado para evitar um resultado típico. O
fundamento da omissão é a “acção esperada, que possibilita a aplicação de todos os critérios
do crime de comissão ao crime de omissão39.
Escreve von LISZT que “Omissão é, em geral, o não empreendimento de uma acção
determinada e esperada. Omitir é verbo transitivo: não significa deixar de fazer alguma coisa,
e, na verdade, o que era esperado (…)”40.
A omissão é uma afronta à lei penal, precisamente por o agente não fazer o que a lei
manda fazer para evitar o resultado danoso penalmente.
O n.º 2 do artigo 2 do Código Penal prescreve que “A omissão só é punível quando
recair sobre o omitente um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse
resultado”.
A omissão só é punível quando sobre o agente recai um dever jurídico de agir, não
bastando a existência de um mero dever moral que, num dado caso, imponha a adopção de
uma conduta positiva. Ora, esse dever jurídico pode ter diversos fundamentos:

1.º- de um preceito positivo da ordem jurídica, quer este preceito seja imposto
pelo direito penal, quer o seja, expressa ou tacitamente, por um outro ramo do direito.

2.º- da acção anterior que indica a actividade ulterior como conforme ao dever
e como contrário a ele o abandono da direcção assumida. Especialmente a provocação
não culposa de um resultado antijurídico origina a obrigação de obviar, quanto for
possível, as consequências posteriores. É o caso, por exemplo, de um nadador que

39
MEZGER, Edmund, Derecho …, ob. cit., p. 118.
40
LISZT, Franz von, Tratado …, ob. cit., p. 208.

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determina uma partida de natação com um mau nadador, prometendo-o socorrer em
caso de necessidade; no momento em que o mau nadador precisa de socorre, o
companheiro nega-se a socorrê-lo, vindo a morrer por afogamento41.

3.º- quando o agente, de outra forma juridicamente aceitável, tornou-se garante


da não ocorrência de certo evento ou resultado.

Segundo LISZT nunca repugnou à antiga ciência equiparar em geral a omissão à


comissão. Mas outros entendiam que a omissão devia ser punida com penas menos graves do
que a comissão; é no século XIX que começa a discussão científica a respeito do nexo de
causalidade na omissão. Rigorosamente considerando, o resultado produzido não é em caso
algum causado pela omissão em si, mas sempre pelas forças naturais que exercem sua
actividade colateralmente à omissão. A criança, que a mãe deixa morrer de fome, perece de
consumpção; o mau nadador morre por asfixia; as forças da natureza causaram o resultado; não
o causou o autor da omissão42.
Portanto, tudo passa por precisão terminológica: quando falamos em causar o resultado
por omissão não constitui a verdade, pois “quando a omissão é causal?”, mas a questão correcta
é “quando a omissão é ilícita ou ilegal?”. A resposta é “Quando não impede o resultado; ou
melhor, no texto da lei (art. 2), quando falte a acção adequada para evitar o resultado”.
A omissão apresenta-se dentro do Direito penal sob duas formas, ou melhor, a omissão
dá lugar a duas formas de crimes:

1.º - omissão simples, a chamada omissão própria, que dá lugar aos crimes omissivos
próprios ou puros: são os que se perfazem com a simples conduta negativa do agente,
independentemente de produção de qualquer consequência ou resultado posterior. Isto é, se
castiga a falta de acção esperada e exigida como tal, não sendo necessário o resultado. Por
exemplo, aquele que omite o dever de socorro – “deixar de socorrer”. A conduta negativa é
descrita por lei: “deixar de socorrer”; “ocultar…”; “omitir”, etc.

2.º - omissão imprópria, que produz os crimes comissivos por omissão: são os que a
sua punibilidade provém da circunstância de o agente, que a esse dever jurídico se encontrava

41
LISZT, Franz von, Tratado …, ob. cit., p. 210.
42
LISZT, Franz von, Tratado …, ob. cit., p. 212.

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obrigado pessoalmente, não ter evitado a produção do resultado; ou melhor não ter agido de
modo a evitar o resultado, embora pudesse evitá-lo. Portanto, nestes crimes exige-se a
ocorrência do evento ou do resultado, pois este é resultado da falta da acção adequada no
momento exigido, por sua parte.

Nestes crimes o tipo não define a omissão, como ocorre nos tipos omissivos puros, isto
é, nos crimes comissivos por omissão o tipo não descreve as condutas proibidas, cabendo ao
intérprete indicar, daí que o omitente pode ser equiparado ao agente do crime. Para que o agente
responda por um crime comissivo por omissão é preciso que tenha um dever jurídico que o
obriga a impedir o resultado. Por exemplo, uma doméstica contratada para cuidar de uma
criança e deixa-a afogar-se numa piscina; uma enfermeira contratada para assistir a gestante e
deixa de tomar as providências necessárias para evitar o aborto espontâneo. Nestes crimes, o
dever jurídico pode provir de: i) de uma norma jurídica especial; ii) nas situações de garante:
dever de cuidar, protecção ou vigilância; iii) se, doutra forma, com o seu comportamento
anterior criou o risco da ocorrência do resultado.

54. Resultado ou evento

O resultado e o evento, juridicamente, equivalem-se mutuamente. Portanto, não é


incorrecto chamar o resultado de evento, embora exista quem entenda de modo diverso,
etimologicamente.
O resultado ou o evento é a modificação do mundo exterior por consequência do facto
voluntário declarado punível pela lei penal. Por exemplo, se alguém atira mortalmente em
outra pessoa, o seu comportamento modificou o mundo exterior, retirou ou destruiu uma vida,
algo intolerável à face do direito e da vida em comunidade.
Portanto, o resultado/evento é a consequência do crime no plano real ou material.
Todavia, nem todos os crimes apresentam resultados concretos no plano real, havendo por isso
um debate sobre a natureza do resultado:

I. Para a teoria causal-naturalistíca, o resultado ou o evento consiste, na verdade, na


modificação fáctica do mundo exterior causada pelo comportamento humano ilícito e típico.
Portanto, não se olha à norma, mas sim à relação entre a acção e a alteração física do mundo
exterior, pois o resultado é um elemento do facto típico. Por exemplo, o homicídio destrói uma

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vida, as ofensas corporais lesionam o corpo humano; o furto priva o possuidor da coisa, etc.
Com esta teoria haveria crimes sem resultado, como é o caso intromissão em casa alheia, onde
não há modificação do mundo exterior.

II. Para a teoria jurídica ou normativa, o resultado consiste na lesão ou perigo de lesão
de um interesse penalmente protegido. Por isso, não há crime sem resultado, pois o evento se
identifica com a ofensa ao bem jurídico e, como se vê, todo o crime produz dano ou perigo,
que é causado pela conduta ou coincide cronologicamente com ela. Assim, nos crimes materiais
e formais haveria sempre um resultado: nos crimes formais ou de mera actividade, o resultado
coincide cronologicamente com a conduta, isto é, o tipo é preenchido tão-somente com a
actividade prevista na lei. Por exemplo, basta a introdução na casa alheia sem permissão (ai
está o resultado pela realização do tipo, pois ofenda a tranquilidade familiar); basta difamar, de
viva voz, etc.
A posição mais correcta é a segunda, teoria normativa, pois o resultado pretendido pela
norma penal é um resultado ou evento em sentido formal, bastando que, a realização da conduta
(acção ou omissão), crie dano ou perigo de dano: “(…) não existe crime sem resultado. À toda
acção ou omissão penalmente relevante corresponde um eventus damni ou um eventus periculi,
embora, às vezes, não seja perceptível pelos sentidos”43.
Portanto, o evento ou resultado deve ser visto na perspectiva jurídica ou normativa,
podendo, assim, existirem crimes, cujo resultado modifica o mundo fáctico e outros em que o
evento ocorre cronologicamente com a conduta do agente, sem modificar o mundo exterior,
mas representa perigo de dano.
Quer dizer: o resultado pode classificar-se, segundo sua natureza, de duas formas:

1.ª- resultado de dano, que é a destruição total ou parcial do objecto da acção;


2.ª- resultado de perigo, que é a probabilidade de dano, isto é, o resultado é
materializável. Este resultado pode consistir em44:
• perigo concreto: em que o bem jurídico, situado na esfera de
eficácia da acção, é exposto, em concreto, ao perigo de dano;

43
HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal, 5.ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1977, p. 13.
44
SANTOS; Juarez Cirino, Direito Penal …, ob. cit., pp. 68-69.

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• perigo abstracto, em que o bem jurídico é colocado em situação
de perigo presumido, independentemente de situar-se na esfera de eficácia da
acção, em face da natureza intrinsecamente perigosa desta.

55. Nexo de causalidade entre a acção e o resultado, ou imputação do resultado à


conduta

Caso prático: “Bene e Noé, rivais desde a adolescência, pelo facto de pretenderem
cortejar Mira, vizinha dos dois. Num certo dia, Mira encontrava-se na loja dos seus pais,
conversando intimamente com Noé. Por cenas de ciúmes, Bene e Noé entram em vias de facto.
Ambos estando grossos, Noé procura refugiar-se no balcão da loja, onde é atacado
violentamente por Bene, que com dolo de homicídio, desfere-lhe golpes com facadas no peito,
visando atingir o coração. Mas Noé não sofre golpes mortais, as facadas não atingiram os seus
órgãos vitais, pois a faca encontrou primeiramente a carteira de documento no bolso, o que a
impediu de penetrar profundamente no tórax.

Imagine que aconteceu o seguinte:

a) Noé desmaiou na ambulância em consequência da perda de sangue,


sendo obrigado a vomitar-se e se asfixiou com o produto do seu vómito, tendo-lhe
causado morte;
b) a ambulância embateu no curso ao hospital contra um camião, que de
imediato pegou fogo, tendo Noé morrido na ocasião;
c) Noé morreu no hospital após uma cirurgia bem sucedida, em virtude de
uma infecção maligna nos ferimentos;
d) Noé, um pouco antes da alta do hospital, sofreu um envenenamento
mortal a gás carbónico por ocasião de um incêndio nocturno em seu quarto”.

Como deve julgar-se a matéria de nexo de causalidade entre a acção de Bene e o


resultado morte de Noé?

A punibilidade de um facto típico pressupõe a existência de uma relação de causalidade


entre a acção e o resultado. Isto é, quando é que o resultado é imputável ao agente do crime,

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sem por enquanto se olhar para a reprovação social que o acto merece, se existe ou não
culpabilidade do agente.
Segundo WESSELS “A teoria do nexo causal era, no início, estritamente associada aos
conceitos naturalísticos de acção do passado século XIX, da aceitação, isenta de críticas, de
representações das ciências naturais dentro do Direito penal resultaram inúmeras e infrutíferas
controvérsias. (…) a teoria do Direito penal, como ciência normativa, tem de formar e
manifestar “conteudisticamente” seus próprios conceitos, de forma que possam preencher sua
função no panorama jurídico-social... Causalidade em sentido jurídico é outra coisa que
causalidade em sentido das ciências naturais. A causalidade das ciências naturais é uma relação
entre dois estados, dos quais um segue o outro pela lei natural. Essa lei da causalidade seria
inadequada e insuficiente no Direito penal como princípio (isolado) da imputação do resultado.
O conceito jurídico-penal de “causalidade” é um conceito de relação jurídico-social, que
conduz a conteúdos ontológicos e normativos, não sendo, portanto, idêntico nem aos conceitos
causais das ciências naturais nem aos filosóficos. Na verdade, se o Direito e a realidade devem
estar de acordo, é de afirmar o nexo causal em sentido jurídico, sempre que entre a acção e o
resultado subsista um nexo causal no sentido das ciências naturais (…). O Direito não está
impedido, porém, por exemplo, de compreender o vínculo adequado à lei entre a omissão e a
ocorrência de um resultado socialmente danoso (apesar da falta de “causalidadade” em sentido
ontológico e naturalístico) como “nexo causal” e de imputar esse resultado ao omitente como
“sua obra”, se a prática da acção salvadora juridicamente exigida tivesse impedido o resultado
típico com probabilidade nos limites da certeza”45.
Com efeito, o conceito de relação de causalidade é importado das ciências naturais, e
procede da filosofia, expressando uma conexão necessária entre um antecedente (causa) e um
consequente (efeito). Portanto, trabalhado juridicamente, este conceito terá de abarcar não só a
relação causal entre acção e o resultado, mas também a relação causal entre a omissão da acção
adequada juridicamente para evitar o resultado e o resultado ocorrido por essa omissão.
O problema de nexo de causalidade coloca-se relativamente aos crimes de resultado
naturalístico ou materiais, isto é, que modificam o mundo exterior, pois ele (resultado) não é
parte integrante da acção, mas elemento autónomo do tipo legal. Ora, quando é que podemos
afirmar que a conduta do agente produziu o resultado? ou que é causa do resultado/evento?
A resposta simples à pergunta colocada antes seria: o resultado, de que depende a
existência do crime, é somente imputável a quem lhe deu causa, isto é, a quem praticou uma

45
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 40.

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acção adequada a produzir o resultado ou a quem deixou de praticar a acção adequada para
evitá-lo.
O facto é que, normalmente, os legisladores não assumem para si a tarefa de resolver
um bicudo problema, deixando para a doutrina, a ciência do Direito penal e a jurisprudência.
Assim, a ciência do Direito penal apresenta as seguintes teorias que procuram dar
resposta ao problema.

55.1. Teoria da condição “sine qua non”ou de equivalência dos antecedentes


causais

Esta teoria foi criada por Glaser para o direito austríaco e introduzida na Alemanha por
v. Buri na jurisprudência dos tribunais do Reich. Segundo esta teoria, nas palavras de MEZGER
“Toda condição em sentido lógico é sempre causa em sentido jurídico-penal. Todas as
condições são “equivalentes” com respeito à causa e como tal constituem o fundamento da
responsabilidade jurídico-penal”46. Dito doutra forma, causa é toda a condição de um resultado,
que não pode ser mentalmente eliminado, sem que o resultado o seja em sua manifestação
concreta.
É como quer Eduardo CORREIA, “(…) condição seria todo o antecedente sem o qual
o resultado se não teria produzido”47.
Nesta teoria, segundo v. Buri não é possível distinguir entre condições essenciais e não
essenciais ao resultado, sendo causa do mesmo todas as forças que cooperam para a sua
produção, quaisquer que sejam48.
Para comprovar esta teoria, é preciso saber se a acção é causa do resultado bastando,
mentalmente, eliminar ou excluir a acção da série causal. No caso prático 4, Noé não teria sido
vítima de acidente mortal ou não teria morrido se Bene não o tivesse esfaqueado, pois são os
ferimentos causados por Bene que fizeram com que Noé encontrasse a morte, portanto, Bene
é responsável criminalmente pela morte de Noé.

Expliquemos melhor isto!

46
MEZGER, Edmund, Derecho …, ob. cit., p. 111.
47
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., p. 254.
48
JESUS, Damásio Evangelista de, Direito …, ob. cit., p. 250.

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Vamos recorrer ao procedimento hipotético de eliminação de Thyrém, segundo o qual
a mente humana julga que um fenómeno é condição de outro toda vez que, suprimindo-o
mentalmente, resulta impossível conceber o segundo fenómeno49.
No caso prático, Bene esfaqueou Noé. A conduta típica de ofensas corporais possui
uma série de factos, ou antecedentes/condições/causas: 1.º produção da faca pela indústria; 2.º
aquisição da faca pelo comerciante; 3.º compra da faca por Bene; 4.º refeição e bebida ingerida
por Bene; 5.º presença da Mira na loja do pai conversando com Noé; 6.º cenas de ciúmes; 7.º
esfaqueamento de Noé; 8.º transporte ao hospital por ambulância; 9.º morte de Noé por
acidente, explosão ou asfixia.
Dentro desta cadeia de factos ou causas, se excluíssemos os factos 1.º, 2.º, 7.º e 8.º. A
morte de Noé não teria tido lugar. Portanto, são condições ou concausas da ocorrência do
evento morte. Imaginemos que os ferimentos fossem profundos, tendo ou não sido socorrido
Noé ao hospital a morte teria ocorrido, então podemos dizer que o facto 8.º não é causa.

Particularmente, vale o seguinte segundo a teoria da condição50:

1.º - Decisiva nesta teoria é isoladamente a ligação causal entre a corrente real do
acontecimento e o resultado concreto. A circunstância de que o resultado socialmente danoso
se teria verificado em todo o caso mais tarde, por causa de um outro acontecimento e de outro
modo, não elimina a causalidade da acção realmente efectuada. Um acrescentar mental de uma
“causa reserva” de tal espécie não é permitido, pois uma corrente de acontecimento causal não
perde seu ser e seu efeito, se uma outra poderia ter ocorrido em seu lugar, mas não ocorreu.
Por exemplo, A persegue B, que quer fugir para o estrangeiro, até o aeroporto, onde o fuzila
mortalmente. O avião em qua B viajaria, cai no mar após a partida e ninguém se salva do
acidente. Para o nexo causal entre a conduta de A e a morte de B não tem significado esta queda
posterior do avião. A questão da causalidade não pode aqui ser colocada em termos de que se
“B” teria encontrado a morte. Decisivo é muito mais, se o resultado concreto (morte de B pelo
tiro) desapareceria, se se eliminasse o disparo do tiro através de “A”. Numa correcta colocação
da questão a causalidade se situaria isenta de dúvidas, pois “B”, desse modo e nesse momento,
não teria morrido sem a acção homicida de “A”.

49
JESUS, Damásio Evangelista de, Direito …, ob. cit., p. 250.
50
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 41-43.

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2.º - Segundo esta teoria, para se afirmar o nexo causal basta que a acção seja “uma”
condição para o resultado ou que tenha acelerado a sua ocorrência. Para a existência do nexo
causal é menos importante se a ocorrência do resultado foi favorecida por uma constituição
anormal do lesado, ou de outro modo, se se baseia em uma corrente causal atípica, contrária às
regras. Ora, o nexo causal, em especial, não será “interrompido” por uma culpa concorrente do
ofendido ou porque um terceiro intervém negligente ou dolosamente no acontecimento causal.
Pressupõe-se somente que a condição anteriormente assentada continue a produzir efeito até a
ocorrência do resultado. Por exemplo, um farmacêutico pode ser chamado a prestar contas por
homicídio negligente, se deixa aberto, por desatenção o armário de drogas e a faxineira usa
essa oportunidade para retirar um veneno, com o qual mata seu marido (neste caso, recusa-se,
nesta teoria, a “proibição de regresso” ou uma interrupção do nexo causal não será
reconhecida pela doutrina dominante, em casos desta natureza. Pode-se pensar aqui, porém,
numa interrupção do “nexo de causalidade”, se a intervenção de terceiro situar-se fora da
experiência da vida em geral, que não era mais possível se contar razoavelmente com ela. O
mesmo vale para uma conduta inteiramente anormal do próprio ofendido).
3.º- É de se julgar de outro modo a questão da causalidade, onde a primeira condição
não continua a produzir efeito até a ocorrência do resultado e, por conseguinte, não se torna
“causal” previamente. Assim se verifica quando um acontecimento posterior abre uma nova
fila de causas totalmente independente da condição assentada anteriormente, e que por si só
produz o resultado. Por exemplo, A teve conhecimento de que sua noiva B lhe trai com C. Ele
ministra no copo de B um veneno seguro e lentamente mortal, que não deve deixar vestígios.
Enquanto o veneno actua no corpo de B, que o ingerira, aparece C e atira contra B, porque se
sentia colocado em segundo plano por esta. Aqui, das duas filas causais “concorrentes” com a
mesma direcção de ataque, a primeira permaneceu frustrada e absolutamente ineficaz, pois o
segundo acontecimento foi mais rápido temporalmente. Como C não se associa à condição
proposta por A, mas assenta uma nova fila causal independentemente dela. Assim, A só pode
ser punido por tentativa de homicídio por envenenamento.
Esta teoria foi objecto de críticas.
Eduardo CORREIA entende que a teoria da condition sine qua non pode conduzir a
exageros: “(…) ao pai parece que deveriam ser imputadas todas as condutas do filho, porque,
sem aquele, este e portanto as suas condutas se não poderiam conceber … Depois, acentua-se
que a teoria dá lugar a grandes desigualdades. Assim, por exemplo, A e B dão, nas mesmas
condições, uma pancada respectivamente a C e D. Este, contudo, sofre, sem que ninguém o

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saiba, v. g., de hemofilia, e a ferida que lhe causa B provoca-lhe a morte. Pelo contrário, em C,
que é uma pessoa normal, a pancada produz simplesmente lesões corporais. Ora, deste modo,
imputavam-se, à luz da teoria da condição «sine quan non», dois resultados inteiramente
diferentes a uma actividade perfeitamente igual”51.
Ao lado da teoria da condição, surge a teoria da adequação, dominante no Direito Civil.
Passemos à sua análise.

55.2. Teoria da adequação ou da causalidade adequada

Esta teoria parte da noção da «causa». Assim, «causa» é, em sentido jurídico, somente
a condição ou antecedente adequado para produzir o resultado/evento. Isto é, condição
adequada ao tipo penal.
Segundo esta teoria, uma acção ou omissão é, então, “causa adequada” do resultado
concreto, quando aumentou a possibilidade de sua ocorrência de modo geral, isto é, segundo
as regras da experiência geral da vida aplicadas às circunstâncias reais da situação em concreto.
Assim, “o nexo causal adequado será negado, quando a verificação do resultado baseia-se sobre
uma corrente causal anormal e atípica: isto é, sobre elo totalmente não costumeiro ou
improvável de circunstâncias com as quais não era mais de se contar segundo a experiência da
vida diária”52.
Portanto, à teoria de causalidade adequada deve ser agregada todas as circunstâncias
que eram conhecidas ou objectivamente reconhecíveis no momento e no lugar da ocorrência
do facto criminoso que pudessem ser previstas por um homem de diligência média ou criteriosa
situado no lugar do infractor e devem ser consideradas igualmente conhecimentos especiais do
autor, isto é, a chamada prognose posterior objectiva53.
À esta teoria avança-se críticas que a debilitam. Assim, “A debilidade dogmática da
teoria da adequação situa-se em que ela regista a luta contra a amplitude sem limites da teoria
da condição «sine qua non» em lugar errado: nega o nexo causal onde na verdade é de se negar
somente a relevância fundamentadora de responsabilidade, confunde portanto “causação” e
“”imputação” do resultado”54.

51
Direito Criminal…, op. cit., pp. 255-256.
52
WESSELS, Johannes, Direito …, ob, cit., p. 43.
53
WESSELS, Johannes, Direito …, ob, cit., p. 43.
54
WESSELS, Johannes, Direito …, ob, cit., p. 43.

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Para se superar os defeitos desta teoria, os autores alemães e, em particular, Claus
ROXIN, analisando o pensamento de HONIG, chega a conclusão de que “… uma divisão do
nosso critério pode permitir elaborar, para os crimes de resultado, uma teoria geral da
imputação completamente desligada do dogma causal”55.
Com efeito, tal orientação é designada maioritariamente por imputação objectiva.

55.3. Teoria de imputação objectiva do resultado à acção

As duas anteriores teorias (supra 56.1. condição e 56.2. adequação) baseiam-se na


relação de causalidade. Agora, com ROXIN, virámo-nos da causalidade para o critério de
imputação completamente desligado do dogma causal. Com efeito, esta nova teoria baseia-se
no princípio do risco: olhamos agora para a relação jurídica (para a norma) junto da conduta e
do resultado – dar ao problema uma solução de carácter normativo para a determinação de
um resultado criminalmente relevante sobre determinada conduta.
Para o Direito Penal o importante não é somente a relação de causalidade, ou a relação
causa-efeito, mas sim, antes de tudo, o facto de se o resultado socialmente danoso pode ser
imputado ao autor, sob atendimento da possibilidade de realização como “obra sua”56.
A teoria geral de imputação pode obedecer às seguintes indicações57:

55.3.1. Situações de exclusão de imputação objectiva

I. A diminuição do risco

Estas situações são, por natureza, isentas de imputação, pois o sujeito actuou
diminuindo ou atenuando um perigo sobre um bem jurídico susceptível de ofensa.
É o caso em que A vê como uma pedra dirigida à cabeça de B é causa de perigo, e não
pode evitar que essa mesma pedra alcance B, mas consegue desviá-la para outra parte do corpo
em que o golpe é menos perigoso (ROXIN).
O Professor Figueiredo DIAS dá um exemplo similar a este de ROXIN, mas afirma que
“ … A empurra B, causando-lhe leves lesões, para evitar que este seja atropelado por um veículo

55
ROXIN, Claus, Problemas Fundamentais …, ob. cit., pp. 148-149.
56
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 45.
57
ROXIN, Claus, Problemas Fundamentais …, ob. cit., pp. 149-168; DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito
Penal, …, ob. cit.,pp. 331-341 e SILVA, Germano Marques da, Direito …, ob. cit., pp. 85-87.

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que segue na sua direcção. Seria previsível e provável que à acção de A se seguisse aquelas
lesões de B e, por isso, seguindo a teoria de adequação, estas ser-lhe-iam imputáveis. A esta
solução deve preferir-se a da doutrina de conexão de risco, que nega a imputação por
inexistência de criação de um risco não permitido. è verdade que, mesmo seguindo-se a teoria
da adequação, a responsabilidade penal do agente acabaria certamente excluída por ter ele
actuado ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude (…), a do direito de necessidade.
Todavia, isso significaria aceitar que o agente, com a sua acção, realizou uma lesão típica do
bem jurídico, quando na realidade a sua actuação se traduziu, pelo contrário, numa melhoria
da situação do bem jurídico em perigo”58.
O Professor Américo Taipa de CARVALHO diz não partilhar com esta opinião do
Professor Figueiredo DIAS, porque lhe parece que “Por um lado, a exclusão da imputação, na
perspectiva jurídico-penal, resulta logo do facto de não haver desvalor de acção no empurrão
dado pelo A, pois que ele, na exigível perspectiva ex ante (no momento em que é dado), até é
valioso (tal como o é a amputação da perna pelo cirurgião, para salvar a vida do amputado …).
Ora, em minha opinião, a imputação jurídico-penal do resultado à acção pressupõe, no
mínimo, o desvalor desta. Isto é, onde não houver desvalor de acção, não há lugar à imputação
jurídico-penal do resultado (…). A segunda observação é para dizer que, …, mesmo que se
considerasse como típica de lesões corporais a acção do empurrão (…), a exclusão da ilicitude
não se fundamentava no direito de necessidade, mas no consentimento presumido”59.
O certo é que o Professor Figueiredo DIAS, adaptando o exemplo dado por ROXIN,
não abandonou a solução que este deu ao seu exemplo para o ordenamento jurídico Alemão,
falando, no caso de um estado de necessidade supralegal60.
De facto, no exemplo, há uma acção, no sentido das ciências naturais, isto é,
modificação do mundo exterior, mas essa modificação não é relevante penalmente,
exactamente por eximir da responsabilização penal o respectivo autor.

II. Falta de aumento do risco juridicamente permitido

A imputação objectiva deverá também ter-se por excluída quando o evento ou resultado
tenha sido produzido por uma acção que não ultrapassou o limite do risco juridicamente
permitido. A justificação desta exclusão resulta do “(…) facto de a vida social comportar uma

58
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, …, ob. cit.,pp. 332-333.
59
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal…, ob. cit., p. 310.
60
Ver para mais desenvolvimentos ROXIN, Claus, Problemas …, ob. cit., p. 149.

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multidão ineliminável de riscos e perigos tolerados pela própria sociedade, pois que estão
associados a conquistas civilizacionais e a modelos de desenvolvimento de que a sociedade
não pode, nem quer prescindir. Daí resulta que não pode o direito penal, dada a sua natureza
de ultima ratio, sancionar comportamentos que tenham produzido a lesão de bens jurídicos em
virtude da materialização de riscos que são tolerados de forma geral”61.
A exclusão da imputação ocorre exactamente porque o legislador permite que em certas
actividades perigosas ou de utilidade social preponderante se corra risco até certo ponto ou
limite. É o caso de operações médicas, que verificados todos os pressupostos, regras e
especificações ou prescrições, o operado vem a perder a vida, por causa exactamente do risco
dessa operação. Aqui, a imputação é excluída, pois estamos no limite do risco permitido. É o
caso de competições desportivas, na condução rodoviária, etc.

III. Risco geral de vida normal

Dentro das situações do risco permitido que excluem a imputação, enquadram-se as que
decorrem do risco geral da vida normal, que como diz DIAS, não é fácil de determinar. “Isto
se deve acentuar muito vivamente numa época como a nossa, que leva até ao limite o tão
reclamado “direito à segurança”. Mais uma vez, a vida social seria condenada à inacção se
pudessem imputar-se resultados que cabem naquele risco normal. Quando, por exemplo, o
médico receita um antibiótico necessário à cura de um paciente deve informar-se sobre se há
alguma razão para supor que o doente possa ser hipersensível ao medicamento; mas, em caso
negativo, não tem que condicionar a receita à execução de todos os exames complementares
indispensáveis à despistagem de uma eventual hipersensibilidade. Se o paciente vem a morrer
de choque anafiláctico a morte não deve ser objectivamente imputada ao médico. Neste
contexto, se pode afirmar … que os riscos gerais da vida são socialmente adequados e não
cabem, por isso, na criação de um risco não permitido (…)”62.
Fala-se ainda dos casos de auto-responsabilidade da vítima ou da intervenção de
terceiro. É o caso de A, portador de SIDA, mantém contactos sexuais com B, conhecedor da
situação, criando em B perigo de infecção. Esta situação enquadra-se dentro do risco
permitido63.

61
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, …, ob. cit., p. 333.
62
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, …, ob. cit., pp. 334-335.
63
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, …, ob. cit., pp. 334-335.

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55.3.1. Níveis de imputação objectiva

A imputação objectiva conhece os seguintes níveis:

I. Criação de um risco juridicamente relevante, isto é, risco não permitido

Para esta teoria, uma conduta é causa adequada de um resultado quando «faz esperar o
resultado como consequência não improvável (provável)», ou quando afirma que as formas de
conduta adequadas são «as acções e omissões perigosas em relação ao resultado»64.
O sujeito cria um risco juridicamente não aprovado e, acto contínuo, realiza tal risco
com a infracção à norma. Esta teoria resolve o problema de «desvio de processo causal».
Por exemplo, se a pessoa é esfaqueada e morre vítima de acidente de viação ao ser
levado ao hospital, no caso do nosso caso prático, essa morte não é imputada ao autor de
esfaqueamento, nem como homicídio doloso, nem involuntário, pois causar acidente com o
carro não implica nenhum risco juridicamente relevante.
Ao contrário seria se uma pessoa atira seu inimigo de uma ponte só que no percurso da
queda bate num pilar de betão e morre, tal facto em nada altera a acção de homicídio doloso
consumado, pois a forma de execução implicava já de antemão o risco de que as coisas assim
ocorressem65.
A intervenção penal começa onde se excede o risco permitido. Este princípio resulta da
ponderação entre os bens jurídicos e as liberdades individuais, segundo a medida do princípio
da proporcionalidade66.

II. O aumento ou potenciação do risco permitido

Escreve ROXIN que “Quando o legislador permite que, à semelhança do que sucede
em outras manifestações da vida moderna, na actividade de estabelecimentos perigosos e em
outros casos de utilidade social preponderante, se corra um risco até certo limite, apenas poderá
haver imputação se a conduta do autor significar um aumento do risco permitido. Se tal situação

64
ROXIN, Claus, Problemas …, ob. cit., p. 150.
65
ROXIN, Claus, Problemas …, ob. cit., p. 150.
66
SILVA, Germano Marques da, Direito …, ob. cit., p. 86.

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se configura como tal, tem de imputar-se o resultado ao agente, ainda que este tenha actuado
de forma irrepreensível”67.
ROXIN adianta um exemplo de caso de pêlo de cabra, em que “um fabricante,
infringindo os regulamentos, entrega material não desinfectado para o seu fabrico e, em
consequência, quatro trabalhadores contraem uma infecção devido a bacilos de carbúnculo e
morrem, tais mortes são imputáveis ao patrão, mesmo que a desinfecção prescrita não
constituísse uma garantia absoluta de destruição dos bacilos”68.

III. A esfera da protecção da norma penal infringida

Para que se possa imputar o resultado à conduta é ainda necessário que o perigo que se
concretizou no resultado seja daqueles que corresponde ao âmbito de protecção do tipo penal
infringido. Se tal não suceder deve ter-se por excluída a imputação objectiva. Toda a norma
visa a protecção de bens jurídicos e ao proibir determinada conduta fá-lo porque considera que
essa conduta põe em perigo o bem jurídico. Se o evento ocorre não em razão da violação da
norma que proibia determinada conduta, mas por outra causa, não há imputação objectiva do
resultado à conduta. O agente violou a norma, mas não foi a violação da proibição da conduta
que se concretizou no resultado: exemplo, a lei proíbe a circulação de veículos automóveis com
excesso de lotação e visa com isso a segurança rodoviária. O carro que circulava com excesso
de lotação é abalroado por outro que circulava com excesso de velocidade, causando a morte
aos ocupantes do carro lotado em excesso69.

IV. Teoria de conexão normativo-típica de Américo Taipa de Carvalho70

Para este autor português, depois de críticas que assacou ao Professor Figueiredo Dias,
apresenta a sua conclusão e diz que adopta a teoria da conexão normativo-típica, cuja ideia
fundamental é a seguinte: “só deve imputar-se um resultado típico a uma conduta típica, quando
entre ambos existir uma conexão típica”Assim, são pressupostos da imputação:

67
ROXIN, Claus, Problemas …, ob. cit., p. 152.
68
ROXIN, Claus, Problemas …, ob. cit., p. 153.
69
SILVA, Germano Marques da, Direito …, ob. cit., p. 87.
70
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal…, ob. cit., pp. 316-318.

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a) o desvalor da acção: é preciso que a acção ou omissão sejam desvaliosa,
isto é, seja valorada negativamente – proibida ou, se permitida, realizada
descuidadamente (ou dolosamente). Assim, se excluem da imputação os casos de risco
permitido, acções diminuidoras do risco, acções que não ultrapassam o limite do risco
juridicamente permitido e nos casos de risco normal de vida ou nas acções de auxílio
arriscadas e falhadas, que entrem no risco permitido;
b) a conexão típica entre o resultado típico e a conduta, que implica,
cumulativamente, um nexo causal efectivo e uma conexão teleológica entre a conduta
(acção ou omissão) típica e o resultado típico. É necessário que seja abrangido pelo
âmbito de protecção da norma.

Em conclusão, este autor não apresentou nenhuma novidade na sua teoria.


Simplesmente aglutinou numa única teoria os casos de imputação e de exclusão de imputação,
apresentados por ROXIN e acolhidos, em Portugal, por Figueiredo Dias, com a ressalva de que
ele discorda no exemplo de Dias de se tratar de estado de necessidade, mas sim de
consentimento presumido.

55.4. Teoria adoptada pelo Código Penal

Fixemo-nos agora no nosso Código Penal para descobrirmos a teoria perfilhada pelo
nosso legislador. Com efeito, diz o artigo 2, n.º 1 que: “1. Salvo se outra for a intenção da lei,
o crime ou delito prevê não só a punição da acção adequada a produzir o resultado típico, mas
também da omissão da acção adequada a evitá-lo”. Sublinhado nosso.
Ai está! O nosso legislador adopta a teoria da causalidade adequada. Isto é, a acção e a
omissão deverão ser “condição adequada”para produzir ou evitar o resultado compreendido no
tipo legal de crime.
Fixando a nossa atenção ao artigo 171, n.º 1, relativamente ao crime de «ofensas
corporais voluntárias de que resulte doença ou impossibilidade para o trabalho», nota-se que o
legislador emprega a expressões “efeito necessário da mesma ofensa” no corpo do artigo para
afirmar a exigência da relação «causa-efeito», sem a qual o resultado não seria imputável ao
agente.
No artigo 173 afirma o legislador que “Se o ferimento ou espancamento ou ofensa não
foi mortal, nem agravou ou produziu enfermidade mortal, e se provar que alguma

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circunstância acidental, independente da vontade do criminoso, e que não era consequência
do seu facto, foi a causa da morte, não será pela circunstância da morte agravada a pena do
crime”.
Nesta disposição, o legislador exclui a causalidade adequada quando o resultado morte
advier de uma circunstância ou causa acidental que o agente não provocou nem pôs ao seu
serviço.
Em conclusão, podemos afirmar que a acção ou omissão adequada ou o critério de
adequação deverá71:

• ser determinado pelo juiz segundo um juízo ex ante ou de prognose


póstuma, referido ao momento em que uma acção se realiza, como se a produção do
resultado se não tivesse ainda verificado;
• ser geral, objectivo e com previsibilidade, em princípio, é individual e
subjectivo;
• atender às regras gerais de experiência comum aplicadas ao
condicionamento concreto da situação, sem abstrair daquelas regras ou circunstâncias
que o agente efectivamente conhecia;
• referir-se a todo o processo causal e não só ao evento ou resultado, o que
não quer dizer que a actuação de terceiro interrompa necessariamente o nexo causal,
dado que essa intervenção pode ser previsível (por exemplo, aquele que deixa arma
carregada em local onde se trava discussão acesa);
• ter em conta a violação de um dever objectivo de cuidado (em ordem a
evitar-se a produção do resultado típico), sempre que se esteja perante condutas, embora
perigosas.

55.4. Interrupção do nexo causal

Haverá interrupção do nexo causal quando sobrevenha causas subsequentes de per si


suficientes para a determinação do resultado provocadas por intervenção de terceiro. Ou
melhor, a interrupção da causalidade verifica-se sempre que à causa adequada posta pelo agente

71
Cfr. SANTOS, M. Simas e HENRIQUES, M. Leal, Noções Elementares …, ob. cit., pp. 62-63.

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se sobrepõe uma outra igualmente adequada para produzir o evento, mas que não provém do
mesmo agente, quer directamente quer como consequência da causa inicial72.
Nesta situação ocorre duas consequências: i) os factos anteriores antes da causa
subsequente são imputados ao respectivo autor e ii) os factos precedentes, se constituem crime
de per si serão imputados ao respectivo autor e, como se vê, a causa subsequente entra nesta
situação.
Por exemplo, A teve conhecimento de que sua noiva B lhe trai com C. Ele ministra no
copo de B um veneno seguro e lentamente mortal, que não deve deixar vestígios. Enquanto o
veneno actua no corpo de B, que o ingerira, aparece C e atira contra B, porque se sentia
colocado em segundo plano por esta. Aqui, das duas filas causais “concorrentes” com a mesma
direcção de ataque, a primeira permaneceu frustrada e absolutamente ineficaz, pois o segundo
acontecimento foi mais rápido temporalmente. Como C não se associa à condição proposta por
A, mas assenta uma nova fila causal independentemente dela. Assim, A só pode ser punido por
tentativa de homicídio por envenenamento.

