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2005
Universidade Federal do Paraná
Reitor
Carlos Augusto Moreira Júnior
Vice-Reitora
Maurício Dottori
Coordenadora do Curso de Música
Beatriz Ilari
ii
UFPR | Departamento de Artes
Anais do
Simpósio de Pesquisa
em Música 2005
iii
Comitê organizador do evento
Prof. Dr. Álvaro Carlini (coordenador)
Prof. Dr. Norton Dudeque
Prof. Dr. Rogério Budasz
Realização
Departamento de Artes da UFPR
Apoio
Fundação Araucária
UFPR
ISBN: 85–98826–05–7
1-Musicologia-Congressos-Brasil.2-Música-Pesquisa.3-Música Popular Brasileira.4-
Música-Composição.5-Música-Análise.
I.Dudeque, Norton, Álvaro Carlini, Rogério Budasz. II.Departamento de Artes da
Universidade Federal do Paraná.
CDD:780.01
iv
|sumário|
ix Apresentação
x Programação
v
131 Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo, André Luiz Gonçalves de Oliveira
186 Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda segundo o modelo de Luiz Tatit
Carlos G. González (UFPR)
vi
270 A influência da mensagem subliminar na música
Cristiano Steenbock (FAP–PR)
271 Algumas informações de interesse para o estudo da música paulista no século XVIII
em “Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo”
Dalton Martins Soares; Paulo Augusto Castagna (UNESP)
274 Uma concepção de relação entre arte e vida sob a ótica da filosofia de Friedrich
Nietzsche
Marcel Sluminsky; Fernando Nicknich (UFPR)
vii
276 Significação Musical: sons que vibram enquanto materialidade sonora e na
construção de significados e sentidos
Patrícia Wazlawick; Glauber Benetti Carvalho (FAP)
viii
|apresentação|
ix
| programação |
x
sábado, 5 de novembro de 2005
9:00h–9:20h Marina Beraldo Bastos; Acacio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
O desenvolvimento histórico da “música instrumental”, o “jazz
brasileiro”
9:20h–9:40h Cristiano Steenbock (FAP)
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico a portadores do HIV
9:40h–10:00h Maiara Felippe Moraes; Acacio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
Aspectos da Etnomusicologia, Musicologia e Música Popular
Brasileira
10:00h–10:20h recesso
10:20h–10:40h Marcus Vinícius Marvila das Neves (UFES)
Manifesto 1946: "O Banquete" do Grupo Música Viva
10:40h–11:00h Lilian Nakao Nakahodo (UFPR)
A influência do folclore regional nos acervos de música paranaense.
11:00h–11:20h Márcio Horning (UFPR)
Congadas da Lapa: As musicas de um folguedo na educação musical
11:20h–11:40h Carlos Gustavo G. González (UFPR)
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda, segundo o modelo
de Luiz Tatit
12:00h–14:00h recesso
14:00h–14:30h Maria Cristina Dignart; Anselmo Guerra de Almeida (UFG)
Musica eletroacústica e um novo escutar musical
14:30h–15:00h Maria Ignez Cruz Mello (UDESC)
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual
15:00h –15:30h Rael Bertarelli Gimenes Toffolo; André Luiz Gonçalves de Oliveira
(UEM)
Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer
15:30h–16:00h recesso
16:00h–16:30h Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC)
Educação Musical e Pedagogia
16–30h–17:00h Rita de Cássia Domingues dos Santos (ECA-USP)
O limiar da Pós-Modernidade na obra de Gilberto Mendes
17:00h–17:30h Clara Márcia de Freitas Piazzetta; Leomara Craveiro de Sá (UFG)
Musicalidade Clínica na Musicoterapia: construções a partir da
Teoria da Complexidade
17:30h–19:30h recesso
19:30h–21:00h Palestra com o etnomusicólogo canadense Francis Corpataux
xi
xii
Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena
Resumo: Esta comunicação tem como hipótese básica a idéia de que nas músicas
instrumentais indígenas pode estar vigente um caráter poético especial que se oculta,
para nós, no que tomamos por mera repetitividade. Nesta direção, comentarei o
repertório de flautas “sagradas” dos índios Wauja, habitantes do alto Xingu, no Brasil
Central, baseando-me em minha tese de doutorado. Discutirei a questão de uma
poética musical aplicada aqui à esfera motívica de um repertório instrumental,
comentando a aproximação entre plano melódico e fala. Por fim, pretendo sugerir que
outras músicas instrumentais indígenas sejam examinadas com atenção especial ao
aspecto de sua repetitividade e sua projeção temporal tanto no nível motívico quanto
em outros níveis de escala mais larga. Palavras-chave: música indígena, repetição,
poética musical.
Pode-se notar, nos relatos de viajantes que observaram rituais musicais ameríndios a partir
do século XVI, que um dos pontos mais salientados é a convicção sobre a repetitividade das
músicas destes povos. Séculos após a invasão da América do Sul pelos europeus, tal
interpretação persiste: toma-se, ainda hoje, as músicas indígenas por repetitivas. O fato é
que esta qualidade sempre ganha, no discurso do senso comum, um caráter de negativo
atribuído a uma falta: a ausência de elaboração, de cultivo, de sofisticação, enfim, a uma
pobreza. Pode-se argumentar que o caráter negativo atribuído à repetição na música
indígena tem suas raízes em uma visão evolucionista sobre estas sociedades e suas músicas,
apontando para um tipo de incapacidade aborígine de controle da forma musical e
revelando uma espécie encurtamento de seu pensamento musical que impede sua expansão
para além do meramente repetitivo. Naturalmente, o espelho destas idéias é uma concepção
da grandiosidade formal da música ocidental. A música européia, em seu desenvolvimento
histórico, é entendida como uma evolução que se inicia no canto gregoriano e se estende até
o dodecafonismo (Barraud, 1975; Leibowitz, 1975). Como resultante de um geist
hegeliano, a música traça este destino monumental, acima das idiossincrasias locais (cf. a
idéia de autonomia musical). Diante deste paradigma, a música indígena (bem como boa
parte da música popular)1 é compreendida como um estágio primitivo que, congelado no
tempo, é repetitivo e pobre. Entretanto, a convicção da repetitividade como característica
negativa das músicas ameríndias parece colocar-se em suspensão a julgar pelos resultados
de estudos recentes dedicados às músicas indígenas que se propuseram a transcrever e
analisar o texto musical de repertórios musicais indígenas (Bastos, 1990; Beaudet, 1997;
Mello, 2005a; Montardo, 2002; Piedade, 2004).
Para além de uma negatividade, primeiramente é necessário pensar sobre o que é repetição:
um tema com amplo interesse filosófico, relacionado à ontologia, pois se trata de
compreender a essência do “ser o mesmo”, ser uma cópia de um original que, por sua vez,
é. Neste sentido, desde há muito tempo, na filosofia, se discute a questão da repetição de
forma entrelaçada à da representação e à da diferença.2 No campo das artes, a repetitividade
é tomada como um fator central na produção de sentido estético: de fato, trata-se de um
problema da filosofia da arte (ver Kivy, 1993: 329).
Além de constituir um problema filosófico, a repetição musical é uma qualidade física do
som percebida pela audição e, portanto, entra em jogo também a questão da percepção e da
1
Ver Hamm (1995) e Middleton (1990).
2
Por exemplo, Deleuze discute este ponto desde Platão e Aristóteles, mostrando que a repetição é um
poder da diferença, capaz de condensar singularidades, acelerar ou retardar o tempo, alterar o espaço
(Deleuze, 1968). Recentemente, o pensamento deste filósofo tem sido bastante aplicado no campo da
música (ver Buchanan & Swiboda, 2004; ver também o estudo de Ferraz, 1998, sobre música
contemporânea).
2 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
cognição, bem como a profundidade das diferenças culturais, a pergunta sobre diferentes
formas de ouvir.3
Minha compreensão da repetitividade na música Wauja me leva a pensar que nesta música
há uma poética musical que trata da confecção da diferença, dada fundamentalmente do
eixo do tempo e da existência. Tratarei aqui da repetição musical como um princípio do
pensamento musical que é posto em operação em vários níveis formais e que reflete uma
visão de mundo.
3
Sobre a repetição musical do ponto de vista psicológico e cognitivo, ver Ockelfort (2004). Sobre
diferentes formas de ouvir, ver Mello & Piedade (2005). Note-se que diferentes formas de ouvir estão
em jogo no ato da transcrição musical (ver Mello, 2005b).
4
Para poupar este artigo de uma introdução à cultura e pensamento Wauja, remeto o leitor para minha
tese para contextualizar o que será dito (Piedade, 2004 – versão on-line disponível em
http://www.musa.ufsc.br).
5
Ver o trabalho comparativo entre Amazônia e Melanésia Gregor & Tuzin (2001).
Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena 3
Há muitos estudos antropológicos de canções nativas a partir da sua dimensão poética (por
exemplo, Firth & Mclean, 1991), mas o que estou chamando de poética musical aqui é algo
um pouco diferente: lembrando de que se trata aqui de uma música instrumental, portanto
sem poesia. Como na música Kamayurá, o processo de significação musical na música de
kawoká é basicamente temático,6 igualmente caracterizando-se por uma “construção de um
espaço-tempo memorial, altamente redundante, onde a repetição é o traço fundamental”
(Bastos, 1990, p. 519). A construção temática (a idéia musical) e a repetição, em suas várias
formas, são os motores do jogo motívico e do processo de significação, operações do
pensamento musical que constituem a poética da música kawoká. Esta poética musical se
aproxima do sentido dado por Jakobson ao termo “poética”, especialmente no que se refere
à questão do paralelismo.7 Lembro que, já no período final do renascimento e durante todo
o barroco, a idéia de uma poética musical esteve em voga na Europa,8 e que o que quero
dizer com poética recupera esta mesma direção. A questão de fundo é que na poética
musical a repetição não é uma redundância (nos termos de uma teoria da informação),9 mas
sim um princípio racional originário, presente não apenas nos discursos artísticos, mas
também nas filosofias e cosmologias nativas.
Quando se faz uma analogia entre música e linguagem, geralmente a poesia ocupa sempre
um lugar especial, talvez porque ambas as artes possuam em comum a possibilidade infinita
de evocação de certos elementos por outros (Ruwet, s/d). A função poética, que é
centralizada na mensagem e que é a função dominante na poesia (cf. Jakobson, 1995),
opera de forma correlata na música de kawoká, que é centralizada no texto musical. O
estabelecimento de relações de equivalência sobre o eixo sintagmático, resultando na
repetição regular de unidades equivalentes, princípio constitutivo da linguagem poética, é
igualmente constitutivo do jogo motívico: estas relações de equivalência estão na base das
operações de repetição e variação musical. Pode-se dizer que há, na música de kawoká, uma
projeção do nível motívico-frásico no plano sintático, ou seja, os motivos e frases são
combinados de tal forma que sua repetitividade e variabilidade configuram uma poética.
Portanto, o próprio jogo motívico constitui a poética da música de kawoká.
Por um lado, o paralelismo envolve o aspecto sônico da linguagem: há aqui um princípio
binário de oposição dos níveis de expressão fonêmico, sintático e semântico, por exemplo,
nas equivalências sonoras projetadas na seqüência, como as rimas. O paralelismo sonoro
envolve a repetição de sintagmas completos da estrutura fônica. Mas, por outro lado, e é o
que nos interessa mais aqui, há aquilo que Jakobson chamou de “paralelismo gramatical”, a
repetição das estruturas sintáticas. Este autor generalizou este paralelismo gramatical em
termos de um paralelismo “canônico” para pensar as variadas formas como este princípio
aparece na sintaxe das diversas tradições de arte oral (ver Fox, 1977). Para Jakobson,
enquanto a repetição envolve apenas identidade, o paralelismo envolve simultaneamente
identidade e diferença (op.cit: 73), daí seu alcance para além da linguagem: o paralelismo
está presente na música, dança e cinema, artes que utilizam a repetição, combinação,
justaposição de imagens, sons e gestos como recurso expressivo (Jakobson, 1970).
Estudos antropológicos sobre as artes verbais têm mostrado a importância do paralelismo
nas narrativas poéticas (ver Tedlock, 1983; Hymes, 1981; Sherzer & Woodbury, 1987).
Para alguns autores, a linguagem é inerentemente poética ela mesma, pois influencia a
imaginação de modo a possibilitar a inovação e a reordenação dos itens culturais e
6
Conforme mostra Bastos, seguindo a categoria ip_, “tema musical” (Bastos, 1999:153).
7
Para uma visão geral da questão do paralelismo em Jakobson, especialmente pelo seu interesse
antropológico, ver Fox (1977).
8
Ver o tratado de Burmeister, do início do século XVII (Burmeister, 1993 [1606]). Há uma vasta
literatura sobre a retórica musical e sua relação com a teoria dos afetos: ver Chasin (2004), Lópes
Cano (2000) e Palisca (1993).
9
Sobre a importância da repetição na música, ver Ruwet (1972).
4 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
lingüísticos (Friedrich, 1986). A linguagem ela mesma não é poética: a poética é um modo
da linguagem que a deforma segundo recombinações organizadas culturalmente. Esta
interferência na seqüencialidade narrativa da fala da linguagem é tal que extrapola e
extravasa a própria linguagem, subsistindo naquilo que se pode chamar de “essência da
arte”, no “fundamento da música” e, como afirma Lévi-Strauss, no pensamento mítico
(principalmente no sentido da bricolagem, cf. Lévi-Strauss, 1989).
No âmbito das terras baixas da América do Sul , a região do Alto Xingu é privilegiada nesta
área, devido aos estudos da arte verbal de dois povos de língua carib: os Kalapalo (Basso,
1985, 1987, 1995) e os Kuikúro (Franchetto, 1986, 2004).10 Parece-me interessante colocar
em diálogo estes estudos e as investigações sobre a música indígena, onde o paralelismo
gramático-musical é tão imperativo, e tem sido estudado sob a ótica da musicologia
(Coelho, 2003; Bastos, 1990; Piedade, 1997; entre outros).
Lembrando que o que importa aqui é o paralelismo gramatical, pode-se dizer que a poética
da música kawoká instaura uma relação entre regiões temáticas, que me referi como temas
“A” e “B” (ver Piedade, 2004). No tema/região “B” há sempre uma elevação de alturas
musicais, uma exploração da região mais aguda das flautas (em termos de performance, a
região dos orifícios destapados). Pode-se interpretar a dialética que aqui se instaura a partir
das concepções nativas de agudo e grave enquanto longe e perto, levando em conta o
estudo de Mello (1999). Esta autora mostra que, diferentemente do nexo ocidental, para o
pensamento musical Wauja o som agudo, magatukupai, é entendido como distante (longe),
enquanto o grave, autukupai, é entendido como próximo (perto). Neste sentido, a elevação
do canto para a região mais aguda “B” é uma tomada de distância em relação ao “A”. Na
poética musical kawoká, há um jogo de sair e voltar que, na dimensão espacial, corresponde
a ir longe e voltar. As formas como “B” engloba “A” podem expressar, a partir das
categorias Wauja, um distante que contêm o próximo.11
O jogo motívico é o paralelismo no plano temático da música de kawoká: as reiterações,
espécies de rimas reduzidas, são variações que lembram as estruturas micro-paralelísticas
nos versos e estrofes, e os temas “A” e “B” são seções maiores que abrigam a enunciação
da proposição inicial e o jogo variacional e transformativo dentro de seus limites,
remetendo à idéia de “cenas” (cf. Hymes, 1981), e juntamente com o jogo motívico entre as
peças dentro da suíte (que seria o bloco), envolvem um macro-paralelismo musical.12
Quanto à repetição, aqui em sua acepção mais comum, ou seja, de duplicação, noto que
estruturas duplicadas são muito comuns em toda a música xinguana, como no repertório da
música vocal do ritual de kaumai (mais conhecido como kuarúp), onde dois cantores
duplicam seus cantos, ou nos cantos dos entes invisíveis, cujas vozes só podem ser
reproduzidas por duas pessoas em estilo alternante (são os gritos dos espíritos). A
duplicação de um enunciado, ou seja, sua repetição integral imediata, constitui uma
operação que é fundadora da música e da musicalidade tanto quanto da poética (Ruwet,
1972).
10
Estou mencionando aqui apenas algumas obras mais especializadas na temática da arte verbal e
estudos das narrativas poéticas nativas. Na etnografia xinguana e das terras baixas da América do Sul
em geral, há muitas obras que, em algum momento, investigam estes aspectos. Dentre elas, o estudo
das letras dos cantos do Yawari (Bastos & Bastos, 1995), e dos cantos maï marakã dos Araweté
(Castro, 1986), e muitas outras. Para um estudo nesta temática voltado para as narrativas xamânicas,
aliás, trabalhando a reiteração, repetição e justaposição de imagens nas narrativas xamânicas, ver
Cesarino (2003). Para um estudo sobre a conexão da narratividade poética com o mito, ver Langdon
(1999).
11
Sobre o nexo espacial das categorias musicais Wauja, ver Mello & Piedade (2005).
12
Ver Franchetto (2004) para a utilização do paralelismo nestas categorias analíticas (cena, bloco, e
outras) em sua análise de narrativas kuikúro.
Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena 5
Pude observar vários rituais de flautas kawoká entre os Wauja, e tentei mostrar, em minha
tese, através da análise do nível motívico destas peças musicais, que há nesta música um
pensamento sobre a repetição, a variação e a diferença. Utilizo a noção de “jogo” para falar
do jogo dos motivos que se estabelece neste repertório, mas com isto não pretendo apontar
para um aspecto de permeabilidade ou indeterminação, mas sim para o caráter regulamentar
do jogo, para o sentido das regras do jogo.
O jogo dos motivos na música kawoká é uma poética musical que trata da confecção da
diferença, dada fundamentalmente do eixo do tempo e da existência, ou seja, na
temporalidade. Os diferentes sistemas musicais do mundo resultam não apenas de poéticas
diversas, mas de diferentes formas de perceber a temporalidade. O pensamento musical é
uma expressão da cosmologia posta em ação na música, revelando concepções fundantes da
filosofia nativa no âmbito da temporalidade. Portanto, o sistema musical tem também um
caráter existencial, pois reporta a formas de temporalidade concebendo a finitude.
Neste sentido, a música kawoká é um exemplo forte de como a temporalidade nativa
instaura possibilidades de recortar e recombinar as estruturas temporais de forma poética.
Pode-se dizer que a música pronuncia formas da temporalidade, a partir de uma perspectiva
espacial. Quando ouvia as flautas kawoká à noite, na aldeia, ouvia os instrumentos
investidos de um máximo de significado, não apenas para mim, mas certamente para os
Wauja. Para os flautistas, o espírito presentificado, ele mesmo é que estava ali falando, a
música é sua fala, kawokagatakoja, “fala do kawoká”. O espírito apapaatai se pronuncia
pelo jogo dos motivos, entrecortando o tempo de forma poética. Esta qualidade do som
musical, entrelaçado originariamente no contexto do panorama sonoro onde foi concebido e
construído, aponta para a importância do que foi chamado de “acustemologia” (ver Feld,
1997). Neste sentido, ouvir uma gravação da música (ex-ótica) é como perceber uma
filmagem poética do espaço que revela as formas nativas da temporalidade. Trata-se da
experiência de “ouvir como o outro ouve o espaço e expressa o tempo”.13
Para os Wauja, a palavra kãi quer dizer “som”, qualquer fenômeno sonoro. Entretanto,
quando se trata dos sons musicais, não se fala kãi, mas sim onaapa, “canção”. O termo
pitsana, que traduzi por “música-timbre”, e watanapitsana “música-timbre aerofônica”,
expressam músicas entendidas como imagens acústicas de vozes de animais e outros entes.
Lembro que pitsana e watanapitsana informam que se trata de música instrumental, que é
sempre aerofônica, enquanto onaapa é usado para música instrumental ou vocal. Pitsana e
watanapitsana, portanto, são categorias internas de onaapa, a palavra nativa para música,
entendendo-se que, para os Wauja, música é canção: o lexema onaapa tem sua raiz no
verbo apai, “cantar”. Entretanto, o sentido nativo de cantar não aponta apenas para “entoar
canções”, mas para criar um enunciado musical, produzir um discurso musical, pronunciar
uma frase musical, uma idéia. O cerne da música de kawoká, aquilo que a torna música, é o
“canto” do kawokatopá, o flautista mestre que canta, apai, enquanto que os acompanhantes
apenas “sopram”, ejekepei. Pronunciar uma idéia não é apenas um fazer sem fundamento
ou conseqüências: uma idéia é uma possibilidade, uma antecipação do pensamento.14
Diante destas descobertas sobre a música de flautas kawoká, que podem ser em grande
parte generalizadas para o contexto xinguano, cabe a pergunta: será que nas músicas
instrumentais indígenas vige um caráter poético que se oculta no que ouvimos como mera
repetitividade? O que se pode dizer da repetição na música ameríndia?
13
Da mesma forma que na música, uma pintura de uma época do passado foi produzida segundo uma
visão de mundo ancorada em um contexto de origem (Baxandall, 1991), e, portanto, feita para ser
vista por um olhar que já não existe, que nos é apenas aproximável.
14
Estou pensando aqui simultaneamente no conceito de poesia na Poética de Aristóteles, em Dewey
(Logic II), para quem idéia, mais do que representação mental, marca uma possibilidade, antecipa o
real, e em Attali (1993).
6 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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Acácio Tadeu de Camargo Piedade é Doutor e Mestre em Antropologia (UFSC),
Bacharel em Música (UNICAMP); professor e pesquisador nas áreas de
musicologia/etnomusicologia e composição/arranjo no Departamento de Música da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); membro dos grupos de pesquisa
MUSICS (Música, Cultura e Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte, Cultura e
Sociedade na América Latina e Caribe)-UFSC/CNPq; membro do International
Council for Traditional Music (ICTM), da Associação Brasileira de Antropologia
(ABA), da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM)
e da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET).
A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa no estudo das
1
Standard – entre os músicos de jazz, standard é uma peça que seria parte do repertório básico de
todo improvisador. Uma composição que obrigatoriamente “todos” devem saber.
2
Foram conduzidas entrevistas com as saxofonistas Juarez Araújo (1930-2003), Nivaldo Ornellas
(1941- ), Widor Santiago (1961- ), Eduardo Neves (1968- ) e Marcelo Martins (1969- ).
10 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
história, uma trajetória rica que possivelmente, ele jamais havia tido a oportunidade de
contar. Mesmo não sendo um dos focos da minha pesquisa, deixei ele contar a sua vida
musical. Alguns meses depois, Juarez Araújo viria a falecer e a minha entrevista, conduzida
para a minha tese, viria a ser o seu último depoimento. Nesse instante, decidi que ampliaria
o foco das entrevistas para tentar, mesmo dentro de uma tese sobre as práticas musicais,
tentar contar um pouco das vidas e das carreiras destes excelentes músicos. Em suma, uma
iniciativa de registrar, antes que se tornasse tarde demais, uma parte da memória musical da
minha cidade.
Tradição Oral
A cultura européia se desenvolveu durante grande período de nossa história se baseando em
formas de escrita onde até a escrita musical pode ser incluída. Se hoje estudamos Bach,
Mozart, Beethoven e tantos outros mestres é porque a obra construída por eles foi, dentro
dos padrões disponíveis a cada um, registrada em forma de partituras que foram passando
de geração para geração.