55.5. Nexo de causalidade nos crimes de omissão

Nos crimes comissivos por acção, ou na comissão, a acção produz o evento ou o


resultado e nos crimes comissivos por omissão, a omissão ou não fazer nada onde era suposto
agir não evita o resultado. Portanto, na omissão, o nexo de causalidade não é próprio, mas sim
um equivalente normativo para fins de imputação jurídica do evento ao omitente73.
Como expressou o Professor Eduardo CORREIA trata-se de equiparação da omissão à
acção em sentido estrito74. Isto é, a lei equipara o não impedimento do evento à produção desse
mesmo evento75: “Quando a negação de valores supõe – ou um preceito quer evitar – a
produção de um certo resultado, é evidente que lhe interessam não só as actividades que o
produzam, como as omissões que o deixam ter lugar”76.
Com efeito, reza o n.º 1 do artigo 2 do Código Penal que “Salvo se outra for a intenção
da lei, o crime ou delito prevê não só a punição da acção adequada a produzir o resultado típico,
mas também da omissão da acção adequada a evitá-lo”. Sublinhado nosso.

72
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Apontamentos de Direito Penal, Associação Académica da Faculdade
de Direito de Lisboa, Lisboa, 1969, pp. 248 e ss.
73
SILVA, Germano Marques da, Direito Penal …, ob. cit., p. 84.
74
CORREIA, Eduardo, Direito …, ob. cit., pp. 267 e ss.
75
SILVA, Germano Marques da, Direito Penal …, ob. cit., p. 84.
76
CORREIA, Eduardo, Direito …, ob. cit., pp. 271.

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Isto é, a lei pune também a falta de acção adequada para evitar o resultado; é como se
o agente tivesse agido para que o resultado tivesse lugar. O legislador utilizou um juízo de
probabilidade, segundo o qual o evento ou resultado ocorre exactamente por consequência da
omissão da acção adequada para evitá-lo.

Secção II
Crime como facto típico (tipicidade)

Caso prático: A teve conhecimento de que sua noiva B herdara de seus pais, mortos,
entre outras coisas, uma alta soma em dinheiro, que se encontrava em um cofre de sua
residência. Como A previa, aliás, em razão disso, um iminente rompimento do noivado por
parte de B, penetra ele em sua residência, durante a noite e munido com arma de fogo, abre o
cofre com auxílio de uma gazua e subtrai 500 mil meticais.

56. Conceito de tipicidade

Comecemos com a palavra “tipicidade”. A tipicidade ou tipo é a palavra portuguesa


generalizada da tradução da palavra alemã “tatbestand”, pretendendo-se aludir a um conjunto
de factos dotados de um significado unitário. Por exemplo77, na Espanha, têm sido utilizadas
as palavras «hecho», «encuadrabilidade», «subordinación » ou «delito-tipo»; na Itália utilizam-
se as expressões «fattispecie», ou simplesmente «fatto».
Para que uma acção seja típica não basta que ela seja antijurídica ou ilícita, é preciso
que tenha sido tipificada ou prevista em lei penal. Quando nos referimos à tipicidade, queremos
exactamente afirmar que a acção é típica, está tipificada em lei penal.
Por conceito, a «tipicidade» consiste na “correspondência entre o facto praticado pelo
agente e a descrição de cada espécie de infracção contida na lei penal incriminadora”78.
Portanto, tipicidade será a adequação ou enquadramento da conduta humana ao «modelo, ou à
figura legal»79, ou à hipótese legal.
No caso prático, a conduta de A realiza o tipo de furto qualificado, previsto e punido
pelo artigo 274 do Código Penal, pois subtrair fraudulentamente dinheiro alheio, trazendo
consigo arma de fogo, no período de noite (alíneas a e b).

77
DEVESSA, José Maria Rodrigues e GOMEZ, Alfonso Serrano, Derecho …, ob. cit., p. 411.
78
JESUS, Damásio E. de, Direito Penal, ob. cit., p. 264.
79
BATTAGLINI, Giulio, Direito penal, ob. cit., p. 161.

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Com este exemplo, podemos dizer que o tipo é já o conjunto de elementos descritivos
do crime contidos na lei penal. Assim, para o tipo de furto, os seus elementos descritivos
seriam: i) subtrair fraudulentamente; ii) coisa que não lhe pertença.
A teoria de tipicidade reduz-se, na verdade, à teoria do tipo. O tipo constitui o ponto de
partida de toda a construção jurídico-penal objectiva ou subjectiva. Isto é, “Que se analise o
crime sob o aspecto objectivo ou subjectivo, parte se sempre do conceito da figura típica: a
antijuridicidade e a culpabilidade precisam ser apreciadas sob o aspecto do tipo. Passemos à
sua análise.

57. Teoria do tipo

A teoria do tipo regista uma longa evolução até os dias actuais. A história da teoria do
tipo confunde-se com a própria teoria do crime80.
Portanto, vamos analisar sumariamente, as suas fases, indicando os elementos
diferenciadores.

57.1. Fase do modelo causal (final do século XIX e início do século XX)

Nesta fase, o tipo é compreendido em sentido amplo, coincidindo com o próprio


conceito de crime ou delito. Com efeito, tatbestand (tipicidade) é a soma de todos os elementos
característicos do crime, abrangendo a materialidade do facto delituoso, a antijuridicidade e a
culpabilidade.
Neste sentido, um dos titulares desta escola caracteriza o crime como sendo uma acção
ilegal, culposa e punível81.

Quais são as consequências?

1.º - o tipo penal era puramente formal ou objectivo, isto é, não havia tipicidade com
autonomia;
2.º - o dolo é eliminado do tipo, sendo deslocado para a culpabilidade.

80
TAVARES, Juarez, Teoria do injusto penal, Del Rey, Belo horizonte, 2000, p. 130.
81
LISZT, Franz Von, Tratado …, ob. cit., pp. 189 – 302.

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Como consequência, insere-se a teoria do erro na estrutura da culpabilidade: “o erro,
como inadequação entre a representação do facto e o facto representado, situa-se na esfera da
consciência (informativa da vontade) e, assim, aparece como um defeito do dolo. A teoria do
erro, inserida na culpabilidade, compreende ambas as formas do erro definidas como defeitos
da consciência: a) o erro sobre o facto, que tem como por objecto os elementos do tipo …; b)
erro sobre o direito …, que tem por objecto a antijuridicidade típica (ou a proibição) …”82.
Por exemplo, nessa estrutura formal ou objectiva, «matar outrem» significava destruir
vida de alguém: O eixo do tipo penal residia na mera causação ou produção do resultado,
bastando existir entre a acção e o resultado um nexo de causalidade para se concluir pela
tipicidade da conduta.
Todavia, porque na altura preponderava a teoria condition sine qua non, por exemplo,
o vendedor ou fabricante da faca não responderia pelo crime cometido por um terceiro que
comprou a faca para consumar o crime, pois lhe faltaria dolo, que se encontra inserido na
culpabilidade.
Portanto, nesta fase preliminar, o tipo não tem autonomia na estrutura do crime: (...)
compreendia-se tipicidade como sendo o conjunto de elementos de que se compõe o delito,
abrangendo assim em seu conteúdo, a culpabilidade, a antijuridicidade e a materialidade. O
Tatbestand seria, pois, a soma de todos os elementos e factores que devem existir para que se
possa aplicar a pena como consequência do crime”83.
Em 1906, Ernest von Beling, na sua obra «A Doutrina do Delito-tipo», autonomiza a
noção do tipo dentro da teoria do crime, tornando possível “a formulação do conceito analítico
de crime”84.
Segundo ROXIN “A colaboração de Beling foi a introdução do tipo (por ele
compreendido como todas as circunstâncias concretas do delito) como categoria, entre os
conceitos da acção e da antijuridicidade. Antes disso, a maioria dos autores definia delito como
acção antijurídica, culpável e ameaçada com pena”85.
Trata-se, na verdade, de uma primeira formulação de BELING, onde se valeu, como
reconhece TAVARES, de um «método puramente dedutivo»86, isto é, a tipicidade aparece com

82
SANTOS; Juarez Cirino dos, Direito Penal, ob. cit., p. 67.
83
MARQUES, José Frederico, Tratado de Direto Penal, Millenium, Campinas, 2002, p. 72.
84
TAVARES, Juarez, Teoria do Injusto Penal, ob. cit., pp.131-132.
85
ROXIN, Claus, Derecho Penal, Parte General. Fundamentos: La estructura de la teoria del delito,
Tomo I, Civitas, 2000, p. 277.
86
TAVARES, Juarez, Teoria do Injusto..., ob. cit., p. 132.

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uma função meramente descritiva dos crimes, de todo solta e desvinculada dos demais
elementos do crime87 e completamente separada da culpabilidade e da antijuridicidade.
Assim, segundo SANTOS, “o conceito de tipo formulado por Ernst von Beling,
fundado no modelo causal da filosofia naturalística do século XIX, é objectivo e livre de
valoração: objectivo, porque todos os elementos subjectivos integram a culpabilidade; livre de
valor porque a tipicidade é neutra, e toda valoração legal pertence à antijuridicidade”88.
Pretendendo fazer evoluir o conceito de tipo, Max Ernst Mayer, em 1915, considerou a
tipicidade não simplesmente descritiva, mas como indício da ilicitude, firmando o carácter
indiciário do tipo. Segundo Mayer, o tipo é somente a ratio cognoscendi, ou seja, um indício
denotador da antijuridicidade, porém, não é componente desta89.
Para Mayer, embora a tipicidade e a antijuridicidade fossem independentes entre si, não
sendo a primeira um componente da segunda, o facto de uma conduta ser típica já representa
um indício de sua antijuridicidade90.
Em 1931, Edmund Mezger, no seu «Tratado de Direito Penal», combatendo a
neutralidade valorativa do conceito de tipo de Beling, buscou o estreitamento da relação entre
o tipo e a antijuridicidade, isto é, incluindo a tipicidade na antijuridicidade, categorias até então
independentes, sustentando que “ … a tipicidade não é apenas indício ou ratio cognoscendi da
antijuridicidade, e sim o seu fundamento real ou ratio essendi”91 -92. Então, é agora, o crime a
acção tipicamente antijurídica e culpável.
BELING, por ter sido objecto de críticas, reformulou a sua teoria, ampliando-a.
Nesse novo trabalho, de 1930, denominado “Die Lehre vom Tatbestand”, passou-se a
distinguir entre tipo de delito e figura reitora (Leitbild), correspondendo o primeiro às
características de cada um dos crimes da parte especial e o segundo ao abstracto e conceitual
de cada delito-tipo, estabelecendo que “ao tipo de delito – Deliktypus – correspondem todas as
características internas e externas de cada figura legal”, sendo o Tatbestand, por sua vez, “uma
figura ideal, [...], um modelo conceitual extraído do acontecimento externo”93.

87
Cfr. MARQUES, José Frederico, Tratado …, ob. cit., p.73.
88
SANTOS, Juarez Cirino dos, A moderna teoria do facto punível, 3. ed. rev. e ampl, Fórum, Curitiba,
2004, p. 34.
89
ROXIN, Claus, Derecho Penal …, ob. cit., p. 281.
90
BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal, Parte Geral, Vol. 1, 9.ª ed., Saraiva, São
Paulo, 2004, p. 242.
91
MARQUES, José Frederico, Tratado de Direto …, ob. cit., p. 74.
92
Vide o próprio MEZGER, Edmund, Derecho …, ob. cit., pp. 143-146.
93
BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito…, ob. cit., p. 257.

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Em conclusão, podemos afirmar que na escola causal “O tipo, como descrição dos
elementos objectivos e normativos da acção proibida, consiste na acção (típica) incidente em
objecto protegido penalmente (bem jurídico), realizada pelo autor, em determinadas condições
de tempo, lugar, modo e meio de execução, que produz um resultado (típico), relacionado
causalmente à acção. E a tipicidade é a mera adequação objectiva entre a acção concreta e o
tipo penal, verificável pelos caracteres de sua aparência exterior objectiva”94.

57.2. Fase do modelo finalista

O modelo final define o tipo como sendo a descrição dos elementos objectivos e
subjectivos da conduta proibida penalmente. Portanto, a tipicidade insere a dimensão objectiva
e subjectiva do tipo de conduta proibida.
Nesta escola, o tipo seria composto de dois elementos:

(i) - objectivos-descritivos (aquilo que se concretiza no mundo exterior);

(ii) - subjectivos (relacionados à consciência e vontade – compostos de dolo e culpa) e,


eventualmente, dolo específico.

Assim, a partir deste momento, passa-se a admitir tipos dolosos (tipo do crime doloso)
ou subjectivos e tipos culposos (tipo de crime culposo). Com efeito, o conceito do tipo não se
confunde com a tipicidade: o tipo pertence à lei e a tipicidade à conduta do agente.
O tipo é, portanto, a “fórmula legal que permite averiguar a tipicidade da conduta”. Ou
na definição de Hans WELZEL, o fundador da teoria finalista da acção, o tipo é “a descrição
concreta da conduta proibida (do conteúdo da matéria proibida) ”95.
Com efeito, diz-se que esta teoria veio “(…) solucionar uma infinidade de problemas.
A localização do querer do resultado (dolo) no tipo resolve o problema da causalidade, que está
limitada pela vontade. A tentativa é claramente distinguida, e sem distorções, porque o querer
do resultado (dolo) passa a ser problema típico. O tipo proíbe uma conduta e não uma
causação”96.

94
SANTOS; Juarez Cirino dos, Direito Penal, ob. cit., p. 67.
95
BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito…, ob. cit., p. 246.
96
ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte
Geral, 5.ª ed. revista e atualizada, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2004, p. 430.

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A essência da acção reside “[...] no facto de que o homem, através de uma antecipação
mental, controla cursos causais e selecciona meios correspondentes no sentido de determinado
objectivo, supra determinando-o finalisticamente (decorrendo daí) a consequência sistemática
de que o dolo, o qual no sistema clássico e também no neoclássico era considerado como forma
de culpabilidade, (...) aparece como integrante do tipo (...). Isso significa uma nova
subjectivização do injusto, e uma crescente de subjectivização e normativização da
culpabilidade”97.
Neste contexto, dolo e culpa já não são formas ou elementos da culpabilidade,
constituindo-se o dolo requisito do tipo doloso; a infracção do dever de cuidado, no que se
refere à previsibilidade do resultado, requisito do tipo culposo.
Olhemos, agora, aos dois tipos, objectivo e subjectivo, respectivamente.

57.2.1. Tipo de crime doloso ou subjectivo

O tipo de crime doloso ou subjectivo compreende todas as dimensões subjectivas do


tipo de conduta proibida que produzem, em concreto, o tipo objectivo. O tipo doloso ou
subjectivo é composto por um elemento geral designado por dolo.
Este elemento é determinante para a qualificação do tipo como subjectivo ou doloso e
bem andou avisado o nosso legislador penal ao consagrar um lugar próprio à caracterização do
dolo, nomeadamente no artigo 3 do Código Penal. É deste artigo 3 que se extraem os elementos
do tipo doloso.
Mais tarde voltaremos para estudar exaustivamente o dolo e o erro como defeito da
consciência. Pois estes elementos serão analisados noutro elemento do crime: o crime como
acção culposa.

57.2.2. Tipo de crime culposo ou objectivo

97
ROXIN, Claus, Derecho Penal …, ob. cit., p. 200.

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O tipo culposo ou objectivo compreende todos os elementos e aspectos objectivos do
tipo de conduta proibida. A culpa é elemento do tipo, que corresponde à inobservância do dever
de diligência. O elemento central deste tipo de crime é a negligência.
O Código Penal, no seu artigo 4, curou expressamente deste elemento. A punição destes
tipos de crimes funda-se na omissão de um dever de cuidado.
Estudaremos este elemento inserido numa das características do crime: o crime como
acção culposa.

57.3. Fase da teoria social do tipo

Esta escola, da teoria social do tipo, coincide com a escola finalista, só que esta abre a
teoria do tipo, introduzindo o chamado “tipo em sentido amplo (totalidade dos pressupostos de
punibilidade: tipo, antijuridicidade, culpabilidade e condições objectivas de punibilidade),
tomando como base da função de garantia da lei penal: a existência caracterizada de crime”98.
O tipo, tal como os finalistas, é bifurcado em objectivo ou culposo e doloso ou
subjectivo. Contudo, divergem no que se refere à formação do tipo, isto é, sentido da actividade.
Escreve WESSELS que “À totalidade dos pressupostos da punibilidade designa-se
tradicionalmente como tipo em sentido amplo: este conceito amplo de tipo abarca os elementos
do tipo …, da antijuridicidade e da culpabilidade, assim como as condições objectivas de
punibilidade (…). Ele tem importância para a «função de garantia da lei penal» …, por que
inclui todos os pressupostos da punibilidade normatizados legalmente e que não podem ser
criados ou alargados em prejuízo do autor, nem pelo direito costumeiro, nem pela
analogia…”99.
O tipo, para esta escola, como descrição dos elementos que caracterizam o conteúdo da
conduta proibida, compreende: i) elementos descritivos (ex. coisa, vida) ; ii) normativos
(estamos em presença de elementos valorativos, como “alheia); iii) objectivos e iv) subjectivos.

57.3. Fase da teoria funcionalista do tipo

A partir de 1970, esforços tem vindo ser empenhados no sentido de desenvolver um


sistema jurídico-penal «teleológico-racional ou funcional», orientado sob o ponto de vista

98
SANTOS; Juarez Cirino dos, Direito Penal, ob. cit., p. 82.
99
WESSELS, Johannes, Direito Penal, ob. cit., p. 30.

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valorativo e político-criminal, uma vez que não se acredita mais em soluções deduzidas de
conceitos sistemáticos superiores, sustentando que, a despeito das várias divergências, “[...] os
adeptos desta concepção estão de acordo (...) na recusa às premissas do finalismo e em partir
da ideia de que a construção sistemática jurídico-penal não deve orientar-se segundo dados
prévios ontológicos, (...) mas ser exclusivamente guiada por finalidades jurídico-penais”100.
Esta teoria assenta em duas bases:

(i) – A primeira assenta na teoria da imputação ao tipo objectivo, uma vez que: “[...]
nos delitos de resultado (...) o tipo objectivo, que para o sistema clássico esgotava o conteúdo
da tipicidade - tendo a construção neoclássica acrescentado elementos subjectivos, e o
finalismo o dolo –, permaneceu fundamentalmente reduzida à causalidade em todas as três
concepções de sistema. Face à isto, o modelo teleológico-racional tornou a imputação de um
resultado ao tipo dependente da realização de um perigo não permitido dentro do alcance do
tipo”101.

(ii) – A segunda baseada na “expansão da culpabilidade que se transforma na categoria


da responsabilidade, (assim) (...) à culpabilidade, deve ser acrescentada também a necessidade
preventiva (geral ou especial) de sanção penal”102.

Com estas visões, opera-se a substituição da “categoria científico-natural ou lógica da


causalidade por um conjunto de regras orientado em função de valorações jurídicas”103.
A produção de um resultado típico só realizará um tipo objectivo de crime se o agente
criou um perigo juridicamente reprovável. Para Roxin, o Direito Penal e a Política Criminal
não se tratam de opostos, sendo o Direito Penal muito mais a forma através da qual as
finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica, pelo
que só a variedade da vida, com todas as suas transformações, torna possível a concretização
de um solução correcta, ou seja, adaptada às peculiaridades do caso104. Portanto, é “errado
considerar que qualquer circunstância, por ter importância para o tipo, já não pode mais

100
ROXIN, Claus, Derecho Penal, ob. cit., p. 205.
101
ROXIN, Claus, Derecho Penal, ob. cit., p. 205.
102
ROXIN, Claus, Derecho Penal, ob. cit., p. 206.
103
ROXIN, Claus, Derecho Penal, ob. cit., p. 197.
104
ROXIN, Claus, Política Criminal e Sistema Jurídico-penal. Trad. de Luis Greco, Renovar, Rio de
Janeiro/São Paulo, 2002, pp. 82-83.

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significar nada para a culpabilidade. A controvérsia, sobre se o dolo “pertence” ao tipo ou à
culpabilidade, é, portanto, um problema aparente”105.

57.4. Notas conclusivas sobre a teoria do tipo

1.º - As noções de «tipicidade» e de «tipo legal». A «tipicidade» é a correspondência


entre o facto praticado pelo agente criminoso e a descrição de cada espécie de crime contido
na lei penal incriminadora; e o «tipo legal» é a síntese de todos os elementos constitutivos do
crime, o modelo, o esquema, a projecção na lei do que a conduta humana deve ser na realidade;
daí que o «tipo legal» compreende: o sujeito activo (agente do crime), a descrição da conduta
proibida (nos seus elementos exteriores ou objectivos e interiores ou subjectivos), o resultado
jurídico (o bem jurídico, descrevendo dano ou perigo), o objecto material e o sujeito passivo,
a reprovação do sujeito activo ou culpa e a sanção106.
2.º - As teorias em si. A separação do tipo em sentido restrito e do tipo em sentido amplo
remonta a Ernest Beling, em 1906. Beling criou os fundamentos para o conceito «trifásico» de
crime: «da acção típica, antijurídica e culpável». Sob o tipo em sentido restrito entendeu a
descrição isenta de valor dos elementos externos de uma acção. Sua concepção de tipo, cunhada
pelo positivismo científico e pelo naturalismo teve, porém, de ceder logo a uma consideração
teleológica e relacionada aos valores. Esta variação estrutural foi introduzida na teoria do crime
através da descoberta dos elementos normativos do tipo (por M. E. Mayer) e dos elementos
subjectivos (por Mezger, Nagler, Hegler). Desde então não mais se deteve a discussão em torno
do conceito de tipo107.
3.º - Perante isto, a tarefa do legislador é escolher, da variedade de possibilidades da
acção antijurídica, aquelas formas de conduta que ele, em razão da censurabilidade ética e dano
social, proíbe sob ameaça de uma pena108.
4.º - A formação do tipo preenche uma dupla finalidade109: i) dá a cada cidadão a
possibilidade de orientação própria, determinando, através da exacta descrição da conduta
desaprovada, o que não é permitido e até onde a proibição geral limita a liberdade social de

105
ROXIN, Claus, Política Criminal e Sistema Jurídico-penal, ob. cit., p. 87.
106
SILVA, Germano Marques da, Direito Penal Português, ob. cit., p. 22.
107
Cfr. WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 30.
108
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 31.
109
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 31.

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acção; ii) dá forma a um tipo de delito fortemente esboçado, que incorpora para o respectivo
crime típicas lesões de bens jurídicos (por exemplo, furto, homicídio, etc.).

58. Funções da tipicidade

A tipicidade exerce um conjunto de funções, que se podem sintetizar no seguinte110:

(i) Função garantidora: constitui a garantia material, em termos sistemáticos, do


princípio da legalidade na teoria do crime, que se sintetiza na exigência do cumprimento do
princípio da taxatividade na conformação dos tipos penais. A consagração do tipo legal de
crime na lei exterioriza o princípio nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege.

(ii) – Função motivadora: partindo do pressuposto de que o tipo legal formula juízos
de valoração a respeito dos actos dos indivíduos, em consequência motiva o indivíduo para que
oriente sua conduta em sentido contrário à norma penal (não matar, não roubar, não subtrair
fraudulentamente coisa alheia, não ofender corporalmente, etc.), com o objectivo de preservar
o bem jurídico fundamental merecedor de tutela penal.

(iii) – Função indiciária: a constatação de que uma conduta é típica não deve pressupor
que ela seja antijurídica. Portanto, tem sido sustentado que o tipo cumpre tão somente a função
de “ratio cognoscendi” da antijuridicidade. A tipicidade não é apenas indício ou «ratio
cognoscendi» da antijuridicidade, mas também o seu fundamento real ou «ratio essendi»111.

59. Formação do tipo e sistemática da lei

O ponto de partida de formação dos tipos e da sistemática da lei penal são os bens
jurídicos a serem protegidos. Segundo a direcção protectiva da lei e hierarquização dos bens,
podem distinguir-se os seguintes tipos, conforme a nossa lei penal:

110
OLIVARES, Gonzalo Quintero, Derecho Penal, ob. cit., pp. 312-314.
111
Não podemos olvidar o facto de que esta função é rejeitada por aqueles que sustentam a teoria dos
elementos negativos do tipo (Merkel, Roxin, Hirsch, Mir Puig, etc.). Para estes, o tipo comporta
elementos positivos e negativos: i) os negativos incluem as causas de justificação no tipo, assim, por
exemplo, a ocorrência da legítima defesa no homicídio, situar-nos-emos numa conduta atípica
(portanto, a teoria dos elementos negativos projecta seus efeitos no âmbito do erro) … para mais vide
OLIVARES, Gonzalo Quintero, Derecho Penal, ob. cit., pp. 313-314.

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• crimes contra as pessoas, dentro desta categoria encontrámos: i) crimes


contra a vida; ii) crimes contra a integridade física; iii) crimes contra a liberdade das
pessoas; iv) crimes contra o estado das pessoas, etc.;
• crimes contra o património no geral;
• crimes informáticos;
• crimes de perigo comum; etc.

A hierarquização dos bens fundamentais, segundo uma certa corrente dominante no


Estado de Direito Democrático, que coloca a dignidade da pessoa humana em primeiro lugar,
que na nossa Constituição inscreveu-se sob o título III, «Direitos, deveres e liberdades
fundamentais», constitui o critério enformador da Parte Especial do Código Penal.
A formação do tipo consiste na descrição definitiva e taxativa de todos os pressupostos
de punibilidade que caracterizam o tipo especial de crime e de cuja realização depende a
consequência penal cominada e delimitada na figura penal.
Portanto, em qualquer tipo legal incriminador é possível, através da sua construção,
identificar:

(i) – O sujeito da infracção: os agentes do crime, como pessoa física ou individual (art.
20) e, quando a lei assim o determinar expressamente, incluir-se-á as pessoas colectivas (art.
30);

(ii) – os elementos relativos à conduta: identificar a conduta em que se consubstancia


a acção do agente do crime. A conduta há-de exteriorizar-se através do resultado para os crimes
materiais ou através de mera actividade para os crimes formais ou sem evento naturalístico.

(iii) – elementos relativos ao bem jurídico alvo de agressão: dá-se indicação explícita
ou implícita dos bens jurídicos tutelados penalmente. A acção do agente do crime pode criar
dano no bem jurídico ou perigo concreto ou abstracto sobre o bem jurídico. Por exemplo, a
vida alheia pode ser destruída pela conduta do agente (dano).

60. Variações do tipo e sua importância112

112
Sobre esta matéria vide WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 26-28.

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Ao olharmos aos tipos legais de crimes existentes no Código Penal, que tem como
finalidade proteger certos bens jurídicos fundamentais, encontramos grupos de tipos
internamente conexos, que derivam do tipo fundamental do crime em causa e das variantes
qualificadoras da espécie típica ou atípica a ele associadas. Mas existem outras formações
delituais autónomos, que se tornam independentes do tipo fundamental, que juridicamente
seguem suas próprias regras e portanto devem ter uma consideração a se.
Analisemos o tipo fundamental e as suas variações.
Primeiro, o tipo fundamental consiste na forma básica do tipo de crime. O tipo
fundamental contém os pressupostos mínimos da punibilidade, que dão ao crime sua imagem
típica e determinam o seu conteúdo. Por exemplo, o crime de homicídio voluntário: este é o
tipo fundamental – art. 155.
O tipo fundamental pode variar, dando lugar a outros tipos, qualificados. São
qualificados na medida em que o legislador alarga o tipo fundamental em torno de elementos
especiais. Por exemplo, no crime do artigo 157, é homicídio qualificado porque o legislador
acrescentou os seguintes elementos ao tipo fundamental: tempo ou lugar de execução, modo
de execução, uso de determinados meios.
As variações conforme o caso podem ser qualificativas agravantes do tipo fundamental
ou atenuantes do tipo fundamental.
Por exemplo, o crime do artigo 164, parricídio, trata-se de uma variação do crime de
homicídio através da agravação pela qualidade do autor em relação à vítima (relação
ascendente e descendente – autor)
O tipo fundamental pode variar dando lugar a tipos autónomos, quando a norma mais
específica se dissocia do tipo originário e se aperfeiçoa no sentido de um novo crime. Veja-se
o caso de linchamento.
O tipo fundamental pode variar de forma não autónoma, quando a alteração da forma
do crime não elimina a dependência da qualificação do tipo fundamental, mas cria formas
análogas de aparecimento do crime, combinadas juridicamente em relação gradativa.

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61. Elementos do tipo113

O tipo legal pode conter os seguintes elementos:


(i) – Elementos descritivos do tipo: aqueles que através de simples descrição de
elementos do mundo exterior expressam concretamente o que pertence à proibição ou ao
comando típico. Podem existir as seguintes circunstâncias descritivas do tipo:

a) circunstâncias típicas objectivas do mundo sensível como “coisa”, “móvel”,


“edifício, “ascendente”, etc.
b) circunstâncias típicas subjectivas: trata-se de elementos psíquicos que se realizam no
intelecto do autor do crime, especialmente, as intenções, v.g., satisfação de desejos sexuais,
injuriar, causar escândalo, etc. Encontram-se nos chamados crimes dolosos, onde a intenção do
agente de atingir um fim vinga.

(ii) – Elementos normativos do tipo: carecem, em primeiro lugar, de complemento de


valor, em que perante circunstâncias concretas do facto, só podem ser pesados sob o lógico
pressuposto de uma norma e determinados pelo juiz por via de um juízo de valor supletivo. Por
exemplo, o artigo 261 fala de «introdução em casa alheia», o juiz terá de determinar perante o
caso concreto o que é “casa alheia”, o que quer dizer “fora dos casos em que e lei o permite”.
Nestes elementos, o juiz não pode ater-se à descrição da lei, terá que fazer posteriormente o
juízo de valores sobre a descrição legal perante o facto materializado pelo agente, de o que é,
v.g.,“casa alheia”, “intenção de se apropriar”. O campo de apreciação valorativa do juiz pode
consistir114:

a) em elementos típicos de juízo cognitivo: o juiz deduz o juízo valorativo de


conhecimentos provindos da experiência de vida. Por exemplo, a perigosidade de uma acção
do agente;

b) em elementos típicos de juízo valorativo ou emocional: que exigem uma valoração


em sentido restrito. É o caso de determinar o que são “maus tratos ou sobrecarga de menores,
idosos ou incapazes”, nos termos dos artigoss 179 e 180.

113
MEZGER, Edmund, Derecho …, ob. cit., pp. 146-148; WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp.
33-37.
114
MEZGER, Edmund, Derecho …, ob. cit., p. 147.

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62. Classificação ou divisão dos tipos legais (crimes ou delitos)

São vários os critérios para classificar os tipos criminais. Vamos agora seguir alguns
critérios classificativos.

62.1. Segundo a relação entre a acção e o resultado

Antes de proceder à indicação da classificação, importa fixar atenção à doutrina do


resultado ou evento do crime. O resultado do crime pode ser analisado em duas perspectivas:
I. Na escola naturalística, o resultado é a modificação do mundo exterior causada pelo
comportamento humano. Segundo esta concepção, pode haver crime sem resultado, pois o
evento naturalístico é elemento do facto típico, que se realiza no mundo físico. São exemplo,
o homicídio é um crime de resultado naturalístico ( a morte) e o envenenamento é um crime
sem resultado, pois o tipo preenche-se com a mera actividade do agente (introduzir veneno).

II. Na escola normativa ou jurídica, o resultado ou o evento do crime se identifica com


a ofensa ao interesse tutelado, pois todo o crime produz dano ou perigo a um bem jurídico-
penal. Portanto, segundo a escola jurídica, não há crime sem resultado. Por exemplo, no crime
de envenenamento, que a escola naturalística entende não ser crime de resultado, para esta
escola jurídica, o resultado coincide cronologicamente com a conduta delitiva. Assim, nos
crimes formais e materiais haveria sempre resultado.
a) Podemos ter crimes de resultado ou materiais, que pressupõem, no tipo legal, a
ocorrência no mundo exterior de um resultado imaginariamente separado da acção, de forma
que pode ser levantada a questão do nexo causal entre a acção e o resultado. Exemplo, no crime
de homicídio, o resultado é a destruição da vida (art. 155).
Nos crimes de resultado podemos enquadrar ainda os chamados crimes qualificados
pelo resultado, nos quais a lei prevê uma agravação da pena, se através da prática de um crime
fundamental, produz-se complementarmente, mas na forma culposa ou negligente, uma
consequência especial do facto115, como a morte do ofendido. Por exemplo, do crime de
ofensas corporais (tipo fundamental), advier a morte – art. 172.

115
WESSELS, Johannes, Direito penal, ob. cit., p. 8.

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b) Crimes de mera actividade ou formais, aqueles que não pressupõem a modificação
do mundo exterior, isto é, a ocorrência do resultado, sendo o tipo preenchido com a mera
actividade do agente. Exemplo, o crime de introdução em casa alheia, no art. 261. Basta alguém
invadir ou entrar no domicílio contra a vontade do possuidor para se dar por preenchido o tipo;
o envenenamento. Nestes crimes, o resultado não faz parte do tipo. Portanto, são crimes de
resultado naturalístico cortado, segundo a escola naturalística.

62.2. Segundo a intensidade do dano do objecto da acção visado


Nesta classificação podemos ter:

a) crimes de lesão ou de dano, que importam a perda real do bem jurídico,


é o caso da perda de vida no homicídio;
b) crimes de perigo, aqueles em que basta uma situação de perigo para o
objecto penalmente protegido. Assim, estes crimes podem ser:

• de perigo abstracto: estes crimes baseiam-se em uma suposição


legal de que determinados modos de comportamento são geralmente perigosos
para o bem jurídico penalmente protegido. A perigosidade do acto, não sendo
elemento do crime, é o fundamento para a existência do tipo legal. O juiz não
precisa de comprovar se o perigo ocorreu de facto ou não, isto é, não se exige
a comprovação do risco. É o caso de condução em estado de embriagues, o
crime de disseminação de enfermidade (art. 350). O crime consuma-se com o
perigo criado para o bem jurídico ( a omissão de socorro).

• de perigo concreto: baseiam-se na ponderação de que um


comportamento contrário à norma pode ser perigoso para o objecto protegido.
Exige-se a comprovação do risco ao bem jurídico protegido, isto é, por
exemplo, a exposição a perigo da vida ou da saúde de outrem. São os casos de
crimes de maus tratos (art. 179 e ss.). Já nos crimes de perigo de concreto, a
ocorrência do perigo é elemento do tipo.

• de perigo comum: que põem em perigo bens ou interesses de um


número indeterminado de pessoas. Exemplo, os crimes de incêndio.

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62.3. Segundo a manutenção ou a simples produção de um estado contrário ao


Direito

Podemos ter:
a) crimes permanentes ou duradouros, em que a manutenção do estado do
ilícito depende da vontade do autor. A consumação ou a produção do resultado e a
duração da actividade criminosa realizam o tipo legal. É o caso do cárcere privado (art.
200), em que a lesão do bem jurídico se prolonga no tempo.

b) crimes de estado ou instantâneos: em que o desvalor do tipo se esgota


na produção na produção do estado contrário ao direito. O facto será consumado com a
verificação do resultado de forma instantânea. Veja-se o caso de crime de homicídio,
furto.
62.4. Segundo as formas fundamentais do comportamento humano

Os crimes podem ser:


a) comissivos, aqueles em que o tipo legal é realizado através de um fazer
activo, isto é, uma acção, um facere; omissivos, quando o tipo é realizado por um non
facere, ou inactividade do agente. Normalmente, a omissão só existe quando recair
sobre o agente um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado (n.º 2
do art. 2). É exemplo de um crime comissivo, se alguém mata com um tiro outra pessoa,
há aqui um agir, um facere; haverá omissão se alguém contratado para cuidar de um
bebe, deixa-o afogar-se na piscina.

Os crimes omissivos podem ser próprios e impróprios (comissivos por omissão).


b) A omissão própria ou pura consiste na simples omissão de uma
actividade exigida por lei. Portanto, o dever vem da lei e a desobediência ao dever de
agir gera um resultado, respondendo o agente apenas pela omissão, não importando a
lesão ao bem jurídico tutelado posterior ao acto de abstenção. É o caso do crime de
abandono do sinistrado; do dever de não se introduzir em casa alheia sem
consentimento do possuidor, não prestação de assistência aos sinistrados (abandono de
sinistrados);

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c) Na omissão imprópria ou comissão por omissão, o agente está obrigado


a evitar o resultado através de um dever jurídico que o vincula, porque pessoalmente se
comprometeu a evitar tal resultado e podia evitar o evento. Nestes crimes ocorre um
resultado material, em que o omitente responde como se tivesse praticado a acção. É o
caso de um garante, que deixa o bebe se afogar na piscina; um vigilante que não cumpre
com a sua missão e dessa omissão resultar um crime.
62.5. Segundo os limites do possível círculo de autores ou “qualidade dos autores”

Os crimes podem ser:


a) gerais ou comuns, em que qualquer pessoa pode ser autor idóneo do tipo
legal. Exemplo, homicídio;
b) específicos ou especiais, em que o tipo limita o círculo de autores que
possam cometer o crime, por exemplo, a prevaricação (art. 477), que só pode ser
cometido por juiz; o parricídio, que só pode ser cometido por descendente. Estes delitos
podem ramificar-se em:

• crimes especiais próprios ou puros, nestes crimes a qualidade


especial do sujeito tem um significado fundamentador da pena, ou se quisermos,
da ilicitude e da responsabilidade. Afinal, olha-se para o estatuto ou a qualidade
do agente e, ai o seu dever especial fundamenta a ilicitude e a pena – é o caso
da prevaricação;

• crimes especiais impuros ou impuros, quando o dever especial,


a qualidade do agente agrava a ilicitude e a pena – é o caso do parricídio, que a
qualidade especial de ascendente agrava a pena de homicídio comum de 16 a
20 anos para homicídio especial de 20 a 24 anos.

c) crimes de mão própria ou de actuação pessoal, são aqueles em que o


tipo pressupõe que a acção se realize directamente pela própria mão, porque o desvalor
especial da conduta do delito em causa só deve ser realizado deste modo. Quem não
executa pessoalmente a acção não pode ser nem autor, nem co-autor e nem autor

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mediato, senão instigador ou cúmplice116. É o caso do crime de violação sexual,
prevaricação. A Professora Teresa BELEZA define estes crimes de “mão própria são
aqueles cuja definição legal torna impensáveis em qualquer forma de autoria que não
seja directa, imediata, material, dado que a acção descrita só é susceptível de ser
praticada por “mão própria”, isto é, com o próprio corpo”117.

62.6. Segundo o grau de preenchimento do tipo

Os crimes podem ser:


a) consumado, quando nele se reúnem todos os elementos da definição do
tipo. O art. 12 diz que a pena declarada num tipo de crime deve entender-se que se
impõe ao crime consumado. Por exemplo, o crime de homicídio é consumado quando
haja destruição completa da vida;

b) tentado ou tentativa imperfeita, quando iniciada a execução e


incompleta dos actos que deviam produzir o resultado, mas que não se consuma por
circunstâncias alheias à vontade do autor. Só é punível se o crime consumado for
punível com pena maior, salvo se a lei declarar o contrário (art. 14). Por exemplo, furto
abortado pelo facto de ter sido encontrado o agente ainda a subtrair os produtos.

c) frustrado ou tentativa perfeita ou acabada, quando o agente faz tudo


quanto está ao seu alcance para consumar o crime, mas o resultado não ocorre por
circunstância alheias à sua vontade. Por exemplo, o sujeito, sabendo que “A” não sabe
nadar e atira-o num rio, só que não morre porque é salvo por pescadores que por ai
passavam118. A frustração só é punida se ao respectivo crime caber pena maior (art. 13).

A diferença entre tentativa e frustração reside no que na tentativa os actos de execução


do agente embora iniciados são incompletos, enquanto na frustração os actos embora iniciados,
aqui são completos. A diferença está ainda no regime legal, a tentativa pode ser punida mesmo
quando ao crime corresponder pena correccional, quando a lei assim o declarar, o que não
ocorre na frustração.

116
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 10.
117
BELEZA, Teresa, Direito Penal Português, II, 1998, p. 273 e ss.
118
JESUS, Damásio de Evangelista de, Direito …, ob. cit., p. 204.

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62.7. Crime simples, privilegiado e qualificado

O crime é simples, quando é descrito na sua forma fundamental e contém os elementos


específicos do delito. Exemplo, o crime de homicídio, é simples, pois consiste simplesmente
em alguém voluntariamente matar alguém.
O crime é privilegiado, quando o legislador no tipo fundamental enuncia circunstâncias,
quer objectivas ou subjectivas, de diminuição da pena fundamental. Por exemplo, se alguém
comete o crime de homicídio dominado por medo insuperável, por emoção violenta,
compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral.
O crime qualificado, quando o legislador, descrito o tipo fundamental, acrescenta ou
agrega circunstâncias que aumentam a pena. Por exemplo, o homicídio qualificado é assim por
causa de o crime ter sido cometido com premeditação, tortura, etc.

62.8. Crimes comuns e políticos

São comuns, os crimes que lesam bens jurídicos do cidadão, da família ou da sociedade.
Exemplo, o furto, ofensas corporais, o homicídio.
São políticos, os crimes que atacam à segurança interna ou externa do Estado, ou à sua
própria personalidade, seu interesse político, a sua organização política. Exemplo, a alta
traição, passagem para nação inimiga, etc.

62.9. Crimes hediondos

São hediondos os crimes praticados com extrema violência, crueldade, sem nenhum
senso de compaixão ou misericórdia de seus agentes, causando profunda repugnância e aversão
à sociedade (art. 160, n.º 1).

62.10. Crime progressivo

Há crime progressivo, quando o agente para alcançar a produção de um resultado mais


grave, passa por outros crimes menos grave, mas que os crimes menos graves são consumidos
pela consumação do crime mais grave. Exemplo, no crime de homicídio qualificado por tortura,

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em primeiro lugar a vítima é submetida à ofensas corporais simples, graves, actos de tortura,
até que provenha o evento morte. Aliás, mesmo no homicídio simples, a vítima antes de morrer,
tem de aguentar o crime de ofensas corporais, mesmo na morte a tiro, o projéctil atinge primeiro
a epiderme, só depois atinge o órgão vital.

62.11. Crimes agravados pelo resultado

Podem existir crimes agravados ou qualificados pelo resultado. É o resultado descrito


pelo legislador que aumenta ou agrava a pena. Por exemplo, os artigos 171 e 172, nos crimes
de ofensas corporais, em que o crime é agravado pelo resultado: doença ou impossibilidade
para o trabalho; privação da razão, incapacidade ou morte.
Assim, os crimes agravados pelo resultado podem ser preterintencionais, com duplo
dolo típico, com dupla negligência típica e com um resultado agravante atípico.
Analisemos estas categorias de crimes qualificados pelo resultado.

62.11.1. Crime preterintencional

O crime preterintencional tem como fundamento a culpa negligente relativamente ao


resultado não doloso e só existe por especificação legal (princípio da especialidade). Assim, o
crime preterintencional é, estruturalmente, composto por119:
• um crime fundamental doloso e um resultado agravante não doloso que,
em princípio, é mais grave que o resultado previsto pelo tipo de crime fundamental ou
que, no caso deste ser de mera acção, constitui a sua ratio;
• uma relação de adequação que tem de existir entre a acção e o resultado
mais grave preterintencional;
• a negligência culposa do agente relativamente ao resultado mais grave;
• a fusão jurídico-penal dos dois crimes – o tipo de crime fundamental
doloso e o tipo de crime mais grave e não doloso – num só tipo legal de crime dá lugar
ao chamado tipo de crime preterintencional.
Por exemplo, A., procurando corrigir B., por o ter encontrado com sua filha, amarra-o
e através de um pau bate-o intensamente. Só que dias depois B. veio a falecer, por consequência
de coagulação do sangue na cabeça.

119
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal, ob. cit., p. 541.

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Neste caso, existe um crime de ofensas corporais voluntárias (crime doloso) de que
resulta a morte (art. 172), mas a morte é um resultado de outro tipo de crime – o homicídio
(crime não doloso). Assim, a morte é um resultado preterintencional que não pode ser imputado
dolosamente a A. Mas este resultado é imputado a A. a título de negligência culposa, pois não
é possível censurar o agente sem intenção criminosa (alínea d), n.º 2 art. 48).
A acção de A. deve ser adequada, segundo o juízo ex ante, não só a causar lesões
corporais, mas também a morte.
A justificação da criação dos crimes preterintencionais, fundindo-se dois crimes
diversos num só (crime doloso mais negligente), reside na “necessidade e justiça político-
criminais na aplicação de uma pena mais grave do que a que seria aplicada, se o agente fosse
punido pelos dois crimes autonomamente considerados, seguindo a regra da punição do
concurso ou pluralidade de crimes”120.

62.11.2. Crime com duplo dolo típico: resultado agravante previsto em tipo legal121

Estes crimes caracterizam-se, essencialmente, por existir um dolo relativamente ao


crime fundamental e dolo relativamente ao resultado agravante típico. Há, por assim dizer,
nestes crimes uma combinação dolo e dolo.
Por exemplo, alguém se introduz em casa alheia (art. 261, n.º 1) e usando violência criar
lesão corporal (n.º 2, primeira parte).

62.11.3. Crime com dupla negligência típica

Nestes crimes há negligência relativamente ao crime fundamental e negligência


relativamente ao resultado agravante e esta (agravante) é um elemento de um determinado tipo
legal. Há aqui uma combinação negligência e negligência.
Alguém que infringe regras de construção e que disso resulte a morte de um pedestre
que por ai passava.

120
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal, ob. cit., p. 542.
121
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal, ob. cit., p. 546.

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62.11.4. Crime com um resultado agravante atípico

O crime tanto pode ser doloso ou negligente, mas o seu resultado agravante doloso ou
negligente é atípico, pois não é elemento de qualquer tipo legal de crime.
É o caso por exemplo, do crime previsto no artigo 218, violação, quando dele resulte a
gravidez, este crime será agravado (alínea d) do n.º 1 do art. 222) ou infecção de HIV-SIDA –
alínea c).
Estes agravantes atípicos, se não tivessem sido estabelecidos, seriam agravantes gerais.

SECÇÃO III
CRIME COMO FACTO ILÍCITO (ILICITUDE)

63. Conceito de Ilicitude

A «ilicitude» é sinónimo «antijuridicidade». Isto é, a transgressão de uma norma do


Estado, de um preceito proibitivo ou imperativo da ordem jurídica. No Direito Penal, uma
acção será antijurídica ou ilícita quando realiza um tipo legal de crime e não se encontre ou
torne acobertado por uma causa de justificação ou de exclusão de ilicitude.
Uma acção é punível quando é ilícita ou antijurídica. No passado, e no Direito Alemão,
tem sido utilizada a expressão “antijurídica”, significando violação do direito ou contradição
com o direito. Hodiernamente, em virtude de uma aversão que se tem a conceitos rigorosos e
certa predilecção por expressões mais vagas, se prefere utilizar a palavra “injusto”,
«unrecht»122 (entre nós ilicitude). De todo o modo, utilizaremos as expressões
«antijuridicidade» como sinónimo de «ilicitude» ou «injusto»123.
O primeiro requisito da ilicitude penal é a tipicidade penal124: um facto é penalmente
típico quando esteja previsto por lei como constitutivo de uma espécie de figura do tipo de
crime, por exemplo, o homicídio, o furto, o roubo.

122
MEZGER, Edmund, Derecho …, ob. cit., p. 131.
123
Por exemplo, Franz von LISZT utiliza a expressão «ilegal» para se referir à ideia de ilicitude e diz
que “Como injusto, o crime, do mesmo modo que delito civil, é ilegal, ou por outros termos é a
transgressão de uma norma do Estado, de um preceito proibitivo ou imperativo da ordem jurídica (…).
O crime é ilegal, mas não produz ilegalidade”, Tratado …, ob. cit., p. 219.
124
Cfr. PUIG, Santiago Mir, Derecho …, ob. cit., p. 120.

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O segundo requisito, como notamos, da antijuridicidade penal é a ausência de causas
de justificação ou de exclusão de ilicitude
A antijuridicidade, ilicitude ou ilegalidade pode revestir formas diversas125:
(i) - Convertendo os interesses da vida humana em bens jurídicos, isto é, em interesses
juridicamente protegidos, o direito proíbe, sem que se faça mister uma declaração expressa,
toda lesão ou ofensa de tais interesses.
(ii) – Por declaração especial, o direito proíbe também, dados certos requisitos e dentro
de certos limites, que se ponham em perigo os interesses juridicamente protegidos.
(iii) – Finalmente, o direito proíbe (exige), e ainda por disposição expressa, a prática
(ou a abstenção) de uma acção determinada, porque efectuá-la (ou não efectuá-la) envolve
ordinariamente perigo para um bem jurídico, pouco importando saber se, no caso em concreto,
a acção corresponde ou não a este pressuposto. Este conjunto corresponde, em oposição ao
ilícito penal, o ilícito policial ou a simples desobediência.
Concluindo, podemos afirmar que a ilicitude ou antijuridicidade é a relação de
contrariedade entre o facto típico e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão a um bem
jurídico. Ora, essa definição abrange dois aspectos importantes:

1.º - Ilicitude penal em sentido formal: isto é, uma relação de contradição de um facto
com o Direito Penal: incompatibilidade entre o facto e o Direito. Ora, porque é que um facto
é contrário ao Direito? A resposta virá da ilicitude em sentido material.
2.º - Ilicitude penal em sentido material: neste sentido, uma acção é antijurídica,
quando, havendo transgredido uma norma positiva, lesiona ou põe em perigo de lesão um bem
jurídico, que o Direito queria proteger. Neste sentido, o conceito de ilicitude material vincula-
se directamente à função e fim da norma: fim social e da política criminal, que é a protecção
de bens jurídicos fundamentais. O conceito de ilicitude material tem as seguintes
consequências126:
a) exerce a função de orientação da interpretação da norma penal, pois o tipo penal se
orienta para a protecção de bens jurídicos e o legislador tem presente a ideia de antijuridicidade
material ao tempo de configurar um facto como típico;

125
LISZT, Frans von, Tratado …, ob. cit., pp. 219-220.
126
OLIVARES, Gonzalo Quintero, Derecho Penal, ob. cit., pp. 290-292.

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b) é a possibilidade de construir causas de justificação nos casos em que o facto, sendo
formalmente típico, não ofende um bem jurídico protegido. Neste caso, é preciso rever a
interpretação do tipo e excluir a sua aplicação, v.g., nos chamados crimes de perigo abstracto;
c) cobre particular relevância ao conectar-se com a utilização da analogia em Direito
Penal. Fala-se, em particular, da analogia «bonam partem», que é admitida, por exemplo, no
âmbito das circunstâncias atenuantes. Veja-se um outro exemplo, em que o legislador não
pune quem passa um cheque sem cobertura, se entretanto, o prazo da cobrança da dívida não
tenha vencido.
Último aspecto que podemos aqui frisar tem a ver com a chamada «consciência da
ilicitude».
A consciência da ilicitude, para a teoria causal-naturalista, situa-se no dolo, que, por
sua vez, é um dos elementos da culpabilidade. Para a teoria finalista, essa consciência situa-se
na culpabilidade, mas como elemento autónomo (potencial consciência da ilicitude), pois o
dolo passou a ser considerado como elemento do tipo penal.

64. Ataque ao bem jurídico fundamental como essência da ilicitude ou


antijuridicidade

A escolha de certos bens jurídicos merecedores de protecção penal transforma-se numa


opção da política criminal. Assim, o conceito de bens jurídicos (supra n.º 7), como bens vitais,
os valores sociais e os interesses juridicamente reconhecidos do indivíduo ou da colectividade,
que, em virtude de seu especial significado para a sociedade, requerem protecção jurídica,
permite denunciar a existência de crimes que não protegem bens jurídicos nenhuns, salvo se se
pretender designar bens jurídicos a qualquer interesse perseguido pela norma, que não penal.
Pode muito bem suceder que existam bens jurídicos que não necessitam de protecção
penal, momento em que a violação desses bens não significa necessariamente a existência de
ilicitude penal, porque tais bens têm protecção ao nível de outras ciências, que não a penal. É
o caso, por exemplo, de violação de obrigações ao nível de Direito Civil.

65. Conduta humana como objecto de juízo de ilicitude: desvalor da acção e


desvalor do resultado127

127
Nesta matéria ver OLIVARES, Gonzalo Quintero, Derecho Penal, ob. cit., pp. 296-300; WESSELS,
Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 6-7; PUIG, Santiago Mir, Derecho …, ob. cit., p. 133 e DIAS, Jorge de
Figueiredo, Direito Penal, ob. cit., pp. 285-286.

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Primeiro, tratemos do «desvalor da acção e do desvalor do resultado». A ilicitude penal


se distingue de outras formas de ilicitude, em primeiro lugar, por exigir o desvalor da acção e
o desvalor do resultado.
“Por «desvalor da acção» compreende-se o conjunto de elementos subjectivos que
conformam o tipo de ilícito (subjectivo) e o tipo de culpa, nomeadamente a finalidade delituosa,
a atitude interna do agente que ao facto preside e a parte do comportamento que exprime
facticamente este conjunto de elementos. Por «desvalor de resultado» compreende-se a criação
de um estado juridicamente desaprovado e, assim, o conjunto de elementos objectivos do tipo
de ilícito (eventualmente também do tipo de culpa) que perfeccionam a figura de delito”128.
Por exemplo, imaginemos um caso em que “A” mata dolosamente “B”. Diremos aqui
o seguinte: o conteúdo do ilícito ou injusto e da culpabilidade do facto punível praticado por
“A” devem ser julgados da seguinte maneira: - nos crimes de homicídio o «desvalor do
resultado» é determinado em todos os casos através da destruição da vida humana alheia.
Decisivo para o «desvalor da acção» é, em primeira linha, o modo de cometimento doloso ou
negligente do crime de homicídio. Um aumento do «desvalor da acção» tem lugar com o
emprego de meios de perigo comum e em acções executadas insidiosamente ou de modo cruel
(crimes hediondos – reprovabilidade, crueldade, extrema violência e aversão social do modo
de cometimento do crime, art. 160). O conteúdo de culpabilidade e o «desvalor do ânimo» são
estampados, na reprovação da culpabilidade dolosa, através do consciente menoscabo à
proibição de matar; na reprovação da culpabilidade por negligência, através da desatenta ou
descuidada posição do autor para com as exigências de cuidado da ordem jurídica129.
Segundo, o comportamento humano tem uma dimensão objectiva e subjectiva e as
normas jurídicas inserem um juízo de valor posto que ao decidir proteger certos bens jurídicos
está valorando e simultaneamente também está desvalorando as condutas que os ofendem.
Portanto, a doutrina tem se divido na compreensão do conteúdo da ilicitude penal:
(i)– O primeiro grupo é daqueles que entendem que a ilicitude tem um conteúdo
objectivo. Segundo estes tratadistas, a ilicitude constitui um juízo objectivo de valor, não sendo
possível fazer depender a existência da antijuridicidade à vontade do agente de crime, questão
que terá relevância para estabelecer a sua culpabilidade, mas não a ilicitude. Esta tese tropeça
com uma realidade positiva inegável: “o Direito é independente da existência do crime, em

128
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito …, ob. cit., pp. 285-286.
129
Para mais conferir WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 6-7.

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muitas ocasiões, a intenção do autor se orienta a um propósito determinado, por exemplo, o
ânimo de defraudar, de se apropriar, de provocar uma rebelião, (…)”130.
(ii) – O segundo grupo é daqueles que entendem que a ilicitude tem um conteúdo
subjectivo. Sustentam estas teses um conceito estritamente pessoal da ilicitude, de forma que o
núcleo do tipo ilícito residiria no desvalor da acção (dimensão subjectiva); o desvalor do
resultado não constituiria, segundo estas teorias monistas subjectivas, parte essencial do
conteúdo do ilícito. Destas concepções resulta que: i) não existe diferenças qualitativas no
desvalor presente nas fases imperfeitas de execução do crime (tentativa e frustração), em
relação a que apresenta o crime consumado; ii) as diferenças entre «pôr em perigo» o bem
jurídico e sua destruição (problema objectivo) não assenta num diferente juízo de desvalor.
As teses eclécticas tendem a ser mais abrangentes. Contudo, não se pode deixar de lado
o facto de que o nosso Direito Penal é um direito penal de culpa, isto é, só o dolo fundamenta
a imputação subjectiva, sem prejuízo de, nos casos especialmente declarados por lei, a
negligência fundamentar a responsabilidade penal.

66. Relação entre ilicitude e tipicidade

Dissemos que uma acção é ilícita quando realiza um tipo de ilícito e não se torna
acobertada por uma causa de justificação. “A justificativa de uma acção típica resulta, no caso
particular, da colisão entre a norma proibitiva ou de comando, fundamentadora do tipo de
ilícito, e uma oração permissiva. Frente aos tipos de ilícito situam-se tipos permissivos, que
excepcionalmente autorizam a conduta lesiva a bens jurídicos. As orações permissivas,
revestidas nas causas justificantes, impedem, no caso de sua incidência, que a proibição geral
se concretize em dever jurídico; na verdade, a conduta justificada permanece “típica”, mas não
contém qualquer lesão ao dever jurídico”131.
Para se estabelecer a relação entre o tipo legal e a ilicitude existem várias teorias, muitas
das quais foram abordadas quando vimos a teoria do tipo (supra n.º 57). Mas cabe referir o
seguinte sobre esta relação:

130
OLIVARES, Gonzalo Quintero, Derecho Penal, ob. cit., p. 297.
131
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 62.

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1.º - Até 1906, a doutrina penal alemã não conhecia o conceito de tipicidade, pois
vingava a doutrina causal-naturalística de crime, que dividia o crime em duas partes – objectiva
e subjectiva. Foi BELING, em 1906, que complementou o sistema de LISZT, passando a parte
objectiva do crime a ser constituída por dois requisitos: a tipicidade e a antijuridicidade ou
ilicitude132 e a parte subjectiva se esgotava na culpabilidade, onde se situavam o dolo e a culpa.
2.º - Portanto, em resumo são as seguintes as teorias que relacionam a ilicitude e a
tipicidade:

(i) – Teoria da independência: Segundo Beling, a tipicidade não gera nenhum juízo
de valor no âmbito da ilicitude, ou seja, a tipicidade não mantém qualquer relação com a
ilicitude, sendo o facto típico analisado, sob essa perspectiva, independentemente da ilicitude.
Assim, por exemplo, a legítima defesa é um facto típico justificado, um facto típico não ilícito.
(ii) – Teoria da indiciariedade ou “ratio cognoscendi”: Max Ernest MAYER, autor
desta concepção, mantendo o carácter descritivo inicial, acrescentou que a tipicidade, na
verdade, era um indício da antijuridicidade ou da ilicitude, isto é, toda conduta típica é
provavelmente antijurídica ou ilícita, salvo se ocorrer uma causa de justificação, cuja
constatação pertenceria a uma etapa seguinte de avaliação. Portanto, esta teoria traz uma
relativa interdependência entre o facto típico (tipicidade) e a ilicitude, uma vez que, se há
facto típico, presume-se relativamente que seja também ilícito (presunção iuris tantum).
Assim, o ónus de prova incumbe ao réu, que deve demonstrar a existência de uma causa de
exclusão da ilicitude ou de justificação.
(iii) – Teoria da absoluta dependência ou da “ratio essendi”: defendida, entre outros,
por MEZGER, para essa corrente, a ilicitude é a essência da tipicidade, não havendo ilicitude,
não haverá tipicidade. Portanto, não se fala em facto típico justificado, mas sim em facto
simplesmente justificado, por ser atípico. É como diz o próprio MEZGER: “O acto de criação
legislativa (…) contém imediatamente a declaração de antijuridicidade, a fundamentação do
injusto como injusto especialmente tipificado. O legislador cria, através da formação do tipo,
a antijuridicidade específica: a tipicidade da acção não é, de modo algum, a mera ratio
cognoscendi, mas a própria ratio essendi da (especial) antijuridicidade. A tipicidade transforma
a acção em acção antijurídica, sem dúvida não por si só, mas em vinculação com a ausência de
fundamentos especiais excludentes do injusto”133.

132
PUIG, Santiago Mir, Derecho …, ob. cit., pp. 128 -130.
133
MEZGER, Edmund. Vom Sinn der strafrechtkichenTatbestände , 1926, p. 187, apud SANTOS, Juarez
Cirino dos, A Moderna Teoria do Fato Punível, 4, ed, Lumen Iuris, Curitiba, 2005, p. 34.

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(iv) – Teoria dos elementos negativos do tipo: com esta teoria, chega-se às mesmas
conclusões da teoria anterior, mas usando-se caminhos diferentes. Assim, para os seus adeptos
o tipo penal é composto por: a) elementos positivos, explícitos, que devem ocorrer para que o
facto seja típico; b) elementos negativos, implícitos, que não podem ocorrer para que o facto
seja típico. Tais elementos negativos são justamente as causas de exclusão da ilicitude
(legítima defesa, estado de necessidade, conflito de deveres, exercício regular de um direito,
consentimento de ofendido e estrito cumprimento de dever legal).
Ora, chegados aqui, passemos a analisar as causas de exclusão da ilicitude.

67. Sistematização das causas de exclusão da ilicitude ou causas de justificação do


facto

67.1. Enumeração

As causas de justificação do facto denominam-se também de causas de exclusão da


ilicitude. Ambas as designações possuem o mesmo significado. Todas as causas de justificação
reduzem-se ao princípio de ponderação de valores e interesses. Assim134:
(i)– Das orações permissivas que garantem um direito de agressão aos bens jurídicos
de outrem, resulta simultaneamente o dever de tolerância daquele que foi atingido pela acção
justificada. Por exemplo, em caso de legítima defesa ou de auxílio necessário, o agressor deve
tolerar a defesa e a agressão em seu círculo jurídico, a ela associada: ele não pode, ao contrário,
por seu lado, exercer a “legítima defesa”.
(ii) – A participação punível só é possível em um facto ilícito. Se a conduta do autor é
objectiva e subjectivamente justificada, eliminam-se a instigação e a cumplicidade.
A sistematização das causas de justificação do facto ou da exclusão da ilicitude tem
como base:
(i) – O artigo 48 do Código Penal. Neste sentido, excluem a ilicitude ou justificam
o facto:
• a legítima defesa própria ou alheia;
• o estado de necessidade;
• o conflito de deveres;

134
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 64.

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• a obediência legalmente devida aos seus superiores legítimos, salvo se
houver excesso nos actos ou na forma de execução;
• a autorização legal no exercício de um direito ou no cumprimento de
uma obrigação, se tiver procedido com diligência devida, ou o facto for um resultado
meramente casual.

(ii) – Consagração de outras causas exclusórias em outras normas jurídicas. Teremos:


• o estado de necessidade do Código Civil;
• a acção directa;
• o direito de correcção dos pais e educadores relativamente aos seus
filhos e educandos.
(iii) – a Ordem jurídica considerada na sua globalidade. Neste sentido teremos:
• o consentimento do ofendido;
• o direito político de resistência;
• o direito de prender em flagrante delito;
• a direcção de negócios sem encargos ou gestão de negócios;
• a defesa do legítimo interesse nas lesões à honra.
Passemos à análise de alguns destes institutos.

67.2. Legítima defesa própria ou alheia

67.2.1. Definição, fundamento, natureza e limite da legítima defesa

A legítima defesa tem sido reconhecida em todos os tempos e por todos os povos como
acção conforme o Direito e não punível. É caso para dizer que a legítima defesa não tem história
(GEIB).
A legítima defesa tem como sede legal a alínea b) do n.º 1 do artigo 48 do Código Penal,
com desenvolvimento autónomo no artigo 50, com a epígrafe «legítima defesa».
Por definição, podemos afirmar que «legítima defesa» é a defesa necessária para a
repulsa ou neutralização de uma agressão ou ameaça de lesão actual e ilegal de interesses
juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, mediante ofensa de interesses jurídicos do
agressor.

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A legítima defesa tem como fundamento o reconhecimento de que o Direito nunca pode
recuar ou ceder perante o ilícito, já que a agressão, sendo ilegal, não lesa apenas um interesse
particular, mas viola o próprio Ordenamento Jurídico globalmente considerado. Segundo o
Professor TAPIA DE CARVALHO, a legítima defesa tem um duplo fundamento:

“(i) – um fundamento individual de tutela de bens jurídicos;


(ii) – um fundamento supra-individual ou social (implicado no primeiro) de prevenção
geral de intimidação dos potenciais agressores (ante «uma reacção defensiva que pode ir tão
longe quanto o necessário para impedir ou fazer cessar a agressão») e de prevenção geral
positiva de «estabilização, pacificação ou confiança da comunidade social» ”135.

Concluindo este debate, podemos afirmar que a legítima defesa funda-se na necessidade
de defesa da Ordem Jurídica que não tolera actos ilícitos (triunfo do Direito sobre a ilegalidade)
e na necessidade de protecção dos bens jurídicos pessoais do indivíduo ou de terceiro ameaçado
de lesão pela agressão actual e ilegal136: visa a protecção individual e a prevalência do Direito
sobre actos ilícitos.
ROXIN explica que “A justificação por legítima defesa pressupõe sempre que uma
acção típica seja necessária para impedir e repelir uma agressão antijurídica a um bem jurídico
individual; a legítima defesa é para o indivíduo um direito protector duro e enraizado na
convicção jurídica do povo”137.
Quanto à natureza, a legítima defesa é uma medida preventiva e constitui causa de
exclusão da ilicitude, ou melhor consubstancia a situação de ausência de ilicitude, o que
fundamenta a não punição de quem agiu em legítima defesa própria ou alheia. Esta conclusão
é extensível, levando a que os comparticipantes na defesa sejam também isentos de punição e
a impossibilidade de existir uma legítima defesa contra actos praticados no exercício do direito
de defesa (isto é, não há legítima defesa contra legítima defesa, pois se A defende-se de uma
conduta ilícita de B, não é possível B revidar, alegando legítima defesa de uma sua conduta
ilegal).

135
CARVALHO, Américo Taipa, A Legítima Defesa, Coimbra Editora, 1995, pp. 390, 432-439.
136
Para mais, vide DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito …, ob. cit., p. 405.
137
ROXIN, Claus, Derecho Penal, Parte General, Tomo I (Fundamentos, la Estrutura de la Teoria del
Delito), (Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garica Conlledo e Javier de Vicente
Remesal), Editorial Civitas, SA., 1997, p. 608.

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Por isso, não há legítima defesa contra legítima defesa: Se a conduta de B é ilícita não
pode ser ao mesmo tempo lícita – é o caso da famosa história de dois náufragos que se agridem
pela posse da tabula unius capax? Não se encontram em legítima defesa?
No famoso caso tabula unuis capax, os dois náufragos pelejavam pela posse da tábua
de flutuação que podia suportar uma pessoa, portanto, o facto de um ter morto o outro não
consubstancia legítima defesa, mas o caso coloca-nos perante o estado de necessidade.
Quanto aos limites, o direito de legítima defesa encontra limitação na proibição geral
do abuso de direito e nos elementos normativos da imposição: “uma defesa, cujas
consequências situam-se em crassa desproporção para com o dano iminente, é abusiva e,
assim, inadmissível”138.
Mas há quem entenda que “…, perante uma agressão actual, ilícita, dolosa e praticada
por pessoa consciente da censurabilidade social do seu acto, carece de fundamento impor ao
agredido um dever de solidariedade para com tal agressor, fazendo recair sobre ele a obrigação
de fugir ou de tolerar a lesão de um bem jurídico pessoal ou patrimonial, quando não possa
defender-se sem sacrificar bens do agressor muito superiores aos ameaçados”139. Esbatendo
esta ideia de recusa de proporcionalidade como limite da legítima defesa, escreve Maria
FERNANDA PALMA que se trata de um problema de delimitação de direitos, caracterizado
por uma exigência de proporcionalidade, a qual não deve permitir a lesão de bens
qualitativamente superiores aos preservados uma vez que se verifica “a insuportabilidade da
agressão a um núcleo de bens essenciais em que se manifesta a dignidade da pessoa humana e
a igualdade na protecção dos sujeitos jurídicos”140.
Outros fundamentos das limitações assentam nas considerações ético-sociais da
legítima defesa, que são levadas em conta quando é de se exigir do agredido, por motivos
especiais, uma outra conduta em lugar da rigorosa resistência (por exemplo, afastar-se, chamar
a polícia, limitações à defesa defensiva, etc.), sem o abandono do legítimo interesse, e quando
a ordem jurídica não precisa se afirmar através de um enérgico abatimento da agressão141.
Note-se que uma fuga vergonhosa não deve ser exigida ao agredido. A chamada da
Polícia, com renúncia ao direito de defesa legítima, só é exigível eventualmente quando sua

138
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 72-73.
139
BRITO, Teresa Quintela de, Homicídio Justificado em Legítima Defesa e em Estado de Necessidade.
In Estudos em Homenagem a Cunha Gonçalves, Coimbra Editora, 2001, p. 191.
140
PALMA, Maria Fernada, A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de
Direitos, Vol. 1 (Tese de Doutoramento em Ciências Jurídicas), AAFDL, 1990, pp. 13 e 253.
141
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 73.

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intervenção possa ser imediatamente conseguida e esteja disponível e pronta para repelir a
agressão, sem que esta provoque lesões ao agredido.

67.2.2. Âmbito da legítima defesa e auxílio necessário

A legítima defesa compreende a defesa exercida para (art. 188 do Código Penal):
a) repelir, de noite, o escalamento ou arrombamento de uma casa habitada
ou de suas dependências, que podem dar acesso à entrada na mesma casa;

b) defender-se contra os autores de roubos ou destruições executadas com


violências.

Mas isto não quer dizer que a legítima defesa não possa ser utilizada para outros casos.
A agressão como um acontecimento físico contra a pessoa, pode nela admitir-se os casos dos
ataques a bens imateriais, como o ataque à honra, honestidade, pois é inadmissível
hodiernamente que o ataque se refira a bens materiais somente142. Assim, podemos concluir
que a legítima defesa é admissível para a defesa de todos os direitos, incluindo de terceiros.
Os casos referidos no artigo 188 do Código Penal visam afastar qualquer dúvida sobre
se os casos de «repelir, de noite, o escalamento ou arrombamento de uma casa habitada ou de
suas dependências, que podem dar acesso à entrada na mesma casa ou de defender-se contra
os autores de roubos ou destruições executadas com violências», resultando homicídio ou
ofensas corporais ao agente agressor, constituiriam ou não a legítima defesa. Assim, o
homicídio ou as ofensas corporais que resultem ao agressor da prática de actos referidos nas
alíneas a) e b) do artigo 188 do Código Penal constituem consequências normais da legítima
defesa, devendo ser tratados dentro da sistemática (âmbito e limites) da legítima defesa.
Quanto ao auxílio necessário, esta é admissível, desde logo, o Código Penal fala em
legítima defesa própria ou alheia, o que faz com que se possa exercer a defesa própria e a defesa
em auxílio de terceiro, sem problemas de maior.

67.2.3. Regime jurídico da legítima defesa

142
Por exemplo, o Tribunal Supremo Espanhol admitiu em acórdão que o ataque a honra e honestidade
pode ser incluído no conceito de agressão para efeitos de legítima defesa. Para mais vide PUIG,
Santiago Mir, Derecho …, ob. cit., p. 432.

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O regime jurídico da legítima defesa é constituído pelos requisitos ou pressupostos da
agressão e os requisitos ou pressupostos da defesa, e está estabelecido no artigo 50 do Código
Penal:

“1. Só pode verificar-se a justificação do facto, nos termos da alínea b),


número 1 do artigo 48, quando concorrerem os seguintes requisitos:
a) agressão ilegal em execução ou iminente, que não seja motivada
por provocação, ofensa ou qualquer crime actual praticado pelo que defende;
b) impossibilidade de recorrer à força pública;
c) necessidade racional do meio empregado para prevenir ou
suspender a agressão.
2. Não é punível o excesso de legítima defesa devido a perturbação ou medo
desculpável do agente”.

A. Requisitos da agressão

São requisitos da agressão: i) a agressão ilegal; ii) agressão em execução ou iminente;


iii) a ausência de provocação, ofensa ou qualquer crime actual praticado pelo que defende; iv)
o objecto da agressão.

1. Agressão ilegal

A agressão é toda a ameaça de lesão, produzida pelo homem, a bens ou interesses


juridicamente protegidos. Não é preciso a existência de uma acção lesiva “finalista”. Um omitir
pode ser uma agressão, se se equiparar a um fazer activo com base em um dever jurídico de
agir143 (como, por exemplo, se a mãe suspende o alimento de seu filho recém-nascido, estará
agredindo o filho, podendo o pai defender o recém-nascido, obrigando a mãe a amamentar o
filho).
Para que haja uma agressão não é necessário que haja consumação da lesão de bens
jurídicos do defendente, basta a intenção idónea de lesar tais bens.

143
PUIG, Santiago Mir, Derecho …, ob. cit., p. 432.

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Por exemplo, o ataque de um animal não é causa da legítima defesa, mas de estado de
necessidade; mas já será legítima defesa se o dono de um cão o atiça para morder terceiro, pois
é uma agressão humana que utiliza um instrumento como meio de agressão.
Ora, a agressão será ilegal quando não encontra cobertura ao nível do Ordenamento
Jurídico tomado globalmente, isto é, quando “aquele que recebe não é obrigado por lei a
suportá-la. A ilicitude há-de resultar da ordem jurídica no seu conjunto”144.
Ora, podem ser levantadas várias questões aqui na agressão ilegal.
A primeira seria a de saber se é possível uma legítima defesa contra uma actuação
acobertada por uma causa de exclusão da culpa, como por exemplo, aqueles que praticam o
facto violentados por forças estranhas, irresistíveis ou por coacção moral; situação de
cumprimento de um dever de obediência aos superiores hierárquicos?
Sem antecipações, podemos responder pela afirmativa, pois as causas de exculpação só
removem a culpa, mas a ilicitude da agressão permanece e, portanto, o agredido pode sacudir
a agressão ilícita.
A segunda seria de averiguar se poderá legitimar a defesa a agressão de inimputáveis.
A resposta parte do pressuposto de que bastará a agressão ser objectivamente ilícita para pôr
em funcionamento o acto de defesa, respeitando os limites da defesa.
A terceira é a agressão das autoridades públicas, no exercício das suas funções. As
autoridades policiais e outros funcionários só podem usar da força em caso de absoluta
necessidade, como medida da ultima ratio, quando os meios ou as formas mais suaves não
tenham conseguido lograr o êxito pretendido no cumprimento da missão a que estão adstritas
as autoridades ou funcionários. Fora isso, as autoridades podem legitimamente defender-se em
casos de agressões ilegais como qualquer pessoa.
Note-se que a actuação das autoridades policiais e funcionários está acobertada pelas
alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 48 do Código Penal: “d) a obediência legalmente devida aos
seus superiores legítimos, salvo se houver excesso nos actos ou na forma de execução; e) a
autorização legal no exercício de um direito ou no cumprimento de uma obrigação, se tiver
procedido com diligência devida, ou o facto for um resultado meramente casual”.

2. Agressão em execução ou iminente

144
GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, Código Penal Português, ob. cit., p. 118.

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A agressão em execução ou iminente é a agressão actual, que se apresenta directamente
iminente, ou melhor que começou, presente, real ou ainda perdura. Portanto, não haverá
legítima defesa contra agressões futuras, passadas ou imaginárias.
As agressões passadas ao serem respondidas com a agressão do defendente, situar-nos-
emos perante actos de vingança, o que é criminalmente punível; quanto aos actos futuros, sendo
esta agressão certa, mas deferida para o futuro, a melhor defesa é dar queixa às autoridades
policiais.
A reacção do defendente visa impedir o início da agressão (função preventiva) ou a sua
continuidade (paralisa a agressão em curso).
“Nos crimes formais e nos de efeito permanente, nota-se tendência da doutrina para
alargar o conceito de actualidade até o momento da verificação do resultado típico e durante a
permanência do efeito”145. É o caso de sequestro ou cárcere privado, a vítima pode se defender
enquanto perdura o sequestro ou a privação da liberdade.
Não será, portanto, admissível a legítima defesa:
• contra uma agressão futura;
• contra uma agressão finda, isto é, as agressões que já tenham consumado
o crime. Se o furto já se deu e o proprietário se dirige à casa do ladrão e o agride para
alegar a legítima defesa, esta não será aceite.