Outras culturas não tinham essa linguagem como ponto de comunicação ou registro e as
heranças culturais eram transmitidas de outras maneiras, utilizando-se basicamente da via
de transmissão oral. Na música da América do Norte, assim como na música da América do
Sul, manifestações musicais que não fossem oriundas das tradições européias e, por isso
mesmo, também não eram grafadas em forma de partitura, sem que isso significasse dizer
que não eram aprendidas pelos mais jovens. Em alguns casos, a música, na visão de alguns,
chegou-se a se tornar quase a essência dessa cultura. Ben Sidran (1971) na introdução de
seu livro Black Talk defende que nos Estados Unidos “a música não é apenas um reflexo
dos valores da cultura negra mas, de uma certa forma, a base sobre a qual essa cultura é
construída”(p.XXI).3 A música se tornou a verdadeira forma de arte de uma camada de
“novos” americanos impossibilitados de se expressarem de qualquer outra forma. Essa
música não só se criou fora das bases tradicionais da música ocidental – partituras,
conservatórios, etc – como se transformou em uma forma de arte complexa graças à
tradição da cultura oral:
Pode-se dizer com certo grau de precisão que a cultura oral foi, por natureza,
uma cultura “underground” no contexto cultural da América letrada; onde
simplesmente ser negro era razão suficiente para se sentir inconformado. Cada
membro da cultura oral, segundo os padrões letrados, era um elemento de
desvio, engajado num comportamento que durante a Era do Jazz (“jazz age”)
era sem dúvida alguma contrário às normas aceitáveis (Sidran, Black Talk, p.
80).4
O contrabaixista e compositor do jazz Charles Mingus, em sua biografia Beneath the
Underdog conta como os negros aprendiam um instrumento durante a primeira metade do
século passado:
Em Watts, professores itinerantes – nem sempre habilidosos ou bem educados
musicalmente – viajavam de porta em porta persuadindo famílias de cor a
comprar lições para as suas crianças. O Sr. Arson era um desses. Por alguns
3
Yet I contend that music is not only a reflection of the values of black culture but, to some extent, the
basis upon which is built.” (Sidan, Black Talk. p..xxi)
4
It could be said with a certain amount of accuracy that the oral culture was, by nature, an
underground culture in the context of literate America; that simply being a Negro in America was
grounds for nonconformity. Each member of culture was, in terms of the criteria of the literate
culture, a “deviant,’ engaging in behavior that reevaluated as it was during the “Jazz Age” was
nonetheless contrary to the accepted form. (Sidan, Black Talk. p.80)
A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa 11
5
In Watts, itinerant teachers – not always skilful or well educated in music themselves – traveled
from door to door persuading colored families to buy lessons for their children. Mr. Arson was one of
them, out of the few bucks he collected weekly from each of many black families whose money paid
his bill in a “white only” section of LA.(Mingus, Beneath the Underdog. p. 14)
6
Go get yourself a bass and we’ll put in our Union swing band. Buddy told my boy. (…) That’s right.
You’re black. You will never make it in classical music how good you are. You want to play, you gotta
play a Negro instrument. (…) (Mingus, Beneath the Underdog. p. 41)
12 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
7
Toninho Horta (1948-) – guitarrista, violonista e compositor mineiro dos mais influentes na música
brasileira.
A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa 13
Entrevistas
Desde do meu primeiro esboço do projeto que viria a se transformar na minha tese de
doutorado concluí que teria de fazer entrevistas para colher dados a respeito dos
improvisadores e suas influências pois não havia disponível nenhuma bibliografia a respeito
dos músicos, apenas alguns métodos de ensino editados pelo mercado editorial e encartes
de CDs. Muitos desses músicos, verdadeiros artistas com grande domínio instrumental
estavam à margem de qualquer registro impresso. Haviam, é claro, gravações onde eles
mostravam a sua habilidade mas isso apenas despertava mais curiosidade a respeito da
formação musical e experiência profissional.
Uma vez iniciado o doutorado comecei as entrevistas pelo saxofonista Juarez Araújo,
certamente por ele ser o mais velho do grupo selecionado para as entrevistas. Encontrei
com Juarez ao final de uma apresentação sua na loja de discos Modern Sound em
Copacabana, bairro na Zona Sul do Rio de Janeiro. A conversa fluiu com suavidade e
Juarez se emocionou ao contar a sua história e falar das pessoas que haviam sido
importantes na sua carreira. Mesmo sendo a história musical de Juarez além do escopo da
minha tese, deixei ele discorrer sobre esses fatos pensando inicialmente que esse material
seria descartado por mim quando estivesse trabalhando na edição final da entrevista.
Infelizmente algumas semanas após o nosso encontro Juarez viria a falecer e a minha
entrevista acabaria por ser o seu último depoimento.
Por ocasião de um tributo a Juarez fui contatado por uma das organizadoras que me pediu
uma copia escrita da entrevista pois havia sido além do último depoimento de Juarez, esse
era um onde ele contava a sua vida. Esse fato me fez pensar que possivelmente eu havia,
por caminhos do acaso, me deparado com uma questão que talvez fosse maior que a minha
tese: a questão histórica. E mesmo a minha tese sendo sobre a prática musical, dentro do
área de práticas interpretativas, eu deveria realizar as entrevistas tendo em pauta também a
questão documental.
Para entrevistar esse músicos eu recorri a um expediente que foi de extrema importância:
ser um insider, ou seja, ser também um músico com atuação profissional e portanto, estar
em condições de entender os jargões utilizados entre os músicos. Não ser tratado como um
estranho ao meio possibilitou um conversa franca onde a confiança do entrevistado foi
fundamental para o resultado final. Como obter essa confiança é algo que o pesquisador
deve refletir muito antes de começar qualquer entrevista sobre o risco de ser tratado como
um repórter ou algo similar. Muitas vezes o entrevistado pode não entender bem sobre o
que o pesquisador está trabalhando mas se há confiança do entrevistado o pesquisador pode
direcionar a entrevista sem que ocorra incertezas quanto a seus objetivos por parte de quem
está sendo entrevistado.
As diferenças que existem entre uma entrevista com o intuito de se colher material de
pesquisa ou uma entrevista dada a um repórter de jornal ou revista podem não ficar muito
claras pois as questões formuladas podem parecer similares e cabe ao pesquisador deixar
claro que essa entrevista não será publicada em poucos dias e que respostas como “lanço
semana que vem o meu novo CD e conto com os apoios…” não tem relevância. Ainda
assim é uma questão delicada pois todo artista está sempre preparado para divulgar o seu
trabalho sempre que há um oportunidade, principalmente aqueles que não despertam
atenção dos principais meios de comunicação. Não ferir sensibilidades e simultaneamente
manter o foco durante a entrevista pode ser a garantia de um resultado satisfatório.
14 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Conclusão
As entrevistas fazem uma ponte entre a tradição oral e o estudo teórico pois permitem que
se transcreva, edite e avalie o material obtido dentro do universo do assunto a ser
pesquisado. Aproximar o mundo acadêmico das práticas musicais que se processam, na
maioria das vezes, de forma oral em círculos artísticos distantes ou arredios ao estudo
institucionalizado é uma necessidade e talvez, uma função do pesquisador dos tempos
atuais quando observamos uma valorização dos processos criativos ditos populares.
Contar a história desses músicos que fazem a música não-erudita no nosso país é ajudar a
entender a música do nosso tempo que se desenvolve, na maioria dos casos, ainda fora dos
centro acadêmicos e em muitas vertentes fora das mídias principais. Essas manifestações
culturais que se desenvolveram pela tradição oral possivelmente devem ser abordadas
dentro dos mesmos parâmetros para depois, podermos estuda-las em toda a sua
complexidade.
Referências bibliográficas
FIGUEIREDO, Afonso Claudio. “Improvisação no Saxofone: A Prática da Improvisação Melódica na
Música Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX”. Tese de doutorado.
UNIRIO, 2005.
SIDRAN, Ben. Black Talk. Da Capo Press, New York, USA:, 1991.
MINGUS, Charles. Beneath the Underdog. Payback Press, Edinburgh EH1 ITE, 2000
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora por Modulação de Freqüência
Introdução
Utilizando o programa MUSIC V, criado por Max Mathews, John Chowning desenvolveu o
que chamou-se Síntese Sonora por Modulação de Freqüência - ou simplesmente: Síntese
FM - por meio de configurações específicas dos dispositivos espectrais.
Dispositivos espectrais são algoritmos que modelam o funcionamento dos
elementos básicos de hardware, que combinados formam os instrumentos musicais
construídos para diversos tipos de síntese. Os dispositivos comumente encontrados nas
diferentes técnicas são (Mathews et al, 1969):
∑ Oscilador a tabela - gera formas de onda.
∑ Gerador de envoltórias - controla a variação de amplitude de osciladores.
∑ Gerador de ruídos - gera bandas de freqüências (geradores de envoltórias e de
ruídos são tipos particulares de oscilador a tabela).
∑ Multiplicador - multiplica as amplitudes de dois sinais.
∑ Somador - acumula um sinal com outros produzidos no mesmo intervalo de
tempo.
∑ Filtros digitais - selecionam a passagem de determinadas faixas de freqüências.
Na seção seguinte descrevemos a síntese FM, partindo da configuração FM simples,
passando pelas diferentes configurações complexas: portadoras paralelas, modulantes
independentes; portadoras paralelas, uma modulante; modulantes paralelas e modulantes
em série. Em todos os casos são apresentados os conteúdos espectrais gerados, nos
parâmetros freqüência e amplitude. Ao final, apontamos caminhos para implementações no
contexto da contemporaneidade.
Configuração FM simples
O instrumento FM básico consiste em dois osciladores senoidais. Um sinal de freqüência
constante c (chamada portadora) somado à saida do oscilador modulante com freqüência
m, e o resultado é aplicado à entrada de freqüência do oscilador da portadora. Se a
amplitude do sinal modulante for zero, não há modulação e a saída do oscilador da
portadora será simplesmente uma senóide com freqüência c. Quando a modulação ocorre,
o sinal proveniente do oscilador modulante varia a freqüência portadora proporcionalmente
à amplitude do sinal do oscilador modulante, como podemos ver representado graficamente
na Fig. 2.1:
m = freq. moduladora
c = freq. portadora
d = amplitude da moduladora
a = amplitude da portadora
Freqüências: c ± k.m ,
[k = 0, 1, 2, 3...n onde n = I + 2]
… c - 3m c - 2m c–m c c+m c + 2m c + 3m …
2 c - 2m +J2(I) c +2 m J2(I)
3 c - 3m -J3(I) c + 3m J3(I)
4 c - 4m +J4(I) c + 4m J4(I)
… … … … …
componente negativa inverte sua fase, ou seja, é equivalente a uma componente positiva
com fase oposta.
Exemplo: c = 400 m = 200 d = 400 I = d/m = 2
Com apenas dois osciladores senoidais é possível produzir um espectro com tal riqueza,
que raramente é necessário procurar modulação com ondas complexas. De fato, quando
uma forma de onda com um grande número de componentes modula outra, o espectro
resultante pode ser tão denso que produza um som áspero ou indefinido.
Configuração FM complexa
Na configuração FM complexa tem-se duas ou mais portadoras e/ou duas ou mais
modulantes que podem ser dispostas em série ou paralelo. (Almeida 1992)
(i) Onda portadora complexa
(i.1) - portadoras paralelas, modulantes independentes: é a forma mais simples de
modulação complexa, que consiste na soma dos respectivos espectros. Considera-se a saída
de cada portadora como uma configuração FM simples, somando-se o conjunto.
(i.2) - portadoras paralelas, uma modulante: aplica-se a mesma freqüência e o mesmo
índice de modulação a elas. Comparando-se com a configuração anterior, verifica-se que os
dois algoritmos oferecem possibilidades diferentes: enquanto economizam-se operadores,
perde-se a opção de ter diferentes índices de modulação.
amplitudes freqüências
n
Jki(Ii) S ci ± ki.mi
1
1 2 3
n
Jk(I) S ci ± ki.m
1
1 2 3
1 2 3
Jk1(I1).Jk2(I2).Jk3(I3) c ± k1.m1±k2.m2± k3.m3
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 23
1 2 3 n n n
… P Jki(Ii) c ± S ki.mi
1 1
amplitudes freqüências
1
24 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
n
Jk1(I1).Jk2(k1.I2) … Jkn(k1.k2. … .kn- c ± S ki.mi
n 1.In) 1
…
Implementação
Ao contrário de outros métodos clássicos de síntese, como a síntese aditiva e a síntese
subtrativa, a síntese FM teve sua origem no domínio digital. Apresentamos uma breve
introdução à implementação desse método em dois ambientes de programação bem
distintos: usando o programa Csound e o ambiente de programação MAX-MSP.
onde:
xamp = amplitude
kcps* kcar = freq. portadora
kcps * kmod = freq. moduladora
kndx = índice de modulação
ifn = identificação da função da forma de onda
iphs = fase inicial
Entretanto, para nossos propósitos, torna-se mais didático usarmos aqui a conexão de
unidades básicas de osciladores, método que nos será útil para implementarmos também as
configurações complexas.
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 25
; configuração FM simples:
amod oscili indice*ifq2, ifq2, 1 ; moduladora
a1 oscili iamp, ifq1+amod, 1 ; portadora
out a1
Assim como idealizado em MUSIC V, Csound utiliza a metáfora da orquestra para o
arquivo textoem que estrutura as funções em forma de intrumentos virtuais, assim como
utiliza a metáfora do score para o arquivo texto onde estão registrados numericamente
todos os parâmetros musicais. Segundo esse método, todos os parâmetros estão pré-fixados,
de tal forma que o programa crie o arquivo sonoro a partir da renderização pelo cruzamento
dos arquivos ‘.ORC’ e ‘.SCO’ (extensões que identificam os arquivos ORChestra e o
SCOre) gerando o arquivo “.AIF” ou “.WAV”, de acordo com as diversas plataformas em
que Csound é oferecido.1
1
Csound é um programa freeware (www.csounds.com) e, por ser código aberto, conta com
desenvolvedores em toda a comunidade acadêmica mundial. Uma introdução aos métodos clássicos
de síntese implementados em Csound, incluindo síntese FM pode ser encontrada em (Fishman, 2000),
no livro Csound Book. No mesmo livro, encontramos um capítulo específico para SínteseFM
(Pinkston, 2000).
2
Diferentemente de Csound, MAX-MSP é um programa comercializado (www.cycling97.com).
Entretanto, seu criador Miller Puckette desenvolveu uma versão freeware, chamado Pure Data (PD),
disponível em (www.puredata.org), também multiplataforma.
26 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Conclusões
O método de síntese por modulação de freqüência causou grande impacto na década de
1970, primeiramente na comunidade acadêmica que trabalhava com computer music, pelo
fato de proporcionar uma economia de tempo de processamento nos computadores da
época. Afinal, com poucos dispositivos espectrais era possível gerar sons com grande
complexidade espectral. Em seguida, surgiu o interesse da indústria, que lançou no mercado
os primeiros sintetizadores com base na síntese FM. Se, por um lado, houve o grande
mérito em popularizar e tornar economicamente acessível o instrumento sintetizador, por
outro, consolidou-se um perfil de usuário dependente dos timbres acessíveis nos presets da
máquina. A interface disponível para programação de novos timbres era complicada e
limitada a um número restrito de parâmetros.
Atualmente, a motivação passa a ser outra. Ao retomarmos os experimentos desenvolvidos
em MUSIC V (Mathews et al, 1969), sobretudo os registrados por John Chowning (1973,
1986 e 1969), agora transcritos em Csound (Vercoe, 1992), podemos abordar questões
próprias do design timbrístico. Podemos apontar também a exploração da síntese FM em
tempo real, ao usarmos, por exemplo, o ambiente MAX-MSP (Puckette e D. Zicarelli,
1990), aproveitando a agilidade computacional proporcionada pelo método e a facilidade de
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 27
Referências bibliográficas
Almeida, Anselmo Guerra. “Composição Musical Algoritmica com Árvores de Tempos em Síntese
FM”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação do Departamento de Ciência da
Computação. Brasília: UnB, 1992.
Almeida, Anselmo Guerra. “Methodologies for Design and Evaluation of Interactive Musical
Interfaces.” Proceedings of JIC96 Brugge - Joint International Conference (IV Intern. Symp. on
Systematic and Comparative Musicology and II Intern. Conf. on Cognitive Musicology),
College of Europe: Brugge, Belgium, 1996.
Almeida, Anselmo Guerra. “Ambientes Interativos de Composição Musical Assistida por
Computador”. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica.
São Paulo: PUCSP, 1997.
Chowning, J. "The Synthesis of Complex Audio Spectra by Means of Frequency Modulation",
Journal of the Audio Engeneering Society 1(7), pp. 326–334, 1973.
Chowning, J., D.Bristow. FM Theory & Applications. Yamaha Music Foundation, 1986.
Chowning, J. “Frequency Modulation Synthesis of the Singing Voice”. Current Directions in
Computer Music Research, MIT Press, pp. 57–64, 1989.
Fischman, Rajmil. “A Survey of Classic Synthesis Techniques in Csound” in The Csound Book
(editor Richard Boulanger), Cambridge: MIT Press, pp. 223–260, 2000.
IMA. MIDI musical instrument digital interface specification 1.0. Los Angeles: International MIDI
Association, 1983.
Loy, G. “Musicians make a standard: the MIDI phenomenon”. Computer Music Journal 9(4), pp.
8–26, 1985.
Mathews, M., J.Miller, F.Moore. The Technology of Computer Music, The MIT Press, Cambridge,
Mass, 1969.
Pinkston, Russell. “FM Synthesis in Csound” in The Csound Book (editor Richard Boulanger),
Cambridge: MIT Press, pp. 261–279, 2000.
Puckette, M. e D. Zicarelli. MAX - An Interactive Graphical Programming Environment. Menlo Park:
Opcode Systems, 1990.
Roads, C. e Strawn J. Foundations of Computer Music. The M.I.T. Press, Mass., third pr. 1987, 1985.
ROADS, Curtis. The Computer Music Tutorial. Mass: MIT Press, 1996.
Vercoe, B. Csound Manual and Tutorials. Mass: MIT Press, 1992.
Anselmo Guerra de Almeida é formado em piano pelo Conservatório Musical de
Santos/SP. Concluiu curso de Composição e Regência no Instituto de Artes da
UNESP em 1986. Em 1992 concluiu mestrado em Ciência da Computação na
Universidade de Brasília, na linha de pesquisa em música computacional. Foi
pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em San Diego/EUA no período
letivo de 1995/6, como parte de seu projeto de doutorado. Concluiu sua tese na PUC-
SP, com o título: "Ambientes Interativos de Composição Musical Assistidos por
Computador", em julho de 1997. Em setembro do mesmo ano tornou-se professor de
Composição e Tecnologia Musical na Escola de Música e Artes Cênicas da UFG. Foi
coodenador do Mestrado em Música entre 1999 e 2001. Em 2000 criou os
Laboratórios de Pesquisa Sonora da EMAC (LPqS), que coordena até a data atual. É
28 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
APOIO:
FUNAPE – Fundação de Apoio à Pesquisa - UFG
Por que resgatar o fandango?
Resumo: Neste texto, pretendo refletir sobre alguns aspectos sócio-culturais que
envolvem o uso da viola branca no fandango de Iguape e Cananéia, litoral Sul
paulista. Mais que buscar respostas a estas questões, busco direções para analisá-las.
Tais reflexões partem da leitura e análise de textos de 3 autores: Hal Foster, Néstor
García Canclini e José Jorge de Carvalho. Discute-se quais são os interesses
envolvidos no “resgate” de uma tradição cultural e a postura de pesquisadores, neste
caso, os pesquisadores músicos, diante das comunidades pesquisadas. Palavras-chave:
fandango, viola branca, Iguape, Cananéia, cultura caiçara.
Introdução
O foco da minha pesquisa é a viola branca, instrumento utilizado no fandango do litoral
Sul brasileiro. A investigação se constitui do estudo detalhado deste instrumento nas
localidades de Iguape e Cananéia, litoral Sul do Estado de São Paulo. A pesquisa se
caracteriza, sobretudo, como etnomusicografia, abordando, ainda, aspectos sócio-culturais
que envolvem o uso do instrumento no fandango, enfocando-se também elementos técnico-
musicais e explorações das possibilidades de execução do instrumento, além daquelas já
conhecidas e praticadas na região, gerando um material técnico-bibliográfico acompanhado
de CD áudio ilustrativo.
A viola branca guarda mais diferenças do que semelhanças com a viola caipira, desde a sua
construção e afinação até a técnica de execução. Pouco se sabe sobre ela, pois ao contrário
do que acontece com a viola caipira, não encontramos, até o momento, registros de estudos
específicos sobre este instrumento peculiar, provavelmente uma reminiscência do séc. XVI.
O instrumento é basicamente utilizado no fandango, com a função de acompanhar as
canções.
A viola branca é citada por alguns autores - como Maynard Araújo e Kilza Setti-,
principalmente como instrumento típico encontrado no litoral Sul brasileiro, utilizado no
fandango. Roberto Corrêa, violeiro e pesquisador, cita o instrumento em seus dois trabalhos
editados sobre viola caipira:
No litoral paulista, foram encontradas violas com sete cordas (dois pares e três singelas),
nove cordas (quatro pares e uma singela), e dez cordas (cinco pares), todas mantendo as
cinco ordens de cordas. (1989, p. 16).
A viola que mais se diferencia é a viola beiroa, pois, além do cravelhal normal, com dez
cravelhas – onde as cordas são esticadas – apresenta outro pequeno cravelhal, ao lado da
caixa de ressonância, em cima do braço, com duas cravelhas. No litoral Sul do Estado de
São Paulo e no litoral do Paraná, encontram-se, ainda hoje, violas também com este
pequeno cravelhal ao lado da caixa de ressonância, mas com apenas uma cravelha. (2000,
p. 22).
O artigo de Toninho Macedo (outubro de 1997) foi o primeiro trabalho onde encontramos
informações mais específicas sobre o instrumento. Há também em nossa bibliografia
trabalhos que tratam, em caráter mais geral, do fandango do litoral Sul. De qualquer
maneira, poucos deles se aprofundam em questões técnicas e específicas sobre o
instrumento.
No litoral Sul do Estado de São Paulo, nas localidades de Iguape e Cananéia, o folguedo
chegou à beira do esquecimento. Alguns fatores como a criação de uma reserva ambiental
de proteção integral, a influência de grupos religiosos e a busca de novos meios de vida
tiveram alguma influência para tal fenômeno. Há cerca de dez ou quinze anos, alguns
30 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
O pesquisador-músico
Hal Foster, em seu ensaio, remete ao texto de Walter Benjamin – O autor como produtor –
fazendo uma comparação a partir da abordagem de Benjamin sobre a intervenção do artista
nos meios de produção artística:
Para Benjamin é imprescindível o artista “avançado” intervir, como o
trabalhador revolucionário, nos meios de produção artística – para mudar as
“técnicas” do meio tradicional, para transformar o “aparato” da cultura
burguesa. (Foster, 1995, p. 302, tradução nossa) .
32 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Para o autor, “há hoje um paradigma relacionado com a arte avançada de esquerda: o autor
como etnógrafo” (Foster, 1995, p. 302, tradução nossa) . E o que muda é o sujeito da
contestação, que passa a ser, segundo Foster, “o cultural e/ou o outro étnico” (Foster, ibid,
tradução nossa) :
E ainda, apesar desta mudança, suposições básicas com o velho modelo produtivista
persiste no novo paradigma quase-antropológico. Primeiro existe a suposição que o lugar
da transformação artística é o lugar da transformação política, e mais, que este lugar está
sempre localizado noutro lado, no campo do outro: no modelo produtivista, com o outro
social, o proletário explorado; no modelo quase-antropológico, com o outro cultural, o pós-
colonial oprimido, subalterno, ou sub-cultural (1995, p. 302, tradução nossa) .
Neste sentido, o autor chama atenção ao “perigo para o artista como etnógrafo, do
‘patrocínio ideológico’” (Foster, 1995, p. 303, tradução nossa):
O que quero dizer é mais simples do que parece. Assim como o produtor
procurou fixar-se na realidade do proletariado, em parte somente para situar-
se no lugar do patrão, então o artista quase-antropológico deve hoje procurar
trabalhar reunido com comunidades, com os melhores motivos do
engajamento político e transgressão institucional, em parte, somente ter este
trabalho re-decodificado pelos seus patrocinadores como escape social,
desenvolvimento econômico, relações públicas... ou arte. (1995, p. 303,
tradução nossa).