3. Ausência de provocação, ofensa ou qualquer crime actual praticado pelo que


defende

Para que o defendente goze do direito de defesa é preciso que o ataque que sofre não
tenha sido por ele suficientemente provocado, não ser resultado de uma ofensa por ele praticada
ou de um crime que esteja a cometer. Pois, neste sentido, a legítima defesa seria preordenada e
ao arrepio do Direito.
Seria o caso, por exemplo, de A proferir impropérios a B, sabendo que tais palavras
ofendem suficientemente a honra de B e este não vai tolerar. Sendo assim, B tenta defender-se
de tal ofensa, momento em A aproveita a ocasião para agredir B, alegando legítima defesa.
Claro que esta seria uma legítima defesa preordenada.

145
GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, Código Penal Português, ob. cit., p. 118.

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4. Objecto da agressão

O bem ameaçado pela agressão pode ser do defendente ou de terceiro. Para afirmar que
é admissível a legítima defesa própria ou alheia.
Os bens objectos de ameaça de lesão podem ser materiais e imateriais. Por exemplo, a
vida, a integridade física, a honra, a honestidade, a autodeterminação sexual, a propriedade,
etc.

B. Requisitos da defesa

São requisitos da defesa: i) animus defendendi; ii) impossibilidade de recorrer à força


pública; iii) necessidade racional do meio de defesa.

1. Animus defendendi

A defesa deve ser dirigida contra o agressor e não outra pessoa. Um acto de defesa
dirigida a terceiros só pode ficar impune se, entretanto, se tornar um acto de extrema
necessidade e, portanto, se situa fora da legítima defesa.
O animus defendendi é legítimo se faltar a provocação ao agressor, a ofensa ou a prática
de qualquer crime actual por parte do defendente.
O acto de defesa deve ser objectivamente necessário e subjectivamente conduzido pela
vontade de se defender, daí a expressão animus defendendi.

2. Impossibilidade de recorrer à força pública

A impossibilidade de recurso à força pública deve ser ajuizada com razoabilidade de,
se perante a agressão iminente, actual e real, era possível, objectivamente, que o defendente
chamasse pela força policial, para esta neutralizar a agressão. Pelo contrário, se a resposta for
negativa segundo um critério objectivo e de homem médio, deve afirmar-se a necessidade de
defesa por não haver possibilidade de recorrer à força pública.
A legítima defesa materializa a defesa privada, em substituição do Estado, por não ser
possível recorrer aos seus meios de coerção. Assim, onde a força pública é capaz de actuar
prontamente e debelar os ataques ilícitos a terceiros, a força privada deve ceder.

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3. Necessidade racional do meio de defesa: proporcionalidade

A repulsa à agressão ilícita deverá ser possível com recurso a meios necessários, aptos
e suficientes para travar a agressão.
Um meio necessário será aquele que permite esperar com certeza um término imediato
da agressão e garante do melhor modo uma eliminação definitiva do perigo.
Discute-se desde sempre, em Direito Penal, se seria legítimo à lei limitar a legitimidade
da defesa pela proporcionalidade dos bens, através das expressões: «necessidade racional do
meio de defesa».
Duas teses se erguem nesta matéria.

1ª – A dos que rejeitam a ideia de «proporcionalidade» entre a agressão e a defesa

Dizem que “exigir do defendente que estivesse a sopesar os valores em jogo seria
colocá-lo numa situação ingrata e, muitas vezes, a impedi-lo de legitimamente se defender (…).
Os casos de escola em que existe uma tremenda desproporção entre o bem agredido e o
defendido resolvem-se com base na ideia de abuso de direito, sem que seja necessário
expressamente limitar a legítima defesa pela proporcionalidade dos bens”146.
Na mesma senda, a Professora Teresa BELEZA aduz que “(…) saber se uma pessoa
agiu correctamente em legítima defesa, ou se se excedeu, tem mais que ver com as
possibilidades práticas de defesa (…) do que propriamente com uma comparação de gravidade
entre a agressão e a defesa”147.
Contudo, a Professora reconhece que a legítima defesa está sujeita a limites, decorrentes
dos fins que presidem ao seu reconhecimento. Assim, na situação clássica do furto de cerejas,
nega que o agredido possa disparar sobre o agressor, ainda que seja esse o único meio de repelir
a agressão, por se «exceder manifestamente qualquer razoabilidade da utilização desse direito
de defesa». Tratando-se de um abuso de direito, a defesa deixaria de ser legítima, apesar de
tecnicamente se não estar perante um excesso de defesa (por não existir um excesso de
meios)148.

146
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, Vol. II (Reimpressão), Almedina, Coimbra, 2000, pp. 35-37/45-
47.
147
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, 2.º Vol., AAFDL, 1983, pp. 273-275.
148
BRITO, Teresa Quinquela, Homicídio …, ob. cit., p. 190.

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A autora Maria da Conceição VALDÁGUA sustenta que, por exemplo, “o proprietário
não é obrigado a renunciar ao único meio de defesa de que dispõe, para poupar a vida do
agressor. Impor tal triunfo da ilegalidade sobre a legalidade (…) seria incompatível com as
necessidades de preservação e afirmação da Ordem Jurídica (…) a exigência de que o acto de
defesa seja praticado, «como meio necessário», para repelir a agressão, nada tem a ver com
qualquer relação de grandeza entre o valor dos interesses, bens jurídicos ou prejuízos em causa.
O requisito da necessidade do acto de defesa significa, exclusivamente, que aquele acto deve
ser o menos gravoso possível para o agressor, de entre os vários meios idóneos para repelir a
agressão, ao dispor do defendente, nas concretas circunstâncias”149.

2.ª – A dos que sustentam a ideia de «proporcionalidade» entre a agressão e a


defesa

Segundo a Professora Maria Fernanda PALMA, “a legítima defesa submete-se a uma


exigência de proporcionalidade qualitativa entre a agressão e a defesa, que tem em conta a
natureza dos bens conflituantes e que «não assenta numa escala abstracta» (de estreita
submissão dos valores patrimoniais aos pessoais), «nem no grau de valor» (diferenças
meramente quantitativas não pode alterar o valor dos actos humanos”150.
Portanto, só apenas perante a agressão ilícita contra bens jurídicos pertencentes ao
núcleo constitutivo da dignidade da pessoa humana, como a vida, lesão grave da integridade
física ou da liberdade, bens patrimoniais que, socialmente, têm feição pessoas (por exemplo,
um remédio raro ou aparelho médico dificilmente substituível) ou que se encontram numa
relação pessoal essencial, objectivamente reconhecida, com o seu titular (por exemplo, o cão
que conduz um cego ou aparelho de locomoção do paralítico) – se autoriza a lesão de bens de
bens da mesma natureza do agressor, incluindo a vida, em caso de absoluta necessidade. Pelo
contrário, se a agressão afectar bens não expressivos da dignidade também não podem ser
atingidos bens pessoais essenciais do agressor. Assim, para repelir uma agressão ao património,
o defendente pode causar uma ofensa corporal simples, ou provocar uma grave lesão do
património do agressor, para obstar a uma pequena lesão patrimonial151.

149
VALDÁGUA, Maria da Conceição, «Aspectos da Legítima Defesa no Código Penal e no Código Civil »,
Separata da Revista da Faculdade de Direito, Lisboa, 1990, pp. 30-35.
150
PALMA, Maria Fernada, A Justificação…, ob. cit., p. 461, 472 e 573-574.
151
PALMA, Maria Fernada, A Justificação…, ob. cit., p. 461, 472 e 573-574.

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Quintela de BRITO entende, por sua vez, que a legítima defesa deve submeter-se a uma
exigência de não sensível desproporção entre a agressão e a defesa. Contudo, nega-se a aceitar
que, entre a agressão e a defesa, apenas deva existir uma proporcionalidade qualitativa,
alicerçada na natureza dos bens em conflito. Desde logo, porque a «proporcionalidade entre a
agressão e a defesa não é apenas uma proporcionalidade entre os bens em colisão.
Desproporcional será também a defesa desnecessária, porque a gravosidade do meio utilizado
a torna inapta para o efeito de repelir ou sustentar a agressão»152.
Com efeito, “a conduta defensiva terá de ser necessária, adequada e racional, não
podendo nunca anular o conteúdo essencial dos direitos fundamentais do agressor. Ou seja:
apesar da ilicitude da agressão, o agressor conserva o direito de exigir do defendente a
manutenção dos pressupostos de facto, necessários à preservação de um mínimo de sentido
útil dos seus direitos fundamentais e de autonomia da respectiva posição jurídica em face
daquele. A conjugação do princípio da proporcionalidade das restrições aos direitos
fundamentais com a proibição de violação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais
implica que a reacção defensiva se tem de configurar, no seu todo, como um meio justo (porque
necessário e adequado) para a preservação dos interesses do agredido”153.
Concluindo, diremos que o requisito de «necessidade racional do meio de defesa»
supõe a concorrência de dois extremos diferentes: i) a necessidade da defesa como única e
possível via para repelir uma agressão ilícita e actual; ii) a racionalidade do meio empregue
para a defesa, que exige de facto um equilíbrio ou proporcionalidade, como em espécie, como
em medida dos meios empregues para repelir a agressão: é dizer, o defendente, uma vez
necessária a defesa porque ilícita a agressão, deve adequar ou limitar a sua defesa e o meio
usado à suspensão da agressão, sob pena de excesso da legítima defesa154.
Portanto, «necessidade racional do meio de defesa» deve ser uma necessidade abstracta
de defesa, expressa através do meio defensivo concretamente utilizado para repelir a agressão,
tendo em conta: (i) se é possível ou não ao defendente fazer um exame com frieza de todas as
possibilidades disponíveis para a defesa, havendo uma única possibilidade ou um único meio
de defesa, tal meio será necessário para a defesa; (ii) a medida da defesa é dada também pela
intensidade da violência da agressão e dos dados fácticos do caso em concreto.

152
BRITO, Teresa Quintela de, O Direito de Necessidade e a Legítima Defesa no Código Civil e no
Código Penal, Lex, 1994, p. 63.
153
BRITO, Teresa Quintela de, O Direito de Necessidade e a Legítima Defesa, ob. cit., p. 42.
154
Pode-se ver CONDE, Francisco Muñoz, Teoría General del Delito, 4.ª edición, Tirant lo Blanch,
Valência, 2007, p. 120.

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Se ao defendente é possível intentar uma fuga, sem ignomínia (sem infâmia ou
vergonha pública, desonra) ou sem perigo, esta é um meio de defesa necessário e racional.
A utilização de meios de autoprotecção (como cães perigosos, aparelhos eléctricos,
venenos, objectos perfurantes ou cortantes dissimulados) constitui meio necessário para repelir
a agressão. Contudo, o risco de, em concreto, a sua utilização exceder os limites da defesa corre
à custa de quem deles faz o uso155.

67.3. Legítima defesa putativa

Haverá legítima defesa putativa, quando exista erro sobre os pressupostos da existência
de um direito de defesa. Portanto, trata-se do chamado erro sobre a factualidade típica (ver infra
n.º 75.2.4). Como diz GONÇALVES, “Verificando-se que o agente tem conhecimento exacto
desses pressupostos, mas supõe erroneamente que a lei concede um direito de defesa que, na
realidade, não existe, há um erro de proibição”156.
Portanto, a legítima defesa putativa pode se dar por duas vias ou duas espécies de erros
em Direito Criminal:

(i) – Erro sobre a factualidade típica: este erro incide sobre as


circunstâncias da figura típica, isto é, no caso da legítima defesa, incide sobre os
pressupostos de facto de uma causa de justificação. O defendente supõe estarem
preenchidos os pressupostos que legitimam a legítima defesa, enquanto se engana
ao ajuizar tal situação;

(ii) – Erro de proibição.

Em conclusão, para a responsabilização penal pela legítima defesa putativa funcionam


as regras do erro em Direito Penal (Infra n.º 75.2).

67.4. Excesso de legítima defesa

155
Cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal …, ob. cit., p. 420.
156
GONÇALVES, Manuel Lopes, Código …, ob. cit., p. 120.

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Haverá excesso da legítima defesa quando o defendente ou agredido ultrapassa
consciente ou inconscientemente os limites da defesa permitida: o excesso de meios empregues
para a defesa ou desproporcionalidade dos meios empregues para a defesa.
Assim colocada a questão, podemos destacar os seguintes aspectos sobre o excesso da
legítima defesa:
– que o excesso foi consciente, isto é, o defendente quis o resultado da sua defesa, como
sua acção normal, pois quis exceder. Portanto, o excesso é doloso e ilícito, neste ponto, o
defendente quis castigar o agressor, por ódio, raiva, ira, etc. (o chamado desforço). Assim, a
acção de excesso é punível e este (o excesso) funciona como atenuante geral prevista na alínea
q) do artigo 43 do Código Penal, do crime que resultar do excesso. Mas nada obsta que o juiz
faça um melhor juízo sobre as circunstâncias e qualidade do excesso, para daí atenuar
extraordinariamente a pena, ou punir o agente conforme o regime do artigo 189, funcionando
agora o excesso como causa de exculpação.

– que o excesso foi inconsciente ou culposo/negligente. Quer dizer, o defendente


excedeu os limites da defesa por ter avaliado mal o perigo que estava iminente, o que
influenciou a escolha do meio de defesa desnecessário e desproporcional. Neste sentido, o
excesso é punível nos termos do artigo 189 do Código Penal, segundo a qualidade e
circunstâncias do excesso, ou punido com pena de prisão, ou absolvido da pena, ficando
somente sujeito à reparação civil pela sua falta.

Note-se aqui que a punição dependerá das circunstâncias do facto e das reais
possibilidade de o defendente ter podido, segundo critérios de homem médio, evitar o excesso,
tendo em conta o grau e a intensidade do ataque. Assim, porque a agressão é ilícita, o excesso
constitui a causa de exclusão da culpa (uma atenuante especial) e não da ilicitude. Quer dizer,
da causa de exclusão da ilicitude (punibilidade) passamos para a causa de exclusão da culpa,
isto é, para uma causa que dirime a culpa do agente.
– que o excesso deveu-se à perturbação ou medo desculpável do defendente. Neste
caso, dispõe o n.º 2 do artigo 50 que “Não é punível o excesso de legítima defesa devido a
perturbação ou medo desculpável do agente”.
Neste caso dá-se, na verdade, uma acção em si punível, mas dá-se também ao mesmo
tempo uma causa ou circunstância pessoal de exclusão de pena157.

157
LISZT, Franz Von, Tratado …, ob. cit., p. 232.

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Jurisprudência: “Age em legítima defesa o


indivíduo que perante uma agressão ilícita, actual, numa
situação em que não é possível obter apoio de autoridade
pública, dispara contra o agressor”158.

67.5. Legítima defesa do artigo 337.º do Código Civil

Diz o artigo 337.º do Código Civil que “1. Considera-se justificado o acto destinado a
afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou património do agente ou
de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo
acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão. 2. O acto considera-
se igualmente justificado, ainda que haja excesso de legítima defesa, se o excesso for devido a
perturbação ou medo não culposo do agente”.
São duas159, as diferenças de regime da legítima defesa do Código Penal e do Código
Civil:

– A primeira diferença de regime entre o artigo 50 do Código Penal e o artigo 337.º do


Código Civil, refere-se à exigência no n.º 1, in fine, do artigo 337.º do Código Civil de que o
prejuízo causado pelo acto de defesa não seja “manifestamente superior ao que pode resultar
da agressão”.

– A segunda diz respeito à exigência, constante do Código Penal, no artigo 50 de que a


agressão não tenha que ser “motivada por provocação, ofensa ou qualquer crime actual
praticado pelo que defende”. Este requisito não é referido no Código Civil.

Pode-se acrescentar, segundo VALDÁGUA, outras duas diferenças: “impossibilidade


de recurso a meios normais”160 para afastar a agressão, previsto no Código Civil, n.º 1, o que
condiciona a legítima defesa, mas que não consta do artigo 50 do Código Penal e a qualificação

158
TRIBUNAL SUPREMO, Acórdãos, ob. cit., p. 393.
159
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Do Exercício e da Tutela dos Direitos (texto dactilografado de uma
Conferência proferida na Faculdade de Direito de Lisboa em 1968), p. 19 apud VALDÁGUA, Maria da
Conceição Santana, Aspectos …, ob. cit., pp. 5-8.
160
VALDÁGUA, Maria da Conceição Santana, Aspectos …, ob. cit., p. 6.

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“justificado” (O acto considera-se igualmente justificado, ainda que haja excesso de legítima
defesa …) que consta do n.º 2 do artigo 337.º do C.C., que não consta do n.º 2 do artigo 50 do
C.P., pois este diz que “Não é punível o excesso …”.
Primeiro, a diferença de “manifestamente superior ao que pode resultar da agressão”,
constante do C.C., foi sempre interpretada pela doutrina como exigência da proporcionalidade,
isto é, que o prejuízo causado não seja desproporcionalmente superior161. Ora, em comparação
com o requisito exigido no Código Penal «necessidade racional do meio de defesa», podemos
ressaltar o seguinte: a exigência de moderação ou temperança no exercício do direito de
defesa, que estaria consagrado no Código Penal não coincide, de modo algum, com o regime
decorrente da ponderação de prejuízos estabelecido no Código Civil, porque “A
proporcionalidade entre prejuízos que não deve ser infringida em grau manifesto limita em
muitos casos o âmbito da legítima defesa consoante vem definida no Código Penal”162.
Podemos concluir que vige na ordem jurídica moçambicana dois regimes de legítima
defesa, pois o artigo 337.º, n.º 1 do C.C. exclui a legítima defesa quando o prejuízo causado
pela acção de defesa ao agressor seja manifestamente superior ao prejuízo que da agressão
poderia resultar para o agredido, o que não existe em termos do disposto no Código Penal,
quanto à limitação da legítima defesa.
Assim, a legítima defesa do artigo 337.º do Código Civil deve aplicar-se sempre que o
acto de defesa não constituía ao mesmo tempo ilícito criminal163, pois tem âmbito restrito. Isto
é, constituindo a defesa ilícito criminal e civil simultaneamente, deve aplicar-se o regime do
Código Penal; constituindo a defesa somente um ilícito civil deve aplicar-se a legítima defesa
do Código Civil.
VALDÁGUA não acolheu este posicionamento de CAVALEIRO DE FERREIRA, com
o argumento de que “A tese, que nos parece ser de a de CAVALEIRO DE FERREIRA …, é
desde logo, inaceitável porque, se assim fosse, a lei estaria a beneficiar aqueles que, ao
defenderem-se, preenchem tipos incriminadores, em relação àqueles outros defendentes cujos
actos de defesa são, desde logo, totalmente irrelevantes para o Direito Penal, apenas podendo
dar lugar a responsabilidade civil. Quer dizer: esta posição leva a que, se o acto de defesa

161
Vide PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, 1968, p. 242;
FIGUEREIDO DIAS, Direito Penal, Sumários das Lições à 2.ª turma do 2.º ano da Faculdade de Direito,
1975, p. 188; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, Vol. I, 6.ª ed., 1989, p. 525; PIRES DE
LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 1987, p. 302, anotações ao art., 337.º; ALMEIDA
COSTA, Direito das obrigações, 4.ª ed., 1984, p. 375.
162
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Conferência apud VALDÁGUA, Maria da Conceição Santana,
Aspectos …, ob. cit., p. 21.
163
Tese do Professor FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Direito Penal, ob. cit., pp. 328-329.

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constitui um facto abrangido por uma norma incriminadora, não estará sujeito à limitação
decorrente do art. 337.º C.C. e é, por isso, indiferente que o acto cause um prejuízo
«manifestamente superior» àquele que visa evitar, contanto que se mostre necessário para
repelir a agressão; mas, se o acto de defesa não for subsumível a nenhum tipo legal de crime,
já não estará sujeito àquela limitação do art. 337.º, n.º 1 do C.C. Ora, os actos de defesa que
preenchem tipos são, em princípio, precisamente quanto a esses, vigore um regime mais
generoso para o defendente”164.
Ora, quais são, em resumo, as diferenças entre a legítima defesa do Código Penal e do
Código Civil, para além dos elementos atrás vistos? Eis as respostas165:

(i) Quer no Direito Penal, quer no Direito Civil, não há legítima defesa
contra legítima defesa;

(ii) Em ambos os regimes, a legítima defesa tem limites. No Direito Civil,


poderá perfeitamente constituir autêntica legítima defesa, sendo lícita a conduta do
agressor ou de terceiro que impedir que o defendente pratique actos de defesa que
possam causar ao agressor um prejuízo «manifestamente superior» ao que resultaria
da agressão; No Direito Penal, o direito de legítima defesa encontra limitação na
proibição geral do abuso de direito e nos elementos normativos da imposição: “uma
defesa, cujas consequências situam-se em crassa desproporção para com o dano
iminente, é abusiva e, assim, inadmissível”166.

(iii) No campo das causas de justificação são sempre acolhidas, em Direito


Penal, as valorações provenientes de outros ramos de Direito, desde que elas levem
a considerar como lícito o facto concreto, cuja relevância penal se discute.

67.6. Estado de necessidade ou “direito” de necessidade

67.6.1. Considerações gerais

164
VALDÁGUA, Maria da Conceição Santana, Aspectos …, ob. cit., pp. 39-40.
165
VALDÁGUA, Maria da Conceição Santana, Aspectos …, ob. cit., pp. 42-45.
166
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 72-73.

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Na Alemanha, a natureza do estado de necessidade viu-se objecto de acesos debates
doutrinários. Tais debates eram motivados por entender-se que existiam ou existem dois tipos
de estado de necessidade: (i) um que exclui a ilicitude, isto é, sua relação com a ilicitude; e
outro (ii) que exclui a culpa, sua relação com a culpabilidade.

Deste debate resultaram duas teorias fundamentais167:

- Teoria unitária: entendia que o estado de necessidade excluía a ilicitude, baseado no


artigo 54168 do Código Penal Alemão. Esqueceu-se esta tese do facto de que o artigo 54 do
Código Penal Alemão tratava de bens que não podiam ser comparados quanto à sua valoração
jurídica, enquanto havia dispositivos dispositivos do Código Civil alemão que continham
formas de estado de necessidade em que o conflito apresentava bens de valor desigual.
Surgiram as ideias de GOLDSCHMIDT e FREUDENTHAL, segundo os quais o art. 54 tratava
apenas do estado de necessidade que exclui a culpa, enquanto as disposições do C.C. continham
casos de estado de necessidade excludente da ilicitude (estado de necessidade extrajurídico-
penal). Desta percepção, surge a teoria diferenciada.
- Teoria diferenciada: entende esta teoria que existe duas formas de estado de
necessidade. (i) – estado de necessidade jurídico-penal, que consta do artigo 54 do Código
Penal Alemão, como causa que exclui a culpabilidade; (ii) – estado de necessidade jurídico-
civil, que exclui a ilicitude, nomeadamente os artigos 228 e 904 do Código Civil Alemão.
Este debate doutrinário foi posto termo com o Acórdão de REICHSGERICHT, de 11
de Março de 1927, que estabeleceu uma causa geral de estado de necessidade justificante
supralegal (causa geral de exclusão da ilicitude): o Acórdão dizia que “Naquelas situações da
vida em que uma acção constitutiva do tipo externo de uma forma de crime seja o único meio
para proteger o bem jurídico ou … para cumprir um dever, a questão relativa a se a acção é
adequada ao Direito, não proibida ou antijurídica, deve ser resolvida atendendo à relação
valorativa, a derivar do Direito vigente, entre os bens jurídicos ou deveres em conflito”169.

167
JESUS, Damásio Evangelista de, Direito …, ob. cit., pp. 366-367.
168
“O acto não é punível, se o autor, encontrando-se em estado de necessidade, independentemente
de sua vontade e inevitável por outro meio, comete um acto, que não em legítima defesa, para salvar
de um perigo sua pessoa, sua vida ou aqueles de um de seus parentes”.
169
JESUS, Damásio Evangelista de, Direito …, ob. cit., p. 367.

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É este Acórdão que deu lugar à chamada teoria diferenciada do estado de necessidade,
conforme indicamos anteriormente. Por isso, hoje na Alemanha existem duas formas de estado
de necessidade: i) justificante, que exclui a ilicitude; ii) exculpante, que exclui a culpa.
Qual é a nossa realidade?
A doutrina costumava aceitar que o artigo 44, n.º 2 do Código Penal de 1886 não previa
uma causa de exclusão da ilicitude, mas sim uma causa de exclusão da culpa, apesar de no
corpo do artigo 44.º se utilizar a expressão «justificam o facto»170. É assim como entendia
também MAIA GONÇALVES: “A partir da vigência do novo Código Civil, cimentou-se a
teoria diferenciada do estado de necessidade, já antes dominante na doutrina, segundo a qual
o estado de necessidade abrange casos de exclusão da ilicitude (direito de necessidade) e de
exclusão da culpa”171.
Mas isto já não é assim com a entrada em vigor do novo Código Penal, aprovado pela
Lei n.º 35/2014, de 31 de Dezembro, Moçambique passou a adoptar a teoria unitária, passando
a existir unicamente o estado de necessidade que exclui a ilicitude (artigo 48, n.º 1, alínea a)).
O estado de necessidade pode classificar-se em172:
– estado de necessidade agressivo – consiste na actuação sobre alguns bens que não se
encontram em qualquer vínculo com a fonte de perigo. O proprietário não pode proibir que o
sujeito ameaçado deite a mão em sua coisa, se o agir for necessário para o afastamento de um
perigo actual e se o dano iminente desproporcionalmente superior ao dano resultante da
actuação. O fundamento do estado de necessidade agressivo reside no princípio da
solidariedade da sociedade, que exige do respectivo membro, em determinados casos ou
circunstâncias de extrema necessidade, uma certa medida de espírito de sacrifício.
Em caso de estado de necessidade agressivo, deve ficar registado que o dano a causar
ao património alheio que não esteja em vínculo com a fonte de perigo actual e iminente é
objecto de indemnização, pois da ponderação e utilização de bem alheio resulta vantagens para
o proprietário ameaçado.
– estado de necessidade defensivo – assenta na ideia fundamental de que os interesses
protegidos do sujeito ameaçado por um perigo actual e iminente devem ser mais altamente
valorados do que o interesse do proprietário na conservação de uma coisa, cujo estado coloca
outrem em perigo e o obriga a medidas defensivas.

170
Ver PALMA, Maria Fernanda, Estado de Necessidade Justificante no Código Penal de 1982, Coimbra,
1985, p. 5.
171
GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, Código Penal, ob. cit., p. 115.
172
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 66.

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Segundo WESSELS “O dano ou a destruição de coisas alheias não será, assim, contrário
ao direito, se necessário para evitar um perigo iminente a interesses protegidos de qualquer
espécie, a não se situar fora de relação para com o perigo (…). Um dever de indemnização só
atinge o sujeito ameaçado, se este provocou culposamente o perigo – a adequação ao direito de
sua defesa permanecerá, por isso, inafectada”173.

67.6.2. Definição, natureza e fundamento do estado de necessidade

O Código Penal não define o que seja «estado de necessidade», limitando-se a traçar o
respectivo regime jurídico, o que é acertado, pois não cabe ao legislador imiscuir-se em
aspectos de definição de conceitos, tarefa que cabe melhor à doutrina, embora isso possa ser
feito nos casos em que é necessário delimitar o âmbito interpretativo do instituto, que não é o
caso.
Diz-se «Estado de Necessidade» ou «Direito de Necessidade» a situação de perigo
actual para a vida ou para a integridade física que somente pode ser removida pela lesão de
interesses lícitos de outrem. Não importa que tal situação de perigo actual tenha sido produzida
por forças naturais ou por acto de terceiro174.
Por exemplo175:
a) danos materiais produzidos em propriedade alheia para extinguir um incêndio e
salvar pessoas que se encontram em perigo;
b) subtracção de um automóvel para transportar um doente em perigo de vida ao
hospital (se não há outro meio de transporte ou comunicação);
c) subtracção de alimentos para salvar alguém de morte por inanição;
d) médico que revela à família onde uma empregada doméstica trabalha de que ela é
portadora de doença contagiosa.
Quanto à natureza, o estado de necessidade é excludente da ilicitude. É também
subsidiário, não só em relação á tutela pública, como em relação à legítima defesa (alínea e) do
art. 49 CP): pois não existe estado de necessidade se o agente podia conjurar o perigo com o
emprego de meio não ofensivo ao direito de outrem. No estado de necessidade o bem jurídico
sacrificado pelo agente, para não ver sacrificado o próprio direito, é de um terceiro inocente.

173
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 66.
174
Cfr. LISZT, Franz von, Tratado …, ob. cit., p. 236.
175
JESUS, Damásio Evangelista de, Direito …, ob. cit., pp. 368-369.

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Se o perigo é consequência de ofensa injusta praticada por outrem, contra quem o agente
reage para se defender, o caso é de legítima defesa176.
Quanto ao fundamento, o estado de necessidade funda-se na regra segundo a qual
«necessitas non habet legem», isto é, a «necessidade não conhece lei». Assim, é o princípio da
solidariedade entre os membros da comunidade jurídica que está na origem do estado de
necessidade e também do crime de omissão de socorro, que leva a que um terceiro tenha de
tolerar a lesão de um seu bem jurídico, quando tal seja indispensável para salvar um outro bem
jurídico em perigo177; e a razão de utilidade social, traduzida na maximização da protecção de
interesses ou bens jurídicos, mais concretamente, do interesse ou bem jurídico-socialmente
mais importante entre aqueles que se encontram em conflito178.

67.6.3. Regime jurídico do estado de necessidade

O regime jurídico-penal do estado de necessidade é regulamentado pelo artigo 49 do


C.P. Diz este dispositivo legal o seguinte: “Só pode verificar-se a justificação do facto nos
termos da alínea a) do número um do artigo precedente, quando concorrerem os seguintes
requisitos: a) realidade do mal; b) impossibilidade de recorrer à força pública; c)
impossibilidade de legítima defesa; d) falta de outro meio menos prejudicial do que o facto
praticado e e) probabilidade da eficácia do meio empregado”.
Analisemos os requisitos exigidos.

a) Realidade do mal

A realidade do mal corresponde à situação de perigo actual e iminente de lesão a um


bem jurídico protegido do agente ou de terceiro. Tais bens podem corresponder à vida,
integridade física, liberdade, honra ou propriedade, como exemplos.
Podem também ser objectos de estado de necessidade os bens da sociedade. Assim, o
estado de necessidade pressupõe um perigo para os bens jurídicos.

176
FRANCO, Alberto Silva et all, Código Penal, ob. cit., p. 356.
177
Vide CARVALHO, Américo taipa de, Direito …, ob. cit., pp. 400-405.
178
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito…, ob. cit., p. 440.

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O perigo actual e iminente ou a realidade do mal, no linguajar do C.P., consiste numa
probabilidade de dano ou ameaça de lesão do bem. Isto é, a potência de um fenómeno para
ocasionar a perda ou diminuição de um bem179.
Deve notar-se que o legislador não se preocupou em determinar a causa de perigo, esta
podendo ser provocada pela actividade do homem ou provir de causas naturais.

b) Impossibilidade de recorrer à força pública

Este requisito é idêntico ao exigido para a legítima defesa, Portanto, remetemos para o
ponto anterior sobre a matéria.

c) Impossibilidade de legítima defesa

A impossibilidade de legítima defesa quer dizer que o estado de necessidade tem um


carácter residual ou subsidiário, existindo nas situações de perigo actual e iminente em que não
seja possível exercer o direito de defesa (supra 67.2.3.B.2).

d) Falta de outro meio menos prejudicial do que o facto praticado vs. evitar dano
manifestamente superior (n.º 1 do artigo 339.º do Código Civil)

Antes de mais, é preciso dizer que se impõe a necessidade de compatibilizar este


requisito do Código penal «falta de outro meio menos prejudicial do que o facto praticado»
com o do artigo 339.º do CC, de evitar «um dano manifestamente superior», pois já assinalamos
que, com a entrada em vigor do novo Código Civil, abandonou-se a teoria diferenciada,
havendo somente um estado de necessidade que afasta a ilicitude. Assim, os requisitos
precisam de ser compatibilizados.
Ora, em ambas as situações, trata-se de ponderação entre os interesses em jogo, isto é,
entre os bens jurídicos colocados em conflito com o estado de necessidade. Assim, o direito de
necessidade, como única alternativa para afastar o perigo actual e iminente, deve ser
objectivamente necessário e subjectivamente conduzido pela vontade de salvar o bem jurídico
em perigo, que normalmente, deverá ser de valoração qualitativa superior. Quer isto dizer que

179
Ver SILVA, Germano marques da, Direito Penal Português, ob. cit., p. 197.

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o bem a ser sacrificado deverá ser de valoração inferior ao bem a ser salvo, sob pena de
deslegitimar o direito de necessidade.
Deste requisito, impõe-se a determinação do critério de hierarquização dos bens em
conflito, pois é este critério que servirá de bitola para legitimar ou deslegitimar o estado de
necessidade. Assim, teremos:
– na situação de identidade de valoração dos bens jurídicos em conflito, por exemplo,
sacrificar vida humana para salvar outra vida humana, não há lugar ao estado de necessidade
que justifica o facto, eventualmente, o estado de necessidade que exclui a culpa (que é, para
todos efeitos, um estado de necessidade supralegal e agressivo).
A questão essencial aqui é saber se os casos académicos clássicos de vida contra a vida,
que justificam, geralmente, a discussão sobre se a defesa de um bem igual exclui a ilicitude,
poderão merecer, também, um tratamento diferenciado; isto é, se a vida de alguém poderá
constituir um interesse sensivelmente superior em relação à de outrem e em que, em alternativa,
ninguém se salvaria180.
São dois exemplos da academia a considerar.
O primeiro é da “fábula filosófica”181 do homem gordo, que se entalou no buraco que
constituía a única saída de uma caverna, não podendo sair e nem deixando sair da caverna os
outros acompanhantes, só podendo o caso ser resolvido através de uma explosão do homem
gordo para que liberte a saída da caverna.
A questão jurídica que surge é a de saber se é ou não racional fazer estoirar o «homem
gordo» para libertar os restantes da caverna? Haveria aqui estado de necessidade? Será que a
vida do homem gordo não tem o mesmo valor que a vida dos restantes?
Como aduz Fernanda PALMA “A dúvida e a discussão moral só existe na medida em
que dois sentimentos contraditórios sobre o que é racional colidem. Por um lado, parece que
não se poderá quebrar, em caso algum, o princípio de que todas as vidas têm igual valor, por
outro lado, parece ser uma sujeição irracional a um princípio (em si racional) o deixar perecer
certas vidas, sem que isso possa contribuir para salvaguardar outras – quando, no entanto, à
custa dessas outras vidas as primeiras poderiam salvar”182.
Neste caso, trata-se de escolha entre um mal infringido a uma pessoa e um mal
infringido a pluralidade de pessoas.

180
Ver PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal Parte Geral, A teoria geral da infracção como teoria da
decisão penal, AAFDL, 3.ª ed., 2017, p. 319 e ss.
181
Caso referido por PHILIPPA FOOT, influenciado por HART, em “Abortion and Double Effect”, p. 7.
182
PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal …, ob. cit., p. 320.

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O segundo caso é o famoso “tabula unius capax”, conhecido como a tábua de
Carnéades, que, após o naufrágio de um navio, dois marinheiros lutam pela posse de uma tábua
de salvação que pela sua dimensão só podia suportar um. Um consegue salvar-se, sacrificando
a vida doutro marinheiro, pois afastou-o da tábua, morrendo afogado.
Como se nota, qualquer um dos marinheiros só está inevitavelmente perdido, se outro
não ficar com a tábua, mas à partida, nenhum deles está condenado do que o outro. A situação
seria ou morrem ambos ou salva-se um. Este caso circunscreve também o chamado estado de
necessidade agressivo supralegal que exclui a culpa.
- na situação de salvamento de bens de valoração inferior, sacrificando-se bens de
valor superior, não dão lugar ao estado de necessidade.

Em conclusão, exige-se um meio necessário e idóneo para salvar o bem jurídico em


perigo. Com efeito, “necessário” só pode ser o que é apropriado para afastar o perigo e o que,
sob o atendimento de todas as circunstâncias reconhecíveis “ex-ante”, com fundamento em
uma forma de observação objectivo-individualizante, aparece como o caminho mais seguro
para a conservação do bem em perigo. Entre muitos meios apropriados é de se escolher o
relativamente mais suave. A justificação da acção em estado de necessidade depende de um
duplo juízo de valor, dos quais um compreende a relação de categoria dos interesses colidentes
e outro a adequação ético-social do facto. Assim, a acção de estado de necessidade
objectivamente necessária e subjectivamente dominada pela vontade de salvamento será lícita
quando183:
- na situação de ponderação de valores e interesses em conflito: dos bens juridicamente
atingidos e do grau de perigo que os ameaça, o interesse protegido pelo autor deve superar
essencialmente o interesse prejudicado. Deve olhar-se aqui para: i) a espécie e a origem do
perigo, em confronto com a intensidade e a proximidade do perigo em si; ii) a espécie e a
extensão da iminente perda de valor em confronto com a categoria e valor dos bens colidentes;
iii) verificar se não existe por parte do agente um dever especial de enfrentar o perigo (por
exemplo, não é bombeiro, não é militar, não é polícia, etc.); ou não tem o agente um dever
jurídico de protecção especial ou dever geral de auxílio, por exemplo, não é um garante.
- e na situação de adequação: em que o facto deve constituir um meio adequado (olha-
se para a medida) para afastar o perigo.

183
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 68.

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e) Probabilidade da eficácia do meio empregado

A probabilidade de eficácia do meio empregado tem a ver com o que dissemos atrás,
que o meio deve ser adequado para afastar o perigo actual e iminente. A adequação assenta
num critério de valoração entre os interesses em jogo, devendo prevalecer o critério de que só
podem ser sacrificados interesses com identidade inferior para salvar interesses com identidade
axiológica superior, sob pena de ilegitimidade da acção de necessidade.

67.6.3. Estado de necessidade do Código Civil (art. 339.º)

Dispõe o artigo 339.º do C.C. que “1. É lícita a acção daquele que destruir ou danificar
coisa alheia com o fim de remover o perigo actual de um dano manifestamente superior, quer
do agente, quer de terceiro. 2. O autor da destruição ou do dano é, todavia, obrigado a
indemnizar o lesado pelo prejuízo sofrido, se o perigo for provocado por sua culpa exclusiva;
em qualquer outro caso, o tribunal pode fixar uma indemnização equitativa e condenar nela
não só o agente, como aqueles que tiraram proveito do acto ou contribuíram para o estado de
necessidade”.
Este estado de necessidade constitui causa de exclusão de ilicitude em Direito Civil, e
incide sobre coisas, isto é, sobre a propriedade. A doutrina tem entendido que este instituto
constitui uma causa de justificação supra legal184 pelo facto de não constar do Código Penal.
O facto de não estar regulamentado no Código Penal, salvo melhor opinião, não se
vislumbra que seja causa supra legal de exclusão de ilicitude, mas causa extra penal, mas legal,
atendendo ao princípio da unidade da ordem jurídica.
É o seguinte o requisito que distingue este estado de necessidade com o previsto no
Código Penal:

- o perigo for provocado por sua culpa exclusiva do agente (n.º 2 art. 339.º CC)

Diz o n.º 2 do artigo 339.º do Código Civil que: “2. O autor da destruição ou do dano
é, todavia, obrigado a indemnizar o lesado pelo prejuízo sofrido, se o perigo for provocado
por sua culpa exclusiva; em qualquer outro caso, o tribunal pode fixar uma indemnização

184
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Direito …, ob. cit., pp. 395-402.

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equitativa e condenar nela não só o agente, como aqueles que tiraram proveito do acto ou
contribuíram para o estado de necessidade”.

Quer dizer que o Código Civil previu situações em que o estado de necessidade pode
existir por causa do dolo ou culpa do agente. Ocorrendo tal situação, existe o dever geral de
indemnizar o lesado; ora, não havendo dolo ou culpa, a indemnização será determinada pelo
tribunal, com base nas regras de equidade.
Já no âmbito do Direito Penal tal requisito não existe. A ter que existir teria sido
postulado negativamente em «situação de perigo não causada voluntariamente pelo agente».
Porque não existe este requisito, constitui a base de diferenciação entre o regime civil e penal.
Assim, no âmbito criminal, havendo estado de necessidade causado dolosamente pelo agente,
este descaracteriza-se e já não constitui causa de justificação do facto, excepto se intervier um
terceiro para salvar os bens em perigo que desconhece do facto que deu origem ao
acontecimento.

67.6.4. Inexistência de um dever legal de enfrentar o perigo

Este facto não consta dos requisitos definidos no artigo 49 do CP. Contudo, é relevante,
pois leis especiais determinam um conjunto de deveres para certas pessoas, dos quais consta o
de «enfrentar em certas circunstâncias o perigo, nem que isso represente perigo de vida ou de
dano». Portanto, um indivíduo só pode alegar estado de necessidade quando não tenha este
dever de enfrentar o perigo, por exemplo, os militares não podem alegar perigo de vida ou dano
para enfrentarem as operações bélicas; um polícia não pode igualmente furtar-se dos seus
deveres de perseguir malfeitores alegando perigo de vida ou dano; os funcionários de saúde
não podem deixar de tratar doentes com infecções contagiosas alegando perigo de vida; os
bombeiros; os marinheiros, etc.
Mas é justo que estando em confronto, mesmo nas situações de dever de enfrentar o
perigo, bens ou interesses de valores inferiores à vida, nomeadamente, bens patrimoniais, os
indivíduos abrangidos por tal dever têm a obrigação de não arriscar as suas próprias vidas em
nome do cumprimento das funções. Por exemplo, não se pode exigir de um bombeiro que ele
sacrifique sua própria vida para salvaguardar um bem em chamas.
O dever jurídico de enfrentar o perigo pode resultar da lei, contrato, da conduta anterior
do agente causadora do perigo.

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67.6.5. Excesso da acção de necessidade

Dá-se excesso do estado de necessidade quando o agente que pretende salvaguardar


certo bem em perigo actual e iminente vai para além dos limites da protecção razoável de tal
bem jurídico. Assim, o agente responderá pelos prejuízos resultantes do excesso da sua acção
de necessidade. Quer dizer, a sua reacção (os meios utilizados) foi desproporcional ao perigo
iminente e actual. Ora, o excesso pode ser doloso ou não doloso.
Haverá excesso doloso quando o agente supera conscientemente os limites legais e,
responderá a título de dolo pelo crime que corresponder ao excesso.
O excesso negligente ou não doloso resulta normalmente do erro sobre a situação de
facto (ver a situação do erro sobre a factualidade típica) ou dos limites normativos da causa de
justificação (a questão é tratada em sede do erro de proibição).

67.6.6. Estado de necessidade putativo

Tal como a legítima defesa putativa, pode existir o estado de necessidade putativo, em
caso de o agente avaliar erroneamente a situação de perigo que justificaria a sua intervenção.
Por este facto, dá-se a acção de necessidade putativa. Ocorrendo este facto, o estado de
necessidade deixa de ser excludente da ilicitude para passar a ser de exclusão da culpa.

67.7. Conflito ou colisão de deveres

Nos termos do artigo 51 do Código Penal, há conflito de deveres, como causa de


exclusão da ilicitude quando: “1. …, existindo um concurso entre o cumprimento de deveres
jurídicos ou ordens legítimas de autoridade, o agente satisfaz o dever ou ordem de valor igual
ou superior àquele que é sacrificado. 2. O dever de cumprimento de ordens superiores cessa
quando estas conduzam à prática de um crime”.
Esta norma leva ao ajuizamento dos valores jurídicos que estejam em causa no
cumprimento de deveres ou ordens que estejam em conflito, e dentro desse juízo, o agente
escolherá cumprir a ordem ou o dever que não sacrifica um valor superior; ou sendo do mesmo
valor, sacrificará aquele que à luz de critérios objectivos se lhe convier.

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O conflito de deveres foi desde sempre enquadrado, tradicionalmente, nos casos de
estado de necessidade. Diz a propósito a Professora Teresa BELEZA que “(…) há casos em
que não é nada fácil uma coisa ou outra. Suponhamos por exemplo a hipótese de um agulheiro
dos comboios que numa situação de emergência em que a única alternativa que tem é fazer
descarrilar ou um ou outro comboio para evitar que batam num outro que está na linha. Ele por
hipótese sabe que vai provocar a morte de uma série de pessoas, porque não pode salvar 2
comboios, só pode salvar um”185.
Perante este caso, a Professora aduz que o trabalhador estará a agir em estado de
necessidade em relação às pessoas cuja morte acaba por provocar na medida em que só pode
salvar um comboio. Contudo, conclui dizendo que “parece-me que será mais correcto discutir
estes casos dentro da figura do «conflito de deveres» ”186. Justifica-se afirmando que “Ao
contrário do que se passa no estado de necessidade, em que a pessoa age dentro de um direito
de necessidade, e portanto pode fazer uma opção entre agir ou não agir (eventualmente agirá
licitamente se decidir agir), no conflito de deveres a situação é diferente: este agulheiro tinha
tanto o dever de salvar um comboio do desastre como o de salvar o outro. E portanto, estando
em conflito de deveres, ele não é livre de escolher entre agir ou não agir, ele é obrigado a agir,
e então basta que ele salve um bem igual ao outro.
Neste exemplo da professora, é preciso salientar que estamos na situação de igualdade
de valores que os bens inserem, e não se pode falar de bem manifestamente superior em relação
ao outro como é exigido no estado de necessidade.
Ora, o n.º 1, parte final, do artigo 51 prevê situações em que no conflito de deveres se
encontram bens em conflitos com valores desiguais, devendo o funcionário satisfazer aqueles
deveres ou ordens que importem o sacrifício de bens de valor inferior: “ …o agente satisfaz o
dever ou ordem de valor igual ou superior àquele que é sacrificado”.
Portanto, existe um dever geral de o agente sopesar as ordens ou deveres em conflito,
tendo em conta os valores que, eventualmente, estejam em conflito, escolhendo daí cumprir
aqueles que lhe parecerem salvaguardar valores superiores; ou sendo iguais os valores,
cumprirá uma ou outra.
As ordens legais, tratando-se de funcionários ou agentes do Estado, serão aqueles que
forem emanadas pelo legítimo superior hierárquico do agente e em matéria de serviço, sem
violarem as normas gerais e específicas aplicáveis, podendo constar da Constituição, das leis,

185
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, 2.º volume, AAFDL, p. 264.
186
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, 2.º volume, AAFDL, p. 264.

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dos regulamentos, das ordens de serviços e instruções; ou doutro modo, que não provenham de
entidades sem competência para as dar ou que impliquem a preterição das formalidades
legais187.

67.8. Obediência legalmente devida

A alínea d) do n.º 1 do artigo 48 do Código Penal estatui que “Justificam o facto: d) a


obediência legalmente devida aos seus superiores legítimos, salvo se houver excesso nos actos
ou na forma de execução” e já o artigo 51, n.º 2 prescreve que “ O dever de cumprimento de
ordens superiores cessa quando estas conduzam à prática de um crime”.
Esta disposição tem uma ligação intrínseca com o problema de conflito de deveres, pois
este conflito só pode nascer do dever de obediência.
O artigo 252 da Constituição coloca todos os funcionários e agentes do Estado numa
relação prestacional hierárquica, devendo obediência aos seus legítimos superiores
hierárquicos em matéria de serviço e sob forma legal. O dever de obediência cessa quando a
ordem conduza à prática de crime.
A obediência hierárquica impõe aos trabalhadores o dever de acatamento de ordens e
instruções dos respectivos superiores hierárquicos, em matéria de serviço ou com ele
relacionada, bem como a sua execução sem reservas, de forma exacta, imediata e fiel. Todavia,
o cumprimento de ordens e instruções emanadas superiormente não quer, necessariamente,
dizer que o funcionário ou agente do Estado deva acatá-las ou cumpri-las de forma mecânica.
Deve, o funcionário ou agente, ser capaz de discernir entre ordens legais e ilegais, pois “o dever
de obediência não inclui a obrigação de cumprir ordens e instruções ilegais”188.
As ordens legais serão aqueles que são emanadas pelo legítimo superior hierárquico e
em matéria de serviço, sem violarem as normas gerais e específicas aplicáveis, podendo constar
da Constituição, das leis, dos regulamentos, das ordens de serviços e instruções; ou doutro
modo, que provenham de entidades sem competência para as dar ou que impliquem a preterição
das formalidades legais189, e devem ser comunicadas a quem as deve cumprir pela forma
prevista na lei e, não havendo forma especial, através de procedimento que permita o seu real
e objectivo conhecimento.

187
Cfr. n.º 1 do art. 44 do EGFAE.
188
Nestes termos, n.º 1 do art. 44 EGFAE.
189
Nestes termos, n.º 2 do mesmo artigo.

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Não haverá exclusão de ilicitude se o agente executar a ordem com excesso nos actos,
isto é, nas operações materiais conducentes à materialização da ordem ou que a sua forma de
execução foi dolosa e não tenha observado as prescrições regulamentares ou técnicas de
execução.
A obediência legalmente devida justifica o facto relativamente aos seguintes crimes
previstos no Código Penal: «Título VII, Crimes cometidos no exercício de funções» .

67.8. Autorização legal

Nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 48 do Código Penal, justificam o facto: “e) a
autorização legal no exercício de um direito ou no cumprimento de uma obrigação, se tiver
procedido com diligência devida, ou o facto for um resultado meramente casual”.

A autorização legal pode manifestar-se:

– no exercício de um direito: não actua ilicitamente aquele que age no exercício de um


direito legalmente autorizado ou concedido, desde que tenha procedido com diligência devida,
ou que o facto seja resultado meramente causal. Trata-se, na verdade, de uma faculdade
conferida a um agente, podendo renunciar o seu exercício, querendo. A autorização legal para
o exercício de um direito engloba o exercício legítimo de um ofício ou profissão, que pode
abarcar qualquer profissão privada que requere uma licença administrativa. São os casos de
exercício legal ou regular do direito: a) prisão em flagrante delito pelo particular; b) direito de
retenção; c) direito de correcção190 dos educadores, pais perante os educandos ou filhos; d)
intervenções médicas e cirúrgicas; e) a prática de desporto.

– no cumprimento de uma obrigação: trata-se de uma obrigação que a lei impõe o seu
cumprimento ao agente executor que, constituindo a conduta crime, mas a ilicitude deste

190
O Direito correccional não exclui a tipicidade, mas as ofensas corporais leves devem ser consideradas
no âmbito do direito correccional dos pais e educadores e resulta do direito de educação. Por força do
direito de educação compete aos pais e educadores um direito correccional consequente às suas tarefas
de educação. As proibições a este direito por ordens de serviço ministeriais, etc., relevam
particularmente para o Direito Administrativo e não para o Direito Penal. Assim, uma correcção corporal
é jurídica e penalmente admissível quando: i) havendo motivo bastante para o seu uso, seja imposta
objectivamente para o alcance do fim educativo e dominado subjectivamente pelo pensamento de
educação; ii) a sua espécie e medida se situem em relação adequada para com a falta e a idade do
educando ou filho.

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comportamento fica excluída por força da lei. A obrigação pode ser imposta por qualquer lei,
seja penal ou extra penal. A actividade pode ser pública ou privada. Contudo, é necessário que
o agente tenha consciência de que pratica o facto em face de uma obrigação resultante da lei.
São os casos de: a) execução da pena de morte, nos países em que é admissível; b) prisão
realizada pela polícia ou cidadão comum, desde que em flagrante delito; c) morte de um
inimigo em guerra; d) morte de um indivíduo, verificados todos os pressupostos legais, na
perseguição policial a um cadastrado.
Note-se que na autorização legal para o exercício de um direito ou no cumprimento de
uma obrigação só exclui a ilicitude se o agente tiver procedido com diligência devida, ou o
facto for um resultado meramente casual.

67.10. Acção directa

A acção directa é regulada no Código Civil, no artigo 336.º, dispondo o seguinte:


“1. É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito,
quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos
meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o
agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo. 2. A acção directa pode consistir
na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência
irregularmente oposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo. 3. A acção directa não
é lícita, quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar”.
A acção directa conhecida no Direito Alemão por (Selbsthilfe) ou autotutela, no Direito
Francês e Espanhol por «vias de facto» (voies de fait; vias de hecho, respectivamente) é uma
causa de exclusão de ilicitude, que resulta essencialmente da impossibilidade de recurso em
tempo útil aos meios coercitivos do Estado (tribunais e outros de autoridade) para evitar a
inutilização prática do direito.
Qual é a relevância da acção directa no Direito Penal?
A resposta advém do facto de que constitui excludente da ilicitude, em particular,
relativamente à situações em que o Código Penal sanciona condutas privadas que usem da
coacção física sem que estejam legitimamente autorizadas. Diz o artigo 197, «Coacção física»,
“Aquele que empregar actos de ofensa corporal para obrigar outrem a que faça alguma coisa,
ou impedir que a faça, será punido com pena de prisão de um mês a um ano, podendo também
ser punido na multa correspondente”.

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Outros artigos, cuja ilicitude é afastada pelo recurso à acção directa, são 260 sobre as
«ameaças» para constranger alguém a deixar de fazer alguma coisa a que por lei não é obrigado;
os casos do artigo 261 «introdução em casa alheia», para impedir que alguém se introduza em
sua casa.
Portanto, a acção directa vem excluir a ilicitude e afastar a punibilidade do agente que
à ela recorrer, pois consiste, na verdade, na coacção física ou no uso da força.
A acção directa consiste no exercício do direito mediante o recurso à força do seu titular,
desde que:

(i) – o agente não exceda o que for estritamente necessário para evitar o prejuízo, isto é, “a
força ou coacção que não exceda a gravidade ou quantidade indispensáveis para o fim que
a legitima, para evitar prejuízos”191;

(ii) - o uso da força não pode sacrificar interesses superiores aos que o agente visa realizar
ou assegurar, daí que a acção directa pode consistir: a) na apropriação, destruição ou
deterioração de uma coisa; b) na eliminação da resistência irregularmente oposta ao
exercício do direito, ou noutro acto análogo: neste caso, a resistência não pode revestir o
carácter de ataque, pois que o agente agiria já em legítima defesa.

67.11. Consentimento do ofendido

O Código Penal prescreve no artigo 32 que “Não exime de responsabilidade criminal:


e) o consentimento do ofendido, salvo nos casos especificados na lei”. Para que o
consentimento do ofendido seja causa de exclusão da ilicitude deverá ser dado antes da prática
do facto criminoso, pois sendo dado a posterior, a situação terá relevância para a extinção da
acção penal, consistindo, portanto, no perdão.
O consentimento do ofendido aparece também no artigo 340.º do Código Civil: “1. O
acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão. 2. O
consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do acto, quando este for contrário a
uma proibição legal ou aos bons costumes. 3. Tem-se por consentida a lesão, quando esta se
deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível”.

191
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Direito Penal…, ob. cit., p. 309.

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Será que se pode dizer que vigoram dois regimes de consentimento do ofendido na
ordem jurídica moçambicana?
No Código Penal, o consentimento de ofendido é definido negativa e excepcionalmente.
Isto é, o consentimento do ofendido não afasta a responsabilidade criminal, salvo nos casos
especificados na lei e o artigo 340.º do Código Civil define o consentimento positivamente e
não é directamente aplicável em matéria penal pelo facto de que a regra geral no Direito Penal
enunciada pelo artigo 32 é a de que o consentimento do ofendido não exime a responsabilidade
criminal: “Efectivamente, a responsabilidade penal acarreta a responsabilidade civil, mas o
inverso não é verdadeiro”192.
A resposta é positiva, vigoram dois regimes de consentimento de ofendido em
Moçambique.
Ora, o consentimento pode ser:

– excludente do tipo, ou como elemento do tipo, o que na Alemanha se diz


«concordância». Assim, a concordância exclui a tipicidade nos casos em que o desvalor da
acção se deduz, precisamente, do facto desta acção resultar, segundo a descrição legal da
conduta, contra ou sem a vontade do ofendido. Os pressupostos da «concordância» devem ser
deduzidos, em primeira linha, do respectivo tipo legal. É o caso do artigo 261, «introdução em
casa alheia», que o crime de introdução à casa alheia é afastado quando o proprietário autorizar;
o artigo 218 «violação», só será relevante este crime se não houver «concordância» da pessoa
para o coito.
Portanto, neste caso, o consentimento ou a «concordância» é parte integrante dos
elementos do tipo legal, que em caso de falta, o agente cometerá crime.
– Ao contrário do consentimento excludente do tipo, é o consentimento que exclui a
ilicitude, quando previsto em lei. Decisivo será a existência do consentimento antes da prática
do crime para que este funcione como causa de exclusão da ilicitude. São requisitos do
consentimento do ofendido:
a) A renúncia do interesse protegido deve ser juridicamente admissível.
Quer dizer, os direitos ou interesses que o titular renuncia devem ser disponíveis, não
devem pertencer à colectividade; não devem dizer respeito à vida ou à integridade física
fundamental. Assim, disponíveis são os interesses jurídicos respeitantes ao património
e a propriedade, sem prejuízo das limitações ético-sociais ligados à função social desses

192
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Direito Penal…, ob. cit., p. 404.

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bens jurídicos e ao abuso do direito. Não sendo bens disponíveis, haverá crime por ser
ilícita a conduta;

b) Aquele que consente deve estar autorizado à disposição. Isto é, deve ser
o único titular do direito ou interesse protegido, ou estar autorizado como único
representante a dispor do bem;

c) Aquele que consente deve ser capaz de consentir. A capacidade aqui tem
a ver com a maturidade psíquica e moral da pessoa, de discernir o mal do bem e de
reconhecer o alcance da renúncia ao bem e de julgá-los justa e objectivamente. O dado
indicativo deverá ser a capacidade penal, que é de 16 anos, sem embargo dos
inimputáveis por outras causas que não a idade;

d) O consentimento não pode padecer de defeito essencial de vontade. Um


consentimento forçado através de coação física ou moral, ou obtido através de engano
ou baseado numa violação do dever de informação médica é ineficaz, mas já o erro de
motivo não afecta a validade do consentimento193;

e) Em intervenções à integridade física, o facto não pode atentar contra os


bons costumes;

f) O consentimento deverá ter sido dado expressamente antes do facto,


pois uma permissão registada posteriormente não tem relevância para excluir a
responsabilidade penal. Só é relevante para funcionar como perdão e, porconseguinte,
extinguirá a acção penal;

g) O autor do consentimento deverá ter agido no conhecimento e por causa


do consentimento. O autor será punido apenas por facto tentado e não consumado.

67.11.1. Consentimento presumido

193
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 78.

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O consentimento presumido parece nascer do n.º 3 do artigo 340.º do Código Civil,
quando diz que “3. Tem-se por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse do lesado
e de acordo com a sua vontade presumível”.
Com efeito, podemos afirmar que decisivo para o consentimento presumido é. (i) o
actuar no interesse do ofendido e (ii) o princípio do interesse ausente.
A primeira situação (i) o actuar no interesse do ofendido, desempenha um papel
preponderante no Direito Médico, quando o perigo é iminente e o consentimento não pode ser
de qualquer modo obtido, ou não pode ser obtido a tempo (a operação cirúrgica de uma vítima
de acidente de viação, em estado inconsciente). A acção será sempre aqui justificada e afastada
a ilicitude do agir como “justo meio para um fim justo”194, devendo o agente decidir por
presumir existente o consentimento depois de, devida investigação, tiver chegado á conclusão
de que o ausente, se consciente, teria querido que se realizasse, por exemplo, a operação
cirúrgica para o salvar da morte.
A segunda situação, (ii) o princípio do interesse ausente, será considerada onde faltar
um interesse de conservação do ofendido digno de ser protegido, e deve se supor o seu
consentimento, conforme um juízo objectivo e razoável, e baseado em indícios bastantes
sérios195. É o caso de abertura de correspondência alheia urgente nos casos de ausência do
titular (marido) pela esposa, temendo que se ponham em causa certos interesses contidos na
correspondência. Mas esta questão é de ponderação objectiva e casuística, pois o matrimónio
não dá direito ao cônjuge de abrir a correspondência do outro arbitrariamente e sem sua
autorização.

67.13. Direito político de resistência

Dispõe o artigo 80 da Constituição que “O cidadão tem o direito de não acatar ordens
ilegais ou que ofendam os seus direitos, liberdades e garantias”.
O direito de resistência é uma verdadeira excludente de ilicitude, pois o cidadão tem o
direito de resistir ao cumprimento de ordens ilegais ou que ofendam os seus direitos, liberdades
e garantias. Portanto, o direito de resistência inclui o uso da força para repelir qualquer agressão
aos seus direitos e liberdades fundamentais, quando não seja possível recorrer à autoridade
pública.

194
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 78.
195
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 79.

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Por si só, o direito de resistência constitui uma garantia política e limite do poder
político. Por isso, latamente o direito de resistência engloba o direito de legítima defesa. A
resistência a agressões privadas assume a forma de legítima defesa.
Mas neste espaço, emergirá o direito de resistência no sentido restrito, isto é, às ordens
das autoridades públicas. É, portanto, um direito de oposição a actos da autoridade pública, que
pode ser passiva ou activa.
Assim, o direito de resistência é limitado quanto aos seus titulares, que podem ser
pessoas físicas e colectivas. As pessoas colectivas podem opor-se à sua dissolução ou
suspensão que seja ilegal; é limitado quanto ao seu exercício, pois não é admitido resistir contra
a agressão de direitos de terceiro.
O direito de resistência abrange a resistência a ordens ilegais (tais actos devem ser
nulos, pois os actos anuláveis são obrigatórios)196, através da sua desobediência e a oposição à
sua execução. Mas o direito de resistência não abrange a resistência agressiva, ou seja, o recurso
à força como meio de obrigar os titulares do poder a revogar as ordens injustas e ilegais197.

67.14. Direito de prender em flagrante delito

Diz-se flagrante delito “1. … todo o facto punível que se está a cometer ou que se
acabou de cometer. 2. Presume-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo
após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que
mostrem claramente que acabou de o cometer ou de nele participar”198.
Qualquer pessoa tem o poder-dever de deter todos os agentes de infracções puníveis
com a pena de prisão, desde que seja em flagrante delito e não exista autoridade competente
para o efeito. Esta detenção não constitui crime, pois a ilicitude da conduta encontra-se
acobertada pela causa de justificação.
Considerando as circunstâncias concretas do país, é possível que a detenção perdure
por mais de doze horas, sem que se tenha feito a entrega do detido às autoridades, o que por

196
Sobre isto, vide nossas Lições de Direito Administrativo Moçambicano, Vol. III, Maputo, 2015.
197
Cfr. MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª
ed., revista, actualizada e ampliada, Coimbra Editora e Wolters Klumer, 2010, p. 461 (Anotação ao
artigo 21.º).
198
Cfr. Projecto de Revisão do Código de Processo Penal, depositado no Plenário da Assembleia da
República, elaborado pela Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade,
no mandato de 2010 a 2014, artigo 349.

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força do artigo 200 do Código Penal constituiria o crime de «cárcere privado». Portanto, nestes
casos, a ilicitude da conduta fica excluída.

68. Elementos subjectivos das causas de justificação


Desde sempre a doutrina tem discutido uma questão não menos importante de saber se
para se verificar uma causa de justificação do facto seria necessário que se verificasse um
elemento subjectivo, nomeadamente, a intenção do agente de actuar de acordo com o
ordenamento jurídico. Isto é, deverá o agente ter actuado com uma certa direcção da vontade
para a protecção dos bens ameaçados?
Por exemplo, na legítima defesa, para que esta se verifique deverá o agente ter actuado
com o animus defendendi? No estado de necessidade justificante deverá o agente ter actuado
com a intenção de afastar o perigo actual e real?
Para Figueiredo DIAS “… o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo
justificador há-de constituir a exigência subjectiva mínima indispensável à exclusão da
ilicitude, o mínimo denominador comum de toda e qualquer causa justificativa”199.
No mesmo sentido a Professora Teresa BELEZA aduz que “… para que a situação seja
qualificada de estado de necessidade, de acção directa, de consentimento do ofendido e assim
sucessivamente, funcionando como causas de justificação, é necessário, pelo menos, que a
pessoa que age no exercício desses direitos tenha consciência da situação objectiva (…), é
necessário que a pessoa tenha consciência de que está a agir nessa situação objectiva. O
princípio correcto será, por exemplo, que se uma pessoa agride outra sem saber que
objectivamente há uma situação de defesa, não beneficiará da causa de exclusão da ilicitude
(…), não se poderá dizer que está a agir em legítima defesa”200.
Podemos afirmar a propósito deste debate que a exigência do conhecimento dos
pressupostos de facto das causas de justificação dependerá de cada causa justificativa em
concreto, tendo em conta as circunstâncias reais do caso em concreto, pois não se pode afirmar
possível que a exigência seja generalizada.
Ora, quais seriam as consequências desta exigência no plano da responsabilidade? Ou
melhor, se o agente actuou numa situação objectiva de justificação sem que tenha todavia

199
DIAS, Jorge Figueiredo, Direito Penal, ob. cit., p. 393.
200
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, ob. cit., Vol. II, pp. 273-274.

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representado ou tenha conhecimento dos pressupostos de facto (por exemplo, actuou sem o
animus defendendi)?
A solução que se avança consiste em punir o agente por pena correspondente à tentativa,
“… porque então não se teria produzido uma “compensação” no ilícito, a relativa ao desvalor
do resultado”201.
Mas devemos salientar que esta solução é doutrinal, não tem guarida no plano
normativo, mesmo no ordenamento português, procura-se generalizar a solução que o Código
Penal deu aos casos de o agente não tiver conhecimento do consentimento, sendo este punido
com pena aplicável á tentativa (artigo 38, n.º 4).

69. Efeitos das causas de justificação

Ocorrendo as causas de justificação do facto ou que excluem a ilicitude, segue-se


que202:

(i) Relativamente ao agente, fica excluída ou acobertada qualquer


responsabilidade criminal, pois a sua conduta, embora delituosa, fica justificada,
solução que aproveita também os comparticipantes ou cúmplices;
(ii) Relativamente à vítima, porque, por exemplo, na legítima defesa é ela
que agride, deverá tolerar os actos de defesa, porque não há legitima defesa contra
legítima defesa.

SECÇÃO IV
CRIME COMO FACTO CULPOSO

201
GARCIA, M. Miguez, O Risco de Comer uma Sopa e Outros Casos de Direito Penal, Elementos da
Parte Geral, 2.ª edição, revista e actualizada, Almedina, 2012, p. 337.
202
GARCIA, M. Miguez, O Risco de Comer uma Sopa e Outros Casos, ob. cit., p. 334.

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70. Definição de culpa ou culpabilidade

70.1. Precisão terminológica e conceito de culpa

As palavras culpa e culpabilidade são sinónimas, designando um dos elementos


estruturais do conceito de crime. Neste contexto, a palavra culpa ou culpabilidade é utilizada
no seu sentido amplo, abrangendo tanto o dolo, como a negligência.
O ilícito criminal ou civil pressupõe uma acção culposa. Portanto, a culpa é um conceito
da globalidade da ordem jurídica e não privativo do Direito Penal. Para que se fale de crime
não basta que o resultado possa ser objectivamente referido ao acto da vontade do agente, é
preciso também que se encontre na culpa a ligação subjectiva.
Por assim dizer, a culpa é o fundamento da responsabilidade criminal, daí que o crime
é um facto voluntário declarado punível pela lei penal (art. 1 do C.P.). Com efeito, prescreve o
artigo 110 do Código Penal que “A aplicação das penas, entre os limites fixados na lei para
cada uma, depende da culpabilidade do agente, tendo-se em atenção a gravidade do facto
criminoso, os seus resultados, a intensidade do dolo ou grau da culpa, ou motivos do crime e
a personalidade do agente”.
É o mesmo que dizer que ninguém poderá ser punido por acção ou omissão prevista por
lei como crime, se não a cometeu com consciência e vontade203. Isto é, para um comportamento
típico e ilícito ser punido haverá que ser culposo, daí que em caso algum a pena pode ultrapassar
a medida da culpa.
Portanto, no Direito Penal, o axioma nullum crimen sine culpa impõe-se de forma
indiscutível.
Por definição, a culpabilidade ou culpa é “a responsabilidade pelo resultado produzido”
(von LISZT); “é censurabilidade da formação e da manifestação de vontade” (WESSELS).
Diremos que actua com culpa aquele que, de acordo com o ordenamento jurídico,
poderia proceder de outra maneira, abstendo-se de realizar a acção ou omissão tipificada por
lei penal como crime.

A culpa supõe, segundo a concepção clássica204:


(i) a imputabilidade do agente;

203
Uma idêntica formulação consta do artigo 42 do Código Penal Italiano.
204
Ver LISZT, Franz Von, Tratado …, ob. cit., pp. 249-250.

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(ii) a imputação do resultado, que pode dar-se por duas vias: a) quando o
resultado foi previsto (isto é, o agente actuou com dolo); b) quando o resultado não
previsto podia sê-lo (o agente agiu com negligência, ou mera culpa).

70.2. Natureza e fundamento da culpabilidade. Teorias da culpabilidade

O fundamento da culpabilidade reside na liberdade humana e na autonomia do ser


humano. Um sujeito é passível de culpa, quando podia ter actuado de maneira diversa,
conformando-se com as exigências do ordenamento jurídico-penal. Portanto, o ponto de partida
de construção do Direito Penal é também o conceito da liberdade humana, no sentido técnico
jurídico.
A culpabilidade consiste numa referência pessoal do sujeito do acto praticado. Ora,
discute-se se essa relação é de natureza psicológica ou normativa.
São estas as duas correntes fundamentais para resolver o problema da natureza e
fundamento da culpabilidade. É preciso acrescentar a teoria finalista, por insuficiência
daquelas.

70.2.1. Teoria psicológica da culpa

É a concepção tradicional, segundo a qual a culpabilidade não passa de um mero vínculo


de carácter psicológico, que une o autor ao facto por ele praticado. Assim, o dolo e a negligência
(mera culpa) são espécies dessa relação psicológica, tendo por pressuposto a imputabilidade
do agente.
A culpabilidade, esgotando-se em suas espécies dolo e negligência, consiste na relação
psíquica entre o autor e o resultado, tendo por fundamento a teoria causal ou naturalística da
acção. O dolo é caracterizado pela intenção (ou assumpção do risco) de o agente produzir o
resultado; a negligência ou mera culpa, pela inexistência dessa intenção ou simplesmente a
assumpção do risco de produzi-lo205.

205
JESUS, Damásio E., Direito …, ob. cit., p. 458.

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Esta concepção revela uma falha: reúne como espécies o dolo e a negligência, entidades
jurídicas bem diferentes. A carência de um conceito superior de culpabilidade que englobasse
o dolo e a culpa (negligência), sobretudo, a negligência inconsciente. Se a culpabilidade
significa um laço psicológico entre o agente e o facto, como detectá-la na negligência
inconsciente? Por exemplo, o atropelamento de uma pessoa na estrada por um automobilista.
Neste facto, não há nenhuma ligação psicológica do agente ao resultado típico. É como assinala
RAMIREZ que “assim como o injusto foi construído sobre a acção, o que dificultava explicar
a omissão, o naturalismo causalista constitui a culpabilidade sobre o dolo, o que tornava difícil
dar um enfoque satisfatório à culpa”206.
A teoria psicológica faz presumir que a culpabilidade não admite magnitudes e,
portanto, não pode ser graduada: ou a relação psicológica existe ou não. “No entanto, a ideia
de que alguém é mais ou menos culpável pertence ao acervo popular. Porém, como esta
qualificação não pode ser feita em relação ao vínculo psicológico, cuja imutabilidade é
manifesta, deve concluir-se que a culpabilidade não é unicamente dolo e culpa e que à sua
estrutura deve pertencer algum outro elemento susceptível de alterações quantitativas”207.
Por esta fraqueza, surgiu a teoria normativa da culpa.

70.2.2. Teoria normativa da culpa

A teoria normativa da culpa percebeu que o dolo é um elemento psicológico e a


negligência elemento normativo e que não podiam ser espécies da culpabilidade, passou a
investigar entre eles uma ligação de carácter normativo. Foi o alemão Frank que, em 1904,
investigando o estado de necessidade desculpante ou que exclui a culpa, no caso “tabula unius
capax”ou tábua de salvação, concluiu que existem condutas dolosas não culpáveis. Pois, no
caso tábua de salvação, o marinheiro encontra-se numa situação de ou perde sua vida ou se
salva sacrificando vida de outrem. Portanto, o marinheiro encontrava-se numa situação de
inexigibilidade de outra conduta, o que torna o seu comportamento não reprovável.
Com efeito, a concepção normativa introduziu na área de significado do conceito de
culpabilidade o elemento reprovabilidade do acto praticado. Para que a conduta do agente,
sendo típica e ilícita, seja culpável, não basta que ele imputável tenha agido com dolo ou
negligência, é preciso mover contra ele um juízo de censura por ter agido de modo contrário

206
RAMIREZ, Bustos, Manual de Derecho Penal Espanol, 1984, p. 357.
207
URZUA, Enrinque Cury, Derecho Penal, t. II/11, 1985 apud FRANCO, Alberto Silva et all, Código
Penal, ob. cit., p. 273.

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ao direito, quando poderia adequar a sua conduta. Assim, a culpabilidade passou a ser a
reprovabilidade, isto é, a vontade reprovável.
Com esta construção, como quer TOLEDO, o “dolo e a culpa (negligência) perdem a
qualidade de espécies de culpabilidade e assumem a condição de um de seus elementos. Além
disso, no dolo, ao lado do conhecer e querer os elementos do tipo, o agente deve ter consciência
actual da ilicitude”208; O agente age voluntariamente com previsão do resultado e, além disso,
persegue um fim que sabe ser ilícito.
Assim, a culpabilidade passa ter os seguintes elementos: i) imputabilidade considerada
como capacidade de ser culpável, isto é, de suportar um juízo de reprovação; ii) dolo ou
negligência (elementos psicológico-normativos), como formas de expressão da vontade do
autor culpável; c) exigibilidade de comportamento conforme o direito, entendida como
possibilidade de o agente agir, em face da normalidade das circunstâncias concomitantes, de
acordo com ele, de forma que, se assim não o faz, pode ser objecto de um juízo de reprovação,
por ter preferido actuar em desconformidade com a norma209.
Contudo, os finalistas dirigem um conjunto de críticas à concepção normativa.
Questionam como é que o dolo, elemento psicológico, continua como elemento de
culpabilidade? Então a concepção normativa não é autenticamente normativa, pois dolo é um
factor psicológico que sofre um juízo de valoração. Se é assim, o dolo não pode estar na
culpabilidade. É um coeficiente da culpabilidade e não seu elemento. Como afirma
MAURACH “se se diz culpabilidade é uma censura, faz-se um juízo de valoração em relação
ao delinquente. Em consequência, a culpabilidade deve ser um fenómeno normativo”210,
resultando que seus elementos devem também ser normativos: a culpabilidade não está na
cabeça do réu, mas na do juiz; o dolo, pelo contrário, está na cabeça do réu.

70.2.3. Teoria finalista da culpabilidade ou normativa pura

Esta teoria retira o dolo da culpabilidade e coloca-o no tipo penal ou no facto típico.
Assim, é excluído do dolo a consciência da ilicitude e é colocada na culpabilidade. Com a
deslocação do dolo e da negligência para a tipicidade, a culpabilidade, segundo os finalistas,
assumiu uma feição diversa. Com efeito, dolo e negligência são “corpos estranhos” na

208
TOLEDO, Francisco de Assis, Direito Penal, 2.ª ed., 1986, p. 212.
209
Cfr. FRANCO, Alberto Silva et all, Código Penal, ob. cit., p. 273.
210
MAURACH, Reinhart, A teoria da culpabilidade no Direito Penal Alemão, Revista Brasileira de
Criminologia e Direito Penal, n.º 15, p. 25.

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culpabilidade. Resultou disto a redefinição da culpabilidade, passando a consistir “na
reprovabilidade da conduta ilícita (típica e ilícita) de quem tem capacidade genérica de
entender e de querer (imputabilidade) e podia, nas circunstâncias em que o facto ocorreu,
conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe exigível comportamento que se ajuste ao direito”211.
Assim, segundo a teoria finalista, são elementos da culpabilidade: a) a imputabilidade;
b) a consciência de ilicitude; c) exigibilidade de comportamento conforme ao direito ou
exigibilidade de conduta diversa.