O que quero reter aqui é o conceito de “artista quase-antropológico”. O autor também trata
em seu texto, entre outras coisas, da perda do espaço físico como “o lugar da arte”, como,
por exemplo, os museus. Ele atenta também para a utilização dos métodos etnográficos por
estes artistas quase-antropólogos.
No entanto, transferindo estas reflexões para meu objeto de estudo, questiono se tal
fenômeno não poderia também ser notado em trabalhos etnomusicológicos? Quero dizer, o
pesquisador, principalmente quando músico – e neste sentido, incluo-me entre eles – não
corre o risco de assumir este papel, o do artista quase-antropológico? Certamente
desconhecendo as ferramentas da Antropologia, como alerta Foster para a utilização dos
métodos etnográficos por esses artistas, parece-me possível traçar uma comparação. Neste
caso, pode haver o envolvimento do pesquisador-músico com o objeto pesquisado, e o
perigo de interferir numa tradição é iminente. O conhecimento de procedimentos
metodológicos das áreas da Antropologia e da Sociologia é fundamental para o
pesquisador-músico, que em alguns casos, só passa a ter contato com temas dessas áreas na
pós-graduação.
Outro ponto a ser levado em consideração são os interesses envolvidos no “resgate” de uma
tradição. Há seis anos, em pesquisa de campo sobre o fandango de Iguape, principalmente
com a Associação Jovens da Juréia, notava-se por meio de relatos dos moradores e
dirigentes da associação, que a necessidade de resgatar o folguedo nascia da carência
naquela comunidade de suas raízes culturais e principalmente o abandono da região pelos
mais jovens. Atualmente, o envolvimento de instituições externas em projetos da
comunidade pode acabar atraindo o interesse do poder público e o da indústria cultural. Há
necessidade de identificar até que ponto existe interferência destes interesses externos no
resgate do folguedo. José Jorge de Carvalho, em seu texto sobre tradições performáticas
afro-brasileiras, alerta para o interesse da indústria de entretenimento no que ele chama de
“patrimônio cultural imaterial”, que aqui são as artes performáticas da cultura de tradição
popular (música, dança, teatro e autos dramáticos). Carvalho sugere que o pesquisador seja
mediador entre comunidade e indústria cultural:
Por que resgatar o fandango? 33
Para que esse conflito se resolva, penso que o pesquisador deverá informar à
comunidade exatamente todos os acordos e conseqüências de sua inserção na
indústria cultural [...] Será necessário um compromisso explícito do
pesquisador de tornar-se não apenas porta-voz da fala do grupo para o
mercado de espetáculos, mas também de tornar-se um porta-voz para o grupo,
de fora para dentro, instruindo os artistas populares sobre as regras e os
valores desse mundo plenamente capitalista que agora os solicita e absorve.
(2004, p. 75).
Portanto, para Carvalho, o pesquisador deve “assumir um compromisso com a devolução,
para as comunidades guardiãs de origem, dos materiais, publicações e atos públicos que os
pesquisadores venham a realizar na condição de especialistas nas tradições por elas
preservadas” (2004, p. 82). No caso da presença do NUPAUB na localidade de Iguape,
junto a Associação Jovens da Juréia, nota-se tal contribuição recíproca, como, por exemplo,
a implementação e desenvolvimento da Escola Caiçara da Juréia. O objetivo da escola é
evitar que os jovens abandonem a região em busca de estudo e trabalho. Há uma
valorização dos saberes das populações tradicionais da Juréia e a preservação ambiental.
A questão que quero levantar dentro dessa discussão é o lugar ocupado pelo objeto de arte
da tradição popular. O fandango é uma função popular, e esta entendida e praticada dentro
de um contexto social. No momento em que é transplantado do seu contexto, perde-se a
origem e o sentido de sua função. Há o risco, conforme mencionado no início do texto, de
outras influências distorcerem o que é tradição popular, ao torná-la um objeto de consumo
da indústria cultural. Para esclarecer melhor, remeto-me uma vez mais ao texto de José
Jorge de Carvalho:
O pagamento do espetáculo, que sela a compra e a garantia de um tempo de
lazer para o consumidor branco, significa retirar o tempo de que o artista
popular (quase sempre negro) necessita para exibir sua arte humanizante. O
que me leva a refletir que talvez o próprio tempo seja um dos maiores
patrimônios culturais intangíveis das comunidades indígenas e afro-
brasileiras. Um tipo de patrimônio ameaçado justamente pela compreensão do
tempo na indústria cultural do capitalismo contemporâneo. (2004, p. 71).
No caso do fandango, como função popular, ele ocorre (ou ocorria!) após os mutirões.
Dança-se e toca-se a noite toda, até o dia amanhecer, seguindo quase que uma espécie de
ritual. No momento em que é levado ao palco, seja em festivais ou apresentações própria,
grande parte da função é “amputada”, já que na indústria do entretenimento, o tempo de
duração do espetáculo na maioria das vezes é determinante, de acordo com Carvalho.
Outra questão que pretendo discutir, a partir do trabalho de investigação científica, é em
que medida a apropriação da tradição popular dessas áreas rurais, por acadêmicos e/ou por
comunidades de áreas urbanas, interfere na função popular em si. Tomando a viola caipira
como exemplo, pode-se esclarecer um pouco melhor a questão. Houve um momento em
que o crescente interesse pelo instrumento por parte de pesquisadores – pesquisadores-
músicos, como Roberto Corrêa e Paulo Freire, entre outros – fez com que a viola caipira
fosse transportada do meio rural para os palcos e escolas de música. Hoje em dia, o
instrumento está presente em curso universitário no Estado de São Paulo (USP de Ribeirão
Preto, professor Ivan Vilela). Claro que não se pode fazer uma comparação integral com a
viola branca e o fandango, já que é possível que eles não sigam o mesmo percurso da viola
caipira.
Conclusão
O que reflito neste texto é o perigo, parafraseando Foster, do pesquisador-músico quase-
antropológico. O trabalho de pesquisa etnomusicológica sem o devido respaldo
antropológico e/ou sociológico pode acarretar a execução de um trabalho ineficiente e
equivocado. Há também o risco, já mencionado, do envolvimento de interesses políticos e
comerciais nas comunidades e na tradição cultural popular, levando à deturpação de sua
função.
Sobre os estudos da cultura popular, Canclini diz o seguinte:
[...] grande parte dos estudos folclóricos nasceu na América Latina graças aos
mesmos impulsos que os originaram na Europa. De um lado, a necessidade de
arraigar a formação de novas nações na identidade de seu passado; de outro, a
inclinação romântica de resgatar os sentimentos populares frente ao
iluminismo e ao cosmopolitismo liberal. Assim condicionados pelo
nacionalismo político e humanismo romântico, não é fácil que os estudos
sobre o popular produzam um conhecimento científico. (1997, p. 211).
A produção do conhecimento científico sobre cultura de tradição popular depende da
postura do pesquisador frente às comunidades pesquisadas, de acordo com Carvalho, além
do respaldo antropológico e sociológico que o mesmo precisa ter, de acordo com Foster. No
Por que resgatar o fandango? 35
Dessa forma, aponto aqui os rumos que deverão tomar tais discussões em meu trabalho de
investigação.
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Cintia B. Ferrero é bacharel em Música, habilitada em Composição e Regência
formada pelo Instituto de Artes da Unesp, São Paulo. Teve bolsa CNPq de Iniciação
Científica no projeto Gêneros de Música Popular Brasileira: fundamentos técnico-
estruturais e histórico-sociais, orientada pelo Prof. Dr. Alberto T. Ikeda. Parte do
projeto esteve dedicado a pesquisa de campo sobre a música caiçara praticada no
litoral Sul paulista. Foi assistente de gerência da Orquestra Sinfônica do Estado de
São Paulo (Osesp) por dois anos, mantendo paralelamente atividades como violonista,
compositora e professora de violão. No curso 2003/2004 realizou especialização em
seu instrumento (violão) em Madri, Espanha, com bolsa da Fundación Carolina.
Atualmente, realiza pós-graduação (mestrado) em Música no Instituto de Artes da
Unesp, São Paulo, orientada pelo Prof. Dr. Alberto T. Ikeda, com apoio da Fapesp.
Musicalidade Clínica em Musicoterapia: construções a partir da Teoria da
Complexidade1
Fig. 1
Enquanto estou em silêncio, afasto-me do tambor grande, passando pela frente da bateria. Marcos,
usando duas baquetas, produz sonoridades intercalando os instrumentos: tom-tom/ pratos; tom-tom/
1
Trabalho apresentado no Seminário de Pesquisa em Música da UFPR, Curitiba, novembro, 2005.
2
Visando proteger a identidade do cliente, usamos um nome fictício (Marcos). Ele foi atendido no
Laboratório de Musicoterapia da UFG, durante a primeira fase de uma pesquisa qualitativa,
desenvolvida pela musicoterapeuta mestranda Clara Márcia Piazzetta, sob supervisão clínica e
orientação da Profa. Dra. Leomara Craveiro de Sá.
3
‘Perturbação’ é um termo usado pela abordagem de Maturana e Varela (2001) A Biologia do
Conhecer e refere-se a estados, inter-relacionais que se diferenciam de influências, de ações causas
–efeitos e de estímulos – respostas. Perturbar um ser humano, em um determinado momento, depende
“não só de características estruturais de sua própria espécie, como de características presentes de uma
estrutura dinâmica, flexível e plástica, que tem uma história de interações particular no meio em que o
ser em questão vive, de maneira sempre congruente com o ambiente” (Magro, 1999, p. 71).
38 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
surdo; tom-tom / chimbal; até que consegue fazer tudo ao mesmo tempo. Não olho para Marcos, mas
ele me acompanha e sua expressão facial parece ser de satisfação. Esse momento teve uma duração
aproximada de 2’ e 35” (tempo observado no registro da gravação). Na seqüência, Marcos dirige-se
ao piano e experimenta as teclas agudas. Digo que vou buscar uma baqueta para mim no armário.Ele
volta à bateria sozinho, experimenta o tambor e por último o chimbal [Fig. 2]. O clima de expectativa
continua.
Fig. 2 Expectativa no ar
Quando chego com a baqueta maior, ele diz: “deixa ver”, usando a baqueta no tambor (uma batida no
centro e uma na lateral). Eu pergunto: “quer trocar uma das baquetas?” Ele, então, percute no tom-
tom três colcheias e responde “não”.Volta para o tambor grande e, olhando para mim, faz duas
semínimas, duas colcheias e uma semínima, eu o escuto e o imito [Fig. 3]. Já na minha primeira
batida, ele olha para minha mão e pára de tocar; eu olho para ele e não paro de tocar;ele aceita este
contato que acontece através do olhar e continuamos... ele no tambor e eu na caixa. Ele segue a
pulsação com a cabeça e então olha para o carrilhão, aponta com a baqueta e fala para eu tocar no
carrilhão. Acelera a célula rítmica. Eu, no carrilhão, faço um pulso rítmico passando para o prato,
marcando a pulsação na velocidade sugerida por ele e depois buscando a reverberação que é
acompanhada por um movimento de cabeça dele enquanto toca no tambor grande, acompanhando o
pulso. Volta-se para o tom tom e eu o convido: vamos lá! Ele levanta a baqueta contra mim, mas eu
continuo a contagem: 1,2,3 e... Marcos interrompe a produção fazendo uma pergunta sobre o chimbal,
que eu esclareço.
atendimento, onde estaria Marcos? Como musicalmente ele se mostra? Estaria em seu momento de
criação, mantendo um pulso e ainda procurando controlar minha movimentação?
Nos momentos seguintes pergunto se ele conhece alguma música, sua resposta foi: “assim oh!” de sua
resposta cantamos e tocamos sua ‘primeira melodia’ repetindo a frase proposta por ele intercalada
com experimentações na bateria tocando todos os instrumentos que alcançou. O tema apresentado
inclui uma formação em semicolcheias, colcheias e semínimas com uma marcação definida, [Fig. 4]
uma característica de sua produção musical.
Fig. 5 xilofone 1
40 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Para a apresentação das castanholas eu trouxe uma célula melódica [Fig. 6] repetida por Marcos na
íntegra e uma terça acima, soando como pergunta e resposta. Até o final de nosso primeiro encontro
essa célula foi se transformando [Fig. 6a e 6b]
4
No desenvolvimento de cada atendimento, uma rotina de sessão define-se a partir dos objetivos
musicoterapêuticos previamente estabelecidos. A organização dos atendimentos de Marcos deu-se em
três momentos: 1) o acolhimento, com uma canção surgida de um motivo melódico retirado da
primeira sessão, ‘boca de jacaré’; 2) o desenvolvimento da sessão, preservando os momentos de
interação musical considerando-se, principalmente, a musicalidade do cliente; 3) uma canção de
despedida que indica o retorno ao setting musicoterapêutico na próxima semana.
Musicalidade Clínica em Musicoterapia 41
Musicalidade para Blacking (1973) não está apenas nas mãos de especialistas, músicos
profissionais, mas é uma capacidade humana para música. Da mesma forma, Zuckerkandl
(1973, 1976) apresenta-a como além de habilidades, como uma capacidade humana inata.
Todas as pessoas são musicais por natureza e essência, e essa capacidade não está
simplesmente voltada para o desenvolvimento artístico-musical, mas como forma de
percepção do mundo à sua volta. Musicalidade é constitutivo do ser humano, ou seja,
encontra-se no “domínio de nossas interações e relações”, constituindo-se assim, “no
domínio de nossas condutas humanas” (Maturana, 2002, p. 109).
Os estudos de Mechtild Papousek (1996), Trevarthen (1999), Trevarthen e Dissanayake
(2000), focalizam na musicalidade das interações cuidador-bebê a origem das formas
relações do ser humano, inclusive, com a música. Os estudos de Trevarthen et all.(1999,
2000) defendem a existência de intrinsic motive formation (IMF)e intrinsic motive pulse
nas relações mãe-bebê (apud CROSS, 2000, p. 34, tradução nossa). Desses estudos,
originaram os termos protomusicality e communicative musicality (apud Ansdell, 2004, p.
69). Para Mechtild Papousek (1996), este espaço de cuidados e atenções, comunicação
mãe-bebê desde a vida intra-uterina, faz-se na “indivisibilidade da música e movimento e
pelo fato deles aparecerem envolvendo padrões de comportamento culturais” (apud Cross,
2000, p. 34, tradução nossa). Também “Hannus Papousek tem notado que ‘elementos
musicais participativos no processo de comunicação desenvolvem-se muito cedo’,
sugerindo que ‘eles preparam o caminho para capacidades lingüísticas antes que os
elementos fonéticos apareçam” (apud Cross idem, tradução nossa). Sendo assim, as
interações entre mães-bebês constituem-se eficientes pela intenção expressada nos
movimentos corporais, tonalidade e melodiosidade da voz cantada ou falada. A construção
do domínio relacional do ser humano constitui-se, originalmente, imerso em um universo
de musicalidade que potencializa a compreensão do significado no domínio lingüístico.
O trabalho musicoterápico desenvolvido por Nordoff - Robbins, também conhecido por
“musicoterapia criativa” (Bruscia, 1989), constitui-se pelas “idéias de Rudolf Steiner, o
fundador da Antroposofia, pelas idéias de Abraham Maslow, um dos fundadores da
Psicologia Humanista” (apud Alvares, 2005, p. 2) e pela concepção de Música defendida
pelo filósofo Victor Zuckerkandl (Queiroz, 2003; Aigen 2005). Um dos princípios desta
abordagem é que em cada pessoa existe uma Music child e isso
denota uma organização das capacidades receptivas, expressivas e cognitivas
que podem ser o ponto central da organização da personalidade A criança é
estimulada a utilizar estas capacidades com grande envolvimento. Tal
envolvimento, de modo responsivo e criativo, leva a funções de identificação,
percepção e memória. Segurança, inteligência e determinação são expressas
de forma espontânea na medida que a criança se entrega ao processo musical”
(Nordoff & Robbins, apud Alvares, 2005, p. 3)
Outro princípio é o condition child que representa os aspectos relacionados à sua condição
especial ou à sua deficiência. A ampliação da music child leva a mudanças nessa condition
child e, com isso, a criança pode encontrar novas possibilidades de ser no mundo e um
novo sentido para o self , uma vez que
o processo de ‘despertar e expandir o music child está relacionado com o que
Maslow (1999) descreve como o processo de auto-atualização, que envolve
experienciar a vida de forma plena, fazer escolhas, sentir-se autoconfiante,
42 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
5
Termo sem uma tradução direta para a língua portuguesa. Abrange a formação técnica/musical de
um músico profissional treinada para construir sua capacidade de ‘falar música’ ou seja, traduzir para
elementos estruturais musicais as percepções clínicas que tem de cada cliente em cada momento dos
atendimentos individuais que realiza (Alvares, 2005 curso ministrado na UFG).
Musicalidade Clínica em Musicoterapia 43
Coda
A melodia sugerida pela musicoterapeuta para as castanholas (boca de jacaré, fig 6; 6a e
6b) usou de elementos rítmicos e intervalares já conhecidos de Marcos: colcheias mais
semicolcheias, semínimas e o intervalo de 2ªM. A nota inicial dessa célula melódica foi a
mesma da ‘primeira melodia’ de Marcos [Fig. 4], entoada no campo melódico de uma
escala pentatônica. A surpreendente aceitação de Marcos para esta melodia é fato.
No sexto encontro, a seqüência de acordes que envolveu Marcos e sua musicoterapeuta
[Fig. 7] está, também, em um campo pentatônico. Olhando para o aspecto sociológico desta
escala, temos que “é a mais universal entre todas [escalas](...) ela corresponde a um
movimento ou a um estado de corpo e de espírito. (...) um modo (...) uma estrutura de
recorrência sonora ritualizada por um uso.(...) uma escala correspondente ao jogo – estável
e instável” (Wisnik, 2001, p. 74).
Ao analisar estes atendimentos, e nos depararmos com as formas e as dimensões com que
as interações sonoras /musicais / verbais / corporais se deram entre Marcos e sua
musicoterapeuta, percebemos que uma mudança de pensamento fazia-se presente. Dessa
forma, um pensamento linear, que concebe construções dentro de causas e efeitos,
estímulos e respostas, não era possível. O que desvelava-se à nossa frente envolvia uma
complexa relação entre a música, o musicoterapeuta e o cliente. Pesquisar a construção
destas relações exige então uma metodologia aberta e flexível, uma metodologia qualitativa
com uma leitura fenomenológica, onde um caminho não está construído, mas faz-se em
cada passo do caminhante (o pesquisador) em seu campo de trabalho. Uma metodologia
Musicalidade Clínica em Musicoterapia 47
6
Acoplamento estrutural para Maturana & Varela (2001) constituem-se nas “congruências entre a
estrutura da unidade e a estrutura do meio que atuam como fontes de perturbações mútuas (domínio
das perturbações), desencadeando mutuamente mudanças de estado (domínio das mudanças de
estado)” (p. 87)
7
Princípio Dialógico: a Teoria da Complexidade considera a existência de um pensamento que
congregue as diferenças, acolha a complementaridade de conceitos aparentemente contrários, que
permita a ordem e a desordem, a certeza e a incerteza de forma dialógica “mantendo a dualidade no
seio da unidade” (Morin, 2001, pp. 107–109).
8
Princípio da Recursividade Organizacional.
48 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
de” e “nas” experiências musicais, foi possível compor uma nova história, um prelúdio a
duas vozes inspirado em nossas musicalidades. Este, apesar de ainda inacabado, traz
consigo a força de uma energia transformadora.
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Musicalidade Clínica em Musicoterapia 49
como parâmetro
Introdução
A riqueza cultural brasileira é, em grande parte, decorrente da diversidade de suas origens.
Ao incorporar influências artísticas das mais variadas etnias, foi construída uma densa
trama musical que se manifesta em diversos gêneros e estilos. Procurar identificar os
elementos musicais que fazem parte desta teia multicultural é uma constante busca dos
brasileiros para entender a constituição de sua própria identidade.
Contribuindo para entender os elementos que constituem o fandango, dança relacionado aos
caiçaras dos litorais do Paraná e São Paulo, esta comunicação discorre sobre a origem da
rabeca, procurando referenciais nas particularidades do violino do período barroco. Esta
aproximação se justifica nas semelhanças entre estes dois instrumentos, que vão desde
elementos de construção até modos de execução.
A literatura sobre o fandango aborda com freqüência os instrumentos que lhe são
característicos: as violas, o adufe e a rabeca. No entanto, no que se refere a este último, as
análises são excessivamente superficiais, prendendo-se unicamente em critérios de
observação empírica, sem o estabelecimento de relações mais aprofundadas, o que provoca
equívocos científicos. Como aspecto agravante, partindo de um conhecimento também raso
sobre o violino, muitos autores entendem a rabeca com um instrumento rústico, no sentido
pejorativo, que é resultado da falta de conhecimento e de recursos materiais de seus
fabricantes, ou seja, simplesmente consideram-na um violino de pouca qualidade que é
fruto de cópias mal feitas por construtores ignorantes. Partindo deste panorama, propõe-se
neste trabalho uma aproximação com o violino, não como única forma de análise, mas
como uma possibilidade de clarificar o entendimento da origem deste instrumento,
enfatizando as particularidades que o fazem um instrumento único e digno de ser estudado.
O fandango
O fandango, para Fernando Corrêa de Azevedo (1978) é o nome genérico de uma festa de
caboclos das regiões isoladas dos litorais do Paraná e sul de São Paulo, que ocorre desde o
tempo do entrudo (festividade do litoral precursora do carnaval) em que se dançam diversas
coreografias denominadas “marcas”. Segundo Marchi e Saenger (2002), esta dança está
relacionado ao mutirão (ou pixirão), ocasião em que membros de uma comunidade se
reúnem para realizar uma tarefa que exige muita mão de obra. O “pagamento” deste
trabalho se dá por meio da oferta de uma festa: o fandango, conforme sua definição
apresentada por Leonildo Pereira que vê nesta ocasião o momento em que a família a e
comunidade se reúne para “... trabalhar, tocar viola e cantar” (in Marchi, 2002, p. 41). Estes
eventos populares são extremamente complexos, pois além de uma reunião coletiva, é
nessas ocasiões em que se aprende a executar os instrumentos do fandango por meio da
A rabeca do fandango paranaense 51
imitação e da prática: “E foi aonde nós aprendemos, tudo meus irmãos, não teve um que
não aprendesse” (Leonildo Pereira in Marchi, 2002).
Apresentando características de influência ibérica, esta dança é acompanhada de um
conjunto instrumental formado por uma ou duas violas, uma rabeca e um adufe.1 Apesar de
fazer parte da indumentária da dança, os tamancos utilizados pelos homens, especialmente
em marcas batidas, podem também ser considerados instrumentos do fandango, uma vez
que fazem marcações rítmicas que certamente são parte da trama musical da dança,
conforme defende Roberto Correia (2002). Ainda de acordo com este autor, no que se
refere à viola, é necessário destacar que existem variantes deste instrumento: a meia viola
(ou machetão) e o machetinho, ambos menos comuns que a viola propriamente dita e
freqüentemente relacionados com instrumentos intermediários para a aprendizagem da
viola.
A maioria dos pesquisadores que se dedicaram ao estudo do Fandango ressalta o gradativo
desaparecimento desta dança que, em muitos lugares, já não expõe suas características
tradicionais. Nas comunidades mais próximas a centros urbanos como Antonina e Morretes
(no Paraná), o Fandango já desapareceu, pois, tratando-se de uma tradição transmitida
apenas pela oralidade, ela sucumbiu juntamente com os seus protagonistas mais antigos.