70.2.4. Posição de Claus ROXIN sobre o problema

ROXIN212entende que a culpabilidade e a necessidade de prevenção criminal são


pressupostos da responsabilidade jurídico-penal. Portanto, não basta a culpa para fundamentar
a imposição da pena ao agente, é preciso juntá-la a um conceito superior que é a
“responsabilidade”: a culpa é uma condição necessária, mas não suficiente para determinar a
responsabilidade jurídico-penal.
A responsabilidade, para Roxin, depende de dados que devem adicionar-se ao
“injusto”/ilícito: a culpabilidade do sujeito e a necessidade preventiva da pena, que hão-de ser
deduzidos da Lei. Um sujeito actua culposamente quando realiza um tipo jurídico-penal, pese
embora pudesse, na situação concreta, obter o efeito de chamada de atenção pela norma penal,
uma vez que poderia ter o autocontrolo, de modo que era psiquicamente acessível uma
alternativa de conduta conforme o direito213. Uma actuação deste modo culpável é objecto de
uma sanção penal também por razões de preventivas; pois quando o legislador plasma uma
conduta num tipo penal, parte da ideia de que deve ser combatida normalmente por meio da
pena quando concorram a ilicitude e a culpabilidade. A necessidade preventiva de punição não
precisa de uma fundamentação especial, de modo que a responsabilidade jurídico-penal se dá
por si mesma com a existência da culpabilidade.
Neste contexto, Roxin parte para a determinação do conteúdo da culpabilidade no
Direito Penal, designando-o de conceito material de culpabilidade. Aqui afirma este Mestre
que o conceito normativo da culpabilidade só afirma que uma conduta é culpável quando é
reprovável, e desta forma, este conceito é puramente formal e não responde à questão de que

211
FRANCO, Alberto Silva et all, Código Penal, ob. cit., p. 274.
212
Vide para as posições de ROXIN, Claus, Derecho Penal, ob. cit., pp. 791-818.
213
ROXIN, Claus, Derecho Penal, ob. cit., p. 792.

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pressupostos materiais depende a reprovabilidade. A resposta a esta questão traduz o conceito
material da culpabilidade.
A seguir o autor discute o problema do conceito material da culpabilidade apoiando-se
em cinco concepções que se rivalizam entre si, nomeadamente:
(i) A culpabilidade como “poder de actuar de outro modo”: o conteúdo da
culpabilidade, tradicionalmente, se define como sendo o poder evitar, por
conseguinte, a responsabilidade da pessoa por haver formado ilicitamente a sua
vontade. A culpabilidade fundamenta a reprovação pessoal contra o sujeito que não
omitiu sua acção antijurídica, quando podia fazê-lo.

(ii) A culpabilidade como atitude interna juridicamente desaprovada: a


culpabilidade é a reprovabilidade do facto em atenção à atitude interna
juridicamente desaprovada que se manifesta no sujeito. A diferença entre o facto
típico e a culpabilidade é a diferença entre desvalor da acção e desvalor da atitude
interna do facto: estas posições são seguidas por Jeschek (falando em atitude interna
juridicamente defeituosa) e Wessels (atitude interna juridicamente censurável,
atitude defeituosa do sujeito).

(iii) A culpabilidade como o dever de responder pelo carácter próprio ou


culpa na formação da personalidade: esta concepção parte da ideia determinista de
que cada um é responsável sem mais das características ou propriedades que lhe
induziram ao facto, do seu “ser em si”. Na vida, responde-se pelo que se é; sem ter
em conta por que razões se chegou a ela; cada um, na vida, há-de responder por
aquilo que faz, enquanto emanação da sua personalidade, qualquer ser humano paga
porquê é, em tempos bons ou ruins.

(iv) A culpabilidade como atribuição segundo as necessidades preventivas


gerais: esta concepção desenvolve um conceito funcional da culpabilidade, sendo
esta uma atribuição preventiva geral. JACKOBS é um dos defensores desta
concepção, em que o fim atribui conteúdo ao conceito de culpabilidade. O fim
director da culpabilidade é o restabelecimento da confiança no ordenamento
jurídico perturbado pela conduta delitiva, mediante a atribuição da culpabilidade e
a punição a ela ligada, confirmando a correcção da confiança e da norma violada.

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(v) A culpabilidade como actuação injusta apesar de existir a


acessibilidade/exequibilidade normativa: deve entender-se, neste aspecto, a
culpabilidade como sendo uma actuação injusta, apesar de existir uma
exequibilidade normativa; isto é, há que afirmar a culpabilidade de um sujeito
sempre que ele mesmo estava disponível, no momento do facto, para a dissuasão
normativa, segundo um estado mental e anímico; quando era psiquicamente
acessível uma possibilidade de decisão por uma conduta orientada conforme a
norma.

70.2.5. Posição adoptada

A culpabilidade é o limite e o fundamento da medida da pena: “A aplicação das penas,


entre os limites fixados na lei para cada uma, depende da culpabilidade do agente, tendo-se
em atenção a gravidade do facto criminoso, os seus resultados, a intensidade do dolo ou grau
da culpa, ou motivos do crime e a personalidade do agente”214.
Da leitura do n.º 2 do artigo 4, sobre a negligência, do Código Penal, literis: “2. A
punição da negligência, nos casos especialmente determinados na lei, funda-se na omissão
voluntária de um dever”, pode resultar uma regra de grande importância, que é a seguinte:

“Ninguém pode ser punido por facto previsto como crime, senão quando o pratica com
dolo, excepto se a lei penal determinar expressamente a punição da negligência”.

Assim, resulta, em primeiro lugar, que a culpa em sentido lato (dolo e negligência) é
um elemento do crime e é fornecido pela relação psíquica entre o agente e o facto (teoria
psicológica da culpa).

Em segundo momento, determinado o fundamento da pena, que é a culpabilidade, deve


atender-se a personalidade do agente. Aqui, censura-se o agente pela formação da sua
personalidade, aquilo que se designa por “culpa na formação da personalidade”. Segundo
Figueiredo DIAS, “o que se censura ao agente do facto ilícito é, também nessa concepção, a
sua personalidade ético-jurídica. Só que esta personalidade é culpada, não por não ter, ao longo

214
Cfr. n.º 1 do artigo 101 do Código Penal.

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da vida, exercido correctamente (isto é, segundo as exigências fundamentais do Direito) o seu
livre-arbítrio ou liberdade da vontade, mas sim por não ter cumprido, ao longo e na sua
existência comunitária, o mandato existencial de conformação-construção do seu ser, da sua
pessoa, de acordo com as exigências ético-sociais consideradas fundamentais e indispensáveis
à vida em comunidade”215.
O Professor Eduardo CORREIA considera que “… no plano do direito criminal, o
verdadeiro caminho parece estar em fazer corresponder o comportamento que torna o agente
censurável pela sua personalidade a uma omissão – e a uma omissão permanente da vida do
delinquente – do cumprimento do dever de orientar a formação ou a preparação da sua
personalidade de modo a torná-la apta a respeitar os valores jurídico-criminais. Na medida
em que o direito criminal afirma certos valores ou bens jurídicos, cria para os seus destinatários
o dever de formar, ou ao menos de preparar, a sua personalidade de modo que, na sua actuação
na vida, se não ponham em conflito com aqueles valores ou interesses. Violando este dever
constitui-se o delinquente em culpa pela não formação ou não preparação conveniente da sua
personalidade”216.
Bem avisado andou o nosso Legislador que se colocou longe da querela doutrinária
sobre este problema, conceituando as formas ou espécies da culpa, nomeadamente o dolo
(artigo 3) e negligência (artigo 4).
Com a doutrina dominante sobre a teoria da culpabilidade no Direito Penal, podemos
afirmar que ela supõe (i) a capacidade de culpa ou a imputabilidade; (ii) a consciência de
ilicitude (possibilidade de conhecimento da ilicitude); (iii) a forma ou espécie de culpabilidade
(dolo e negligência) e (iv) ausência de causas de exclusão da culpa.
Sem quebrar a nossa sequência na enumeração, analisemos a seguir estes elementos da
doutrina dominante.

71. Imputabilidade ou capacidade de culpa

A imputabilidade é um pressuposto psicológico-normativo do juízo da culpabilidade.


Portanto, o juízo da culpa parte da capacidade de culpa do agente.

215
Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 230-247 apud CARVALHO, Américo Taipa de, Direito
Penal, ob. cit., p. 465.
216
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., p. 325.

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O nosso Legislador Penal não definiu o conceito de imputabilidade, ao invés de defini-
lo, optou por explicá-lo de forma negativa, indicando, no artigo 46, as situações em que é
impossível a sua verificação.
Por conceito, podemos afirmar que a imputabilidade é “a condição pessoal de
maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o carácter ilícito
do facto ou de determinar-se segundo esse entendimento”217.
A imputabilidade consiste, na verdade, na capacidade de o indivíduo conduzir-se e
determinar-se normal e socialmente, dispondo, para o efeito, das suas faculdades psíquicas
normais de entender e conhecer o dever e de agir conforme o direito, isto é, conhecer o carácter
ilícito da conduta.
Assim definida a imputabilidade, ela significa doli et culpae capacitas, como posição
ou status do sujeito. Não sendo, portanto, a capacidade para a pena, porque não diz respeito à
sanção, mas sim a questão anterior à existência ou não do crime: é um “status”que serve de
condição para a culpabilidade218.
A imputabilidade não se confunde com a responsabilidade penal. A imputabilidade é
necessária para que um indivíduo possa ser considerado como válido destinatário da norma
penal abstracta, ao passo que a responsabilidade penal é posterior à violação da norma penal
abstracta, sendo, por isso, a obrigação de sofrer a consequência jurídica pela violação da norma
penal.
Dito desta forma, cumpre esclarecer que a imputabilidade é de verificação ex officio
pelo Tribunal, não sendo necessário que a parte prove a sua ausência, o que quer significar que
ela deve existir no momento em que o facto criminoso é praticado.
A imputabilidade e imputação são conceitos que na prática designam a mesma
realidade, mas em termos teóricos podemos dizer que a imputabilidade refere-se à capacidade
ou pressuposto da imputação e a imputação atribui o facto criminoso ao respectivo agente.
Regra geral e de forma positiva, nos termos do artigo 46 do Código Penal, são
susceptíveis de imputação os maiores de dezasseis anos e os que não sofrem de doença mental
sem intervalos lúcidos.
Esta definição pela positiva, implica que temos que percorrer todas as causas de
exclusão de imputabilidade, sejam elas relativas ou absolutas.

217
FRAGOSO, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, 1987, p. 203. Por exemplo, Eduardo CORREIA
entende por imputabilidade o “conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para ser possível
a censura ao agente por não ter agido doutra maneira”, Direito Criminal, ob. cit., p. 331.
218
BATTAGLINI, Giulio, Direito Penal, ob. cit., 218.

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71.1. Causas de exclusão da imputabilidade: Inimputabilidade

O nosso Código penal distingue entre causas absolutas e relativas de exclusão de


imputabilidade ou se quisermos de inimputabilidade. Assim, teremos:

71.1.1. Causas absolutas de exclusão da imputabilidade

São causas absolutas de exclusão de imputabilidade (artigo 46: (i) a menoridade e (ii) a
doença mental sem intervalos lúcidos.

A) Menoridade

A regra geral é in parvulis nulla deprehenditur culpa. A idade é um índice formal de


inimputabilidade absoluta. A idade inclui a infância, a adolescência, a juventude e a velhice.
Ora, a questão básica é qual a idade de exclusão absoluta de imputabilidade?
O artigo 46, alínea a) diz que não são susceptíveis de imputação os menores de dezasseis
anos de idade, por carecerem do necessário discernimento para distinguir com exactidão entre
o bem e o mal. Na verdade, tem este critério de idade o facto de assentar na falta de
desenvolvimento psíquico, característica da infância e da adolescência, que impede o
discernimento do carácter antijurídico ou ilícito da conduta e a capacidade de inibir o impulso
delitivo.
Embora discutível a idade de dezasseis anos, não há como não acatá-la, pois a lei assim
o determinou, apesar de ter havido acesos debates na Comissão Revisora do Código Penal para
que a idade se situasse entre doze ou catorze anos. Mas as vozes da sociedade civil acabaram
por vincar, com argumento na Convenção da Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e da
Legislação Tutelar de menores já aprovada. Na verdade, trata-se de harmonizar o ordenamento
jurídico nacional e com os compromissos internacionais.
Portanto, no dia em que o indivíduo completa dezasseis anos de idade é, na ordem
jurídica nacional, imputável criminalmente.
A Lei Penal não determina a idade de inimputabilidade pela velhice, mas esta será
determinada in casu através da capacidade de discernimento residual ou da culpa, pois a velhice
representa um estado de involução humana, o que conduz a uma imputabilidade diminuta.

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Em termos de regime jurídico da pena, cumpre afirmar que “os menores de dezasseis
anos de idade estão sujeitos à jurisdição dos tribunais de menores e, em relação a eles, só podem
ser tomadas medidas de assistência, educação ou correcção previstas na legislação especial”.
(art. 135).
Relativamente à velhice, o seu tratamento é geral e dispõe o artigo 43, alínea a) que
“São circunstâncias atenuantes da responsabilidade criminal do agente: c) ser menor de dezoito
anos ou com mais de setenta e cinco anos”.
Portanto, a idade é um índice geral de atenuação da pena, mas nada obsta que o juiz,
atendendo a idade, atenue extraordinariamente a pena a aplicar ao idoso maior de setenta e
cinco anos.

B) Doença mental sem intervalos lúcidos

São inimputáveis os que não possam compreender a ilicitude do facto ou de actuar


segundo esta compreensão, isto é, que não tenham a capacidade de compreensão e de direcção,
a todo o momento.
A doença mental sem intervalos lúcidos corresponde à doença mental total. O Código
Penal Italiano, art. 88, explica isto da seguinte maneira: “Não é imputável o agente que, ao
tempo em que cometeu o facto, estava, por enfermidade, em estado mental que lhe excluía a
capacidade de entender e de querer”.
A doença mental compreende toda a psique. Ou seja, a mente ou a psique “deve ser
entendida em sua mais ampla significação, de molde a compreender todas as faculdades
psíquicas do homem, congénitas e adquiridas, simples e compostas, da memória à consciência,
da inteligência à vontade, do raciocínio ao sentido moral”219.
Portanto, porque esta matéria compete, em particular, à outras áreas de saber, ciência
das moléstias mentais, fica o remate de que a doença mental a que se refere o artigo 46 do
Código Penal não tem importância a causa, nem a espécie, nem a duração, o mais importante

219
BATTAGLINI, Giulio, Direito Penal, ob. cit., p. 227.

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é que sejam enfermidades que afectam as funções intelectuais ou volitivas, tanto aquelas que
se traduzem em manifestações orgânicas como as de carácter funcional ou psíquico.
Chamamos atenção ao facto de que o termo doença mental é lato ou amplo, vago e sem
nenhum rigor científico, abrangendo todas as enfermidades que causam alterações mórbidas à
saúde mental, podendo ser integradas nele as psicoses funcionais, as esquizofrenias, a psicose
maníaco- depressiva, a paranóia, a demência220, embriagues patológica221, disritmia cerebral,
epilepsia222 quando da “aura”, necrofilia, senilidade, surdez-mudez223, etc.
Portanto, da análise em curso, podemos afirmar que são dois os pressupostos de
determinação de inimputabilidade em razão da doença mental:
1.º - Um pressuposto biológico, que se liga à anomalia psíquica. Isto é, o facto de sofrer,
lato senso, de doença mental, sem necessidade de o legislador enumerá-los;
2.º - Um pressuposto normativo ou psicológico, que é a incapacidade para avaliar a
ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação, por falta de liberdade de
agir de modo diverso.
Em termos de regime jurídico da pena, afirma-se que os doentes mentais, que forem
isentos de responsabilidade criminal, serão entregues à sua família ou hospitalizados se a mania
for criminosa, ou se o seu estado exigir uma maior segurança (art. 52).

71.1.1.1. Efeitos do reconhecimento da inimputabilidade penal

220
A demência é a fase mais avançada ou final de doença mental, não tendo condição nenhuma de
reger a sua própria vida e pessoa, a sua personalidade encontra-se comprometida no seu modo de
sentir, agir e julgar. Em conceito, a demência consiste no debilitamento psíquico profundo, global e
progressivo que altera as funções intelectuais básicas e desintegra as condutas sociais (HENRY Ey,
BRISSET, Ch. e BENARD, P., Tratado de Psiquiatria, 6.ª ed., cast., Barcelona, 1974, p. 599).
221
A embriaguez patológica verifica-se, em particular, nos indivíduos predispostos, nos tarados e nos
filhos de alcoólatras. Nesses indivíduos extremamente susceptíveis às bebidas alcoólicas, doses
pequenas podem desencadear acessos furiosos, actos de incrível violência, ataques convulsivos,
tornando-se, às vezes, irresponsáveis pela sua conduta. Contudo, é preciso um exame de sanidade
mental, em confronto com outros elementos probatórios do processo ao tempo do facto.
222
Quando esta tenha efeito de neuropsicose constitucional, com efeitos determinantes de profundas
perturbações do carácter, da inteligência, da consciência e dos sentidos. Desde que constatado esse
estado pela perícia médica, cria ao enfermo, quando agente do crime, a situação de inimputabilidade
absoluta. Por si, a epilepsia não é causa de inimputabilidade, salvo nos casos da “aura”.
223
Tratando-se de defeito congénito ou adquirido nos primeiros anos de vida, a surdez-mudez
representa um défice intelectual considerável, podendo, em certos casos, acarretar a inimputabilidade
ao indivíduo ou determinar a redução de sua responsabilidade criminal. É sempre necessária a
realização de exame de insanidade mental. Os surdo-mudos quando abandonados a si mesmos são
equiparados aos imbecis e, segundo alguns, aos idiotas, daí serem potencialmente irresponsáveis
criminalmente (LIMA, Souza, Tratado de Medicina Legal, 5.ª ed., p. 459).

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Verificando-se que o agente era inimputável ao tempo do crime, deve ser anulada a
acção penal que, eventualmente, tiver sido dirigida contra quem, à data dos factos, era menor,
sofria de doença mental sem intervalos lúcidos. Contudo, sendo menor, remete-se a questão à
jurisdição especial de menores.

71.1.2. Causas relativas de exclusão de imputabilidade

Dispõe o artigo 47 do Código Penal que: “1. São inimputáveis: a) os menores que, tendo
mais de dezasseis anos e menos de vinte e um, tiverem procedido sem discernimento; b) os que
sofrem de doença mental que, embora tenham intervalos lúcidos, praticarem o facto nesse
estado; c) os que, por qualquer outro motivo independentemente da sua vontade, estiverem
acidentalmente privados do exercício das suas faculdades intelectuais no momento de
cometerem o facto punível. 2. A negligência ou culpa consideram-se sempre como acto ou
omissão dependente da vontade”.

Desta norma podemos afirmar o seguinte:

i. Capazes condicionalmente de culpa ou de imputabilidade são os jovens com mais de


dezasseis anos e menos de vinte e um anos, desde que tenham procedido sem discernimento,
na época do facto. Relativamente a estes jovens, a sua capacidade de culpa deverá ser
investigada segundo o grau da sua maturidade e desenvolvimento. A sentença determinará a
sua capacidade de imputabilidade ou de culpa, in concreto.

Em termos do regime relativamente a estes jovens, deve assinalar-se que: (i) se o agente
não tiver completado vinte e um anos, mas completado dezoito anos, ao tempo da prática do
crime, não lhe será aplicada a pena mais grave do que a de oito a doze anos de prisão maior
(art. 133); (ii) se o agente não tiver completado dezoito anos, mas maior de dezasseis anos, ao
tempo de cometimento do crime, nunca lhe será aplicada a pena mais grave do que a maior de
dois a oito anos de prisão (art. 134).

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ii. Capazes condicionalmente de culpa são também os que sofrem de doença mental
que, embora tenham intervalos lúcidos, praticam o facto nesse estado. A capacidade de
compreensão e de direcção destes indivíduos está relativamente reduzida no momento do
cometimento do facto, em decorrência da doença mental. A capacidade diminuída de culpa é,
regra geral, uma causa facultativa de atenuação da pena, isto é, o juiz tomará em conta tal causa
e, eventualmente, também nas condições de execução.

iii. Capazes de culpa condicionalmente são os que, por qualquer outro motivo
independentemente da sua vontade, estiverem acidentalmente privados do exercício das suas
faculdades intelectuais no momento de cometerem o facto punível. Trata-se de uma privação
momentânea de sentido. Por exemplo, “Não age com o necessário discernimento, para ter-se
por imputável, quem, depois de seriamente agredido na cabeça, reage irracionalmente
agredindo terceiro completamente alheio ao conflito”224.
Tratando, como se vê, de situações de crimes culposos, estes só serão puníveis em
obediência ao regime estabelecido no artigo 137: “Os crimes meramente culposos só são
puníveis nos casos especiais declarados na lei e a estes crimes nunca serão aplicáveis penas
superiores à de prisão e multa correspondente”.

71.1.3. Actiones liberae in causa (casos de privação voluntária e acidental da


inteligência)

As actiones liberae in causa consistem em acções ou omissões produtoras de um


resultado típico num momento de inimputabilidade do agente por posta causa em pleno estado
de imputabilidade225. Por exemplo, A, num estado de emoção, sem que seja motivado por
desígnio criminoso, fere gravemente B. Ou num estado de embriaguez fere B.
Quer dizer, A é um sujeito absolutamente imputável, tem 25 anos e não sofre de doença
mental, só que bebeu e, nesse estado, comete crime.

224
MARQUES, Frederico, Tratado de Direito Penal, Tomo II, & 76 apud FRANCO, Alberto Silva et all,
Código Penal, ob. cit., p. 403.
225
No mesmo sentido, vide no Direito Mexicano VELA TREVIÑO, Sérgio, Culpabilidad e Inculpabilidad,
Teoria del Delito, Edicion 2, Editorial Trillas, 1977, p. 35.

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Os casos mais frequentes das actiones liberae in causa são a embriaguez226 e a
intoxicação por drogas. Esta última pode, eventualmente, dar lugar a emoções227 e paixões228.
Sobre a matéria, dispõe o artigo 43 do nosso Código Penal que: “A privação voluntária
e acidental do exercício da inteligência, inclusivamente a embriaguez voluntária e completa,
no momento da perpetração do facto punível, não dirime a responsabilidade criminal, apesar
de não ter sido adquirida no propósito de o perpetrar, mas constitui circunstância atenuante
de natureza especial, quando se verifique algum dos seguintes casos: a) ser a privação ou a
embriaguez completa e imprevista, seja ou não posterior ao projecto do crime; b) ser completa,
procurada sem propósito criminoso e não posterior ao projecto do crime”.
Regra geral, no ordenamento pátrio, a privação voluntária e acidental da inteligência,
incluindo a embriaguez voluntária e completa não exclui a imputabilidade. O legislador penal
fez aqui uma ficção jurídica, deu por imputável quem, na realidade, não o era, pois considerou
imputável quem não o era. Estamos a dizer que quem ingere álcool sem nenhum propósito
criminoso e pratica o facto nesse estado (estado de inimputabilidade) é considerado responsável
na mesma medida daquele que ingeriu álcool com o objectivo de, no estado de
inimputabilidade, cometer crime.
Isto quer necessariamente dizer que quando o agente provoca intencional ou
acidentalmente a anomalia psíquica com ou sem intenção de cometer crime e nesse estado vier
a praticar um facto criminoso é, para todos os efeitos, responsável criminalmente. Dito doutra
forma: “…embora o agente não esteja no pleno gozo das suas faculdades de compreensão e de
autodeterminação, no momento do facto, essa situação transitória de anomalia psíquica e de
incapacidade para avaliar a ilicitude do acto ou de se determinar em função dessa avaliação
seria resultante de um anterior acto livre de vontade e porque a causa da causa é também causa

226
A embriaguez é uma intoxicação aguda provocada pelo álcool, ou por qualquer outra substância
inebriante, sobre o sistema nervoso e que tem o carácter transitório, posto que cessa à medida que o
álcool ou a substância equivalente seja eliminada do organismo humano. A embriaguez apresenta três
fases. i) a da excitação; b) a de depressão, c) a do sono. A embriaguez incompleta corresponde à fase
de excitação e a completa às duas últimas fases. In FRANCO, Alberto Silva et all, Código Penal …, ob.
cit., pp. 430 e ss.
227
A Emoção é uma intensa perturbação afectiva, de breve duração e, regra geral, de desencadeamento
imprevisto, provocada como reacção a determinados acontecimentos e que acaba por predominar sobre
outras actividades psíquicas (ira, alegria, medo, espanto, aflição, surpresa, vergonha, prazer erótico,
etc- ver In FRANCO, Alberto Silva et all, Código Penal …, ob. cit., p. 430.
228
A Paixão é um estado afectivo violento e mais ou menos duradouro, que tende a predominar sobre
a actividade psíquica, de modo mais ou menos alastrante ou exclusiva, provocando algumas vezes
alterações da conduta que pode tornar-se de todo irracional por falta de controle (certas de amor
sexual, de ódio, de ciúme, de cupidez, de entusiasmo, de ideologia política) (Ferrando Mantovani,
Diriitto Penale, 1979, pp. 612-3, apud In FRANCO, Alberto Silva et all, Código Penal …, ob. cit., pp.
430).

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do que foi causado (causa causae est causa causati), o agente seria responsável pelo que foi
causado por livremente ter posto a primeira causa229.
Ora, as actiones liberae in causa só podem constituir circunstância de atenuação
especial quando sejam causas completas e imprevistas, e terem sido ocasionadas sem nenhum
intuito de, por detrás delas, o agente esconder a sua culpabilidade. Isto é, ninguém pode
embriagar-se ou intoxicar-se por drogas, para disso, tirar proveito. É a chamada embriaguez
preordenada, em que o agente ingere álcool para transformar-se num instrumento do seu
propósito criminoso.
Do artigo 43 do Código Penal, podemos traçar a seguinte doutrina sobre a orientação
sistemática das actiones liberae in causa, ou das acções livres em sua causa frente ao dolo,
negligência, preterintencionalidade e ao caso fortuito230:

(i) quando o agente tenha querido o estado de inimputabilidade (vg.


embriagou-se para cometer crime), procurando para realizar o facto delituoso, existe
uma responsabilidade dolosa;

(ii) quando o agente tenha querido o estado de inimputabilidade e aceitou o


resultado, existe responsabilidade criminal dolosa por força do dolo eventual;

(iii) quando o agente tenha querido o estado de inimputabilidade e um


resultado delituoso, contudo, produziu-se um resultado mais grave do que o
previsto, existe uma responsabilidade preterintencional por culpa na
representação;
(iv) quando o agente tenha querido o estado de inimputabilidade, prevendo
o resultado, mas com a esperança de que não se verificaria, há responsabilidade
culposa ou por negligência;

(v) quando o agente não tenha querido o estado de inimputabilidade,


aceitando-se que ele se produza e causando ele mesmo um resultado penalmente
relevante, existe a responsabilidade por culpa;

TOLEDO, Francisco de Assis, ob. cit., p. 323.


229
230
Cfr. VASCONCELOS, Parón y LÓPEZ, Vargas, Codigo Penal de Mechoacán Comentado (Parte
General), 2.ª edición, Ed. Porrúa, Mexico, pp. 161-163.

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(vi) quando o agente tenha querido o estado de inimputabilidade, sem que
tenha previsto o resultado porque imprevisível no caso, não há, regra geral,
responsabilidade por um caso imprevisível, pois estamos numa situação de caso
fortuito ou de força maior.

72. Consciência da ilicitude como elemento da culpabilidade

A consciência da ilicitude é, para nós, um elemento autónomo do dolo231, devendo, por


isso, ser tratado no âmbito da teoria da culpabilidade. Como afirma LISZT “… é fora de dúvida
que a ideia de dolo não compreende a consciência da ilegalidade. Também não se pode, em
geral, exigir, além do dolo, a consciência da ilegalidade, como um requisito independente que
a este se acrescenta. Uma tal exigência, que no ponto de vista da teoria da coacção psicológica
tem cabimento …, paralisaria – e esta é a razão decisiva – a administração da justiça, impondo-
lhe o encargo de provar, em cada caso ocorrente, que o agente conhecia o preceito violado.

231
Note-se que existem quatro teorias a respeito da colocação sistemática da consciência da ilicitude
na estrutura do crime, variando com a doutrina adoptada em relação ao conceito de acção e da
culpabilidade. Assim, (i)- a teoria extrema ou estrita do dolo entende, com base na teoria causal da
acção, que o dolo é integrado pela consciência da ilicitude e como o dolo é um factor psicológico, seus
elementos devem seguir a sua natureza. Desta forma, a inexistência real da consciência da ilicitude
exclui o dolo: pois para que exista dolo tem de haver a consciência da ilicitude do facto; (ii) – teoria
limitada do dolo, prescreve que o elemento intelectual do dolo abrange o conhecimento da ilicitude do
facto; não tendo o agente este conhecimento não há dolo. Esta escola traduz a limitação da escola
anterior por parte de MEZGER, pois exige apenas no dolo a potencialidade do conhecimento do ilícito
para evitar absolvições infundadas e condenações fundadas na culpa de direito ou cegueira jurídica –
a propósito, Eduardo CORREIA defensor também desta teoria, entende que há casos de crimes mais
graves que o desconhecimento da proibição (da ilicitude) é revelador de uma personalidade cega para
o direito. Ora, aceitar, nestes casos, a consequência prática da pureza da teoria extremada de dolo
teria efeitos político-criminais inaceitáveis. Pois que ir-se-ia punir, quanto muito, por crime negligente
alguém que demonstra ter grande insensibilidade perante importantes bens jurídico-penais e, portanto,
em relação ao qual a punição por crime negligente seria claramente desajustada por insuficiente. Com
efeito, deve-se estabelecer a seguinte limitação jurídico-prática: nos casos em que a falta de consciência
da ilicitude é reveladora de uma grave e censurável indiferença perante o dever jurídico-penal, perante
o bem jurídico afectado pelo facto ilícito, embora o erro sobre a ilicitude excluía o dolo, deve, todavia,
o agente ser punido como se tivesse agido dolosamente, isto é, ser punido com a pena aplicável ao
respectivo crime doloso; (iii) – teoria extremada ou estrita da culpabilidade entende, com base na teoria
finalista da acção, que a consciência da ilicitude não faz parte do dolo, mas sim da culpabilidade.
Tratando-se de um dolo natural, do facto ou psicológico não pode ser integrado pelo conhecimento do
ilícito. A culpabilidade é um puro juízo de valor e, por efeito, seus elementos têm natureza normativa,
logo, a consciência da ilicitude tem natureza normativa, não possuindo dados psicológicos. Assim, desta
teoria resulta que se o erro sobre a ilicitude do facto for censurável (evitável), há culpa e o agente será
punido a título de dolo; se o erro sobre a ilicitude do facto não for censurável (inevitável), exclui a culpa
e, portanto, a responsabilidade penal por falta de reprovabilidade da sua conduta; (iv) – teoria limitada
da culpa entende, de forma diferente com a anterior, que o dolo abrange não apenas elementos do
tipo legal mas também os pressupostos ou elementos das causas de justificação, logo, o erro sobre um
destes elementos exclui o dolo (vide JESEUS, Damásio E., Direito..., ob. cit., pp. 473-475 CARVALHO,
Américo Taipa de, Direito …, ob. cit., pp. 480-484).

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Este requisito é tanto mais inadmissível quanto nenhum apoio encontra na lei, e está em formal
oposição à opinião comum de todos os tempos. Mas esta regra sofre importante excepção.
Sempre que a lei inclui na qualificação do crime a ilegalidade como característico, deve-se
exigir, por parte do agente, a consciência da ilegalidade”232.
Qualquer indivíduo que tenha capacidade de culpa, consciente e voluntariamente,
realizar um tipo de ilícito, sem que o seu comportamento seja acobertado por uma causa de
exclusão de ilicitude, está ciente de que praticou um crime. Com efeito, esse indivíduo, capaz
de culpa, tem o dever jurídico de cumprir os imperativos da lei penal, de não agir contra o
ordenamento jurídico e sabe que em caso de violação será alvo de consequências jurídico-
penais.
Nisto nota JESCHECK que “A consciência é tão inexplicável racionalmente quanto a
própria liberdade, mas, tal como esta, é por todos admitida como evidente.”233
O objecto da consciência da ilicitude não é o conhecimento da disposição penal ou da
“punibilidade”do facto, mas a compreensão do autor de que sua conduta é juridicamente
proibida234. Assim, no Direito Alemão foi durante muito tempo assente a tese de que “Se faltar
ao autor, no cometimento do facto, em consequência de um inevitável erro de proibição, a
consciência de produzir o ilícito, actuará ele sem culpabilidade: isto vigora tanto para factos
dolosos como para negligentes”235.
Ora, olhemos à nossa realidade.
A falta de consciência da ilicitude como elemento da culpabilidade pertence ao
chamado erro de direito, que engloba, no âmbito do nosso Código Penal a falta de consciência
da ilicitude. É, em princípio, irrelevante, pois nas palavras do n.º 1 do artigo 32 “Não exime de
responsabilidade criminal ….g) o erro censurável sobre a ilicitude do facto punível”.
É necessário conjugar esta disposição com a alínea d) do n.º 2 do artigo 48 que diz “São
causas de exclusão da culpa: d) em geral, os que tiverem procedido sem intenção criminosa e
sem culpa”.
O erro censurável sobre a ilicitude do facto punível deve também ser conjugado com a
ignorância da lei penal, pois vigora no nosso Direito a regra geral de que todos temos a
obrigação de conhecer a lei. Com efeito, resulta que o erro não censurável sobre a ilicitude do
facto punível deve merecer idêntico tratamento ao dado pela alínea d) do n.º 2 do artigo 48,

232
LISZT, Franz Von, Tratado …, ob. cit., p. 285.
233
JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, ob. cit., p. 568.
234
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 90.
235
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 90.

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sobre os casos em que se exclui a culpa se o agente tiver procedido sem intenção criminosa e
sem culpa.
Ora, quando é que se pode concluir que o erro sobre a ilicitude do facto é censurável ou
não?
A resposta geral é a seguinte: qualquer pessoa que tenha capacidade de culpa, isto é,
seja imputável criminalmente, deve-se presumir que tem, regra geral, consciência da ilicitude
do facto punível.
Portanto, a ideia é a de se o agente agiu com falta de consciência sobre a ilicitude do
facto não censurável (inevitável), este não poderá ser punido a título de dolo, mas a título de
negligência, devendo, com efeito, isto valer para todos os casos em que a lei penal manda,
expressamente, punir a negligência; ao contrário, haverá absolvição (art. 4, n.º 2 e art. 136).
Sendo a falta de consciência sobre a ilicitude do facto censurável (evitável), o agente é punido
a título de dolo.

73. Forma ou espécies da culpabilidade

Cumpre estudar agora o nexo subjectivo entre o agente e o facto. Diz o n.º 1 do artigo
110 do CP que “A aplicação das penas, entre os limites fixados na lei para cada uma, depende
da culpabilidade do agente, tendo-se em atenção a gravidade do facto criminoso, os seus
resultados, a intensidade do dolo ou grau da culpa, ou motivos do crime e a personalidade do
agente.”
A culpabilidade, segundo esta norma, é o elemento principal de qualquer infracção
criminal e é determinante principal da medida da pena236.
À forma de comissão dolosa ou negligente corresponde o tipo de culpabilidade dolosa
ou negligente. Em virtude da sua dupla função, o dolo torna-se no sector da culpabilidade, o
portador do desvalor do ânimo actualizado no facto. Sua característica com tipo de culpa é a
adversa ou indiferente posição do autor em face das normas de conduta do Direito. Marcante
para a culpabilidade por negligência, ao contrário, é a desatenta ou descuidada posição do
autor em face das exigências de cuidado da ordem jurídica237.
Neste contexto, a culpabilidade assume duas formas diversas: (i) dolo e (ii) negligência.

236
Cfr. GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, ob. cit., p. 181.
237
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 89.

118
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O Código Penal moçambicano, querendo evitar numerosas controvérsias sobre as
noções de dolo e negligência, inseriu nos artigos 3 e 4, respectivamente, os conceitos de dolo
e negligência.
Em termos designatórios, o nosso Código Penal utiliza a expressão intenção criminosa
para designar dolo e vice-versa (art. 3, n.º 4 do art. 32, alínea d) do n.º 2 do art. 48, art. 110, n.º
1, etc..); e utiliza a expressão culpa para designar a negligência (art. 4, n.º 2 do art. 47, alínea
d) do n.º 2 do art. 48, n.º 1 do art. 110, etc.).
No nosso ordenamento jurídico, conforme resulta da conjugação de vários dispositivos
e da noção do crime, a regra é o crime doloso e a excepção o crime negligente 238. Dispõe o
artigo 136 do CP que “Os crimes meramente culposos só são puníveis nos casos especiais
declarados na lei e a estes crimes nunca serão aplicáveis penas superiores à de prisão e multa
correspondente”.

73.1. Dolo

Caso prático: Imagina que, enquanto a população do povoado de Maciene se agrupava


para receber o Chefe do Estado que visitava aquela Localidade, Américo, proprietário de um
celeiro cheio de produção e com seguro contra todos os riscos no valor de 2 milhões de
meticais, decide incendiar o celeiro, para disso exigir a indemnização, de modo a escapar da
fofoca que se movia na aldeia de que empobrecera. Mas Américo sabe que o vagabundo
Kassela tem passado algumas noites naquela palhota onde é seu celeiro.
Nas chamas, Kassela encontra a morte, pois tinha recolhido cedo e grosso à palhota sem
que Américo se tivesse apercebido do facto.

73.1.1. Noção

Em termos de conceito, segundo a escola finalista, dolo é um elemento subjectivo do


tipo, do qual resulta que a acção ou omissão não constitui simples formas naturalísticas de
comportamento, mas acções e omissões dolosas239. Portanto, corresponde ao “dolo natural”,

238
Cfr. art. 1 (Noção do crime ou delito, como facto voluntário); n.º 2 do artigo 4 (a punição da
negligência depende da determinação expressa da lei penal); art. 110, art. 136, etc.
239
JESUS, Damásio E. de, Direito Penal, ob. cit., p. 283. Ver também PUIG, Santiago Mir, Derecho
Penal, ob. cit., pp. 239-240.

119
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que inclui unicamente o conhecer e querer a realização da situação objectiva descrita pelo tipo
ilícito.
Segundo a doutrina tradicional ou causal, o dolo é um elemento da culpabilidade e é
concebido como “dolus malus”, pressupondo dois aspectos fundamentais: (i) o conhecimento
e vontade de realizar o facto; (ii) a consciência do seu significado ilícito (conhecimento do
Direito).
O expoente desta escola diz que “O resultado é, antes de tudo, imputável, quando o acto
é doloso, isto é, quando o agente o pratica, apesar de prever o resultado. Dolo é pois a
representação da importância do acto voluntário como causa (representação da causalidade).
Consequentemente, a ideia do dolo compreende: 1.º - A representação do acto voluntário em
si, quando este corresponde à ideia de um crime determinado, quer sob a sua forma ordinária,
quer sob uma forma mais grave; 2.º - A previsão do resultado, quando este é necessário para a
ideia do crime; 3.º - A representação de que o resultado será efeito do acto voluntário, e este
causa do resultado, portanto, a representação da causalidade em si mesma”240.
Em conclusão, a noção do dolo, para nós, será construída a partir da noção do crime.
Assim, dispõe o artigo 1 do CP que “crime ou delito é um facto voluntário …”. O elemento
voluntariedade é chave para a definição da noção do dolo.
Com efeito, dolo é a vontade (como atitude) e conhecimento do agente de decidir-se
pela realização de uma acção ou omissão da qual resulta danos não toleráveis pela lei penal
para os bens jurídicos fundamentais. Portanto, porque ligado à vontade do agente, o dolo é,
para todos os efeitos, um elemento subjectivo comum ou geral dos tipos de crimes dolosos ou
subjectivos e é o fundamento da imputação subjectiva do resultado típico.
É o dolo, como comportamento psíquico contrário à ordem jurídica, que determina a
direcção e o fim de actuar e, como tal, deve ser aferido no momento da prática do crime.

73.1.2. Quando haverá dolo?

Haverá dolo, no nosso ordenamento jurídico, nos seguintes termos, como dispõe o
artigo 3 do CP:

• Age com dolo aquele que, representando um facto que preenche um tipo
legal de crime, actua com intenção de o realizar.

240
LIZST, Franz von, Tratado …, ob. cit., pp. 270-272.

120
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• Age, também, com dolo aquele que representar a realização de um facto


tipificado como crime, sendo este consequência necessária da sua conduta.

• Há ainda dolo quando na sua actuação o agente conforma-se com a


realização de um facto tipificado como crime, sendo este consequência possível da sua
conduta”.

Estas ramificações do dolo vão ser analisadas a seguir nas formas do aparecimento do
dolo. Mas cumpre assinalar que se dá o dolo, segundo LISZT:

• “Quando o agente tem em vista o resultado, isto é, quando a previsão do


resultado é o motivo do acto; quando o agente empreende o acto por causa das
mudanças que ele operará no mundo exterior, quando essas mudanças são o fito, a sua
produção, o fim do acto; quando o resultado é proposto;
• …, quando o agente prevê o resultado, embora essa previsão não seja o
motivo do seu acto. Quem toma parte em um empréstimo levantado por um Estado em
guerra com”241 (Moçambique), sabendo que deste modo concorrerá para aumentar a
força de resistência do inimigo, comete dolosamente uma traição contra a pátria,
embora o motivo do seu acto fosse simplesmente de ganhar lucros resultantes da
operação.

73.1.3. Formas de aparecimento do dolo242 ou elemento emocional ou volitivo do


dolo

Tendo como elemento chave a voluntariedade da realização do crime ou delito, como


dispõe o artigo 1 e o facto de o crime doloso ser regra, devem-se distinguir três formas de
aparecimento do dolo do tipo: (i) o dolo directo ou a intenção, (ii) o dolo necessário e (iii) o
dolo eventual.

241
LISZT, Franz von, Tratado …, ob. cit., pp. 273-274.
242
Ver WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 51-56.

121
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Estas três modalidades correspondem ao chamado elemento emocional ou volitivo
(especial direcção da vontade à realização do tipo ilícito).
a) O dolo directo ou a intenção, n.º 1 do artigo 3 do CP

Haverá dolo directo ou a intenção, quando o agente tem a vontade de produzir


directamente o resultado típico ou realizar as circunstâncias para as quais a lei pressupõe um
actuar intencional243. Isto é, o agente quer e deseja o resultado da sua conduta.
Sob intenção deve-se entender a vontade dirigida finalisticamente ao resultado, que
pode ser igualmente motivo do actuar, com o qual, entretanto, não se identifica forçosamente.
Se o agente quer a ocorrência do resultado, é indiferente se ele representa a realização do tipo
como certa ou somente como possível: um resultado querido pelo agente, no instante do seu
agir, é sempre elemento da intenção, tanto se ele toma a sua ocorrência como certa ou somente
como possível, como se ele a desejar ou intimamente a lamentar244. Na incerteza da ocorrência
do resultado é apenas necessário que o agente conte, em qualquer caso, com uma possibilidade
de atenuação sobre o acontecimento real (WELZEL).
Este tipo de dolo é o referido pelo n.º 1 do artigo 3 do CP, quando afirma que “Age com
dolo aquele que, representando um facto que preenche um tipo legal de crime, actua com
intenção de o realizar”.
Trata-se, na verdade, do dolo do primeiro grau, que é constituído pela intenção de
realizar o crime ou delito pelo agente.
No caso prático, a intenção de Américo se dirige no sentido do incêndio do celeiro e
para a obtenção da soma indemnizatória. Este é que era o fim de Américo, mas não o motivo
do seu actuar. O motivo do seu actuar era salvar a sua honra que estava em causa, por ter
empobrecido.

b) O dolo necessário, n.º 2 do artigo 3 do CP

É o dolo do segundo grau245, e deve ser afirmado dolo necessário quando o agente sabe
ou prevê como certo que o seu agir se dirige no sentido de realizar o tipo legal. Quem, apesar
deste conhecimento ou previsão, actua volitivamente, regista em sua vontade de realização tudo

243
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 51.
244
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 52.
245
PUIG, Santiago Mir, Derecho Penal, ob. cit., p. 244 e WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 52.

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o que ele representa como consequência necessária e certa de sua conduta, podendo um ou
outro efeito de seu fazer ser tomado como “não desejado”.
Haveria dolo necessário, no caso prático, se Américo soubesse que o vagabundo
Kassele estava no celeiro quando ateou o fogo, pois Américo preveria a morte de Kassele como
consequência do incêndio.
O dolo necessário está descrito no n.º 2 do artigo 3 do CP, quando afirma que “Age,
também, com dolo aquele que representar a realização de um facto tipificado como crime,
sendo este consequência necessária da sua conduta”.

c) O dolo eventual, n.º 3 do artigo 3 do CP

Haverá “dolus eventualis”, quando o agente tem seriamente como possível e se


conforma com isso, de que sua conduta conduz à realização de um tipo legal. Ou quando o
agente considera o resultado somente possível, se bem que a convicção deste (resultado)
produzir-se com certeza não o demovesse da prática do acto, e portanto, podemos dizer que: o
agente presta anuência ao resultado246.
No nosso caso prático, Américo se deitasse fogo ao celeiro admitindo a possibilidade
de que Cassele estivesse dentro do celeiro e que disso poderia resultar a morte deste e disso
não se demovesse a não pôr fogo no celeiro, então teria agido com dolo eventual. Pois, tem
seriamente como possível a morte de Cassele, mas conforma-se com isso.
O n.º 3 do artigo 3 do CP prevê esta hipótese de dolo eventual, quando afirma que “Há
ainda dolo quando na sua actuação o agente conforma-se com a realização de um facto
tipificado como crime, sendo este consequência possível da sua conduta”.
No dolo eventual, como se vê, não é suficiente que o agente tenha-se conduzido de
maneira a assumir o risco de produzir o resultado; exige-se mais, que ele tenha consentido no
resultado.
Por exemplo, “Age com dolo eventual o assaltante que, após roubar a vítima e se pôr
em fuga, é por ela perseguido, dispara contra o seu veículo e provoca sua morte em
consequência do desgoverno e choque do veículo contra uma árvore”247.

73.1.4. Elemento intelectual do dolo

246
Ver WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 53 e LISZT, Franz von, Tratado …, ob. cit., p. 274.
247
Vide FRANCO, Alberto Silva, Código …, ob. cit., p. 285.

123
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Este elemento reporta-se ao âmbito da consciência. Esta consciência diz respeito à


relação causal objectiva entre a conduta e o resultado. Isto é, “… o actuar doloso pressupõe
que o autor no conhecimento do facto tenha conhecido todas as circunstâncias
fundamentadoras e agravadoras da pena do tipo penal objectivamente realizado”, “o
conhecimento do dolo significa conhecimento do significado e das circunstâncias do facto.
Para o dolo do tipo não se exige que o autor subsuma a relação de facto por ele conhecida, de
modo juridicamente exacto, sob a lei se fosse de outro modo os juristas poderiam actuar
dolosamente. Em caso de elementos descritivos (como, por exemplo, “coisa”, “danificar” e
“destruir”) deve ser compreendido seu conteúdo de sentido natural (…) Nos elementos
normativos (por exemplo, “alheio”, “apropriar-se”) não basta o simples conhecimento dos
factos que preenchem o conceito; mais do que isso o autor deve ter compreendido
correctamente o conteúdo de significação jurídico-social das circunstâncias do facto, segundo
a maneira leiga”248.

73.2. Tipo de crime doloso ou subjectivo

O dolo dá lugar a um tipo geral de crime, o tipo subjectivo ou doloso. Isto é, nos termos
do artigo 136 do Código Penal, o crime doloso constitui a regra geral e o crime culposo ou
negligente a excepção.
Por exemplo, como quer a nossa Professora Teresa BELEZA, “… para se preencher o
tipo de homicídio voluntário, para além de ser preciso haver uma pessoa que mate outra com
tudo o que isso implica (ter tido uma certa actuação, a morte ter sobrevindo em consequência
disso) para além disso é preciso matar, como diz o artigo (155 do CP, moçambicano),
«voluntariamente», ou seja: … a palavra ou a expressão em que aparecem os elementos
subjectivos do tipo de crime de homicídio é a palavra «voluntariamente» …, que quer dizer
«dolosamente», isto é, quer dizer matar outra pessoa sabendo-se que se está a matar e querendo
matar …”249.

248
WESSELS, Johannes, Direito …, ob, cit., pp. 55-56.
249
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, ob. cit., 2.º Vol., p. 161. Sublinhado nosso, dando sentido à
citação no ordenamento pátrio.

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Portanto, o tipo de crime doloso tem, por um lado, um tipo objectivo, que é, por
exemplo, uma pessoa ter uma certa actividade ou causar um certo resultado, e por outro, um
tipo subjectivo, isto é, ter a representação e a vontade desses elementos do tipo objectivo250.

73.3. Punição do crime doloso

Independentemente das espécies de dolo – directo, necessário ou eventual -, o crime


doloso é punido como tal. Diz o artigo 110, n.º 1 do CP que “1. A aplicação das penas, entre
os limites fixados na lei para cada uma, depende da culpabilidade do agente, tendo-se em
atenção a gravidade do facto criminoso, os seus resultados, a intensidade do dolo ou grau da
culpa, ou motivos do crime e a personalidade do agente”. Sublinhado nosso.
A determinação da responsabilidade do agente, independentemente da espécie de dolo,
dependerá da intensidade deste, sendo na mesma a sua acção punida como dolosa.

73.4. Negligência

Caso prático: Suponha que João, motorista de longo curso, cruza a vila de Mavila, a
uma velocidade de 55 km/h. De repente, salta-lhe na frente X, criança que se encontrava a
brincar com o amigo, “de esconde-esconde”, e aquele atropela-lhe mortalmente, pois não
conseguiu travar o suficiente para evitar o dano.
Será João culpado por homicídio negligente?
Como se situaria a questão, se João estivesse a uma velocidade superior a 60km/h,
limite máximo exigido?

73.4.1. Noção

Outra forma de culpabilidade é a negligência, que constitui um outro juízo de censura


ao agente, para além do dolo. A negligência é, hoje, um tipo especial de conduta punível que
congrega em si elementos do ilícito e da culpabilidade. Na negligência, a realização não querida
do tipo legal é caracterizada pela “desatenção, contrária ao dever, acerca do cuidado exigido
no âmbito da relação”251.

250
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, ob. cit., 2.º Vol., p. 511.
251
WESSELS, Johannes, Direito …, ob, cit., p. 147.

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A negligência é, por conceito, “a omissão de um dever objectivo de cuidado ou
diligência”252.
A negligência supõe, antes de mais, a inobservância de um dever de cuidado. Num facto
ilícito em concreto, se o dolo for negado, isto não significa uma afirmação da negligência,
devendo, antes, investigar-se acerca da existência de pressupostos próprios da negligência,
sendo depois disso, possível a punição a título de crime negligente.

73.4.2. Quando haverá negligência?

O artigo 4 do Código penal estipula que:

“1. Age com negligência aquele que, sendo capaz, segundo as circunstâncias, não
proceder com o cuidado a que está obrigado a:

a) representar como possível a realização de um facto tipificado como


crime, mas actuar sem se conformar com tal realização;

b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.


2. A punição da negligência, nos casos especialmente determinados na lei, funda-se na
omissão voluntária de um dever”.

O artigo 1 do Código Penal quando define crime ou delito como “facto voluntário
declarado punível pela lei penal” inclui, para a além dos crimes dolosos, os crimes negligentes.
Então, o crime negligente resultará da “omissão” de um dever de cuidado a que o agente está
obrigado. A palavra “omissão” que se encontra inserida no n.º 2 do artigo 4 significa
“inobservância” e não omissão como pólo negativo da acção.
A negligência, como forma excepcional da culpabilidade, só é cominada com pena,
quando a lei assim o determinar expressamente. Tal é a regra consagrada no nosso ordenamento
jurídico: “Os crimes meramente culposos só são puníveis nos casos especiais declarados na
lei e a estes crimes nunca serão aplicáveis penas superiores à de prisão e multa
correspondente” (art. 136 e n.º 2 do artigo 4).

252
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., p. 421.

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Assim, a negligência exerce uma dupla função, como forma de conduta e de
culpabilidade. Por essa razão, a sua investigação num caso concreto deve obedecer a esta
dualidade253. Com efeito, atendendo a conduta, dentro do tipo de ilícito deve-se determinar a
desatenção ou a inobservância do cuidado objectivo exigido; enquanto no sector da
culpabilidade, deve-se investigar se o autor era capaz de preencher as exigências objectivas
de cuidado, segundo a medida do seu poder individual.
Segundo o artigo 4, a negligência tem como elementos estruturais a falta de cuidado
objectivo, a previsão ou previsibilidade do facto ilícito como possível consequência da conduta
e a não aceitação do resultado.

73.4.3. Formas de aparecimento da negligência

A negligência pode assumir as seguintes modalidades254, (i) – negligência consciente e


(ii) – negligência inconsciente.
– Haverá negligência consciente, quando o agente toma como possível a realização do
tipo, mas de modo reprovável e contrário ao dever, confia que não se realizará. Isto é, o agente
previu o resultado da sua conduta mas confiou em que ele (o resultado) não se verificaria ou se
mostrou indiferente à sua produção. É da negligência consciente que a alínea a) do n.º 1 do
artigo 4 do CP cura, quando afirma que: “1. Age com negligência aquele que, sendo capaz,
segundo as circunstâncias, não proceder com o cuidado a que está obrigado a: a) representar
como possível a realização de um facto tipificado como crime, mas actuar sem se conformar
com tal realização”.

– Haverá negligência inconsciente, quando o agente, deixando de atender ao cuidado


para o qual, segundo as circunstâncias e suas relações pessoais, estava obrigado e era capaz,
realiza em consequência disso o tipo legal sem o reconhecer. Isto é, o agente não previu (como
podia e devia) a produção do resultado, por consequência da sua acção ou omissão. É desta
modalidade de negligência que trata a alínea b) do n.º 1 do artigo 4 do CP: “1. Age com
negligência aquele que, sendo capaz, segundo as circunstâncias, não proceder com o cuidado

WESSELS, Johannes, Direito…, ob. cit., pp. 148-149.


253
254
Ver WESSELS, Johannes, Direito…, ob. cit., p. 148; SANTOS, M- Simas e HENRIQUES, M. Leal,
Noções …, ob. cit., p.83.

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a que está obrigado a: b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do
facto”.

73.5. Diferença entre dolo eventual e negligência consciente

Tem sido largamente discutida a questão de saber de que modo se diferencia o dolo
eventual da negligência consciente.
As duas situações têm de comum o facto de o agente representar como possível a
ocorrência do resultado. A diferença situa-se no que no dolo eventual, o agente «toma em
compra»255 o resultado e conforma-se com o risco da realização do tipo; enquanto na
negligência consciente o agente confia na não ocorrência do resultado ou evento.
Mas a questão diferencial não é tão simples como a descrevemos no parágrafo anterior.
Existem grandes teorias que procuram diferenciar o dolo eventual da negligência consciente.
Ora, vamos a elas256.

a) Teoria da probabilidade ou de verosimilhança


Consiste no que o agente tomou a ocorrência da realização do resultado como provável.
Provável no sentido mais do que possível e menos do que preponderantemente provável. Mas
o pecado desta teoria é não precisar o «quantum» de possibilidade que, a representar-se,
implicaria a existência do dolo eventual.
b) Teoria do consentimento, da vontade, aprovação ou da aceitação
Segundo esta teoria é dominante na jurisprudência e consiste no que o agente deve ter
«aprovado» ou aderido ao resultado; ou «aprovando, tomado em compra» o resultado como
provável. «Aprovar» em sentido jurídico significa também, quando o resultado seja altamente
indesejável ao agente, que este, por causa do fim pretendido, se conforme com a sua
ocorrência257.

255
Ver WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 52-54. «Tomar em compra» é a expressão de
Kaufnehmen, que significa, num sentido geral e de carácter figurado, um artifício de um comerciante
arguto para vender algumas mercadorias sem saída ou indesejáveis, condicionando a entrega de outros
produtos de qualidade à aquisição daquelas. Em Direito Penal, a expressão «tomar em compra» passou
a significar «um aceite do risco», um «tolerar» ou uma «conformação» do agente para com
determinado acontecimento típico.
256
Ver entre outros WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 52-54; CORREIA, Eduardo, Direito
Criminal, ob. cit., p. 379; JESUS, Damásio E., Direito Penal, ob. cit., p. 287.
257
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 53.

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Esta teoria torna-se impossível aplicá-la àqueles elementos do facto criminoso que não
dependem da vontade do agente mas que preexistem à sua conduta (v.g. a idade ou a
gravidez)258.

c) A «fórmula hipotética de Frank»

Haverá dolo eventual, quando pudermos concluir que o agente, que previu o facto como
possível efeito da sua conduta, não a teria alterado, para o evitar, mesmo que previsse aquele
efeito como necessário259.
Esta fórmula deve ser entendida apenas como «meio de conhecimento» da posição do
agente perante o facto (ENGISH).
Em conclusão, é como afirma WESSELS “Parece correcta a doutrina, agora
predominante, de que existe dolo eventual, quando o autor não se tenha deixado dissuadir da
execução do facto pela possibilidade próxima da ocorrência do resultado e sua conduta
justifique a assertiva de que ele, por causa do fim pretendido, se tenha conformado com o risco
da realização do tipo, antes até concordando com a ocorrência do evento do que renunciando
à prática da acção. Contrariamente a isto é de se supor (só) negligência consciente quando o
autor tenha confiado em que «tudo caminhava bem» e que conseguiria evitar a ocorrência
iminente do evento”260.
A questão é saber qual é a diferença entre o n.º 3 do artigo 3 e a alínea a) do n.º 1 do
artigo 4, ambos do CP: dolo eventual e negligência consciente?
Transcrevamos as disposições respectivas:
N.º 3 do artigo 3, dolo eventual: “3. Há ainda dolo quando na sua actuação o agente
conforma-se com a realização de um facto tipificado como crime, sendo este consequência
possível da sua conduta”.
Alínea a) do n.º do artigo 4, negligência consciente: “1. Age com negligência aquele
que, sendo capaz, segundo as circunstâncias, não proceder com o cuidado a que está obrigado
a: a) representar como possível a realização de um facto tipificado como crime, mas actuar
sem se conformar com tal realização”.

258
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., p. 379.
259
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., p. 381.
260
Johannes, Direito Penal, ob. cit., p. 53.

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O aspecto comum está no seguinte: No dolo eventual como na negligência consciente,
o agente representa como possível a ocorrência do resultado; mas a diferença é que no dolo
eventual, o agente conforma-se com a realização do facto típico (do resultado); e na negligência
consciente, o agente não se conforma com a realização ou ocorrência do facto típico (do
resultado).
Exemplos:
- Casos de homicídio com dolo eventual: (i) desferir pauladas na cabeça da vítima com
um ferro, a fim de com ela manter relações sexuais, estuprando-a em seguida e provocando-
lhe a morte em consequência dos golpes desferidos; (ii) atirar em outrem para assustá-lo,
atropelar ciclista e, em vez de deter a marcha do veículo, acelerá-lo, visando arremessar ao solo
a vítima que caíra sobre o carro, dirigir um camião, em alta velocidade, numa vila, na
contramão.
Aqui, no caso (i) o agente desfere golpes na vítima e conforma-se com o que disso pode
advir, e, portanto, como resultado das pauladas, a vítima acaba por falecer.
- Casos de homicídio com negligência consciente: Um polícia que, após mandar parar
um automobilista, este não acata a ordem e, tendo invertido a marcha e seguido em contramão.
Alegadamente, após uma perseguição, o agente policial terá dado tiros para o ar e depois, a
cerca de 10 metros de distância, disparou a sua arma na direcção dos pneumáticos do veículo
para neutralizá-lo, e acabou por atingir o automobilista, o que resultou na sua morte.
Aqui, o polícia prevê que os disparos da sua arma podem atingir o automobilista e disso
pode resultar na sua morte, mas este, o polícia, não se conforma que tal possa acontecer, mas
devendo conformar-se com isso.

73.6. Tipo de Crime Negligente ou culposo

A negligência deu lugar ao tipo de crime excepcional, que é o tipo de crime culposo ou
negligente. Os crimes negligentes tanto podem ser praticados por acção ou por omissão.
Passamos a analisar os elementos estruturais do tipo negligente.

73.6.1. Tipo de ilícito no crime negligente

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Tem sido discutida a hipótese de existir na negligência um tipo subjectivo de ilícito a


par do tipo objectivo, que é co-natural dos tipos negligentes.
A Professora Paula Ribeiro de FARIA entende que “não é de se admitir um tipo
subjectivo de ilícito negligente”, considerando “a natureza rigorosamente objectiva do ilícito
negligente, que se deixa assim deduzir a partir a partir de um critério puramente geral e
abstracto de cuidado”261.
O Professor DIAS entende que falar-se de um verdadeiro tipo subjectivo de ilícito
negligente é uma questão puramente teorética que aqui não precisa de ser definitivamente
decidida262.
Os crimes negligentes não possuem um elemento subjectivo ao nível da tipicidade,
como ocorre nos crimes dolosos, daí com razão a Professora Faria afastar este elemento
subjectivo nos crimes negligentes.
Por isso, com WESSELS, diremos que o conteúdo do ilícito no crime negligente é
determinado através do seu desvalor de resultado e desvalor de conduta. Assim, dentro dos
crimes negligentes de resultado, três elementos, intimamente ligados uns aos outros,
constituem o fundamento do tipo de ilícito, nomeadamente: a causação do resultado, a lesão
ao dever de cuidado objectivo e a imputação objectiva do resultado baseado no erro de
conduta, orientada no sentido da finalidade protectiva das normas de cuidado263.
Assim, o crime negligente tem como elementos positivos264:

• conduta humana voluntária por acção ou omissão;


• violação de um dever de cuidado ou diligência;
• previsão ou previsibilidade do facto ilícito;
• imputação objectiva nos crimes de resultado;
• realização involuntária do facto típico.

261
apud SILVA, Germano Marques da, Direito Penal Português, ob. cit., p. 127.
262
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, ob. cit., p. 888.
263
WESSELS, Johannnes, Direito …, ob. cit., p. 149.
264
SILVA, Germano Marques da, Direito Penal …, ob. cit., p. 129; JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado
de Derecho Penal, Parte General. Tradução de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, Volume Segundo, Bosch,
Casa Editorial, Sa., Barcelona, 1981, pp. 816-823.

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Neste contexto, nos crimes negligentes não é mais correcto falar, como se faz nos
crimes dolosos, de elementos objectivos (uma certa actividade ou a produção de um certo
resultado) e subjectivos do tipo (a representação e a vontade dos elementos do tipo objectivo).
Analisemos estes elementos.

A) Conduta humana voluntária por acção ou omissão

O crime ou delito negligente ou culposo é, nos termos do artigo 1 do CP “um facto


voluntário declarado punível pela lei penal”. Tal facto tanto pode consistir na acção ou omissão.
A negligência pode dar lugar às seguintes espécies de crimes: (i) crimes de mera
actividade e (ii) crimes de resultado, quer sejam cometidos por acção ou omissão.
Contudo, tais acções ou omissões são, no geral, permitidas «social e juridicamente, ou
até mesmo juridicamente impostas»265. Portanto, o desvalor de acção é constituído pela
violação do dever objectivo de cuidado ou diligência.

B) Violação ou lesão de um dever de cuidado ou diligência

Nos crimes negligentes, é típica toda a conduta humana que lesa ou viola um dever
objectivo de cuidado ou de diligência. “O conteúdo do dever de cuidado consiste antes de tudo
em reconhecer o perigo para o bem jurídico protegido, resultante da conduta concreta, e em
orientar-se correspondentemente de acordo com isto: em, portanto, se omitir inteiramente da
acção perigosa ou efectuá-la somente sob suficientes precauções de segurança”266.
A questão é simplesmente resumida no que se o agente tivesse tido o cuidado objectivo
ou melhor se tivesse cumprido com o seu dever de cuidado objectivo o resultado,
provavelmente, se não teria verificado, ou pelo menos o teria evitado. Estas questões têm a ver
com o chamado risco tolerável ou permitido no exercício de actividades ou nas acções
perigosas que são permitidas por lei.
Com efeito, a medida do dever de cuidado ou diligência resulta das exigências que uma
análise “ex ante” da situação concreta de perigo se devam fazer a um homem prudente e
consciencioso, situado na posição concreta e no papel social do agente267. Tudo depende
objectivamente de situação concreta, da experiência indicativa na espécie da acção realizada,

265
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal, ob. cit., p. 525.
266
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 149.
267
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 150.

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da natureza do bem jurídico susceptível de lesão ou posto em perigo, de um critério de juízo
de homem de diligência média, um homem consciente e cuidadoso.
Ora, o dever de cuidado ou de diligência encontra limites objectivos no princípio da
confiança, desenvolvido, principalmente, pela doutrina alemã, para questões de trânsito,
aplicável também cá entre nós. A questão é tão simples, pois a confiança neste âmbito quer
significar que “cada qual cuida do seu cuidado e confia que os outros também agirão com
cuidado. Assim, não é necessário cuidar do cuidado alheio. Em certas circunstâncias, porém, o
dever de cuidado impõe que se cuide também da falta de cuidado alheio (ex.: circulação
rodoviária perto das escolas, …)”268.
Assim, “Quem propriamente emprega o cuidado necessário pode, por seu turno, confiar
que seu próximo se conduza igualmente de modo cuidadoso, contanto que o oposto não esteja
nitidamente manifestado ou se deva ter em conta por motivos de índole especial. Deve vigorar
o mesmo em relação aos casos de trabalho cooperativo (como por exemplo, nas cirurgias,
experimentos científicos, acções de salvamento, etc.)”269.
Assim, no nosso caso prático, João ao cruzar o povoado de Mavila, conservou os limites
da velocidade máxima exigida. João não lesou o seu dever de cuidado e diligência. Portanto, a
morte daquela criança constitui um infortúnio objectivamente invisível. Falta aqui o desvalor
da conduta e o desvalor do resultado.
A medida do cuidado objectivo exigível deve tomar em conta dois aspectos
fundamentais: (i) – que o crime negligente é do tipo aberto e assim sendo decorre que (ii) – “é
o juiz que, quando julga um caso concreto, vai ter de concretizar, naquele caso, qual seria o
cuidado exigível àquele indivíduo em concreto”270.

C) Previsibilidade do facto ilícito

O elemento principal da actuação negligente é a previsibilidade do facto ilícito e não


do resultado, pois é necessário, na negligência, que o agente tenha podido prever, no momento
que precede a realização do facto, que a sua acção ou omissão podia ofender os bens jurídicos
fundamentais.
É a previsibilidade do facto típico que demanda ou condiciona o dever objectivo de
cuidado. Quer dizer, “o agente deve prever ou poder prever que à violação do dever de cuidado

268
SILVA, Germano Marques da, Direito Penal …, ob. cit., p. 134.
269
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 149.
270
WELZEL, 1976, p. 187 apud BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, 2.º Vol., ob. cit., p. 516.

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se siga como consequência a realização do facto típico”271. Daí que a previsibilidade do facto
ilícito pelo agente é apreciada concretamente pelo juiz perante o caso concreto.
Interessante é o exemplo de JESCHECK, quando afirma que “A previsibilidade das
consequências de um golpe na cabeça de uma pessoa depende do nível cultural e da inteligência
do autor”272.

D) Realização involuntária do facto típico

A questão essencial é saber se haverá um elemento volitivo (vontade) no crime


negligente, como ocorre nos crimes dolosos?
A resposta a esta questão deve ser negativa.
A alínea a) do n.º 1 do artigo 4 do CP diz que: “1. Age com negligência aquele que,
sendo capaz, segundo as circunstâncias, não proceder com o cuidado a que está obrigado a:
a) representar como possível a realização de um facto tipificado como crime, mas actuar sem
se conformar com tal realização”. (Sublinhado nosso).
O agente, embora represente como possível a realização de um facto típico, não actua
direccionando a sua vontade para o cometer. O que, na verdade, ocorre é que ele não se
conforma, embora previsível o facto ilícito, que ele se realize.
Assim, na negligência, diferente do dolo, o agente não quer cometer o crime, só que a
falta de respeito pelo dever objectivo de diligência ou cuidado acaba realizando o facto ilícito.
A procurar-se uma vontade dentro da negligência, pode dizer-se que ela é uma vontade
reflexa, indirecta que deriva do facto de o agente representar como possível a realização do
facto típico e não se conformar com a sua ocorrência como consequência da sua acção ou
omissão.

E) Imputação objectiva nos crimes de resultado

A questão que se discute aqui é a de saber como se deve fundamentar dogmaticamente


a conexão específica entre a contrariedade ao dever objectivo de cuidado e o resultado,
requerida para a imputação273.

271
SILVA, Germano Marques da, Direito Penal …, ob. cit., p. 136.
272
JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, ob. cit., p. 820.
273
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 152-155.

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É assim pois nos crimes negligentes de resultado não basta que o resultado seja causado
pela conduta, mas que deva resultar da violação ou a lesão do dever objectivo de cuidado.
Vamos apresentar algumas correntes para que haja imputação objectiva.
A escola clássica prescreve que deve ser negado somente o “nexo de culpabilidade”
entre a contrariedade ao dever e o resultado quando uma conduta conforme ao cuidado também
teria conduzido à ocorrência do resultado.
Uma outra corrente advoga que, reunindo o conceito de negligência em si elementos do
ilícito e da culpabilidade, falta o “nexo de antijuridicidade”, quando a lesão do dever de cuidado
não se realiza no resultado, e este portanto não se baseia na ausência de cuidado.
Uma terceira corrente nega o nexo de imputação no plano do tipo, quando falte a relação
específica entre o resultado e a lesão ao dever de cuidado.
Em conclusão, cumpre afirmar que, quanto à imputação, o crime negligente pressupõe,
segundo a sua natureza, a evitabilidade da realização do tipo penal: o agente negligente será
punido porque não evitou o resultado desaprovado, embora para isso fosse objectivamente
obrigado e subjectivamente capaz. Enquanto, contudo, a inevitabilidade subjectivo-pessoal só
faz desaparecer a censura da culpabilidade; a inevitabilidade objectiva exclui já no plano do
tipo a imputação do resultado. Pois, se o resultado socialmente danoso também não fosse
evitável no caso de uma conduta juridicamente isenta de defeitos, a ausência do cuidado,
existente no caso concreto, seria irrelevante para a sua ocorrência274.
Tudo passa de uma investigação para se saber se o agente fosse para isso objectivamente
obrigado e se teria conduzido juridicamente a sua acção de modo correcto e se não ultrapassou
nesta acção os limites do risco permitido, o que se determinará, in concreto, pelo juiz da causa
perante um caso concreto.

73.6.2. Modalidades ou espécies de actuação negligente

O Código Penal distingue, nos vários dispositivos, vários tipos de actuação negligente,
nomeadamente, a imperícia, a inconsideração, a negligência, a falta de destreza ou a
inobservância de regulamentos.
Por exemplo, diz o artigo 169 do Código Penal que “1. O homicídio involuntário, que
alguém cometer ou de que for causa por sua imperícia, inconsideração, negligência, falta de

274
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 153.

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destreza ou falta de observância de algum regulamento, será punido com a prisão de um mês
a dois anos e multa correspondente”.

Analisemos estas modalidades de negligência.

73.6.2.1. A imperícia

A imperícia consiste na falta de aptidão técnica, teórica ou prática, para o exercício de


uma profissão. Conforme ensina o professor Nélson HUNGRIA “a imperícia, de seu lado, não
é mais do que uma forma especial de imprudência ou de negligência: é a inobservância, por
despreparo prático ou insuficiência de conhecimentos técnicos, das cautelas específicas no
exercício de uma arte, oficio ou profissão”275.
Alguém terá agido com imperícia quando não possui o cabedal normalmente exigido e
indispensável para o exercício de uma profissão.
Por exemplo, um elevador que mata os usuários pelo facto de a manutenção ter sido
efectuada por um indivíduo ajudante desprovido de capacitação técnica.

73.6.2.2. A inconsideração

A inconsideração consiste na falta de atenção e cuidado que se exige no cumprimento


de deveres gerais, que o agente deve possuir. A inconsideração está mais próxima da
imprudência, pois esta consiste na prática de um acto perigoso sem os cuidados que o caso
requer.

73.6.2.3. A negligência

A negligência corresponde à falta de cuidado na tomada de precauções necessárias para


evitar um resultado danoso perante uma circunstância concreta da vida. Por exemplo, um chefe
da equipa da EDM na reparação de uma linha, manda um técnico trabalhar numa linha de alta
tensão sem se ter confirmado de que a corrente eléctrica está interrompida.

275
HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo II, Forense, Rio de Janeiro, 1973
(Actualizado por Heleno Fragoso), pp. 203-204.

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73.6.2.4. A falta de destreza

A destreza tem a ver com capacidades, que qualificam uma pessoa em hábil ou apta,
para a realização de certas funções. Portanto, a falta de tais habilidades e capacidades para o
exercício de qualquer ocupação corresponde à falta de destreza.

73.6.2.5. A falta de observância de algum regulamento

Esta forma de negligência devia ter sido eliminada do Código, pois nem faz sentido. A
jurisprudência estrangeira dominante é no sentido de que a eventual inobservância de preceito
administrativo ou regulamentar por si só não é motivo suficiente para o reconhecimento da
negligência, pois nem sempre é culposo ou negligente o evento subsequente à violação de uma
disposição regulamentar. Pois é preciso sempre estabelecer como e por que certo evento se deu,
independentemente de ter sido precedido pela violação de um regulamento.

73.6.3. A culpabilidade nos crimes ou delitos negligentes

A culpabilidade negligente consiste numa atitude ético-pessoal de descuido ou


leviandade do agente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela respectiva acção
ilícita negligente276.
Diz o n.º 2 do artigo 47 que “A negligência ou culpa consideram-se sempre como acto
ou omissão dependente da vontade”.
A culpabilidade nos crimes negligentes, como nos crimes dolosos, significa a
censurabilidade do facto em consideração ao ânimo juridicamente repreensível e nele
manifestado. A censura da culpabilidade negligente fundamenta-se através da determinação de
que o autor era capaz, segundo suas aptidões pessoais e na medida de seu poder individual, de
reconhecer o dever de cuidado objectivo e de atender às exigências de cuidado dele resultantes
(critério subjectivo)277.
Assim, nos crimes negligentes de resultado, o evento e o processo causal devem ter sido
também subjectivamente previsíveis em seus elementos essenciais. Mas nada obsta que a

276
CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal, ob. cit., p. 530.
277
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., pp. 155-156.

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inexigibilidade, fruto de circunstâncias exteriores, de conduta conforme a norma actue como
motivo de exculpação de forma mais ampla do que nos crimes dolosos278.
Portanto, esta capacidade pode faltar no caso de defeitos psíquicos ou físicos, pode
ainda ser excluída nos casos de medo insuperável, confusão ou coisa semelhante, desde que
relevante.
Assim, a culpabilidade na negligência tem como pressupostos, os anteriormente vistos,
nomeadamente279:
(i) – capacidade de culpabilidade e consciência do ilícito: este dado vincula-se à idade
e saúde psíquico-espiritual (ver. Supra 71).
(ii) – possibilidade de advertir e cumprir o dever objectivo de cuidado (ver. Supra
73.4.1., alínea b)).
(iii) – previsibilidade subjectiva do perigo e do processo causal: o agente prevê,
segundo suas faculdades intelectuais e circunstâncias concretas, o risco ou o perigo da sua
acção – a tal previsibilidade do facto ilícito (supra 73.4.1, alínea c)).
(iv) – inexigibilidade de um comportamento adequado à norma: a reprovabilidade do
comportamento do agente que corresponde à negligência pode desaparecer, como frisámos,
quando ocorram circunstâncias exteriores que indiquem a inexigibilidade de conduta diversa
ao dever objectivo de cuidado.

73.6.4. O problema da exclusão da ilicitude ou justificação do facto no crime


negligente280

Tal como nos crimes dolosos, nos crimes negligentes a ilicitude é indiciada pela
tipicidade. Assim, a ilicitude será sempre afastada nos crimes negligentes sempre que intervier
uma causa de justificação do facto, nomeadamente:

(i) – legítima defesa – desde que verificados os pressupostos da sua verificação,


funciona como causa de exclusão da ilicitude. Veja-se o exemplo da nossa Professora de
Direito Penal na Faculdade de Direito da Nova de Lisboa “… o caso de um indivíduo que vai
na estrada e, de repente, encontra um carro parado; sai do seu carro para socorrer a pessoa
que ele supõe ter sido vítima de um acidente de viação, e esse outro indivíduo era um “rato”

278
JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado …, ob. cit., p. 832.
279
JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado …, ob. cit., pp. 816-823.
280
Ver BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, 2.º Vol, op. cit., pp. 519-524;

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de automóveis que tinha simulado um acidente, para poder roubar o carro ao crédulo que
passasse. E entretanto o indivíduo que parou apercebeu-se da armadilha, vai fugir, e ao fazê-
lo, por “azelhice” ao volante, atropela o indivíduo que o queria assaltar. Isto poderia
eventualmente ser também um crime de ofensas corporais – e até de homicídio, se o resultado
morte ocorresse – negligente, na medida em que o condutor não o queria atropelar, fê-lo
apenas por falta de perícia ao volante; também aí se poderia dizer que a legítima defesa
funcionava para excluir a ilicitude desse acto negligente de ofensas corporais”281.
(ii) – o consentimento: pode funcionar na medida em que, tendo a pessoa conhecimento
pleno da situação como ela pode desenrolar e do perigo que corre, a situação é equivalente
àquela em que a própria pessoa, autonomamente, se coloca num certo risco, o que como sabem
é, até ao suicídio, impune – isto é, a não ser nos casos das multidões para fugir ao serviço
militar, em princípio não são puníveis as ofensas que a pessoa inflija a si própria, nem sequer
se se trata de suicídio. Assim, o consentimento poderia relevar em situações idênticas àquelas
em que a própria pessoa se coloca na situação de perigo282.
(iii) – estado de necessidade: a situação depende, em muitos casos, dos bens em conflito.
Só haverá estado de necessidade que exclui a ilicitude se o agente sacrifica um bem jurídico de
menos valor relativamente àquele que pretende salvaguardar.
Última palavra, no crime negligente, é desnecessária a indagação sobre os elementos
subjectivos nas causas de justificação. Isto é, não é necessário que o agente tenha intenção, por
exemplo, de defesa, embora tenha conhecimento da agressão. “Isto justamente porque, assim
como os tipos incriminadores negligentes não pressupõem elementos subjectivos, também as
causas de justificação, para funcionarem em relação aos crimes negligentes, não pressupõem
um elemento subjectivo da sua parte”283.