Este fato não acontece da mesma forma em Paranaguá - PR, pois nesta localidade esta
dança ainda acontece, mesmo que de duas formas distintas: como experiência
parafolclórica,2 no caso do grupo de fandango Mestre Romão e como manifestação
tradicional, na Ilha dos Valadares (parte do município de Paranaguá), localidade onde há
bailes de fandango sem qualquer fim turístico. Existem também regiões remotas do litoral
sudeste de São Paulo e nordeste do Paraná que ainda preservam estas festas tornando-se um
campo de estudo importante. Tratando-se de uma região costeira bastante recortada e de
difícil acesso rodoviário, as tradições folclóricas puderam atravessar o século XX resistindo
em algumas comunidades de pescadores, que se tornam um dos poucos locais onde o
fandango pode ser estudado.
Mesmo havendo locais que, devido ao seu isolamento, ainda preservam um fandango
bastante autêntico, ultimamente, devido à crescente facilidade em acessar meios de
comunicação de massa, como a TV e o rádio, existe uma tendência das gerações mais novas
se desinteressarem pela dança tradicional concentrando a atenção nas novas tendências
artísticas de abrangência nacional ou internacional, presentes nestes veículos de
comunicação.
Conforme dito anteriormente, o fandango ocorre por ocasião do mutirão, momento em que
também se aprende a sua música e suas marcas. Entretanto, como estas reuniões são menos
freqüentes diante do êxodo das populações das regiões isoladas, as possibilidades de se
aprender o fandango também diminuíram. Os caiçaras tendem a deixar suas casas isoladas
para tentar melhores condições de vida e trabalho, aproximando-se de centros urbanos,
locais em que o mutirão é raro. Para Juliana Saenger (2002) este efeito pode ser verificado
em depoimentos nostálgicos de fandangueiros mais antigos que vêm na urbanização do
litoral um dos fatores que dificultam a preservação do fandango.
1
Também denominado adulfe, adulfo, ou adufo, trata-se de uma espécie de pandeiro que pode ou não
apresentar platinelas.
2
Este grupo é considerado parafolclórico, pois já há uma descaracterização dos elementos do
fandango original, fato provavelmente impulsionado pelo modo performático que grupo se apresenta,
distanciando-se da dança com a adoção de roupas padronizadas e coreografias diferenciadas. Esta
observação não pretende fazer o julgamento do valor cultural de um grupo parafolclórico, mas apenas
diferenciá-lo das manifestações tradicionalmente ligadas à dança como opção de lazer.
52 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
tradicional), fitas formadas pelo miolo do cipó timbopeva, ou ainda de fios de nylon (em
substituição aos materiais tradicionais).
Este instrumento do fandango do litoral paranaense e paulista é construído em caixeta, uma
madeira típica da região que tem qualidades muito particulares (como leveza, maleabilidade
e resistência a certas pragas). Para os acessórios que exigem uma dureza maior (como o
cavalete, o estandarte e o arco), são utilizadas a canela preta ou o cedro, entre outras
madeiras duras. Desta forma, a construção da rabeca depende do conhecimento dos
elementos da natureza por parte de seus construtores.
A rabeca não é de forma alguma exclusiva do fandango, pois pode ser encontrada em várias
partes do Brasil, sempre relacionada com alguma manifestação folclórica, seja dança ou
folguedo, ou até mesmo na América andina e na América Central em que este instrumento
é comum na música popular, como afirma Dominic Gill (1984). Segundo este autor, a
origem dos instrumentos de corda friccionada está relacionada às primeiras experiências em
friccionar um arco de caça em uma corda livre (que poderia inclusive ser outro arco) a fim
de produzir som. A adaptação de uma caixa de ressonância para amplificar a vibração da
corda deu origem à instrumentos de corda friccionada das mais variadas formas. No
entanto, a rabeca do fandango paranaense apresenta particularidades que não são
encontradas em seus semelhantes em outras regiões do Brasil.
Segundo Aldo Hasse (1977), e conforme escrito anteriormente, os instrumentos do
fandango são feitos pelos próprios executantes e seguem particularidades de construção
muito especiais. Quanto à aprendizagem da rabeca, normalmente passa-se antes por outros
instrumentos, como o adufe e a viola, como exemplifica a própria experiência de Leonildo
Pereira de Guaraqueçaba, Paraná “...Era a vez que eu comecei a ver tocar viola. E meio
devagarzinho, e logo também, entrei em entendimento e já aprendi a tocar na viola (...)
Depois meu padrinho me deu uma rabeca, comecei a tocar rabeca...” (in Marchi, 2002).
Nas diferentes variantes de rabeca do fandango, é possível encontrar a rabeca de coxo e a
rabeca de aro. No primeiro caso a denominação se refere à maneira de construção onde o
corpo do instrumento, juntamente com o braço e o cravelhal3 é esculpido em um só bloco
de madeira, à maneira de escavação de um coxo (ou de uma canoa de um só tronco), sendo
apenas o tampo colado para fechar a caixa de ressonância do instrumento. A rabeca de aro
recebe esta denominação, pois suas partes: tampo, fundo, braço e faixas laterais, são
esculpidos ou moldados em pedaços distintos de madeira e mais tarde unidos por cola. O
aro da nomenclatura se refere às faixas laterais que se formam um contorno de madeira
antes do instrumento ser montado, seguindo um padrão de construção semelhante ao do
violino.
Conforme dito anteriormente, as características pessoais dos artesãos que constroem estes
instrumentos estão presentes em cada detalhe e, como a sua construção não segue uma
padronização acadêmica, mas depende da memória e da observação, cada construtor tem
uma maneira única de elaborar os instrumentos (Corrêa, 2002). Este fato resulta em rabecas
únicas e com detalhes que identificam o seu construtor (fato bem mais complicado de
identificar em violinos, por exemplo, que seguem uma tradição centenária de construção
que é bastante acadêmica).
Tomando como exemplo Martinho dos Santos de Morretes e Aorélio Domingues de
Paranaguá, que constroem rabecas de aro é possível encontrar alguns pontos interessantes:
3
O cravelhal se encontra na extremidade do instrumento e é o espaço onde se fixam as cravelhas que
servem para tencionar as cordas da rabeca.
54 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Uma das marcas registradas das rabecas de Martinho dos Santos é a voluta4 esculpida com
uma curva invertida. Neste ponto é interessante notar que Yehudi Menuhin (1996) descreve
a voluta do violino como o toque final do luthier,5 ou seja, como a síntese de sua criação,
indicando as habilidades únicas do construtor. Esta é uma característica que também se
observa nas rabecas do fandango. Outro aspecto notável nas rabecas de Martinho dos
Santos é a confecção do tampo e fundo nos padrões da construção do violão ou da viola, ou
seja, com barras que fortalecem a estrutura do instrumento. Trata-se, além de um indício de
exclusividade de cada instrumento, e de um vestígio da fonte de conhecimento deste
construtor, que adaptou técnicas de construção de violas para a rabeca. A mesma adequação
acontece para as faixas laterais que são feitas a partir de um único pedaço de madeira muito
fina que é dobrada para fazer o formato em “8” do instrumento (diferentemente, em um
violino, este formato é composto de quatro secções distintas, a fim de fazer as angulações
necessárias).
Quanto aos instrumentos de Aorélio Domingues, destaca-se o fato de possuírem uma
grande bombatura6 o que se reflete em um som bastante característico, experiência acústica
semelhante aos violinos construídos por Jacob Stainer e Nicolo Amati no séculos XVI e
XVII (Gill, 1984). Também são encontrados nas rabecas construídas por este caiçara
detalhes em marchetaria7 que são um exemplo de refinamento na decoração do
instrumento, uma vez que não têm qualquer objetivo acústico, sem influenciar os aspectos
timbrísticos do instrumento.
Os dois exemplos citados acima são uma amostra da riqueza que existe no universo das
rabecas. Como cita Ana Salvagni (1997) cada rabeca é sempre um instrumento novo que
conseqüentemente apresenta novos timbres. Esta exclusividade é resultado de uma maneira
de construir totalmente baseada na experimentação.
A origem da rabeca ainda não é totalmente conhecida, o que estimula a pensar em todas as
possibilidades de procedência, incluindo as principais etnias que formaram os primeiros
brasileiros: os índios, os negros e os portugueses.
Ao reclamar sua origem indígena, não se descobrem muitas pistas. Encontra-se na música
indígena uma predominância de instrumentos idiófones, aerófones e membranófones (em
ordem de incidência). Os instrumentos cordófones são incomuns, sendo inexistentes os de
corda friccionada.8 Como raro exemplo de instrumento de corda, há o ka-txo-stê dos índios
Ramkôkâmekra do Maranhão, que é feito com um talo de buriti (espécie de palmeira), em
que fibras são desfiadas sem serem desprendidas da peça principal e são tencionadas por
meio de cavaletes. Segundo Helza Camêu (1979) que realizou estas pesquisas, não há
informações sobre como este instrumento é tocado.
4
Também conhecida como a cabeça do instrumento, a voluta fica logo acima da caixa de cravelhas,
ou cravelhal.
5
Luthier; aquele que constrói e repara instrumentos de corda.
6
Bombatura pode ser entendido como as curvas esculpidas no tampo e no fundo que dão maior
volume interno à caixa de ressonância do instrumento.
7
Marchetaria é a arte de incrustar finíssimas lâminas de madeira de diversas cores e tonalidades, no
corpo do instrumento, a fim de produzir símbolos e desenhos.
8
Esta constatação é resultado de exaustivas buscas de instrumentos de corda friccionada na literatura
sobre a música das comunidades indígenas. No entanto, para fazer esta afirmação, não foram
consideradas as comunidades que tiveram um contato pós-descobrimento com a rabeca, como é o
caso dos índios Guarani da aldeia Karuguá, em Curitiba. Tampouco foi possível fazer esta alegação
referindo-se a grande quantidade de tribos isoladas, cujas características musicais ainda não foram
documentadas.
A rabeca do fandango paranaense 55
9
A reforma de alguns elementos do violino (e sua família) data de 1830, período em que a nova
estética musical (relacionada com a ascensão da burguesia e salas de concerto maiores) exigia uma
emissão sonora com mais potência e brilho.
56 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
pessoas que são, de certa forma, selecionadas por sua facilidade em manejar um arco que
fricciona as cordas e em dedilhar o instrumento sem o auxílio de trastes (referência tátil de
posicionamento de dedos, comum na maioria dos instrumentos de corda dedilhados como a
viola ou o violão). A partir desta busca, propõe-se utilizar a etnomusicologia como
categoria científica mais adequada no estudo deste problema.
A etnomusicologia
Na necessidade de aprofundar os estudos sobre fandango considera-se importante utilizar
métodos que sejam criteriosos na coleta de dados e bem fundamentados na análise do
material sistematizado. Desta forma, entende-se que a etnomusicologia pode apresentar
respostas satisfatórias para a realização de uma investigação que pretende entender não
apenas a rabeca, mas o seu tocador: o rabequeiro.
Dentro da necessidade que o homem tem de entender a sua existência, e sua relação com o
meio no qual vive, foram desenvolvidos diversos caminhos científicos. Dentre as várias
vertentes, o campo das humanidades procura entender o homem no tempo e no espaço a
partir do ponto de vista humano. A esse nível, a etnomusicologia almeja compreender o
homem por meio de sua expressão musical (Mukuma, 1983, p. 23).
Segundo Mukuma (Ibid, p. 24), evitando uma definição obsoleta de música com
concepções eurocêntricas (“arte de organização de sons em padrões agradáveis ao ouvido”),
a etnomusicologia considera outra aproximação conceitual: “música é tudo aquilo que é
assim designado pelo seu produtor”. A etnomusicologia se concentra, então, no estudo da
música na cultura destes povos. Alam Merian ampliou este conceito de música, utilizando-
se de uma visão behaviorista assumindo, segundo Bastos (1978, p. 40), a difícil tarefa de
juntar música com cultura. A música pode ser definida como um produto do
comportamento humano da sociedade:
Um produto estruturado do homem, mas a sua estrutura não pode ter uma
existência própria divorciada do comportamento de quem a produz. Para
compreender por que é que a estruturação da música existe como tal, devemos
também compreender o como e o porquê dos conceitos subjacentes a esse
comportamento que são ordenados de modo a produzirem uma forma
particular desejada de som organizado. (Merian, 1964, p. 7 in Mukuma, pp.
24, 25).
Apesar de bastante abrangente, esta definição apresenta a música como instrumento
importante para a compreensão do comportamento humano. Desta forma, a
etnomusicologia é considerada uma disciplina humanista, preocupando-se com o homem e
usando a música como meio de estudo. Mukuma exemplifica a função do etnomusicólogo
comparando-o com o crítico musical. Enquanto este último se satisfaz em descobrir a
mensagem presente em uma manifestação artística, o primeiro utiliza o conhecimento
desenvolvido para determinar a razão de uma certa expressão musical.
Ao analisar outros aspectos da etnomusicologia, Mukuma (1983) entende que este método
científico de investigação deriva de campos distintos do conhecimento humano, tornando-
se um processo interdisciplinar de estudo. A esse respeito, Bastos (1978) apresenta as três
tradições musicológicas no ocidente:
1. Musicologia histórica, ou simplesmente musicologia, é a mais antiga, datando dos
tempos da civilização grega clássica. Deriva, como disciplina, da história.
A rabeca do fandango paranaense 57
Considerações finais
A preocupação com o desaparecimento dos tocadores e construtores de rabeca já pode ser
notada no texto de Aldo Hasse, em 1977. Após quase trinta anos, nem o dança e tampouco
a rabeca desapareceu, muito menos seus executantes ou construtores. Este fato expõe o
dinamismo dos processos de transmissão cultural que desafiam as preocupações da
academia, alimentando esperanças e demonstrando que a cultura popular tem sólidos, e
ainda desconhecidos, processos de sobrevivência que merecem ser estudados.
Uma análise do fandango apenas preocupada em descrever uma manifestação popular a
partir de um certo distanciamento já foi o caminho percorrido por muitos pesquisadores.
Sem desmerecer a importância das primeiras aproximações sobre esta dança, que
certamente foram fundamentais para esta comunicação, enfatiza-se a necessidade de
promover estudos mais aprofundados na área, envolvendo os aspectos humanos da
pesquisa. Esta proposta é sem dúvida desafiadora, uma vez que a pesquisa em ciências
humanas e sociais tende a ser extremamente complexa, no entanto, é por este caminho que
poderá ser desvendado um universo que é certamente mais sedutor do que o foi pesquisado
até então, revelando-nos muitos aspectos inimagináveis sobre o fandango. Isto certamente
despertaria a atenção que esta manifestação popular merece.
Finalmente, a tentativa de procurar uma explicação para a origem da rabeca é uma forma de
propor novas aproximações científicas com o fandango. Esta comunicação tinha a
pretensão de se contrapor a generalizações baseadas apenas em uma observação superficial,
tão presente em muitas pesquisas sobre o fandango. Acredita-se que com os argumentos
expostos foi possível entender que a rabeca não tem origem africana nem indígena.
Tampouco é verossímil imaginar que tal instrumento simplesmente partiu da imaginação de
algum artesão mais talentoso. Conclui-se que a rabeca se caracteriza como uma construção
artesanal transmitida oralmente que reside na memória de seus construtores remontando
gerações até a época em que algum caiçara teve contato com um violino barroco que veio
de Portugal ou da Espanha (especialmente nos casos dos Jesuítas). A partir deste contato,
começou a produzir um novo instrumento com base nas imagens que estavam em sua
memória.
Referências bibliográficas.
AZEVEDO, Fernando. C. de. Fandango do Paraná. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978.
BASTOS, Rafael J. de M. A musicologia Kamayura para uma antropologia da comunicação no Alto-
Xingu. Brasília: Funai, 1978.
CAMÊU, Helza. Instrumentos musicais dos indígenas brasileiros: catálogo da exposição. Rio de
Janeiro: FUNARTE, 1979.
A rabeca do fandango paranaense 59
Introdução
Nas primeiras décadas do século XX, ocorreram profundas transformações na linguagem –
dissonância - e nos estilos – pluralismo – da arte musical.
Com relação à questão da dissonância, já ao final do século XIX, compositores envolvidos
pelo sistema tonal mas preocupados com os conflitos gerados pelos choques de
sonoridades, observaram o relativismo implícito da teoria clássica sobre “tensão/repouso”,
através de ocorrências como: o emprego simultâneo de um si sustenido e um si natural por
Georges Bizet (1838–75) numa passagem de L’Arlésienne (1872);1 o emprego sutil e
inusitado das apogiaturas por Maurice Ravel (1875–1937); o emprego de um número amplo
de tonalidades diversas por Wagner no início do prelúdio de Tristão e Isolda (1865); o uso
de modos medievais2 e orientais por Debussy (1862-1918), como por exemplo, o modo
frígio no segundo dos Nocturnes (1893–1899).3
Numa segunda fase, a dicotomia “tensão/repouso” foi explicada científica e culturalmente
pelo compositor austríaco Schoenberg. O ponto nodal de sua teoria incide na emancipação
do conceito tradicional de dissonância. O decodificador das mensagens dos discursos
musicais habituou-se, durante séculos, à oposição sons consonantes versus sons
dissonantes, devido à inserção dos sons dissonantes entre os últimos harmônicos.4 Em
contrapartida, as escutas mais freqüentes dessas sonoridades mais remotas favoreceram as
emancipações dos acordes de sétima, de sétimas diminutas, de quintas aumentadas; e
tornaram audíveis com maior nitidez, os empregos de dissonâncias nas obras de Wagner,
Strauss, Mussorgsky, Debussy, Mahler e Puccini.
1
L’Arlésienne (A Arlesiana): Música incidental muito popular de Bizet para a peça do mesmo nome
de Alphonse Daudet. Da partitura original foram extraídas duas suítes orquestrais, uma pelo próprio
Bizet, em 1872, e outra por Guiraud, após a morte do compositor.
2
Os modos medievais se originam da escala pitagórica grega, e têm como base o que hoje são as
notas brancas do piano, com certas diferenças de afinação. Por volta do séc. II d.C., os gregos
utilizavam a escala pitagórica de sete maneiras diferentes. Estas foram adaptadas no séc. IV por Santo
Ambrósio, bispo de Milão, para uso eclesiástico em quatro modos, mais tarde conhecidos como
modos autênticos. No séc. VI, São Gregório Magno aperfeiçoou os modos ambrosianos e
acrescentou-lhes mais quatro, então designados modos plagais. Esses oito modos são os chamados
modos eclesiásticos. Finalmente, no séc. XVI, o monge suíço Henricus Glareanus definiu 12 modos e
atribuiu-lhes os nomes gregos: dórico, hipodórico, frígio, hipofrígio, lídio, hipolídio, mixolídio,
hipomixolídio, eólio, hipoeólio, jônico e hipojônico. Com o desenvolvimento da harmonia, dois
desses modos – o jônico e o eólio – passaram a ser mais utilizados, e ficaram conhecidos, a partir do
séc. XVII como escala maior e escala menor.
3
Coleção de três peças para orquestra e coro feminino. Os movimentos são “Nuages”, “Fêtes” e
“Sirènes”.
4
Wisnik, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 195–204.
Alceo Bocchino: Sonatina para piano 61
5
Pierrot Lunaire op. 21 (1912). Escrita por Arnold Schoenberg. Peça atonal de colorações
expressionistas. Compreende 21 melodias para uma Sprechstimme (fala cantada), piano, flauta,
clarinete e violoncelo. A Sagração da Primavera (1913). Escrita para balé por Igor Stravinsky, com
base nas lendas do folclore russo, utilizando novas estruturas de ritmo, de timbres e organizações de
alturas. Parade, ballet réaliste en un tableau (1917). Escrita por Erik Satie; texto de Jean Cocteau;
cenografia de Pablo Picasso; coreografia de Massime e Diaghilev. Satie incorporou músicas
populares dos cafés-concertos; ruídos diversos, tais como máquinas de escrever e sirenes de
ambulâncias.
6
Contier, Arnaldo. Modernismos e brasilidade: música, utopia e tradição. Tempo e História
/organização Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras - Secretaria Municipal da Cultura,
1992.
7
Mayer, Arno. A Força da Tradição. A Persistência da Tradição do Antigo Regime, 1848–1914. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
62 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
8
O termo impressionista, freqüentemente usado para descrever a música de Debussy, só em parte é
apropriado: o próprio Debussy sempre se sentiu mais perto do movimento simbolista. Não obstante,
suas obras parecem, muitas vezes evocar imagens através da sugestão de uma atmosfera e de um
estado de espírito que seriam os equivalentes musicais do impressionismo nas artes visuais.
9
Contier, Arnaldo D. Música e Ideologia no Brasil. São Paulo: Novas Metas, 1985. A Semana de
Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922, visava renovar a
linguagem artística abrangendo todas as artes. Na música, os artistas apoiados pelos agentes sociais
dominantes ligados à burguesia agrário-exportadora, buscavam romper com a arte tradicional (música
romântica), que envolvia técnicas e uso de temas musicais com influências européias. Compunha-se
de exposições, conferências sobre a estética modernista, leituras de poemas e concertos.
Alceo Bocchino: Sonatina para piano 63
10
Azevedo, Cláudia. “A Rádio MEC como centro difusor da música de concerto no Brasil”.
Brasiliana. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, n. 5, 2000, p. 5. O maestro Alceo
Bocchino concedeu entrevista à autora em 18.09.98, na Escola de Música da UFRJ.
11
Krieger, Edino. “OSN – uma orquestra para a música brasileira”. O Amigo Ouvinte, Informativo da
Sociedade dos Amigos da Rádio MEC, ano V, n. 18, julho de 1997, p. 4.
12
Azevedo, Cláudia. Op. cit. 2000, p. 8. Considerando-se os movimentos das obras, elas somam 193.
13
Ibidem. A OSN existiu na Rádio MEC até 1984, quando foi incorporada à UFF, mas o
arquivamento mais recente nas fichas é de 1972.
64 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Sinfônica do Paraná, da qual foi maestro titular desde sua criação (1985), e atualmente é
maestro emérito. É Cidadão Honorário do Município do Rio de Janeiro e Cidadão
Benemérito do Estado do Paraná.
Como educador, foi fundador e professor titular da Escola de Música e Belas Artes do
Paraná, ministrando aulas de diversas matérias teóricas. Lecionou no Conservatório
Musical de Santos e na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Foi co-fundador
da Academia de Música Lorenzo Fernandez, com Arnaldo Estrella, Eleazar de Carvalho e
Lúcia Branco, entre outros, onde hoje é professor titular. Professor e lançador de maestros
consagrados, sua vasta atividade pedagógica revela um homem preocupado com o futuro e
com a formação musical.
Como compositor, sua obra está completamente inserida na corrente nacionalista e inclui
páginas sinfônicas e camerísticas, além de canções e peças para instrumentos solistas,
apresentadas também na França, Inglaterra, em Portugal, na Argentina e em Israel. Segundo
o musicólogo Vasco Mariz, pode-se dividir a obra do compositor em três períodos: um
anterior a 1944, de peças juvenis; o segundo, fortemente influenciado por Camargo
Guarnieri, bastante rebuscado e de fisionomia claramente polifônica (como Trova para
piano e Canção de Inverno para canto); e o terceiro período, que começa em fins de 1951 e
evidencia tendência para maior simplicidade, de pesquisa da essência da música brasileira,
talvez de maior sinceridade, técnica mais singela e maior expressividade também. Nesse
último período as diretrizes gerais foram traçadas por Villa-Lobos, a quem estava ligado
intimamente.14
Hoje, Alceo Bocchino mora no Rio de Janeiro, onde, além de compor, atende a diversos
convites para reger e dar aulas. Também pode ser encontrado na Academia Lorenzo
Fernandez e na Escola de Música Villa-Lobos duas vezes por semana, ministrando com o
mesmo entusiasmo as cadeiras Ritmo, Transposição, Acompanhamento ao Piano e
Regência.
14
Mariz, Vasco. História da Música no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 286.
15
Secretaria de Estado da Cultura (PR). Música erudita paranaense. Curitiba, v.1, 2000, p. 6.
16
Comunicação pessoal. Curitiba, maio/1999. O compositor refere-se aqui especificamente ao
primeiro movimento "Com humor".
Alceo Bocchino: Sonatina para piano 65
– Cadenza – amplia essas partes, o que permite o desenvolvimento sobre maior variedade
de materiais.
O movimento intermediário (II) recorre ao processo contrapontístico da Invenção, contendo
três seções: Exposição, Desenvolvimento e Reexposição.
Ex. 2.1. Bocchino, Sonatina para Piano, primeiro movimento - Com Humor - (cc. 1 a 4)
A Seção 3 intermediária (Parte B, cc. 30 a 45, Ex. 2.2). introduz um contraste, ao evidenciar
a melodia sobre os outros elementos. Com o tratamento polifônico das vozes, traz o caráter
mais expressivo e cantado.
Ex. 2.2. Bocchino, Sonatina para Piano, primeiro movimento - Com Humor - (cc. 30 a 33)
– Início da Seção 3
Esse movimento inicial é construído a partir de seis motivos básicos (Tab. 1).
66 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Ex. 3.1. Bocchino, Sonatina para Piano, segundo movimento – Invenção – (cc. 1 a 3) –
Motivos básicos
Da utilização do contraponto inversível, para o ajuste dos Motivos 7 e 8, então
denominados Motivo e Contramotivo, existem Episódios18 rítmicos, formados
predominantemente por porções desses motivos básicos.
No segundo movimento da Sonatina os dois Motivos formadores possuem quantidades
aproximadas de variações. Assim, com suas respectivas variações, constroem a obra em
conjunto e se desenvolvem em igual proporção. Isso está de acordo com a definição de uma
Invenção, a qual se constitui de uma obra contrapontística centrada no desenvolvimento de
material derivado de um ou dois Motivos.19
Esse movimento estabelece alto contraste com o primeiro, devido a fatores como: caráter
mais melodioso, forma da composição, estilo polifônico, andamento mais calmo,
simplicidade dos motivos empregados e redução do número de motivos.
Fato interessante a se observar da comparação entre os dois primeiros movimentos é o uso
da semicolcheia como figura padrão, majoritária, porém construindo ambientes totalmente
contrastantes. No primeiro movimento, a unidade de tempo formada por quatro
semicolcheias (compasso 2/4 nos dois movimentos) estabelece uma sonoridade viva,
dançante e “bem humorada”. Isso ocorre também devido ao andamento rápido, ao toque
mais seco – staccato, e ao tratamento harmônico dos intervalos. No segundo movimento, a
unidade de tempo também subdividida em quatro semicolcheias produz o ambiente vocal,
17
Kennan, Kent. Counterpoint – Based on Eigtheenth-Century Practice. 4.ed. Upper Saddle River:
Prentice Hall, 1999, p. 115. O Contraponto Inversível ou Duplo Contraponto ocorre quando duas
vozes são “inversíveis”, ou seja, quando qualquer uma delas pode ser utilizada como voz superior ou
inferior, com bons resultados. Para três vozes, utiliza-se também o termo Triplo Contraponto. A
palavra “inversão” deve ser entendida aqui como o nível ou posição relativa entre as vozes, e não
deve ser confundida com o artifício da variação por movimento contrário, ao qual freqüentemente se
denomina “inversão”.
18
Kennan, Kent. Op. cit. 1999, p. 134. Episódios são seções derivadas de uma porção do motivo ou
do contramotivo, ou até mesmo de outro material novo. Podem ser de qualquer extensão, mas
freqüentemente ocupam dois a quatro compassos. O motivo, quando utilizado como base, geralmente
não aparece na sua forma completa, mas em segmentos menores. Os Episódios são quase sempre
seqüenciais. Suas funções principais são: a modulação de uma tonalidade para outra, e a interrupção
de repetições demasiadas e sucessivas do motivo.
19
Ibidem, p. 126.
Alceo Bocchino: Sonatina para piano 69
Ex. 4.1. Bocchino, Sonatina para Piano, terceiro movimento – Cadenza – Célula inicial
Para a composição do terceiro movimento – Cadenza – observa-se que nem todos os
motivos do primeiro movimento são empregados. Os Motivos 1 e 5, por exemplo, não estão
presentes na Cadenza.
Entre os motivos envolvidos, os de número 3, 4 e 7 são os que aparecem com maior número
de variações. O Motivo 3 compõe a célula inicial e final do movimento. Aparece no início
em andamento lento, com caráter tranquillo e expressivo, destacando o elemento melódico.
Ao final, em andamento rápido, reforça o elemento rítmico, em toque staccato seco e com
intensidade fff.
O Motivo 4 possui originalmente forte qualidade rítmica, uma vez que é composto por
conjuntos de quatro pulsos iguais para a unidade de tempo, os quais estabelecem um ritmo
motor na maior parte do primeiro movimento. Na Cadenza, esse motivo é bastante
explorado, sofrendo ampliações rítmicas por toda a sua extensão ou parte da mesma.
20
Soleil, Jean-Jacques e Lelong, Guy. As Obras-Primas da Música. Tradução: Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 245. Forma Cíclica é a expressão aplicada ao procedimento de
composição musical que, a partir de um tema dito gerador ou tema cíclico, consiste em repetir
periodicamente um ou vários elementos desse tema nos diferentes movimentos da obra, a fim de
reforçar a unidade estrutural da mesma. Deve-se a expressão Forma Cíclica a Vincent d’Indy, que
apontou Beethoven como o inventor do procedimento e considerava César Franck como seu primeiro
utilizador consciente.
70 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Assim, em oposição ao seu caráter rítmico original, faz com que a melodia ressalte,
contribuindo para o contraste ritmo-melodia entre as seções do movimento.
O Motivo 7, original do segundo movimento – Invenção –, é o que apresenta maior número
de variações na Cadenza. Na Invenção é utilizado como célula principal para a construção
da polifonia a duas vozes. Na Cadenza, especialmente nas seções Exposição da Parte A (cc.
25 a 43), Reexposição da Parte A (cc. 63 a 81) e Coda (cc. 82 a 91), comporta-se de
maneira contrária ao Motivo 4, pois em andamento rápido e com toque staccato, destaca o
elemento rítmico e galhofeiro dessas seções.
O Ex. 4.2 a seguir ilustra uma variação do Motivo 7 durante a Cadenza, que transforma sua
característica original melodiosa e expressiva, com toque legato, para uma qualidade
rítmica, com toque staccato saltitante.
Ex. 4.2. Bocchino, Sonatina para Piano, terceiro movimento – Cadenza – Utilização dos
Motivos 2 (a e b), 3 e 7 durante a Exposição da Parte A
Conclusão
O estudo analítico da Sonatina para Piano de Alceo Bocchino permite um conhecimento
mais aprofundado da obra, de forma a demonstrar a coerência estrutural da composição.
Através da análise percebe-se a utilização de motivos básicos determinados e variações em
torno dos mesmos. Esse procedimento caracteriza um método construtivo bastante
praticado, podendo ser encontrado em uma grande variedade de estilos musicais e,
igualmente, nos materiais da música contemporânea.
Da análise motívica da obra conclui-se que existem oito motivos básicos, e que todos eles
são apresentados nos primeiros dois movimentos – Com Humor e Invenção. O último
movimento – Cadenza – é construído por variações de alguns desses oito motivos (Motivos
2, 3, 4, 6, 7 e 8). Esse procedimento – a forma cíclica de composição – é utilizado como
proposta para reforçar a unidade estrutural de toda a Sonatina, permitindo maior coesão
entre os movimentos.
O terceiro movimento – Cadenza - ora recorda características do primeiro movimento, ora
características do segundo. O compositor procura uma combinação entre os motivos
anteriormente apresentados, utilizando para isso, artifícios que transformam a qualidade
original dos mesmos, e que acarretam efeitos estéticos opostos, como por exemplo, de
rítmico para melódico.
A abordagem analítica-estrutural da Sonatina aponta respostas para a questão “Como
funcionam os elementos do discurso musical e quais são suas relações?” Esse estudo
sistemático orienta e sugere opções para uma interpretação mais consciente em torno de
aspectos como: graus de dinâmica, diferenças de sonoridade entre as vozes, andamento,
Alceo Bocchino: Sonatina para piano 71
caráter expressivo, pontos de tensão x repouso, tipo de toque, uso do pedal. Dessa forma, a
análise promove uma relação íntima entre a obra e o executante o que, como conseqüência,
favorece maior compreensão por parte do ouvinte.
Referências Bibliográficas
ATALA, Fuad. Alceo Bocchino: Um humanista a serviço da música – Série Memória. Rio de Janeiro:
Funarte: Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro, v.9, 2001.
AZEVEDO, Cláudia. “A Rádio MEC como centro difusor da música de concerto no Brasil”.
Brasiliana. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, n. 5, pp. 2–13, 2000.
BOCCHINO, ALCEO. In: Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Compositores.
Divisão de música e Arquivo Sonoro. Acervo Virtual. Disponível em: <http://www.fbn.br/> .
Acesso em: 4 mar. 2001.
CONTIER, Arnaldo D. Música e Ideologia no Brasil. São Paulo: Novas Metas, 1985.
_____. Modernismos e brasilidade: música, utopia e tradição. Tempo e História /organização Adauto
Novaes. São Paulo: Companhia das Letras - Secretaria Municipal da Cultura, 1992.
KENNAN, Kent. Counterpoint – Based on Eigtheenth-Century Practice. 4.ed. Upper Saddle River:
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KESSEL, Carlos. Academia Brasileira de Música. Acadêmicos. Cadeira no 37. Rio de Janeiro.
Disponível em: <http://www.abmusica.org.br/>. Acesso em: 15 mar. 2001.
MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1984.
SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA (PR). Música erudita paranaense. Curitiba, v. 1, 2000.
SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. Tradução: Eduardo Seincman. São
Paulo: Universidade de São Paulo, 1991.
WHITE, John D. Comprehensive musical analysis. London: The Scarecrow Press, 1994.
Josely Machado Bark graduou-se na EMBAP/PR. Freqüentou cursos ministrados por
Beatriz Balzi, Moura Castro, Yara Bernette, Caio Pagano, Antônio Bezzan, Homero
Magalhães, Eudóxia de Barros, Timothy Shafer (EUA), Paul Rutmann (EUA),
Gyorgy Sandor (EUA) e Wolfgang Leibnitz (Alemanha). Após a graduação,
transferiu-se para os Estados Unidos (Ohio), onde se apresentou junto aos renomados
flautista Michel Debost e oboísta Alex Klein. No Brasil, atuou como solista da
Orquestra Sinfônica do Paraná e como professora de piano da EMBAP/PR (1998 a
2000). Premiada em concursos nacionais, participou do 21o Concurso Internacional
de Piano & Festival Bartók-Kabalevsky-Prokofiev (EUA/2001), classificando-se entre
os três primeiros lugares. Na banca examinadora estava Gyorgy Sandor, ex-aluno de
Bartók. Foi pianista acompanhadora oficial das 20a e 21a Oficinas de Curitiba
(2002/2003). Realizou Mestrado na UNICAMP, onde atualmente cursa Doutorado em
Música. Residente em São Paulo/SP desde 2000, participou do VI Fórum 2004 do
CLM na ECA/USP, e do XV Congresso da ANPPOM 2005, no RJ.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real: uma proposta de aproximação com a teoria do
Leitor Modelo
INTRODUÇÃO
A intenção deste artigo é buscar uma adaptação, ou aproximação, da teoria de “leitor
modelo” com uma possível teoria sobre o “ouvinte modelo”, e a partir daí chegarmos ao
ouvinte real, também em aproximação com o leitor real.
A bibliografia que serve de base é quase toda da área da literatura. Isso por dois motivos
principais: 1) este artigo é fruto de um requisito de avaliação para uma disciplina de pós-
graduação em literatura e; 2) a escassez de bibliografia desse ponto de vista aplicado à
música, ao menos em nosso idioma.
Segundo Vincent Jouve (2002, p. 12), “é a expansão da pragmática que vai levar os
estudiosos da literatura a se interessar pelos problemas da recepção.” Algumas teorias
desenvolvidas que obtiveram relevância foram: a de H. R. Jauss, sobre a “estética da
recepção”; a de Wolfgang Iser sobre o “leitor implícito”; de Lintvelt, a do “leitor abstrato”;
de Umberto Eco, sobre o leitor-modelo e; de Michel Picard, sobre o “leitor real”.
Essas teorias prosperaram e tiveram um motivo de existência quando se pensou a leitura, ou
o leitor. A partir do momento em que se admitiu que um texto é escrito para que alguém o
leia, e só a partir dessa leitura tome vida –exista– começou a se pensar o ato, ou o processo
da leitura.
Da mesma forma, esse artigo só tem motivo para ser escrito se considerar que a música é
feita para o ouvinte, e que a música só existe de fato, a partir do momento da audição, ou
escuta1 – até então, ela é apenas música em potencial. O objetivo, portanto, é o de adaptar,
ou aproximar, algumas teorias da leitura para a recepção em música, mais precisamente, a
de leitor modelo.
O que seria o ouvinte modelo?
Algumas questões foram levantadas, mas nem todas respondidas, porque isso demandaria
uma pesquisa muito maior do que a que foi realizada. A música implicada aqui é a canção,
ou seja, a música com letra, e limitaremos os exemplos à canção brasileira.
1
Barthes, Roland. O óbvio e o obtuso.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. No capítulo 2, O corpo
da música, Barthes discute A escuta, e diz que “Ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um ato
psicológico”, p. 217. Assim, mais ligado à atividade estética.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 73
aos percursos impostos pelo texto” (Jouve, 2002 p. 14). Nas palavras de Iser: “repertório e
estratégias textuais se limitam a esboçar e pré-estruturar o potencial do texto; caberá ao
leitor atualiza-lo para construir o objeto estético.” (Iser, 1999, p. 9).
Estrutura do texto e estrutura do ato são assim os dois pólos da situação comunicativa. O
primeiro se realiza no segundo; o texto, portanto, não pode ser tido como resultado, ele
necessita do ato da leitura para ser concretizado. “É preciso descrever o processo da
leitura”, diz Iser, “como interação dinâmica entre texto e leitor, pois os signos lingüísticos
do texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razão de sua capacidade de estimular
atos, no decorrer dos quais o texto se traduz para a consciência do leitor”. E continua “o
autor e o leitor participam, portanto, de um jogo de fantasia; jogo que sequer se iniciaria se
o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra de jogo. É que a leitura só se torna um
prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos
nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades” (Iser, p. 10).
Em Lintvelt (1981), também reconhecemos a teoria de Iser e um passo a mais para o leitor
modelo. O leitor implícito aparece em Lintvelt como “leitor abstrato”: “O leitor abstrato
funciona, por um lado, como imagem do destinatário pressuposto e postulado pela obra
literária e, por outro lado, como imagem do receptor ideal, capaz de concretizar o sentido
total da obra numa leitura ativa. (Jouve op.cit. Lintvelt, p. 44 Grifo nosso).” Essa
capacidade de concretizar o sentido total de uma obra será o ponto-chave do leitor-modelo
de Eco, aqui chamado de “receptor ideal”.
O leitor modelo
Na sua obra “Lector in Fabula”, Umberto Eco trabalha demoradamente a questão da
recepção da leitura. O que interessa aqui é seu leitor-modelo. Segundo Eco, o “leitor
modelo” é um tipo de estratégia textual. “O Leitor-Modelo constitui um conjunto de
condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto
seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”. (Eco, 1986, p. 45)
Para que um texto seja plenamente atualizado, são exigidas do leitor habilidades como
“competência gramatical” e “enciclopédia básica”. Isso é necessário porque o texto é um
“mecanismo preguiçoso (ou econômico)”, “que vive da valorização de sentido que o
destinatário ali introduziu.” Ou seja, o leitor-modelo deve ser capaz de atualizar todos os
“não-ditos”, os “espaços brancos”, os “interstícios”, “as referências”, programados pelo
texto. Deve, enfim, participar desse “jogo”, cooperando2 para que o “conteúdo potencial”
de um texto se concretize. Essa idéia de “jogo” é importante na teoria da leitura e foi
desenvolvida por muitos teóricos.3 Como Eco trata de como o texto programa sua recepção,
deve ser lembrado que Iser diz que o texto não pretende ser mais que uma regra de jogo, ou
seja, o texto organiza e dirige a leitura (ou então, ‘programa sua recepção’).
2
Umberto Eco diz que “como cooperação textual não se deve entender a atualização das intenções do
sujeito empírico da anunciação, mas as intenções virtualmente contidas no enunciado”.
3
Essa questão do jogo não se restringe à teoria da leitura, também em outras artes isso é discutido.
Johan Huizinga discute amplamente em Homo Ludens a questão do jogo nas culturas e nas artes,
assim como Schiller. Referente ao texto, Michel Picard escreveu “A leitura como um jogo”, onde
destaca o leitor real.
74 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Claro que o “leitor modelo” é apenas um modelo, um ideal. Há textos em que, por demais
complexos, o jogo pode ser ilimitado e por isso inalcançável ao leitor real, e até mesmo ao
autor real – a propósito, deve ser lembrado que a regra do jogo é o texto, e o que está
ativado no texto deve ser atribuído à intenção do “autor modelo”, mesmo que ela não seja a
intenção do autor empírico, ou autor real. (Eco, 1986, p.46).
O ouvinte modelo
Ora, sendo o leitor-modelo uma estratégia textual, devemos encarar o ouvinte-modelo, para
modo de aproximação, como uma estratégia de escuta. A princípio é simples e podemos
definir o ouvinte modelo como sendo um conjunto de condições de êxito, musicalmente e
textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que uma canção seja plenamente
atualizada no seu conteúdo potencial. Praticamente a mesma definição que Umberto Eco
deu ao leitor modelo.
É preciso destacar o caráter musical e textual da canção. Como esta possui texto é possível
utilizar a teoria da leitura para a análise textual –sobretudo as de análise de textos poéticos;
embora as referências aqui citadas não tenham explorado esse tipo de escrita, que se mostra
mais complexa às vezes, com mais “não-ditos”, “espaços brancos”, “interstícios”, além de
uma preocupação muito grande com as qualidades musicais das palavras. O leitor modelo,
entretanto, pode ser parte do ouvinte modelo de canção.
O que deve, afinal de contas, ser atualizado pelo ouvinte modelo de canção?
Ora, pretendemos fazer aqui apenas uma proposta primária e na medida do possível
adaptando características do leitor modelo.
Parece que o texto, além de ser atualizado como outros textos poéticos ou narrativos, deve
ser também visto como condutor de uma melodia (assim como a melodia do canto deve ser
tomada como condutora de um texto). É claro que a palavra, independentemente de onde
ela esteja, traz em si uma melodia, mas a melodia na música desempenha um papel muito
destacado, e a palavra ganha contornos que não conhece na fala diária – nem na leitura
poética, apesar de desempenhar papel importante. Então deve ser pensada a relação de
notas dentro da palavra (do texto), assim como sua prosódia e suas características rítmicas.
Wolfgang Kayser4 ao analisar o poema “La Lune Blanche” de Verlaine, segue o seguinte
método: análise da forma; análise do ritmo; da sonoridade e do significado. Parece que esse
método é apropriado, também, para a análise de textos de canção.5
Além das capacidades de interpretação textuais, o ouvinte modelo deve ser capaz de
atualizar as características musicais da canção. E nesse momento a questão deixa de ser
4
Kayser, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Sucessor-Coimbra: Armênio Amado,
1976. p. 164.
5
Dizemos “textos de canção” porque apesar de alguns autores considerá-los poemas isso é discutível.
Poderia ser usada então apenas a expressão “letras de música”, ou ainda “letras”, no entanto, estas
deixariam de fora poemas, textos em prosa e outros textos quaisquer que foram musicados mas que
não foram compostos para esse fim. Mas é preciso esclarecer, já que citamos R. Barthes, que não
entendemos “texto” como ele entende. “Texto” aqui são textos escritos, quaisquer textos musicados –
para Barthes, qualquer prática significante é um texto.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 75
simples. Em uma aproximação com a teoria do leitor modelo, poderia ser dito agora que o
ouvinte modelo deve possuir, além da capacidade auditiva, uma espécie de “dicionário
mínimo” e de “enciclopédia básica”. Mas o que seria esse dicionário e essa enciclopédia
musicais? Prematuramente podemos dizer que um dicionário de base em música,
corresponde a um conhecimento mínimo de harmonia, melodia e ritmo.6 E uma
enciclopédia seria o conhecimento do uso desses aspectos. Porque no seu uso ocorrem
“jogos”. Por exemplo: na canção “eu te amo” de Tom Jobim e Chico Buarque, a harmonia7
segue uma relação não muito comum na canção “popular”, o que pode ser entendido como
um jogo - há quebra de expectativas e se o ouvinte não percebe é como se não houvesse.
Na canção “O pulsar”, Caetano Veloso musicou um poema de Augusto de Campos. No
poema, as vogais são inicialmente substituídas por símbolos como estrelas e bolas; ao
musicar, Caetano buscou trazer essa intenção ao atribuir para cada vogal uma determinada
nota.
Na frase:
Onde aparece o pequeno círculo, canta-se com a nota dó, onde aparece uma estrela, a nota
ré numa oitava superior e onde aparece “a”, a nota sol. Além de saber quais notas são, seria
interessante saber que essas notas correspondem ao I, II e V graus da escala, nas quais boa
parte da música se baseia.
O ouvinte deve fazer atualização das citações. A citação musical pode não ser tão freqüente
quanto a textual, mas também ocorre. Às vezes ela ocorre de forma muito clara, em
fonogramas introduzidos durante a execução da canção. Em “Jack Soul Brasileiro”, Lenine
faz uma homenagem a Jackson do Pandeiro. Nesta canção ocorre referência no texto:
“quem foi? / que fez a ema gemer na boa”,
aludindo à canção “O canto da ema”; citação textual:
“Tião. Oi/ Foste? Fui/ Compraste? Comprei/ Pagaste? Paguei/
Me diz quanto foi/ foi quinhentos réis”,
que é um trecho da canção “Cantiga do sapo”; citação cantando um trecho de “Chiclete
com Banana”; e citação com inserção de fonograma da “cantiga do sapo”.
Um outro tipo de citação é a da melodia. Na canção “Baião de Quatro Toques”, por
exemplo, de Zé Miguel Wisnik e Luiz Tatit, a melodia cita quase que na canção inteira a
Quinta Sinfonia de Beethoven, baseando-se no mesmo motivo rítmico-melódico que a
sinfonia e ainda no texto faz-se a referência e dá a pista:
6
Esses são considerados os pilares da música tonal, que abrange quase toda a canção brasileira, pelo
menos a chamada MPB, de onde extraímos nossos exemplos.
7
A harmonia é a relação entre as notas, quando notas são relacionadas simultaneamente tem-se um
acorde. A seqüência dos acordes segue uma determinada lógica dentro da música tonal, música que
abrange a maior parte das canções brasileiras.
76 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
“pra quem compôs, pra quem tocou e pra quem ouve / é o destino que sempre se quis / é
uma quinta sinfonia de Beethoven / que decantou e só ficou a raiz”.