73.6.5. Punição da negligência no Direito Pátrio

Não há no crime ou delito por negligência nem a tentativa, nem a frustração por os
crimes negligentes carecerem do elemento intencional, que é característico dos crimes dolosos.
Não há também a participação nos crimes negligentes, porque a lei não permite tal facto
e o facto determinante é que “Os crimes meramente culposos só são puníveis nos casos

281
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, 2.º Vol, op. cit., p 521.
282
ROXIN, Claus, Sobre El fin de Protección … apud BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, 2.º Vol, op. cit.,
p. 522.
283
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, 2.º Vol, op. cit.,p. 524.

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especiais declarados na lei e a estes crimes nunca serão aplicáveis penas superiores à de prisão
e multa correspondente” (art. 136).
Ora, se é assim, em nenhum caso o Código fala da punibilidade da participação nas suas
diversas formas.
Recorde-se igualmente que a negligência é punida com o fundamento na omissão
(inobservância) voluntária de um dever (n.º 2 do artigo 4).

74. Causas de exclusão da culpabilidade284

Exclui a culpabilidade, nos termos do n.º 2 do artigo 48 do CP, o seguinte:


• “os que praticam o facto violentados por qualquer força estranha, física
e irresistível;
• os que praticam o facto dominados por medo insuperável de um mal
igual ou maior, iminente ou em começo de execução;
• os que praticam um facto cuja criminalidade provém somente das
circunstâncias especiais, que concorrem no ofendido ou no acto, se ignorarem e não
tiverem obrigação de saber a existência dessas circunstâncias especiais;
• em geral, os que tiverem procedido sem intenção criminosa e sem
culpa”.

Por força do artigo 32 do CP, exclui ou dirime a culpabilidade (dolo) o erro.


Existem ainda causas gerais de exclusão da culpa extralegais, nomeadamente:
• estado de necessidade desculpante;
• inexigibilidade de outra conduta;
• excesso de legítima defesa;
• encobrimento entre parentes.
Analisemos algumas situações de exculpabilidade.

74.1. Força estranha, física e irresistível

284
Existe uma distinção, em particular, na doutrina Alemã, entre causas de exclusão da culpabilidade
e causas de exculpação. Assim, as causas de exclusão da culpa são a incapacidade de culpa
(inimputabilidade) e o erro de proibição inevitável, pois com a sua ocorrência faltam, respectivamente,
um pressuposto e um elemento fundamental da culpabilidade. As causas de exculpação, ao contrário,
produzem somente uma forte redução no conteúdo do ilícito e de culpabilidade do facto. (ver WESSELS,
Johannes, Direito …, ob. cit., p. 91).

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A força referida na alínea a) do n.º 1 do artigo 48 diz respeito à violência ou coacção


absoluta, que, afectando a vontade do agente, é motivo para que não lhe seja exigido outro
comportamento. Assim, o agente é transformado num mero instrumento. Neste sentido, como
diz Maia Gonçalves, “A força estranha, física e irresistível suprime o próprio facto
voluntário…”, sendo, por isso “uma disposição desnecessária”285. Contudo, assim não o
entendeu o Legislador.
A força estranha, física e irresistível pode ter como fonte o homem ou uma causa
natural. Deve notar-se que esta violência deverá ser invencível, pois sendo vencível, não há
lugar à causa de exclusão da culpa, mas sim, haverá lugar à atenuação geral “o chamado medo
vencível” – alínea a) do artigo 43 do CP.

74.2. Medo insuperável

Estão isentos de culpa, aqueles que praticam o facto dominados por medo insuperável
de um mal igual ou maior, iminente ou em começo de execução.
O medo insuperável pode ter gradações, consistindo em temor, terror, espanto, horror,
pânico e seus efeitos são diversos, podendo paralisar ou impossibilitar todo o movimento; fazer
perder a fala, privando o agente de gritar pelo socorro, inclusive pode causar a morte pela
impressão sofrida. Pode engendrar reacções psicogênicas e autênticas psicoses286.
Para que o medo insuperável seja causa de exculpação, a lei exige dois requisitos
cumulativos: i) para além de ser insuperável o medo deve dirigir-se a um mal maior ou igual e
que ii) seja iminente ou em início de execução.
A insuperabilidade do medo é sempre um requisito de ordem objectiva, devendo ser
sério, iminente e real. Chamamos atenção ao facto de que o medo em si tem componente
subjectiva, mas a sua avaliação de superável ou não, é objectiva.
Por exemplo, os limites da legítima defesa podem ser ultrapassados por medo
insuperável, o chamado excesso intensivo ou também nos casos de excesso extensivo (ver infra
n.º 74.6).

74.3. Caso fortuito

285
GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, Codigo …, ob. cit., p. 104 (Anotação ao artigo 44.º).
286
DEVESSA, José Maria e GOMES, Alfonso, Derecho Penal Espanhol, ob. cit., p. 645.

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Diz a alínea d) do n.º 2 do artigo 48 do CP que exclui a culpabilidade: “d) em geral, os


que tiverem procedido sem intenção criminosa e sem culpa”.
Ora, assim sendo, a situação da alínea d) pode ser explicada com a noção de caso
fortuito. O medieval FARINACIO define-o como “casus fortuitus dicitur ille, de quo quis
verisimiliter cogitare non potest”. Explicando, com apoio de BATAGLINI “O caso fortuito é
um acontecimento imprevisível e inevitável. Começa onde a culpa acaba. Tudo aquilo que não
é relacionado com a culpa humana constitui o fortuito, ainda que materialmente subsista a
causalidade”287.
Mesma eficácia do caso fortuito terá a força maior. Portanto, a tese será descrita da
seguinte forma em relação à alínea d) do n.º 2 do artigo 48: Excluir-se-á a culpabilidade se um
facto típico e ilícito for causado por mero acidente, sem dolo e nem culpa do agente.

74.4. Inexigibilidade ou não exigibilidade de conduta diversa

A não exigibilidade de outra conduta é uma causa supralegal de exclusão da culpa. Mas
é preciso sublinhar que isto não é tão pacífico assim. O Professor Italiano BATTAGLINI, na
ordem de causas que excluem a culpabilidade, diz que rejeita incluir nessa lista, como causa
extralegal de exclusão da culpabilidade a denominada «inexigibilidade» e diz mais “Na
Alemanha tal figura surgiu a fim de remediar a fórmula por demais estrita do código germânico
concernente ao estado de necessidade. A expressão «inexigibilidade» indica sinteticamente a
não exigibilidade, em dadas circunstâncias, de comportamento diverso daquele que o agente
teve. É, em substância, a «força irresistível». Pressupõe que se aceite a teoria normativa da
culpabilidade … e, além disso, a extensão por analogia ou por um princípio geral de direito.
Nós rechaçamos quer a teoria normativa da culpabilidade, quer a possibilidade de recurso à
analogia ou a princípios gerais de direito no que tange às normas excepcionais”288.
Que dizer disto entre nós?

287
BATTAGLINI, Giulio, Direito penal, ob. cit., p. 288.
288
BATTAGLINI, Giulio, Direito penal, ob. cit., p. 287.

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Primeiro, o nosso Código Penal não trata da não exigibilidade de outra conduta. À
semelhança do Código Italiano, o nosso Código trata na alínea a) do n.º 2 do artigo 48 da «força
irresistível».
Portanto, a não exigibilidade a ser admitida seria uma causa supralegal, isto é, praeter
legem. Será admitido isso no Direito Penal?
Comecemos com o conteúdo da não exigibilidade de outra conduta.
O nascimento da inexigibilidade de uma conduta diversa como causa de exculpação
está estritamente ligada ao nascimento da corrente normativa da culpabilidade. No exemplo do
marinheiro que mata o colega para salvar-se porque era única a tábua de salvação, ele teria
agido na situação de inexigibilidade de outra conduta. A situação é simples: ou ele morria e
sobrevivia o colega ou vice-versa. Mas optou por salvar-se, como qualquer um optaria por esta
solução.
Aplicando este caso no plano do nosso Código, poderíamos chamar a isto de
inexigibilidade de outra conduta? Em que norma penal se enquadraria este facto?
Procurando a solução, nos parece que a alínea a) do n.º 1 do artigo 48 ser a mais
adequada. Podemos afirmar que o marinheiro foi dominado por uma força ou causa irresistível.
Não podia perante o perigo de sua vida, deixar esta esvaiar-se, quando podia lutar por ela.
Aliás, na leitura atenta do nosso Código, nos parece que o Legislador não optou pela teoria
normativa da culpabilidade, mas alguns elementos da teoria psicológica (Supra 70.2.5).
Assim como BATTAGLINI, rechaçamos igualmente a aplicabilidade da teoria da não
exigibilidade de conduta diversa por ser extrapenal e faltar-lhe um fundamento de ordem legal
para a sua consagração.

74.5. Estado de necessidade desculpante

Este instituto não está consagrado no nosso Código Penal. A ser atendível, seria uma
causa supralegal de exclusão da culpa.
Vejamos a definição do estado de necessidade desculpante. Este pressupõe sempre uma
determinada situação de necessidade derivada de um perigo actual e não evitável de outro modo
para a vida, o corpo ou a liberdade do próprio autor, de um parente ou de uma pessoa que lhe
seja próxima289. Assim, a acção de necessidade deve constituir a última via necessária para
afastar o perigo.

289
WESSELS, Johannes, Direito …, ob. cit., p. 92.

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Por exemplo, o artigo 35.º do Código Penal Português prescreve o seguinte sobre o
estado de necessidade exculpante: “1 – Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado
a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade
física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe,
segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”.
A ser relevante no nosso ordenamento jurídico, o estado de necessidade exculpante é
causa de enfraquecimento da culpabilidade através da atenuação geral da responsabilidade
criminal do agente. Assim dispõe a alínea w) do artigo 43 que “São circunstâncias atenuantes
da responsabilidade criminal do agente: w) em geral, quaisquer outras circunstâncias, que
precedam, acompanhem ou sigam o crime, se enfraquecerem a culpabilidade do agente ou
diminuírem por qualquer modo a gravidade do facto criminoso ou dos seus resultados”.
Por exemplo, A, médico, que dirige a alta velocidade porque recebeu chamada,
informando que uma vida estava prestes a destruir-se se, no entanto, não comparecesse em
cinco minutos para a operação. Só que durante a viagem A atropela B mortalmente; ou nos
nossos exemplos clássicos do homem gordo, que é explodido para permitir a passagem de
pessoas entaladas; ou do marinheiro que sacrifica o colega na luta pela única tábua de salvação,
que só podia suportar uma pessoa, depois de o navio em que vinham ter afundado.
Alguns exemplos ainda: o caso Mignonette, de 1884, na Inglaterra. Uns náufragos, à
míngua de alimentos, sacrificaram o companheiro mais novo e dele se alimentaram até que
fossem socorridos. O tribunal julgou e condenou-os a pena capital. Contudo, os réus foram
agraciados e a pena de morte substituída por uma prisão de seis meses. O tribunal entendeu que
a vida era um bem absoluto, não sendo em nenhuma circunstância atendível que alguém
sacrifique-na, mesmo em casos extremos. Percebe-se aqui que o debate girará em torno da
exclusão da culpa.

74.6. Excesso da legítima defesa

A legítima defesa em si afasta a ilicitude ou justifica o facto, já o seu excesso exclui ou


dirime a culpabilidade.
O excesso da legítima defesa pode dar-se por duas vias: (i) – excesso no meio de defesa
e (ii) excesso no momento da defesa (uma defesa demasiada cedo ou demasiada tarde,
afectando o elemento iminência ou actualidade).

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O primeiro excesso, diz-se intensivo, olhando-se para a intensidade da defesa e o
segundo diz-se extensivo, olhando-se para a iminência ou actualidade da agressão.
Assim, haverá excesso intensivo da legítima defesa quando o agente excede os limites
da legítima defesa no que diz respeito aos meios necessários para a defesa. Isto é, estamos a
falar da desproporcionalidade dos meios de defesa (excesso de meio de defesa). Por exemplo,
um tiro dirigido ao agressor no tórax, quando bastava somente no pé ou ao ar. Diz o n.º 2 do
artigo 50 que “Não é punível o excesso de legítima defesa devido a perturbação ou medo
desculpável do agente”.
Será preciso que o medo seja insuperável ou invencível (ver supra 74.2).
O excesso da legítima defesa intensiva pode ser censurável e não censurável.
Sendo o excesso não censurável por resultar da perturbação ou medo desculpável do
agente não é punível ou o agente é absolvido da pena (n.º 2 do art. 50 ex. vi. artigo 189).
Sendo censurável o excesso dos meios de defesa, dependendo das circunstâncias, o
agente será punido, sem prejuízo da atenuação geral prevista na alínea q) do artigo 43.
Haverá excesso extensivo da legítima defesa quando o defendente reage cedo demais
antes da agressão ou tarde demais depois de a agressão ter cessado e esta não representar
nenhum perigo. Por medo insuperável, pode o defendente, embora o agressor deitado no chão
desmaiado, continuar a batê-lo até perder a vida. Ora, o excesso extensivo não pode ser aceite
no nosso ordenamento jurídico, pois representa uma acção dolosa, ilícita e culposa, ou se
quisermos, pode traduzir-se no chamado erro sobre a legítima defesa, se, em particular, a defesa
ocorrer demasiado cedo da agressão.

74.7. Obediência indevida desculpante

Diz o número 2 do artigo 51 que “O dever de cumprimento de ordens superiores cessa


quando estas conduzam à prática de um crime”. Dito doutra forma, o subordinado que cumprir
uma ordem de que tenha conhecimento da sua ilicitude criminal, responderá ele criminalmente.
Contudo, se o subordinado não tiver consciência da ilicitude criminal da ordem, embora se diga
que a ignorância da lei não exime da responsabilidade, e cumpri-la, cometendo crime, a sua
culpa fica dirimida. Mas a culpa só será dirimida ou excluída se, à luz das circunstâncias
objectivas, não tiver sido evidente que a ordem conduzia ao cometimento do crime.

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75. Teoria do erro290

75.1. Conceito e tratamento doutrinal do erro

O erro, como tal, consiste na desconformidade entre a representação do agente e a


realidade. Contudo, tal representação só em determinadas circunstâncias exclui ou dirime a
intenção criminosa. O erro liga-se ao elemento intelectual do dolo, quer dizer, o agente tem um
conhecimento falso da realidade.
Assim sendo, a doutrina entende que o erro de execução ou aberratio ictus (desvio do
golpe) não é um verdadeiro erro, corresponde, no Direito Civil, ao chamado erro obstáculo,
pois nada tem a ver com a formação da vontade, mas sim com a falta de destreza psico-física
do agente, ou com condições externas independentes do agente. Portanto, é um problema de
imputação objectiva e não do dolo ou culpa291.
Dois sistemas se confrontam na colocação do erro no sistema do Direito Penal292.
No sistema clássico, o erro é tratado no âmbito da teoria da culpabilidade, na tricotomia
tipo-ilicitude- culpabilidade, sendo agregado como anexo o erro de execução.
Na escola finalista, o erro é tratado de forma desagregada. O erro sobre o facto típico é
tratado na doutrina do dolo, como parte da teoria do tipo ilícito. O erro sobre os elementos de
facto e de direito de causas de justificação é geralmente tratado a propósito das causas de
justificação, e, para fins de delimitação, a propósito do erro sobre a ilicitude; outros casos de
erro são considerados na teoria da culpa. Quanto ao chamado erro de execução, tem o seu lugar
na teoria da imputação objectiva293.
Nós optámos por sistematizar todo o erro como causa de exclusão da culpabilidade,
quer dizer na sistemática da escola clássica, mas colocando-o em capítulo próprio das causas
de desculpação, que é, na essência, a sua função.

75.2. Espécies de erro

Sobre o erro, dispõe o artigo 32, o seguinte:

290
Ver fundamentalmente VELOSO, José António, Erro em Direito Penal, 2.ª edição, Associação
Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1999 e FAGUNDES, Ernani Cabral de Loyola, O Erro em
Matéria Penal, ver em revistas.ufpr.br/direito/article/Viewfile/6609/4728, consultado em Julho de 2017.
291
VELOSO, José António, Erro em Direito Penal, ob. cit., p. 7.
292
VELOSO, José António, Erro em Direito Penal, ob. cit., pp. 11-12.
293
VELOSO, José António, Erro em Direito Penal, ob. cit., p. 12.

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“1. Não exime de responsabilidade criminal:
a) a ignorância da lei criminal;
b) a ilusão sobre a criminalidade do facto;
c) o erro sobre a pessoa ou a coisa a que se dirigir o facto punível;
d) a persuasão pessoal da legitimidade do fim ou dos motivos que
determinaram o facto;
e) o consentimento do ofendido, salvo os casos especificados na lei;
f) o erro na execução do facto punível, ainda que o crime projectado fosse
de menor gravidade;
g) o erro censurável sobre a ilicitude do facto punível;
h) o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de
exculpação;
i) em geral, quaisquer factos ou circunstâncias, quando a lei
expressamente não declare que eles eximem de responsabilidade criminal.
2. As circunstâncias designadas nas alíneas a) e b) do presente artigo nunca atenuam a
responsabilidade criminal.
3. O erro sobre a pessoa, a que se dirigir o facto punível, agrava ou atenua a
responsabilidade criminal, segundo as circunstâncias.
4. A circunstância designada na alínea f) do número 1 do presente artigo não pode
dirimir em caso algum a intenção criminosa, não podendo por consequência ser por esse motivo
classificado o crime como meramente culposo”.

Com esta disposição, podemos traçar o seguinte quadro de tipologias do erro:


• Erro de direito;
• Erro sobre o objecto: pessoa ou coisa;
• Erro na execução;
• Erro censurável sobre a ilicitude do facto punível (remissão, ver supra
n.º 72).
• Erro sobre o facto típico;
• Erro sobre os pressupostos das causas de justificação ou de exculpação.
A ser relevante o erro, dirime a culpabilidade, mas não exclui a responsabilidade
criminal.
Passemos à análise dos erros em espécie.

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75.2.1. Erro de direito

O erro de direito consiste na ausência do momento intelectual do dolo. Isto é, “o agente


desconhece a natureza ilícita da conduta que empreende, e assim não é determinado pela
consciência do dever legal de agir de outro modo”294.
Nas suas diversas modalidades, o erro de direito nunca atenua a responsabilidade
criminal. Tudo se dá como se nenhuma causa justificativa ou exculpante tivesse actuado.
Portanto, o agente é punido a título doloso.
O erro de direito consiste nas seguintes modalidades prescritas pelo artigo 32 do nosso
Código Penal (n.º 1, alíneas a), b) e d):

a) Ignorância da lei penal (alínea a))

Como se diz e consensual, a ignorância da lei não aproveita a ninguém. Tal é o princípio
aceite também em matéria penal. A ignorância corresponde, psicologicamente, diferente do
erro, à ausência de conhecimento de uma certa realidade. Ora, o erro é um conhecimento falso
e não falta295.
Assim, o conhecimento da lei pelo cidadão é de carácter obrigatório, o que afasta
qualquer tipo de aproveitamento da situação de ignorância da lei penal pelo agente.
A ignorância da lei penal não dirime a responsabilidade em nenhum momento, isto é,
não aproveita o agente (n.º 2 do artigo 32).

b) Ilusão sobre a criminalidade do facto ou erro de subsunção (alínea


b))

Como bem fez o Professor Eduardo CORREIA, vamos restringir a ilusão sobre a
criminalidade do facto aos casos de erro de subsunção. Assim, haverá ilusão sobre a
criminalidade do facto ou erro de subsunção quando o agente, sabendo que a sua conduta é

GONÇALVES, Manual Lopes Maia, Código Penal…, ob. cit., p. 55 (Anotação ao artigo 29.º).
294
295
Ver ASUA, Luis Jimenez de, Reflexiones sobre el Error de Derecho em Materia Penal, El Ateneo,
Buenos Aires, 1942, p. 15-25.

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criminalmente ilícita, julga que é incriminada por preceito diferente do que, na realidade, a
incrimina296.

c) Persuasão pessoal da legitimidade do fim ou dos motivos


determinantes do facto (aliena d))

Segundo CORREIA a persuasão pessoal da legitimidade do fim ou dos motivos


determinantes do facto refere-se “àquelas hipóteses em que o agente, actuando embora com
consciência da ilicitude e com conhecimento da falta de causas jurídicas de justificação, julga
que certos fins ou motivos da actuação (v. g. de ordem moral, religiosa, ou política) legitimam
o facto: as hipóteses do chamado crime por convicção”297.
O agente cria uma suposição das causas justificativas que, na verdade, não existem, o
que representa a chamada ignorância da lei penal. Contudo, como reconhece GONÇALVES
“Devem, no entanto, distinguir-se estas situações daquelas em o agente supõe erroneamente
existir o condicionalismo de facto mediante o qual a lei legitima a sua actuação. Assim, se A.
supõe, erroneamente, estar iminente uma agressão, e por isso ataca o agressor com animus
defendendi, há erro de facto, e não erro de direito”298.

75.2.2. Erro sobre o objecto: pessoa ou coisa

Dispõe o artigo 32 que “Não exime de responsabilidade criminal: c) o erro sobre a


pessoa ou a coisa a que se dirigir o facto punível”.
Erro sobre o objecto, também designado por error in persona vel objecto, existe quando
a identidade da pessoa ou coisa (objecto) atingida é distinta da identidade representada ou
querida pelo agente do crime. Isto é, o agente ofende pessoa ou coisa diversa daquela que
pretendia, supondo atingir a pessoa visada (portanto, o erro está na identidade).
Erguem-se duas situações importantes:

a) De o objecto for qualitativamente idêntico: vida/vida; coisa/coisa

296
Idem, p. 56; CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., p. 420.
297
CORREIA, Eduardo, Direito …, ob. cit., p. 420.
298
GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, Código Penal Português, ob. cit., p. 57 (Anotação ao artigo 29.º).

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Assim, diremos que em caso de homicídio doloso de pessoa confundida pelo agente
com o seu inimigo, o erro é irrelevante e não atenua a responsabilidade penal; “já que, para a
subsistência do dolo de homicídio, desnecessário se faz que o objecto seja determinado do
ponto de vista do agente; basta a vontade de matar uma pessoa”299.
Assim, como dispõe o n.º 3 do artigo 32 “O erro sobre a pessoa, a que se dirigir o facto
punível, agrava ou atenua a responsabilidade criminal, segundo as circunstâncias”. Será, por
exemplo, de A. pretender matar B, seu inimigo, mas por erro na identidade acaba matando D.,
sendo aplicáveis todas as circunstâncias agravantes ou atenuantes. Portanto, A será punido por
crime de homicídio voluntário.
Da mesma forma, é irrelevante o erro sobre a identidade ou qualidade da coisa.
b) De o objecto for qualitativamente diferente

O erro será relevante para atenuar a responsabilidade criminal quando haja uma
identidade diferente entre a real e a representada pelo agente. Neste caso, o agente responderá
pelo crime projectado, sob forma tentada, desde que a tentativa seja punível, em concurso com
o crime consumado por negligência, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes
pressupostos: i) que tenha havido negligência de facto relativamente ao crime consumado e ii)
e que seja de facto punível a título de negligência, pois esta só é punível nos casos
especificamente declarados na lei penal (n.º 2 do art. 4 e art. 136).
Exemplo, A. pretende matar o cão de B., que se encontrava num canino; só que
infelizmente, nessa altura estava no canino C., fazendo limpeza. A. acaba matando C. Portanto,
A. será punido por crime tentado de dano, se for punível e por homicídio involuntário
relativamente a C.

75.2.3. Erro na execução

Este erro é chamado também de “aberratio ictus” (Desvio do golpe). Nele ocorre o
seguinte: o agente não erra a respeito da identidade da sua vítima, como ocorre no erro sobre o
objecto, mas na execução do crime ocorrem circunstâncias desviadoras da acção, acabando o
agente por atingir pessoa ou coisa diferente da pretendida. Portanto, ocorre erro no uso dos
meios de execução ou erro movido por outras circunstâncias. Por exemplo, A. quer atingir
mortalmente B., seu inimigo, e apontando-o com a arma e quando já atira, inesperadamente na

299
BATTAGLINI, Giulio, Direito Penal, ob. cit., pp. 295-296.

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linha do tiro aparece C, que acaba sendo atingido mortalmente. Ou atinge C. por falta de mestria
ou pontaria.
Qual é a solução jurídica nesta situação?
O desvio do trajecto do tiro ou a aparição inesperada de C. faz com que o agente ofende
objecto não desejado.
Há aqui um único crime doloso, a divergência acidental não é relevante. Assim, o erro
na execução deverá ter igual solução ao erro sobre o objecto, quando haja identidade qualitativa
do objecto do crime. Assim, diremos:

(i) Havendo identidade jurídica entre o objecto atingido e o objecto projectado, por
exemplo, vida/vida, o agente deverá ser punido a título de dolo, sendo o erro irrelevante;

Não há razão para diferenciar com o erro sobre o objecto, quando haja identidade
jurídica do objecto do crime, tanto mais que o n.º 2 prescreve que “4. A circunstância designada
na alínea f) do número 1 do presente artigo não pode dirimir em caso algum a intenção
criminosa, não podendo por consequência ser por esse motivo classificado o crime como
meramente culposo”.
Contudo, é preciso sublinhar que se A. pretende matar seu inimigo B., mas por falha no
golpe (erro na execução) acaba matando seu pai, será ele punido por homicídio voluntário e
não por crime de parricídio, que é qualificado, pois neste caso atende-se ao dolo
individualizado do agente que se dirigia a B, seu inimigo, e não ao seu pai, pois é excluída a
circunstância agravante qualificativa relativa às relações de parentesco.

(ii) Não havendo identidade jurídica entre o objecto pretendido e o objecto realmente
atingido, a solução tem variado:
A doutrina maioritária tem entendido que o agente deverá responder pelo crime
projectado, como se de facto ele o tivesse consumado, a menos que daí resulte uma atenuação
em face dos princípios gerais, caso em que aquela solução deixará de ter justificação300.
Argumenta-se ainda que se A quer matar um cão e, por erro na execução, acaba atingindo uma
criança que ali brincava, A deve ser punido pelo crime doloso de dano e não por homicídio,
ainda que involuntário. Devido a esta solução menos conseguida da doutrina de Ferrer Correia,

300
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, ob. cit., pp. 404-408; SANTOS, M. Simas e HENRIQUES, M.
Leal, Noções ..., ob. cit., p. 120.

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o Professor Eduardo Correia introduziu uma restrição nos seguintes termos: “A ratio do n.º 6
e do § 3.º do art. 29.º reside em agravar – ou ao menos em impedir uma atenuação – a
responsabilidade do agente em virtude do erro; quando, portanto, as regras nele estabelecidas
conduzam a uma atenuação em face dos princípios gerais, cessa a sua razão de aplicação e
deverão entrar em funcionamento as regras gerais”301.
Mais extremada é a doutrina de VELOSO, pois este entende que “a aberratio actus não
tem nada que ver com o erro: não é um problema de dolo e de culpa, mas de imputação
objectiva. Trata-se como concurso ideal de tentativa e crime culposo (ou em dolo eventual),
seguindo as regras gerais do concurso. A tentativa, neste caso, é possível, uma vez que o objecto
está presente no contexto da acção: segue portanto o regime geral da tentativa, e é punível
sempre que o crime consumado seja punível …”302.
Para o nosso caso pátrio, esta doutrina soçobra com o posicionamento do Legislador. O
erro de execução é um verdadeiro erro e não se situa no problema do concurso ideal de crimes
(art. 32, n.º 1, alínea f)). Há um único crime, o consumado por erro.
A solução minoritária tende a defender a tese de que o erro na execução deve ser
submetido ao mesmo regime do erro sobre o objecto, a qual aderimos, porque consentânea.
A fundamentação da doutrina maioritária reside na individualização do dolo, tendo em
vista o objecto, enquanto a segunda doutrina minoritária assenta no dolo geral e não
individualizado.
Peguemos no exemplo de um agente que mata uma pessoa, por erro na execução,
querendo, na verdade, matar um cão.
Pela morte do cão, o agente cometeria o crime de dano punido de seis dias a dois meses
(art. 346) e pelo crime de homicídio involuntário com a pena de um mês a dois anos e multa
correspondente (art. 169). Assim, segundo a doutrina maioritária, o agente será punido pelo
crime projectado, que é de matar animal alheio.
Qual é a melhor solução na nossa óptica?
A melhor solução é a de submeter igualmente o regime de erro na execução ao erro
sobre o objecto. Assim, o agente responderá pelo crime de homicídio involuntário, nos termos
do artigo 169. Assim, terá cometido o crime de homicídio involuntário pela falta de destreza e
sua imperícia no manejamento da arma303.

301
CORREIA, Eduardo, Direito criminal, ob. cit., p. 407.
302
VELOSO, José António, Erro em Direito Penal, ob. cit., p. 43.
303
Mesma solução é adoptada pela nossa Professora BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, ob. cit., II, p.
177.

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Imaginemos agora que a pessoa compareceu inesperadamente no momento do tiro
crime, tomando-o no lugar do cão. Quid iuris?
Aqui a situação já é diversa.
Não há, na verdade, erro na execução, o que ocorre é que uma circunstância incidental,
estranha influi com a eficácia no processo de execução. Entendemos que neste caso, tal como
SANTORO304, no ordenamento jurídico italiano, assim o entende, que há ocorrência de um
caso fortuito, pois não há desvio causal, mas sim ocorre uma circunstância inesperada e assim
procedeu o agente sem intenção criminosa e sem culpa relativamente ao crime de homicídio.

75.2.4. Erro sobre o facto típico ou erro sobre o tipo e erro de proibição

Corresponde a uma representação errónea dos elementos do facto típico; ou uma


representação errada dos elementos constitutivos do crime. Quando alguém no cometimento
do crime desconhece uma circunstância pertencente ao tipo legal. Portanto o erro do tipo é o
lado inverso do dolo do tipo. Falta ao agente a imagem representativa exigível para o dolo do
tipo. Por exemplo, a pessoa é-lhe passada uma moeda falsa mas não sabe que é falsa; uma
pessoa que agride terceiro sem saber de que sofre de hemofilia e, vem a falecer por
sangramento.
É, na verdade, um erro de natureza ampla que abrange os restantes, daí que o erro sobre
a factualidade típica exclui o dolo, como princípio geral.
Diferente é o erro de proibição, pois este incide sobre a antijuridicidade do facto. O
agente sabe o que faz tipicamente, mas supõe erradamente que isso seja permitido.

75.2.5. Erro sobre os pressupostos das causas de justificação ou de


exculpação/justificação putativa

Haverá erro sobre os pressupostos objectivos de uma causa de justificação ou de


exculpação quando o agente do crime pensa, erroneamente, que se verificam os elementos
objectivos de uma causa de justificação, quando na realidade, se não verificam.
Este erro incide sobre a realidade dos factos de um acontecimento.
A e B., inimigos de longa data, sendo ambos portadores de arma de defesa pessoal.
Num belo dia e, por lapso, B. avista-se com A., só que A. faz o movimento para o bolso para

304
SANTORO, II Caso Fortuito, p. 30 apud BATTAGLINI, Giulio, Direito Penal, ob. cit., pp. 297.

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retirar o lenço, mas B. tira a arma e dispara contra A., ferindo-o gravemente, pois pensa que B.
estará a tirar a arma para o matar, pois este andou no passado com a esposa daquele.
Outro exemplo, um polícia pensa que A. está a ser assaltado à mão armada, enquanto
na verdade trata-se de uma encenação de um filme, só que o polícia dispara contra B. e o fere
gravemente, pois pensa erroneamente que está a exercer as suas funções de manutenção da
ordem pública e que agiu em defesa de terceiro.
No caso, A. representa de uma forma errónea a realidade objectiva e pensa que está em
legítima defesa própria, mas objectivamente, não está em legítima defesa, pois interpretou mal
um gesto do seu inimigo.
Igualmente o polícia agiu erroneamente, pensando estar a exercer as suas funções de
autoridade pública responsável pela manutenção da lei e ordem, mas interpretou mal a
encenação do filme, ou até não tinha disso conhecimento.
Ora, qual é a relevância disto para a responsabilidade criminal? Deverá A ou o polícia
ser punido? Se sim, a que título?
Pode A ou o polícia ver a sua responsabilidade excluída ou atenuada ou, se pelo
contrário, mantém-se a plenitude da ilicitude e da culpa?
São várias as teorias que procuram responder a este problema305:
Primeiro, é preciso esclarecer que o ponto de partida do debate doutrinário sobre o
assunto reside na controvérsia entre a teoria do dolo e a teoria da culpa em relação ao problema
da falta de consciência na ilicitude.
Segundo a teoria do dolo (teoria extremada), baseada na teoria causal da acção, o dolo
é integrado pela consciência da ilicitude e como o dolo é um factor psicológico, seus elementos
devem seguir a sua natureza. Desta forma, a inexistência real da consciência da ilicitude exclui
o dolo: pois para que exista dolo tem de haver a consciência da ilicitude do facto. O agente a
ter que ser punido, só o seria a título de negligência.
No que se refere à teoria da culpa, haverá que se distinguir entre a teoria estrita e a teoria
limitada da culpa. Ora, olhemos a estas subteorias:
a) A teoria rigorosa ou estrita da culpa. Esta defende que o erro sobre os
pressupostos de facto de uma causa de justificação não afasta o dolo. Mas o facto de o
agente, embora enganado, pensar que se está a defender é circunstância relevante para
a atenuação da sua responsabilidade (Note-se que é preciso que o erro seja evitável ou
não desculpável – censurável). Nesta teoria, o dolo não é afectado pelo facto de o agente

305
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, ob. cit., II, pp. 279-287.

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erroneamente pensar que está a exercer um direito, por exemplo, de defesa na legítima
defesa.
Na mesma teoria, sendo o erro inevitável, desculpável ou não censurável, porque o
agente não teve a liberdade suficiente de agir e não se pode concluir que agiu culposamente.
Assim, o erro é inevitável, “a pessoa não é censurável por ter interpretado mal a situação
objectiva, a pessoa agiu sem culpa, e como tal afinal não cometeu um crime, não porque não
houve um facto típico ou ilícito, mas porque não há um facto culposo”306.
Este pensamento provém das construções de Hans Welzel, pois ele incluiu o dolo no
tipo, retirando-o da culpabilidade.
b) A teoria limitada ou moderada da culpa. O erro sobre os pressupostos
de facto de uma causa de justificação funciona, por analogia, como um erro sobre o
tipo, excluindo o dolo.
Esta teoria tem sido defendida por Gûnter Stratenwerth. Para este autor nas situações
de erro sobre um pressuposto de facto de uma causa de justificação, o agente não tem um
comportamento característico de agente doloso, no plano da culpa, justificando-se, por isso
uma analogia com as situações de erro sobre a factualidade típica, excludente do dolo307.
c) Teoria dos elementos negativos do tipo de crime. O erro sobre os
pressupostos de facto das causas de justificação é, na medida em que incide sobre um
elemento negativo do tipo, um verdadeiro erro sobre o tipo, e, como tal, afasta o dolo308.
A legítima defesa, o estado de necessidade, o consentimento do ofendido, a acção
directa, etc. constituem elementos negativos do tipo de crime, pois para além de elementos
positivos dos tipos criminais (matar alguém e intenção de matar), é preciso que, por exemplo,
o homicídio não tenha sido cometido por força de direito de defesa (legítima defesa), porque
neste caso, excluir-se-ia a ilicitude do facto. Daí os pressupostos particulares das causas de
exclusão da ilicitude constituírem elementos negativos do tipo de crime.
A solução legal face ao problema. O artigo 32, n.º 1, alínea h) diz que não exime de
responsabilidade criminal: “o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de
exculpação”.

306
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, ob. cit., II, p. 280.
307
STRATENWERTH, Gûnter, Derecho Penal, Parte General, I, El Hecho Punible, Edersa Editoriales de
Derecho Reunidas, SA., 2.ª edição, 1976, p. 159-160. Ver também, PALMA, Maria Fernanda, Direito
Penal, Parte Geral, A teoria geral da infracção como teoria da decisão penal, AAFDL, 3.ª edição, 2017,
p. 411.
308
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito …, ob. cit., II, p. 284.

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Quando a Lei diz “não exime de responsabilidade criminal”, quer dizer que o agente,
apesar de ter agido em erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de
exculpação, não fica desonerado da responsabilidade criminal.
Então, o certo é o seguinte: Independentemente de ter intervido um erro sobre os
pressupostos das causas de justificação, o agente é punido.
O que resta saber é a que título? Se a título de dolo, negligência ou pelo contrário o dolo
é afastado.
Duas soluções, podemos avançar.
1.º - Se o agente podia ter evitado o erro (erro censurável), “através de uma cuidadosa
comprovação”309 da situação, é punido a título de dolo, sem prejuízo de uma atenuação geral e
não a título negligência, pois levaria a injustiças e à violação da lei (art. 32), que diz que “não
exime da responsabilidade criminal …” porque a negligência só é punida nos casos
expressamente previstos na lei e não sendo previsto, não haveria punição do agente.
2.º - Se o agente não podia ter evitado o erro, isto é, não for censurável o seu erro, este
não pode ser punido a título de dolo. Quer dizer o erro sobre os pressupostos das causas de
justificação exclui o dolo. Esta é a solução consagrada na alínea d) do n.º 2 do artigo 48 que
diz “São causas de exclusão da culpa: d) em geral, os que tiverem procedido sem intenção
criminosa e sem culpa”.

309
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, ob. cit., p. 399.

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