Além dessas, podemos lembrar o arranjo. A identificação dos instrumentos, seus timbres e
o uso desses pode interferir na escuta. Na canção “Terra”, Caetano Veloso, ao cantar a
palavra Paraíba ao final da seguinte frase:
“Mando um abraço pra ti, pequenina
Como se eu fosse o saudoso poeta,
E fosses a Paraíba”.
um triângulo, instrumento fundamental nos arranjos de forró e baião, começa a ser tocado8 -
mas não aparece em “primeiro plano”. Esse detalhe do arranjo é parte do jogo: a letra faz
referência à “Paraíba” de Luiz Gonzaga (“O rei do baião”)e Humberto Teixeira, no qual se
canta:
“Hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina.
Paraíba masculina, muié macho sim, sinhô.”
Em “samba de uma nota só” acontece um jogo interessante. A letra canta o que acontece
com a linha melódica. Quando se canta:
"Eis aqui este sambinha/ feito numa nota só/ outras notas vão entrar/ mas a base é uma
só",
a melodia é toda tocada na nota ré. Um jogo explícito.
Quanto à percepção musical, José Estevam Gava faz uma afirmativa importante acerca de
João Gilberto, que serve para pensarmos a condição da escuta em geral. Diz Gava que no
“num mundo ‘minimalista’, como é o de João Gilberto, uma pequena diferença é o que
conta. Mas só adquire sentido quando é bem ouvida, com a devida reverência. Por isso
requer atenção e, outra condição básica, silêncio total. Caso contrário, os minúsculos
detalhes cuidadosamente trabalhados se perdem inutilmente, diluem-se em algo
aparentemente repetitivo e monótono” (Gava, 2002 p. 97). Os jogos de João Gilberto
ocorrem, sobretudo, nos aspectos musicais (harmonia, melodia e arranjo).
Isso é importante para destacar duas questões: 1) em quais condições se escuta a canção, e;
2) cada canção requer seu ouvinte modelo.
Podemos perguntar se a canção é um mecanismo preguiçoso, ou então, tão preguiçoso
quanto o texto. A princípio parece que não. Uma pessoa pode entrar em um restaurante e
ser tomada de assalto por uma música, inclusive uma música que não gosta, a qual nunca
escutaria em casa. Mas ela esta sendo tocada, contra a sua vontade. Basta sua faculdade
auditiva para perceber. Ao contrário, pode ser sua música preferida, e então ela ficará
8
Esse arranjo se encontra no disco Prenda Minha de 1999, faixa 4. Importante notar que é muito
comum a mudança de “roupagem” das canções. Nesse sentido ela é muito mais flexível que um texto.
Pode-se cantar uma canção sendo acompanhada por uma orquestra, ou por um violão apenas. Sem
dúvida isso interfere na escuta.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 77
satisfeita em ouvi-la e lhe dará atenção. Mas como, em um ambiente com "ruídos", alguém
pode realizar o jogo da cooperação?
Nesse momento precisamos nos apoiar em Barthes e dizer que a escuta é um exercício de
“inteligência, isto é, de seleção”. Então o ouvinte pode direcionar sua escuta para uma
canção mesmo em um ambiente ruidoso. Mas, como lembra o próprio Barthes, “se o fundo
auditivo invade todo o espaço sonoro (se o ruído ambiente é demasiadamente forte), a
seleção, a inteligência do espaço já não é possível, a escuta é lesada.” (1990, p. 218) Assim,
é possível escutar canção em ambiente não silencioso, mas a escuta é lesada (o que
impossibilita a cooperação ideal).
Por isso, muitas vezes o ouvinte real, se distancia do ouvinte modelo: a condição de escuta
não é adequada. Ouve-se música no trânsito, enquanto se realiza uma leitura (que exige
atenção), enquanto bate papo, enquanto janta em um restaurante, enquanto bebe em um bar
etc. (Nesses casos parece que a canção desempenha uma espécie de função: uma função de
passatempo prazeroso, ou de “preenchedora” de ‘espaço sonoro’, enquanto outra atividade
é praticada).
Além disso, há uma questão de tecnologia: os alto-falantes mais acessíveis no comércio,
muitas vezes não são adequados para a execução de uma canção - eles tendem a prejudicar
a audição dos sons mais agudos e mais graves.
Ou então, o ambiente ruidoso foi uma opção. Cada canção, pressupõe seu ouvinte modelo
(assim como o texto o seu leitor). O ouvinte modelo de Chico Buarque pode se parecer com
o de Caetano Veloso, que pode se parecer com o de Tom Jobim, ou João Gilberto. Mas
certamente eles são bem distintos do ouvinte de “Festa no apê”, versão do cantor Latino.
Usamos esses extremos para lembrar que se a música, assim como o texto, é apenas a regra
do jogo, o jogo proposto em uma, pode ser completamente diferente do jogo proposto em
outra. Enquanto necessita silêncio para seguir as regras do jogo numa gravação de João
Gilberto, necessita a dança para seguir as regras do jogo de um “funk”, ou de uma “música
axé” executada em cima de um trio elétrico. Cada canção requer seu próprio ouvinte
modelo.
O ouvinte real
Se o ouvinte modelo, como o leitor modelo, são estratégias e ideais de interpretação, não
podemos perder de vista a “lei pragmática”, segundo a qual “a competência do destinatário
não é necessariamente a do emitente” (Eco, 1986, p. 38), e nesse caso podemos pensar no
próprio texto como emitente, e ter em vista sua ilimitada gama de referências possíveis.
Michel Picard diz que o leitor real, e podemos estender ao ouvinte real, é aquele que
“apreende o texto” e a canção (no caso proposto), “com sua inteligência, seus desejos, sua
cultura, suas determinações sócio-históricas e seu inconsciente” (Jouve, 2002, p. 15), e por
esses fatores delimitados. Jouve diz que apesar de Umberto Eco ter feito uma leitura com
“intensidade cooperativa”, “lucidez” e “clareza” da novela “Un Drame Bien Parisien”, é
legítimo questionar se o resultado seria o mesmo de uma outra leitura lúcida, clara e
intensamente cooperativa realizada por outro teórico (2002, p. 48). O mesmo pode ser dito
para uma análise de canção.
78 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
O ouvinte real é, na maioria das vezes, leigo ou amador no que tange aos conhecimentos
musical e literário. Mas isso não impede que a canção seja obra demasiadamente apreciada
– talvez o gênero musical mais consumido atualmente, e certamente o é no Brasil. O
ouvinte, mesmo não especializado, extrai prazer dessa prática.
Nesse ponto queríamos chegar: é preciso possuir mesmo amplos dicionário e enciclopédia
musicais e textuais para ser bom ouvinte? Para extrair prazer?
Como já foi proposto antes, essas seriam condições para ser o ouvinte “modelo” de canção,
mas para ser simplesmente ouvinte não parecem necessárias. Não queremos, no entanto,
fazer a defesa da estupidez. É certo que participa mais do jogo quem conhece melhor as
regras e sabe delas desfrutar. Por conseguinte, como uma canção não é um produto que
surge do nada, ou seja, faz parte de uma história, o conhecedor de canções tem mais
condições de apreciar uma obra do que quem não tem contato com esse tipo de gênero.
Parece viável propor que o ouvinte em geral busque participar do jogo. Sendo ou não
ouvinte modelo (mesmo porque esse não existe – nos termos postos por Eco, nem o autor
real é um receptor modelo!), o que deve ser buscado é a interação, é a cooperação. Mas por
quê? Por que deve? Por que essa obrigação? Arriscamo-nos responder: porque a canção
serve para isso. Ela é uma proposta que só se concretiza no ato da escuta, assim como o
texto só se concretiza no ato da leitura, ela existe porque existe o receptor e quando o
esforço pela sua concretização é maior, mais ela se concretiza, mais largamente, então: ela
se torna “maior”. O tamanho dela dependerá do seu ouvinte. E um dos prazeres do ouvinte
está justamente nesse ato de atualização.
O que postulamos é que um ouvinte atento pode possuir um determinado “senso prático”
(ou um “conhecimento prático”), que o possibilita a apreciação. Ele é capaz de definir
alturas melódicas, ter uma noção da orientação produzida pela harmonia (tensão e repouso,
cromatismo...), reconhecer instrumentos, ter senso rítmico, possuir uma memória auditiva
que o permite fazer comparações etc. A mesma capacidade que as pessoas em geral
desenvolvem para o texto. Ninguém precisa saber o que é um lexema ou um morfema para
aprender a ler. Ninguém precisa ter a definição de semântica para entender o sentido de um
texto.
Tentemos um exemplo para afirmar a possibilidade de escutas musicais sem o necessário
auxílio do conhecimento técnico: a canção “O Extremo Sul” de Zé Miguel Wisnik.
Afirmamos que há uma citação de uma outra canção, uma citação sutil.
Pois bem, o que se exige do ouvinte para que se perceba isso? (como podemos perguntar: o
que se exige do ouvinte para perceber o cromatismo de “Eu Te Amo?”). Talvez a resposta
seja: perspicácia!
Claro que se ele nunca tiver ouvido “Felicidade” do gaúcho Lupicínio Rodrigues, não será
possível tecer relação alguma. Mas um ouvinte perspicaz pode perceber a semelhança na
curva melódica entre esses dois trechos apresentados, sem saber quais notas formam os
intervalos semelhantes. A letra ainda dá a dica da citação para os mais desavisados: “te
amo tanto te chamo tanto / será sempre mais ao sul / ou mais azul / felicidade / o sonho de
viver”.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 79
O que estamos rodeando, e pensamos como conclusão para a questão do ouvinte real, é o
seguinte: leitor e ouvinte modelos não existem. O que existe são leitores e ouvintes reais,
uns mais arrojados que outros, para os quais o conhecimento técnico é fundamental para o
profundo desfrute de uma obra, qualquer que seja. Mas não podemos afirmar que um
conhecedor de música e texto tenha uma percepção de uma canção necessariamente melhor
do que a do não conhecedor (é bem provável que seja, mas não o é necessariamente), que
um ouvinte seja melhor que um outro. O certo é que o ouvinte capaz de atualizar com
argúcia os jogos propostos pela letra e pela música poderá ter mais prazer que o ouvinte
muito delimitado – e a argúcia não é um privilégio de técnicos.
Ninguém precisa abdicar do prazer da audição por não possuir um extenso dicionário e
enciclopédia musicais.
Podemos fazer por fim, mesmo que superficialmente, um comentário acerca do ouvinte
brasileiro. Essa intenção vem da leitura dos primeiros capítulos do “Dispersa Demanda” de
Luis Costa Lima. Nesse livro, Costa Lima faz uma crítica dura ao sistema intelectual
brasileiro no que tange, sobretudo, à sua formação, e tenta encontrar as causas dos
problemas que ele enxerga na nossa intelectualidade. Segundo ele, a cultura brasileira é
preponderantemente “auditiva”, herança de uma forte cultura oral, mas diferente dela,
porque já possui contato com a escrita, com sistema universitário etc.
A Literatura seguiu por esse caminho, era “cúmplice da oralidade”: “e a maneira de
converter a página escrita em forma oral consistia em oferecer uma leitura fácil, fluente,
embalada pela ritmicidade dos versos iguais (Gonçalves Dias) e pela prosa digestiva (...)
(Lima, 1981, p. 7)”. Assim também os cursos superiores, como o Direito, foram calçados
não na realidade dos fatos, não nas confirmações factuais e sim, baseados no falar bem, nos
artifícios retóricos. Os desdobramentos dessa prática são facilmente identificados nas
tribunas políticas. Costa Lima faz questão de não desmerecer, simplesmente, as culturas
orais. Explica sua crítica ao sistema intelectual “auditivo”: “A base da nossa crítica à
oralidade, entre nós dominante, se baseia no fato de que ela no entanto se dá no interior de
uma civilização da escrita (Lima, 1981, p. 15)”.
Pois bem, talvez isso possa ser aproveitado por um outro aspecto. Essa cultura auditiva
brasileira pode exercer uma influência positiva para o aspecto musical. Não é nada
incomum vermos elogios ao jeito musical do brasileiro, do tino musical, do ouvido do
brasileiro para a música. No Brasil, a canção é marca demasiado forte, às vezes considerada
das melhores do mundo (restringindo ao âmbito da canção popular).
Não são poucos os críticos literários que já salientaram para a força da canção popular no
Brasil. Inclusive, vale lembrar que em quase todos os outros países do mundo, quando se
fala em música popular, pensa-se sobretudo em música folclórica (Carlos Sandroni,9 Philipe
Tagg10). Augusto de Campos no seu “Balanço da Bossa e Outras Bossas” (Campos, 1978)
9
Sandroni, Carlos: “Adeus à MPB”. In: Berenice, C., (Org,) Decantando a República: inventário
histórico e político da canção popular moderna brasileira. Vol. I, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/
São Paulo, Perseu Abramo, 2004. Nesse artigo, Sandroni faz uma reflexão sobre o termo MPB e
conclui que ele não é mais eficaz para definir a canção moderna brasileira.
10
Tagg, Philip, “Analisando a musica popular: teoria, método e prática”. In: Em Pauta. Vol. I, n. I.
Pós-graduação em Música, Mestrado e Doutorado, Porto Alegre, 1989. Nesse artigo, escrito pelo
80 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BERENICE, C., (Org,) Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular
moderna brasileira. Vol.I, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ São Paulo,Perseu Abramo, 2004.
CAMPOS, Augusto. Balanço da Bossa e outras boissas. São Paulo. Perspectiva, 1978.
ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1986.
Em Pauta. Vol.I, n.I. Pós-graduação em Música, Mestrado e Doutorado, Porto Alegre, 1989.
GAVA, J. E. A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1999. 2v.
JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
inglês Philip Tagg, professor de musicologia da Universidade de Montreal, fica bem nítido o que se
entende por música popular para os pesquisadores da Europa e América do Norte.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 81
Resumo: Nesse trabalho propomos uma reflexão sobre os principais paradigmas que
nortearam a pesquisa em musicologia no Brasil, cujas matrizes de pensamento
principais foram o romantismo, o historicismo e o positivismo. A partir dos anos 80
começou-se a elaborar um novo paradigma de pesquisa em musicologia, cujos
contornos apontam para uma abordagem interpretativa e interdisciplinar.
Consideramos que nessa nova abordagem a análise sócio-histórica desenvolvida por
Pierre Bourdieu traz uma valiosa contribuição ao analisar a relação entre produção
musical e seu lugar na economia dos bens simbólicos. Palavras-chave: Musicologia
histórica, positivismo, romantismo, historicismo, Bourdieu.
A visão Romântica
A musicologia constituiu-se como disciplina a partir de 1919, desde então, várias
concepções do que é música e modos de entender o mundo, influenciaram suas práticas de
pesquisa. A concepção do que é música influencia, não só o objeto de pesquisa, mas o
método e as seleções de materiais e fontes. Havendo, portanto, em cada época objetos
priveligiados ou reconhecidamente dignos de pesquisa e outros relegados ao esquecimento.
Entre as visões históricas que mais influenciaram na pesquisa musicológica brasileira, duas
merecem especial destaque e analisa: a visão romântica e o positivismo. Tais influências
não podem ser qualificadas apenas como momentos históricos do desenvolvimento da
musicologia enquanto ciência, mas que perduram até hoje em muitos trabalhos na área, da
mesma forma como ainda persiste no meio artístico a noção de “gênio artístico” como algo
totalmente desvinculado de seu contexto histórico e social. O que revela que nenhuma
corrente de pensamento influenciou tão decisivamente a estética e concepção de arte em
geral como o Romantismo, cujas marcas ainda podem ser notadas na forma como o
imaginário coletivo vê os artistas e na forma como eles próprios vêem a si mesmos.
O Romantismo, que tem início na segunda metade do século XVIII, se contrapõe ao
racionalismo do século XVII e seu desdobramento no Iluminismo que viam na razão a
única fonte legítima de conhecimento. Ele busca no sentimento, na imaginação, na
experiência uma nova maneira de conhecer o mundo e o próprio homem.
No Romantismo o indivíduo encontra o caminho livre para fazer sua interpretação pessoal
da vida. Nesse esforço interpretativo, alguns românticos chegam a dotar a sensibilidade
artística de um poder transcendental, como uma força criadora capaz de ultrapassar as
limitações humanas em direção a um ideal que só pode ser intuído pelo gênio artístico.
Dessa forma, a essência da personalidade romântica é o gênio do artista. Para os
românticos, só a arte é capaz de nos aproximar do indizível, pois nela encontramos algo de
intuitivo, não racionalizado, que nos permite uma aproximação maior com o sentido
profundo das coisas que, muitas vezes, é ocultado pelo conhecimento metódico da ciência.
O gênio seria aquele cuja sensibilidade é capaz de trazer à tona, através da expressão
artística, o sentido profundo oculto para ciência. Shelling afirma que o gênio artístico é a
encarnação do divino no humano.
Esse conceito eterno do ser humano em Deus, como causa imediata de suas
produções, é aquilo que se chama gênio, o “gênio”, por assim dizer, o divino
que habita o ser humano. Ele é por assim dizer, um pedaço da absolutez de
Deus. Por isso, cada artista também só pode produzir tanto quanto esteja
A musicologia histórica: herança e perspectivas 83
Historicismo
A chamada “escola historista” ou historicismo, corrente de estudos históricos cujo principal
representante foi Wilhelm Dilthey (1833–1911), apesar de partir de uma matriz bastante
diversa tanto em termos metodológicos como de referencial teórico, também chega a
84 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
A visão Positivista
A visão positivista, ao contrário da visão historicista, pretende construir uma ciência isenta
de juízos de valor, tendo como modelo as ciências naturais. A relação não é mais de um
sujeito com outro sujeito e sim entre sujeito e objeto. Émile Durkheim considerado o
fundador da Sociologia, inspirado pelos estudos de Comte tenta fazer da Sociologia uma
“física social”. Durkheim pretende tratar os fatos sociais como “coisas”, para que dessa
forma possa afastar-se definitivamente da tradição das ciências do espírito e se aproximar
do modelo das ciências naturais.
Tratar certos fatos como coisas não é, portanto, classificá-los numa ou noutra
categoria do real: é ter para com eles uma certa atitude mental; é abordar o seu
estudo partindo do princípio de que se desconhecem por completo e que as
suas propriedades características, tal como as causas de que dependem, não
podem ser descobertas pela introspecção, por mais atenta que seja (Durkheim,
1983 , p. 76)
Dessa forma, os positivistas pregam o afastamento do pesquisador em relação ao seu objeto
de pesquisa buscando atingir a mesma neutralidade de que gozam as ciências naturais. A
empatia, a proximidade da vivência, buscada pelo pesquisador romântico ou historicista é
vista como algo que deforma e prejudica a análise científica dos fatos. Ao mesmo tempo, o
pesquisador positivista recusa a tentativa de explicar os fatos com base em pressupostos
metafísicos ou noções absolutas, formulando apenas teorias de alcance limitado a serem
complementadas por estudos posteriores. Como afirma o próprio Comte fundador do
positivismo:
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade
de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do
universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se
unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da
observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e
de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus tempos reais, se
resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos
fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da
ciência tende cada vez mais a diminuir ( Comte, 1983, p. 4).
Garantindo-se o rigor do método, os positivistas acreditam que o conhecimento tenderá a
alargar-se progressivamente em um contínuo, como se o progresso científico não
implicasse, na maioria das vezes, na derrubada de todas as teses em que se acreditava até
então. Os positivistas acreditavam que os fenômenos tanto sociais quanto naturais estariam
regidos pelas mesmas leis gerais e que, através da pesquisa científica, poderíamos reduzir
cada vez mais o número dessas leis e, através delas, unificar todas as ciências, através da
unidade em termos de método de pesquisa, o que implica na indiferenciação entre
fenômenos naturais e fatos sociais.
A musicologia histórica: herança e perspectivas 87
1
Sobre o tratamento dos arquivos musicais e sua situação ver: Conclusões e Recomendações do I
Colóquio Brasileiro de arquivologia e Edição Musical. I Colóquio Brasileiro de Arquivologia e
Edição Musical, Mariana, 18-20 jul. 2003. Anais. São Paulo, s.n. 1995. pp. 148–159.
A musicologia histórica: herança e perspectivas 89
Assim se constitui duas categorias de bens simbólicos: a arte erudita destinada às pessoas
que adquiriram as disposições para compreendê-la, e a arte média, produto da indústria
cultural, destinada a um público “médio” que é socialmente heterogêneo.
Os produtos da indústria cultural utilizam-se de recursos imediatamente acessíveis, em
busca da rentabilidade e da extensão máxima do público. Por sua vez, a arte erudita por se
destinar a um público reduzido e contar, muitas vezes, com a subvenção do Estado, pode
fazer experimentos de vanguarda que poderão ser apropriados pela arte média por seus
resultados já testados e garantidos. Assim a arte média é sempre subsidiária da cultura
erudita, pois qualquer inovação poderia por em risco o contato com o grande público, por se
tratar de um efeito ainda não testado. Disso decorre que a arte média é sempre uma cópia
mais acessível da cultura legítima.
Bourdieu explica que não se pode falar propriamente de uma cultura popular porque
enquanto a cultura da classe dominante é transmitida na escola e encontra sua
complementação fora dela como cultura erudita, a cultura popular é desprovida de ambos.
Assim para que possa existir uma cultura popular deveria haver uma forma de produção de
obras “populares” capazes de exprimir o povo de acordo com esquemas de linguagem e
pensamento que definem sua cultura. Mas isso equivaleria, segundo Bourdieu, “a exigir ao
povo que tome de empréstimo à cultura erudita a intenção e os meios de expressão (como
fazem os escritores populistas, burgueses ou trânsfugas) a fim de exprimir uma experiência
estruturada segundo os esquemas de uma cultura (no sentido subjetivo) que, por definição,
exclui tal intenção e tais meios” (bourdieu, 2004, p. 221)
92 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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A musicologia histórica: herança e perspectivas 93
Introdução
A música eletroacústica, desde seu surgimento na década de 1950, trouxe consigo questões
relacionadas a estratégias composicionais que vieram refletir no processo histórico da
música como um todo. Durante anos, simpatizantes da linha Musique Concrète (França) e
os que seguiram a linha da Eletronische Musik (Alemanha), trouxeram à tona discussões
que propiciaram novos meios de realização e vinculação de obras musicais. Tanto a
utilização de sons gravados em diversos ambientes, manipulados e estruturados em estúdio,
quanto a busca da criação e recriação de sons e timbres através de síntese eletrônica foram
incorporados ao conjunto de possibilidades do compositor contemporâneo. E a fusão destes
elementos de natureza distinta gerou basicamente o conceito atual da música eletroacústica.
Esta tendência tem como característica principal o rompimento com a supremacia dos
parâmetros altura e duração, propondo assim, uma nova categoria de escuta, que busca uma
percepção da interioridade dos dados sonoros que trouxeram novos conceitos instaurando
um novo pensar, fazer e ouvir musical.
Boa parte dos estudos relacionados à análise da música contemporânea dedica sua atenção
às músicas conduzidas pelos parâmetros regentes da musica tradicional – altura, duração,
dinâmica e timbre – enquanto suportes para as análises que se apóiam na representação
gráfica em partitura.
Ao utilizar recursos de fixação e processamento sonoro como estratégia composicional, a
música eletroacústica traz uma nova problemática: a questão da escuta no processo
analítico. A escuta musical toma um sentido bem profundo nesta forma composicional, por
esta não possuir o elemento referencial de origem – o instrumento, no sentido tradicional -,
e ainda por não possuir uma notação gráfica objetiva. Caesar (2000) a esse respeito afirma
que “o novo arsenal de ferramentas ocupava um espaço privilegiado, cuja suficiência
poderia prescindir daquilo que de mais próprio a música tinha - seu canal específico - a
escuta”. Por não ser registrada graficamente, mas sim, gravada, esta música irá trazer um
desafio mais intenso para o órgão principal que conduz a atividade musical: o ouvido. O
importante é o som por ele mesmo, as suas relações com outros e a construção temporal
desse discurso musical, tornando inviável o uso da notação tradicional. Varèse (1936, p. 58)
acerca deste abandono de notação impulsionado pela implantação dos instrumentos
elétricos cita: “E aqui é curioso notar, como ao início de duas outras eras – a alta Idade
Média e a nossa era primitiva [...] – que nos defrontamos com o mesmo problema: o de
encontrar uma simbologia gráfica apta a transformar em som o pensamento do compositor”.
Desta maneira, a escuta será vista neste contexto como ponto de partida da análise.
Com a nova fase digital de composição eletrônica, outras possibilidades estão se abrindo no
âmbito da composição onde o desafio da escuta permanece e defronta-se com as formas de
articulação do sonoro apresentados nesta maneira de criação musical. O fenômeno da
música em meios eletrônicos trouxe novas possibilidades de combinação rítmicas e
sonoras, oferecendo assim, uma nova visão da criação musical, dotada de uma diferenciada
Música eletroacústica e um novo escutar musical 95
estética que na maioria das vezes não é compreendida pelos apreciadores de música
tradicional.
Devido à falta de registro gráfico tradicional, existe aqui a dificuldade na descrição da
experiência auditiva, pois neste contexto de criação não há uma grafia clara que sirva de
subsídio para o trabalho analítico, então voltamos à questão da escuta como base de
diagnósticos dos signos presentes neste fazer musical, além da dificuldade encontrada na
descrição do material utilizado que muitas vezes não está previamente distribuído em
sistemas intervalares. Sobre isso Caesar (1994) ressalta que “a ausência de notação - e
conseqüentemente de um átomo elementar, uma unidade mínima - está na base mesma da
especificidade da música eletroacústica: sua irredutibilidade. Não se pode reconstituir uma
obra eletroacústica a partir de sinais gráficos, mas, mais do que isso, falta a ela qualquer
ponto de apoio que permita análises objetivas [grifo nosso]”.
Uma das primeiras tentativas de implantar subsídios para a descrição da experiência
eletroacústica surgiu do compositor Pierre Schaeffer a partir da publicação da sua obra
intitulada Tratado dos objetos musicais (1993) em 1966. Neste livro foram discutidas
formas de trabalhar e classificar o que ele denominou os objetos sonoros e musicais.
Instaurando novos conceitos relacionados à percepção dos eventos sonoros que compõe
uma obra musical. Para essa classificação, foi proposto o exercício da “escuta reduzida”,
que, sugere um tipo especial de atenção musical aos sons: uma ferramenta para avaliação
dos objetos sonoros.
O presente trabalho tem o objetivo de abordar a escuta como principal eixo de condução
para uma apreciação analítica que procura não se utilizar o padrão tradicional instaurados
ao longo da história da música, fundamentando-se nos conceitos trazidos pelo compositor
Pierre Schaeffer, que foi um dos pioneiros a discutir a questão do ouvir como forma de
análise da música eletroacústica.
Novos conceitos
A presença cada vez maior de tecnologias na produção musical contemporânea evoca
questões que se fazem presentes desde a década de 50, quando surgiram as primeiras
vertentes de criação musical em meios eletrônicos. A música eletroacústica tornou possível
que o compositor trabalhe seu material de forma direta criando seus próprios sons em sua
peça. Assim, o envolvimento com o material musical tornou-se muito mais imediato, sendo
oportuno na época em que o serialismo era considerado uma forma de viagem objetiva de
descoberta científica em música.
Duas grandes vertentes de produção musical em meios eletrônicos trouxeram à superfície
técnicas exclusivas que influenciaram a música atual, sabe-se que o corte entre as vertentes
francesa e alemã – conhecidas como musica concreta e música eletrônica, respectivamente
– deveu-se basicamente às diferentes origens dos sons utilizados por ambas (gravados vs.
sintetizados). Em conseqüência dessa diferença, cada uma dessas escolas teria optado por
abordagens do trabalho de composição distintas: o determinismo da escrita, para os de
Colônia, em oposição à complexidade dos sons gravados, para os de Paris.
Essas vertentes, e suas técnicas deixaram algumas discussões estéticas internas que
surgiram em sua época e ainda persistem hoje no discurso musical. O compositor Pierre
Schaeffer – que liderava a corrente parisiense – a partir da publicação de seu Traité des
objets musicaux (Tratado dos Objetos Musicais), em 1966, discutiu novos conceitos que
foram adotados ou reformulados pela música eletroacústica atual e por outras vertentes
musicais contemporâneas. Abordagens como as formas de se trabalhar e qualificar os
96 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
objetos sonoros e musicais, bem como a maneira ideal de se ouvir e entender esse tipo de
linguagem musical, e a nova noção de instrumento musical foram novos conceitos
propostos por Schaeffer que se encaixam em toda e qualquer música, e alguns destes serão
discutidos neste artigo.
O objeto sonoro
O trabalho de Pierre Schaeffer veio trazer não apenas um novo mundo sonoro e musical,
mas também, através de suas conceituações intermináveis indagações que originaram
inquietações sempre experimentadas por muitos compositores e estudiosos de música. Seus
conceitos até hoje são importantes ferramentas para análise e temas para discussões em
cima de uma visão mais íntima para com o fenômeno musical.
Um dos conceitos amplamente discutido e adotado pelos compositores é o que vem a ser o
objeto sonoro. No seu Tratado dos Objetos Musicais, Schaeffer, busca essa definição
lidando com a percepção do sonoro e do musical, decompondo a experiência musical em
alguns quadros e categorias de conceitos. O compositor propõe essa conceituação através
da experiência de uma escuta atenta aos sons, e que ao escutá-los, deve-se desligar qualquer
referência que não seja exclusivamente pertinente às características internas deste som.
Palombini (1999) acerca da nova conceituação Schaefferiana de objeto sonoro coloca que
este:
não é um produto estético, mas uma prática significante; não é uma estrutura,
mas uma estruturação; não é um objeto, mas um trabalho e um jogo (...); não é
um grupo de signos fechados, mas um volume de traços em deslocamento;
não é a significação, mas o Significante; não é a velha obra musical, mas o
Texto da Vida.
Inicialmente antes de definir propriamente o objeto sonoro, Schaeffer começa discutindo o
que não é, e a primeira afirmação é a de que um objeto sonoro não é o instrumento tocado,
pois ele defende que para escutarmos o objeto musical devemos abdicar da função causal
do instrumento, ele reforça dizendo que:
a distinção que desejamos estabelecer entre ‘instrumento’ e ‘objeto sonoro’ é
ainda mais radical: se nos for apresentada uma fita sobre a qual está gravado
um som cuja origem somos incapazes de identificar, o que é que estamos
ouvido? Precisamente aquilo que chamamos de objeto sonoro,
independentemente de toda referencia causal, designada pelos termos de
corpo sonoro, fonte sonora ou instrumento. (Scheffer, 1993, p. 87).
Mesmo que materializado pela fita magnética, o objeto tal como Schaeffer busca definir,
não está tampouco sobre a fita, a fita não é nada mais nada menos que um suporte sonoro,
ou sinal acústico. Daí surge a próxima afirmação do autor: o objeto sonoro não é a fita
magnética, mas sim, apenas relativo à escuta . Sem a escuta de um determinado ouvinte,
estes sons passam a ser apenas sinais físicos fixados em um meio material, pois somente a
escuta é que dará contas do resultado perceptível, necessário para a identificação do objeto
sonoro. E, através das possibilidades de manipulações na fita, é possível a modificação e até
a criação de novos objetos, mas não é este fato que definirá o objeto sonoro, mas sim a
percepção que o ouvinte terá deste, pois existe na verdade “uma ‘correlação’ entre as
manipulações que se infligem a uma fita ou às suas diversas condições de leitura – as
condições da nossa escuta e o objeto percebido” (Schaeffer, 1993, p. 87).
Por ser fruto da percepção, o objeto sonoro tem a aparência de estar fundamentado apenas
na subjetividade de um indivíduo. Entretanto, o autor coloca que apesar de existir uma
variação de percepção de um indivíduo para outro, ele não se modificará. Nota-se que
Música eletroacústica e um novo escutar musical 97
Schaeffer busca o conceito de objeto sonoro em cima de uma percepção apurada sobre a
matéria escutada, para ele o objeto sonoro irá existir quando for completado, ao mesmo
tempo materialmente e individualmente uma redução rigorosa na escuta, ou seja, não se
deve restringir apenas às informações dadas pelo ouvido, não se procura mais obter
informações do evento sonoro (como sua fonte, sua altura precisa, por exemplo), mas sim é
o próprio som em sua essência é que deve ser “observado”.
Deve-se ter em mente - segundo essa teoria proposta por Schaeffer – que o objeto sonoro
pode possuir as propriedades fundamentais de outros objetos percebidos (como o agente
produtor do som, por exemplo), então é “preciso reconhecer, que em um som, é mais fácil
confundir o objeto percebido e a percepção que dele tenho” (Schaeffer, 1993, p. 244), ou
seja, a percepção é algo particular do indivíduo, mas o objeto sonoro não modificará ao ser
apresentado a diferentes ouvintes.
Outro ponto que deve ser colocado em questão é a relação do objeto sonoro com o sinal
físico. Schaeffer defende que o sinal físico não é sonoro em sua essência, pois se deve levar
em consideração o que é captado pelo ouvido. Para a física o conceito deste objeto é
relacionado com as normas e sistemas de referência desta, e a percepção deve ser
fundamentadas em suas grandezas particulares (deslocamento, velocidade, pressões, etc.).
O físico considera que o objeto sonoro não passa de um sinal mensurável, e assim ele acaba
por colocar o sinal físico no começo das análises, e a audição virá posteriormente, o que
contrariará o que Schaeffer quando diz que “é o objeto sonoro, dado na percepção que
designa o sinal a ser estudado, e que não se poderia, portanto, cogitar de reconstruí-lo a
partir do sinal” (Schaeffer, 1993, p. 245).
Schaeffer, ainda coloca que para escutar o objeto sonoro é necessário abdicar de qualquer
referência a alguma fonte que este pode trazer, ou seja, devemos renunciar ao
condicionamento criados por hábitos anteriores. Para essa percepção é necessário voltar à
experiência auditiva, recapitular as impressões, para ser possível encontrar informações
sobre os objetos sonoros, e não a sua fonte.
não podia ser feita, a não ser segundo diferenças morfológicas. E vale lembrar que na visão
schaefferiana, é mais importante e prioritário constatar e compreender o aspecto
morfológico e tipológico do objeto sonoro, do que descrevê-lo, prematuramente por
intermédio de uma notação.
A morfologia surge do exame de efeitos e comportamento através do tempo do objeto
sonoro. Já a tipologia surge do confronto das coleções de sons, dos quais, na intenção de
identificá-los, não se detém mais do que as características mais gerais deste som. Assim, a
morfologia tende a uma qualificação do sonoro enquanto a tipologia está relacionada à
necessidade de identificação os objetos.
Depois de renunciado a todas as referências do objeto, resta então em uma análise,
compará-los entre si, de todas as formas possíveis em seu contexto e suas organizações,
isso seria a atividade da morfologia. Enquanto a tipologia é o ato de separar estes objetos e
identificá-los, e estes são feitos a partir de dados morfológicos.
Na procura de uma caracterização do objeto sonoro, Schaeffer propõe levar da prática de
corpos produtores de som, uma musicalidade universal através de uma técnica de escuta – a
escuta reduzida -, esta é a proposta do denominado Solfejo dos objetos musicais.1 E para a
realização deste solfejo são necessárias fases que compreendem: uma etapa preliminar,
quatro operações e um epílogo ou síntese. Na etapa preparatória, ou etapa preliminar, os
corpos sonoros heterogêneos são colocados em vibração por processos variados e os sons
resultantes são registrados. Na primeira operação que é a da Tipologia, objetos são
extraídos de contínuos sonoros e selecionados ou descartados de acordo com uma tendência
que ele coloca como sendo musical, ou seja, faz-se uma triagem dos objetos que conduzem
à determinação de seu tipo; na segunda fase, a da Morfologia, os objetos selecionados são
comparados, os critérios de percepção que os compõe são nomeados e os objetos são
qualificados enquanto amostras destes critérios; na terceira etapa, o denominado interlúdio
arqueológico, interações de critérios são identificadas no âmbito de um objeto sonoro dado,
sendo então referidas a um evento produtor de som; na quarta, a da Análise, os objetos que
elucidam os critérios são confrontados com os campos perceptivos das alturas, das durações
e das intensidades, a fim de se estabelecerem escalas cardinais (absolutas) ou ordinais
(relativas) de critérios. No epílogo, ou síntese, tem-se a intenção de se produzir novas
músicas baseadas em estruturas de referência dadas pelos critérios de percepção.
A partir da escuta atenta é que se delineia os critérios da morfologia do objeto sonoro – o
qual Schaeffer coloca como sendo potencialmente musical, ou seja, passíveis de emergir
como valores musicais no contexto de estruturações.
Estes critérios, também são denominados critérios de percepção os quais o autor
estabeleceu dois tipos: os critérios de forma e os critérios de matéria. Os critérios de forma
descrevem evoluções temporais sobre o fundo dos critérios de matéria. Estes são separados
como perfis: melódico - em relação às modificações na altura -, dinâmico - em relação à
intensidade - e os de massa em relação ao conjunto das intensidades e dos componentes do
espectro de um som. Já os critérios de matéria têm a função de descrever as qualidades
imediatas, espaciais, dos sons e da massa: sua densidade, espessura e complexidade (em
oposição à “tonicidade” dos sons de espectro harmônico dos instrumentos musicais);
avaliando ainda o timbre harmônico existente em determinadas massas.
1
Jean-Claude Risset (in Menezes, 1996, p. 185) define os Solfejo dos objetos musicais, de Schaeffer,
como sendo uma “cartografia” do domínio sensível que permite a referência de qualquer objeto
sonoro no espaço de sons percebidos, consistindo no que ele chama de um “esboço metódico”
suscetível de esclarecer e de nortear uma procura de correlações entre as particularidades do som e os
critérios da sensibilidade.
Música eletroacústica e um novo escutar musical 99
Existe na região que está entre forma e matéria ainda dois outros critérios, que são: o grão,
que descreve a experiência que fica na fronteira entre pulso espaçado - aspecto temporal - e
diferentes rugosidades ou outras qualidades quase palpáveis - aspectos espaciais - da
massa; e a allure, que seria um modo de “andar” do objeto sonoro, em outras palavras,
modos ondulatórios de se mover no tempo, tais como o vibrato (de altura), o tremollo
(dinâmica) e ainda uma allure de massa.
Poderia haver ainda outras maneiras de descrever do sonoro ao musical como recorrer a
analogias, como as que usamos diariamente, por exemplo “som agudo”, “penetrante”,
“ácido”, “tenso”, etc; mas Schaeffer condena o uso de analogias para o descrever sonoro,
defendendo que esta “apenas traduz a profunda dificuldade em que nos encontramos para
descrever o objeto em si, fora de toda estrutura” (Schaeffer, 1993, p. 388).
Conhecidos as categorias e funções do objeto, cabe ao compositor impor limitações
pertinentes para se trazer à luz tal ou qual mecanismo ligado a essas classificações é próprio
para o ato musical, pois localizar o critério é uma coisa, outra coisa é calibrá-lo, esta
consiste em uma tarefa mais complexa. O compositor deve ter uma primeira atitude de
explorador, para assim se tornar conhecedor desses critérios e categorizações, para que se
conceba uma obra dotada de grande originalidade e autenticidade. E para reforçar esta
questão, pertinentemente Schaeffer afirma:
o progresso musical se dá talvez por tal preço: talvez a meta de um compositor
inteligente não devesse mais ser a de uma casualidade elíptica que o levasse
diretamente à obra, ele deveria optar pelo âmbito estreito [...] de um exercício
preparatório. [...] É no nível do solfejo que propomos a abordagem
experimental, pré-condição de uma inspiração musical autêntica e realista.
(Schaeffer in Menezes, 1993, p.159).
A música eletroacústica a partir do seu surgimento, trouxe então de volta esta questão do
escutar como principal recurso analítico, que até então a música havia de certa forma dado
uma menor atenção em relação à escrita durante muitos séculos, por ser a grafia musical um
principal suporte de análise. Sua elaboração com novos materiais e matérias no interior do
som, trouxe conseqüências irreversíveis para o pensamento musical. As novas tecnologias
ainda não se tornaram capazes de apontar modelos de análise determinantes e objetivos
para descrever, ou de qualquer outra forma representar as obras dessa nova música. Essas
novas ferramentas para a composição ocuparam um espaço privilegiado e suas habilidades
trouxeram a possibilidade de voltar a atenção àquilo que de mais próprio a música tinha, o
seu canal característico - a audição.
Schaeffer, como já mencionado ao longo deste artigo, foi o responsável pelas primeiras
tentativas de sistematizar aportes para a escuta de músicas feitas com as novas tecnologias.
Seu trabalho era motivado pela inquietação em buscar contribuições que levassem a um
conhecimento mais profundo da música. Suas pesquisas eram desenvolvidas sob a visão de
que a música deve permanecer em seu território como uma arte para ser “escutada” por um
sujeito “ouvinte”.
Com o desenvolvimento da música em meios eletrônicos, surgiram problemas com os
novos meios de realização sonora, pois os resultados finais solicitavam conhecimentos -
para análise e para síntese – que até então não eram discutidos pela teoria tradicional. Não
sendo suscetível de notação gráfica de partituras tradicionais, esta música dependia
unicamente do ouvido para ser apreciada e analisada. Havia então, a necessidade de uma
nova linguagem para sua descrição. O material, na música eletroacústica, não é de natureza
discreta, ou seja, não está previamente distribuído em sistemas intervalares. Ele pode ser
analisado na sua natureza física, mas, a análise não estará em seqüência com a imagem
sonora produzida na percepção. Esta série de rupturas, de não causalidades, entre o som e
sua origem, o gesto que o originou, é responsável pelo grande esforço em encontrar um
repertório de equivalências que dêem conta da complexidade sonora e composicional da
música eletroacústica. Por este fato, Pierre Schaeffer assumiu esta nova problemática pelo
caminho que lhe era mais pertinente, o da escuta orientada com seu projeto mais
ambicionado, o de uma comunicação universal.
As quatro escutas
Na busca de uma escuta significativa dos objetos sonoros e musicais, e em busca do seu
conceito de “escuta reduzida”, Schaeffer propõe a teoria de quatro funções para esse ouvir
mais atento: o ouvir; o escutar; o entender e o compreender.
2
Significante aqui é visto como parte física ou material que representa qualquer signo; e o significado
é o valor representativo do signo (Objeto em sua essência).
102 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
4. 1.
compreender escutar
3. 2.
entender ouvir
A escuta reduzida
Preocupado com a problemática da escuta instaurada pela música eletroacústica, Pierre
Schaeffer buscou uma metodologia de análise dos fenômenos sonoros que fosse baseado
pricipalmente no ato de ouvir. Esta análise se dava pelo processo perceptivo dos dados
qualificáveis dos sons, em oposição aos dados notáveis da partitura tradicional. E através do
que denominou escuta reduzida, o autor procurou identificar os aportes da escuta através da
descrição os objetos sonoros. Estes aportes da escuta foram identificados pela descrição dos
objetos sonoros através da escuta reduzida. E este conceito abriu a porta para uma crescente
vitalização dos modelos de escuta na música de um modo geral. Sobre a escuta reduzida
Caesar (2000) diz que o modelo “gerou diversos desmembramentos que hoje arborizam os
saberes da música e de sua escuta. Depois da música em si, como obra, esses
conhecimentos têm sido o maior aporte das tecnologias recentes, mesmo quando acontecem
a despeito de seus instigadores”.
A proposta schaefferiana trata-se de uma nova escuta fenomenológica dos tipos e
morfologias sonoras fundamentando-se nos conceitos e formulações de Edmund Husserl. A
escuta reduzida então consiste em exercitar a escuta dos objetos sonoros desligando
Música eletroacústica e um novo escutar musical 103
qualquer referência que não seja exclusivamente pertinente às características internas deste,
esta afirmativa é baseada na “redução fenomenológica” de Hursserl – daí advém o nome
“escuta reduzida”.
Na tentativa de descrição deste experiência, o autor coloca que o objeto é o pólo de
identidade inerente às vivencias particulares3 do indivíduo que o percebe e, no entanto
transcendente em sua identidade que ultrapassa essas vivencias particulares, ou seja, o
objeto percebido não se confunde de forma alguma com a sua percepção, é necessário por
“entre parênteses” sua relação com o mundo exterior, e perceber o “objeto em si” mesmo,
sem sua referencialidade exteriores – neste caso o instrumento gerador do som. É o que
Husserl chama de epoché, que é o “colocar entre parênteses”, isto é, desvencilhar o objeto
do mundo e percebê-lo em sua essência.
Assim, através desta escuta especializada é que encontramos o objeto sonoro, fruto da
epoché. Primeiramente é necessário renunciar às formas tradicionais de percepção, é
indispensável buscar esvaziar a consciência dos conteúdos habituais e rejeitar índices e
valores que orientam a percepção de qualquer indivíduo, ou seja, uma suspensão de
relações simbólicas e indiciais (como referências ao solfejo tradicional e à fonte ou à
causalidade do som).
Desta maneira, este processo implicará em uma escuta com um caráter autêntico de análise,
e este exercício de redução do campo perceptivo por eliminação das origens mecânicas ou
referenciais dos sons consistirá em enumerar nos mesmos, apenas suas características
conforme a redução fenomenológica. Os sons são apreciados quanto às suas texturas,
densidades de massa, perfis melódicos, dinâmicos, etc – critérios de percepção
mencionados anteriormente.
O exercício da escuta reduzida se resume então, à construção de uma escuta generalizada e
integral, a escuta que não só ouve e escuta, mas entende e compreende à conclusão do
processo.
Conclusão
Alguns compositores e teóricos acreditam ser um erro projetos para análise de obras de
música eletroacústica, por esta não possuir critérios de análises práticos instituídos pelos
parâmetros de percepções tradicionais. O ouvir analítico da música eletroacústica porém
nos remete a uma experiência única no contato mais íntimo com a obra. Através da atenção
voltada aos eventos sonoros em si, há uma certa obrigação em estabelecer uma relação mais
íntima com a música. Ao mesmo tempo, torna-se difícil esse contato, devido ao
condicionamento adquirido ao longo do processo de aprendizagem musical, que busca
auxílio nas características mensuráveis do som, critérios estes estabelecidos pela prática da
escritura musical. Porém este processo trata de uma experiência singular, por estabelecer
uma relação extremamente próxima ao fenômeno sonoro/musical em si.
Novos conceitos são adotados ao se perceber a interioridade do som, e o exercício da escuta
reduzida, proposto por Schaeffer, pode ser considerado uma abertura para uma escuta
generalizadora, onde se busca voltar a atenção para efeitos mais amplos e conseqüências
conceituais radicais derivadas da diversidade desse universo qualitativo e não quantitativo
do evento sonoro, chamando a atenção para a necessidade de re-direcionamento do foco
analítico para a escuta.
3
É através do que ele denomina como unidade de intenção, ou atos de síntese que o objeto se dirige à
essas vivencias.
104 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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interdisciplinares
Resumo: Nesse trabalho são apresentados aspectos sobre fatores do desempenho que
intervêm na prática instrumental, mais especificamente, força, fadiga, flexibilidade,
rapidez de movimento e coordenação motora. Busca-se estabelecer relações entre os
fatores em destaque e a ação pianística, visando à eficiência do trabalho técnico-
instrumental. Vêm sendo agregados argumentos interdisciplinares para o
desenvolvimento de uma consciência anatômica e cinesiológica dos membros
superiores em conexão com a prática, resultado sonoro e a manutenção da saúde das
estruturas anatômicas ativas durante o trabalho instrumental. Correlações entre
argumentos e situações específicas de treinamento pianístico permitem antecipar que
há benefícios na prática de recursos técnico-instrumentais que consideram aspectos
inerentes a fatores do movimento humano. Palavras-chave: ação pianística; fatores do
desempenho; prática instrumental; técnica; interdisciplinaridade.
Introdução
Esta investigação é um recorte da pesquisa "Fatores do Desempenho e Ação Pianística -
Uma Perspectiva Interdisciplinar" cujo foco é o estudo de determinados fatores do
desempenho (movimento) que intervêm na prática pianística, mais especificamente, força,
fadiga, flexibilidade, rapidez de movimento e coordenação motora. Tem sua origem em
argumentos apresentados por Póvoas (1999) e como referencial os pressupostos de Rasch
sobre o desempenho humano, este entendido como “a expressão de vários componentes
denominados fatores do desempenho” (Rasch, 1991, p. 183–193).
Entre seus objetivos estão: investigar e discutir sobre os fatores em destaque e suas
implicações na utilização de recursos técnico-instrumentais, estabelecer relações entre
aspectos a eles inerentes e a ação pianística1 com vistas à eficiência do trabalho técnico-
instrumental e discutir sobre implicações que a utilização das relações levantadas, na
prática, têm no desempenho. O movimento é considerado o elemento-meio da atividade em
foco cuja ação físico-motora está sujeita à intervenção de vários fatores e,
conseqüentemente, aspectos a eles relacionados interagem na atividade instrumental.
A revisão bibliográfica tem por base pressupostos teóricos interdisciplinares. Integra
abordagens da área pianística e de áreas que tratam de questões referentes ao movimento
humano, a citar, cinesiologia, biomecânica e ergonomia. São discutidos procedimentos para
o desenvolvimento de uma consciência anatômica e cinesiológica dos membros superiores
em suas relações com a prática, resultado sonoro e a manutenção da saúde das estruturas
anatômicas mais ativas durante o trabalho instrumental objetivando a otimização do
desempenho. As áreas que tratam do movimento humano como meio de produção de uma
atividade seguem a tendência de buscar uma melhor compreensão dos fenômenos
envolvidos na interdisciplinaridade. Esta permite uma maior abrangência dos recursos
teóricos e práticos alicerçados tanto na funcionalidade dos recursos já disponíveis quanto
nos resultados de novas investidas e experimentos específicos.
Resultados de estudo piloto (experimento biomecânico), realizado em etapa anterior desta
pesquisa, apontam para o aprofundamento das relações entre questões técnico-instrumentais
e aspectos mais específicos a cada um dos fatores em estudo. Neste sentido, estão sendo
1
Ação pianística: atitude criativa e interpretativa construída através do processamento das questões
envolvidas na música selecionando, coordenando e realizando tanto os elementos da construção
musical que constituem e caracterizam cada obra quanto os movimentos que possibilitam esta ação
(Póvoas, 1999, p. 81).
106 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
eficiência da uma ação com resultados ótimos (Meinel, 1987), a busca por um equilíbrio
entre o uso de força com outros parâmetros, deve ocorrer. Este conceito se aplica à ação
pianística quando se pretende que os movimentos adequados ao design da obra, ou de
partes da obra em estudo, sejam organizados e realizados em função de uma sonoridade
prevista. Desta forma, a “razão do movimento” deve determinar quais os procedimentos
mais eficazes para que a relação causa - efeito sonoro seja otimizada. Tal condição pode ser
o resultado da conexão entre a realização da técnica, e aqui se inclui o equilíbrio entre a
aplicação da força, a real necessidade de energia que o texto musical requer que seja
despendida e o tempo de treinamento ou prática instrumental.
Um dos fatores do desempenho que está diretamente associado à resistência muscular é a
fadiga. Assim sendo, o estudo sobre causas e efeitos da fadiga na atividade humana é de
interesse para a área pianística. Entre as definições de resistência, uma delas diz que “a
resistência é a capacidade de realizar o mesmo trabalho durante um período de tempo [e] a
fadiga é definida como uma falha em manter a força necessária ou esperada de contração
muscular” (Lehmkul & Smith, 1989, p. 115). Segundo os autores, uma atividade muscular
prolongada pode levar a conseqüências que incluem “a acumulação dos produtos das
reações químicas que diminui a velocidade das reações subseqüentes”. Assim, a realização
de tarefas exaustivas pode resultar em fadigas musculares que são, mais precisamente, o
produto do ácido láctico acumulado no sangue e nos músculos devido ao trabalho físico-
muscular além do limite saudável.
Quanto ao efeito da fadiga em termos bioquímicos, o relaxamento de um músculo depende
da disponibilidade de adenosina trifosfato (ATP) e, igualmente, do nível de oxigênio e
nutrientes adequados para prover este músculo de ATP e mantê-lo apto para responder, por
um período mais longo respostas de baixa freqüência de tetania, ou seja, contraturas dos
membros superiores. Assim, para que o músculo possa sintetizar a ATP, esta freqüência
deve ser baixa a uma taxa suficiente para manter a taxa de quebra de ATP durante a
contração (Nordin & Frankel, 2003).
A informação acerca da fadiga muscular pode ser obtida quando, depois de determinado
número de repetições, há uma redução de tenção máxima (torque) de um grupo muscular. A
fadiga de um grupo muscular pode ser causada por falha de um ou mais mecanismos
neuromusculares que participam da contração muscular (Fox, 1993) e a ausência de
contração voluntária pode ocorrer devido a falhas do nervo motor, da junção
neuromuscular, do mecanismo contrátil e do sistema nervoso central. Entre as falhas
relacionadas ao sistema nervoso está a incapacidade de retransmissão dos impulsos
nervosos para as fibras musculares. Assim sendo, a habilidade do músculo de exercer
tensão durante um período de tempo é a resistência muscular. Nela, a tensão pode ser
constante ou variável e “fatigabilidade é o oposto da resistência [e] quanto mais rápido um
músculo fadiga-se, menor é sua resistência” (Hall, 1993, p. 71).
Se a fadiga dentro do mecanismo contrátil pode ser causada pelo acúmulo de ácido láctico
no sangue e nos músculos, a recuperação deste estado para um de não fadiga depende da
remoção do ácido e o tempo de remoção pode variar dependendo da forma de repouso. A
que se considerar, também, que a fadiga está diretamente relacionada aos princípios da
amplitude de movimento e de recuperação que pode ser acelerada durante pausas de
repouso por meio de massagens e movimentos ou exercícios de alongamento (Rasch,
1991). Fox (1993) chama de repouso-recuperação a recuperação que consiste em um
repouso total, ou seja, a completa ausência de exercício durante o tempo de descanso. O
chamado repouso-exercício é aquele no qual a recuperação é acompanhada de exercícios
leves, como o também chamado “esfriamento” para o atleta. Este mesmo argumento pode
ser altamente válido na prática pianística. Segundo Fox, “o acido láctico é removido mais
108 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
2
Articulações são conjuntos de elementos, anatomicamente definidos, que fazem ligações entre os
ossos. As articulações do membro superior, diartroses, são amplamente móveis e permitem ao corpo
mover-se.
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental 109
com quase nenhuma velocidade de movimento que pouco favoreceria o sistema circulatório
e o relaxamento. Exercícios de alongamento anteriormente à prática pianística vêm sendo
praticados com o objetivo de preparar as estruturas do membro superior para um esforço
maior e gerar uma maior consciência corporal e sensação do movimento.
Para Pereira (in Voigt, 2002), exercícios de flexibilidade não devem ser realizados
momentos antes de competições, pois a flexibilidade excessiva pode ser tão prejudicial
quanto à falta de flexibilidade. Pode haver risco de lesão “devido a uma instabilidade
articular causada pela deformação dos ligamentos”. Os ligamentos, por serem componentes
plásticos, “não retornam à sua forma original, promovem [o] relaxamento da musculatura
envolvida no trabalho de flexibilidade, diminuindo a capacidade de esses músculos e
ligamentos atuarem como estabilizadores das articulações” (Pereira in Voigt, 2002, p. 48).
Outro fator do desempenho a ser considerado na atividade pianística é a rapidez de
movimento. Segundo Rasch, a rapidez máxima de um movimento está sujeita, em parte, a
características individuais inatas. Os tempos de reação e resposta que podem ser
minimizados por treinamento da atenção, estado mental e habilidades influem na rapidez do
movimento que pode ainda ser reduzida “pela incapacidade de os músculos antagonistas se
relaxarem adequadamente; até certo ponto, esta é uma habilidade e está sujeita a influência
do treinamento” (Rasch, 1991, p. 187).
Kaplan (1987) apresenta três fatores que influem na velocidade do movimento durante a
ação pianística: a imagem clara e objetiva a ser alcançada, direção do movimento e as
alavancas ósseas utilizadas: ombro, cotovelo, punho e dedo, as quais há uma velocidade
limite passível de ser atingida (Kotchevitsky, 1967; Kaplan, 1987), podendo-se inferir uma
flexibilização do braço ao punho, por exemplo, com o objetivo de aumentar a velocidade.
“A freqüência de vibração do punho pode ser aumentada com a ajuda de movimentos
coordenados do braço inteiro em conexões com divisões métricas” (Kotchevitsky, 1967, p.
33, tradução nossa). Quanto à imagem clara e objetiva a ser alcançada e a direção do
movimento na ação pianística, Kaplan (1987) chama atenção no sentido de evitar mudanças
de direção e cuidados com o dedilhado. Póvoas (1999) sugere uma análise anterior da
partitura e um planejamento do movimento em seus ângulos e trajetórias anterior à
execução.
Póvoas (1999, p. 90) apresenta um “recurso estratégico de utilização do movimento, no
sentido de explorar a organização espacial do movimento em sua trajetória”, através de uma
racionalização (realização objetiva do movimento de acordo com o design musical),
“diminuindo o somatório de distâncias a serem percorridas significando menos carga de
trabalho com menor desgaste físico-muscular”. Propõe a autora etapas de preparação, de
acompanhamento e de avaliação de resultados: “uma fase de análise prévia (preparação)
para a definição das ações, uma fase de controle (acompanhamento) durante o treinamento
e aplicação dos recursos selecionados e uma fase de análise dos resultados (avaliação)”. A
análise prévia seria anterior à execução, investigando sobre movimentos a serem utilizados,
adequados á realização do design da obra, “em função da velocidade e dos resultados
sonoros pretendidos”. Durante a segunda fase, para o melhor o desempenho motor, devem
ser considerados e desenvolvidos ao nível de consciência e domínio, os fatores força,
resistência, coordenação e flexibilidade articulares. A correspondência do controle
cinestésico, sensação física experimentada a cada movimento com o resultado sonoro,
torna-se essencial. Um terceiro momento no processo seria dedicado à avaliação dos
resultados (Op. Cit., pp. 98–99).
A racionalização e a consciência do movimento são de extrema importância para ações
muito rápidas e produzidas em ambientes estáveis e previsíveis (Schmidt & Wrisberg,
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental 111
2001). Após um movimento rápido ter sido iniciado, o controle consciente sobre este
movimento diminui, ou seja, se o executante perceber a necessidade de modificação, haverá
um espaço de tempo entre o comando de mudança ou correção do movimento até o
processamento da informação (Schmidt, 1993).
Rasch e Burke (1987, p. 111) afirmam que “se uma habilidade refinada exige grande
velocidade e muita precisão (...), as práticas devem enfatizar essas duas qualidades desde o
princípio, tanto quanto possível” e que se for dada uma maior importância à precisão em
detrimento da velocidade, terá de se reaprender muito nas fases finais da prática, quando se
necessita de maior velocidade, daí a importância da clareza mental e do planejamento do
movimento. Neste contexto, Kaplan (1987) afirma para o estudo de movimentos deve-se
levar em conta o andamento pretendido para a performance, mesmo que em andamento
lento. Póvoas (1999, p. 92) posiciona-se de maneira equivalente quando orienta:
Durante a etapa inicial de treinamento do repertório, os ciclos de movimentos devem ser
organizados visando a sua realização instrumental no andamento pretendido. Este
procedimento poderá diminuir a diferença entre a reação muscular durante o período de
estudo em que determinada obra é executada em andamento mais lento e a reação muscular
nos estágios de treinamento em que a velocidade de execução da peça é mais próxima da
velocidade pretendida.
Habilidades manuais de direcionamento têm, na sua maioria, uma característica comum que
consiste no desempenho rápido e preciso de uma habilidade. Velocidade e precisão, quando
relacionadas a um desempenho bem-sucedido de uma habilidade, constituem um dos
princípios fundamentais do desempenho motor: um compromisso entre a velocidade e a
precisão (Maggil, 2000, p. 75). Na medida em que o tamanho do alvo vai sendo reduzido
ou à medida que a distância se torna maior, a velocidade do movimento diminui para que o
movimento seja preciso. Relacionando com a ação pianística, na execução de uma
passagem musical que apresente deslocamento dos segmentos em movimento contrário,
cujo posicionamento de uma mão deva estar localizada na região aguda do teclado e a outra
na região grave ao mesmo tempo, a visão poderia ser disponibilizada, primeiramente, para
o ponto mais crítico ou de maior distância com relação ao eixo do corpo no momento da
execução do evento musical. Um treinamento neste sentido pode reduzir a dependência de
necessidade da visão. Neste sentido, a habilidade para estimar distâncias é um elemento
decisivo para a prática pianística, especialmente em trechos que apresentem saltos em
velocidade. (Kotchevitsky, 1967).
Há conexão entre a velocidade de ataque do dedo na tecla e resultado sonoro. As variações
de toque vão gerar diferentes gradações de intensidade sonora, variações dinâmicas que
dependem da rapidez de retirada do dedo da profundidade da tecla ou duração do toque,
que produzem a articulação requerida pelo design do texto musical. Por exemplo, para
produzir-se um staccato,3 é necessária uma saída rápida da tecla e, para realizar-se um
legato, é preciso uma retirada do dedo mais lenta da nota e, dependendo da situação musica
e de andamento requerido, com transferência do peso de braço para a nota seguinte
(Breithaup, 1909). A coordenação motora é um fator que está relacionado a rapidez de
movimentos, em diferentes situações de realização instrumental.
Nas áreas da cinesiologia e anatomia funcional entende-se por coordenação às ordenações
próprias da atividade de cada músculo e de grupos musculares. Na biomecânica, dentro do
conceito de coordenação são considerados “os parâmetros coodeterminantes do decurso do
3
Indicação de articulação que diminui pela metade a duração da nota, muitas vezes produzindo um
toque “seco”.
112 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
movimento, como impulsos de força a serem coordenados na ação motora” (Meinel, 1987,
p. 2). No campo da ação pianística, o executante, ou agente do ato coordenado, terá
condições de apropriar-se do decurso de um movimento na medida em que tiver uma
correta compreensão da tarefa a que se propõe realizar, de seus objetivos e da razão do
movimento. Quanto mais exatamente for compreendida a ação, maiores são as
possibilidades de sucesso na aprendizagem de novos movimentos (Meinel, 1987).
Na ação pianística, um trabalho de coordenação motora refere-se à utilização dos músculos
necessários para a realização de cada situação específica de desempenho, quando os demais
músculos devem manter-se relaxados, ao máximo possível, para que se evitem as tensões
na seqüência da execução instrumental. “A compreensão e a elaboração exatas das
informações sensoriais de movimento como base de uma direção e regulação corretas do
decurso de movimento já nos são conhecidas como processo parcial essencial da
coordenação motora” (Meinel, 1984, p. 153).
Neste contexto, postula-se que, para um desempenho motor mais eficiente na ação
pianística, é necessário proceder-se à análise prévia da peça a ser executada e o
planejamento dos movimentos mais adequados. Muitas vezes o pianista adquire o hábito de
executar um determinado trecho utilizando-se de gestos mais complexos do que os
necessários, fato este que pode ocasionar um acúmulo de tensões e, ao longo do tempo,
lesões. Além do mais, a utilização de gestos desnecessários pode impedir a execução de
algumas passagens, em geral, aquelas de maior velocidade. Portanto, deve-se entender por
coordenação, a realização organizada de movimentos segundo um objetivo antecipado.
Outro aspecto a ser mencionado, diz respeito à educação das sensações de movimento que
auxilia no processo cinestésico da aprendizagem motora. No caso da ação pianística, pode-
se coordenar movimentos complexos através da “automatização” e sensação ou consciência
dos mesmos. As coordenações mais complexas não podem ser dominadas até que certos
movimentos básicos não tenham atingido um adequado nível de automatização. As novas
habilidades em geral, se baseiam em recombinações de habilidades já adquiridas.
Habilidades de coordenação complexas no piano são, por exemplo, movimentos alternados
entre horizontais e verticais em cada mão, movimento paralelo das mãos, realização
instrumental de texto polifônico, entre outros. Após adquirir o domínio de diferentes
maneiras de coordenação, o pianista obterá maior controle e segurança para realizar
movimentos que exijam habilidades complexas.
A utilização de movimentos complexos exige do executante uma coordenação bastante
elaborada e um alto nível de dissociação muscular. Para Kaplan (1987), “dissociação
muscular” é o domínio das sensações de contração e de relaxamento e que além de um
controle sobre as sensações, a dissociação possibilita desenvolver a capacidade de auto-
observação e, igualmente, a controlar e a coordenar conscientemente o próprio corpo em
função do objetivo musical a ser atingido. Dissociar e coordenar movimentos que abrangem
a musculatura dos dois membros superiores, sobretudo dos segmentos braços, antebraços,
mãos e dedos, e o emprego dos pedais que exige o controle e a coordenação dos
movimentos das pernas direita e esquerda constituem-se em uma tarefa bastante complexa.
Somente através de uma prática planejada e consciente pode-se obter uma habilidade
motora mais eficiente e otimizada.
Segundo Magill (2000), o termo habilidade é uma palavra que serve para designar uma
tarefa com uma finalidade específica a ser atingida, portanto, voluntária. A habilidade
motora é parte integrante da prática pianística uma vez que esta exige movimentos
voluntários do corpo e/ou de membros para atingir o objetivo. A ação pianística utiliza-se,
mais precisamente, da habilidade motora fina que requer o controle de músculos pequenos,
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental 113
tais como aqueles envolvidos no movimento das mãos/dedos, que exigem um alto grau de
precisão para tocar ou pressionar as teclas na seqüência e no tempo certos. Embora os
grandes músculos possam estar envolvidos no desempenho de uma habilidade motora fina,
os músculos pequenos são os mais acionados.
O desenvolvimento da capacidade motora é o que permite a realização de movimentos
complexos com o menor dispêndio possível de energia, evitando lesões e fadigas
musculares. A habilidade motora é o elemento da atividade que capacita o executante a
realizar grande quantidade de trabalho físico com um esforço relativamente pequeno, sendo
adquirida, especificamente, através de um processo de aperfeiçoamento da coordenação dos
diversos grupos musculares. “A perfeita coordenação do sistema muscular necessária para
realizar uma determinada ação (movimentos), faz com que o gasto de energia necessária
para executá-la seja muito menor que no caso daquela estar ausente” (Kaplan, 1987, p. 32).
A consideração de alguns aspectos relacionados ao desenvolvimento da coordenação
motora torna-se essencial. O primeiro relaciona-se à idade do indivíduo: “O indivíduo deve
ter a idade apropriada para aprender uma certa atividade antes que a sua prática tenha um
efeito favorável. A idade necessária não é a idade cronológica, e sim a idade fisiológica,
isto é, o grau de maturidade atingido pelo sistema nervoso da criança ou do adolescente”.
(Kaplan, 1987, p. 52). A dissociação e a maturação são condições essenciais para a
coordenação. Assim, dissociação pode ser definida como a contração dos músculos
necessários à realização de uma ação e relaxamento dos que, momentaneamente, não são
necessários e/ou podem perturbar a mesma ação. Maturação é a preparação física do
sistema nervoso central necessária para a realização de um repertório (Kaplan, 1987). Para
Knapp (1989), a maturação pode ser definida como o ‘amadurecimento’ fisiológico de um
organismo.
Toda tarefa que demande a coordenação de movimentos muito precisos e de extrema
rapidez, como no caso da execução no piano, está baseada em hábitos que são reações
adquiridas pela repetição do estudo correto, com reforço de uma mesma rede de integração
neuromuscular. A repetição deve estar baseada na garantia que nos oferecem os hábitos que
não são outra coisa senão reações automáticas adquiridas e/ou esteriotipadas pela repetição
de situações estimuladoras idênticas, com reforço da mesma rede de integração
neuromuscular. Assim, os hábitos devem ser o resultado de atos voluntários transformados
em automatismos, sendo que uma vez alcançados, escapem à atividade consciente do
indivíduo. O hábito é, pois, o produto final da aprendizagem motora. “Do ponto de vista da
execução instrumental, a aquisição e posterior reorganização dos hábitos constitui a base
sobre a qual irá se construir a técnica” (Kaplan, 1987, p. 45).
Através da preparação e desenvolvimento de um ato motor complexo, se desenvolve a
habilidade motora e, com estudos intensivos que automatizam as habilidades motoras, se
desenvolve o hábito sobre o qual se fundamenta a técnica pianística. A diferença básica
entre hábito e habilidade motora é que esta é adaptável e flexível, enquanto que os hábitos,
uma vez adquiridos, são executados mecanicamente sem referência às conseqüências. Um
ato executado de forma hábil “distingue-[se] pelo seu ajustamento minucioso às
circunstâncias do momento com o propósito de obter-se um resultado final, ao passo que
um hábito é essencialmente uma reação sem um fim que o justifique ou oriente”. (Kaplan,
1987, p. 46).
Postula-se que hábitos motores corretos a partir da individualização dos movimentos
primários de maneira que possam, posteriormente, serem reorganizados de acordo com as
exigências de cada obra, se estabelece como procedimento essencial para a construção de
uma técnica adequada. O treinamento de elementos isolados tem se revelado mais eficaz,
114 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Conclusões
Nesta investigação sobre fatores do desempenho e sua inter-relação com a ação pianística
foram levantados argumentos significativos para a área da técnica instrumental.
Considerando-se a necessidade de organização dos processos envolvidos na prática
pianística, os pressupostos levantados nesta investigação se aplicam a esta atividade. Os
procedimentos praticados durante o período desta investigação apontam para uma atenção à
consciência corporal, que auxilia na otimização do uso do fator força e a prevenção da
fadiga em decorrência do desenvolvimento de consciência da consciente das estruturas
corporais envolvidas na ação pianística. A aplicabilidade de conceitos relacionados a estes
fatores na realização de trechos musicais deverá, na medida do possível, estar subordinada
às indicações de contidas no design.
Como a força está relacionada com o tempo de manutenção e com a velocidade de ativação
muscular, o controle sobre este fator tem reflexos diretos na maior ou menor velocidade de
realização de movimentos e na produção de intensidades sonoras. Uma das conseqüências
do treinamento excessivo de uma atividade motora ou também de uma atividade mental
prolongada é tornar o indivíduo vulnerável à fadiga. Esta se reflete na provável ocorrência
116 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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Os rituais Wauja
É esta convivência na diferença que chama a atenção do pesquisador xingüanista,
especialmente ao observar os rituais intertribais. É através destes rituais que vários povos
da região se encontram, lutam, cantam e dançam, é quando dialogam e se relacionam.
Durante estas práticas, entretanto, uma forte tensão é expressa: a tensão que advém da
necessidade de haver uma aceitabilidade comunicatória dentro de um quadro que inclui, de
forma congênita, a diferença e mesmo a divergência (Menezes Bastos, 2001). Durante os
rituais intertribais, apesar de um povo não falar a língua do outro, a maioria dos cantos são
entoados na língua de origem do ritual, sendo legítimo, desta forma, pronunciar uma língua
alheia, mas somente no contexto músico-ritual. Os grandes rituais intertribais, tais como
1
De acordo com censo realizado por mim em 2002.
2
Sobre este ponto ver Franchetto (2001).
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 119
3
Nesta mesma direção, desde o final dos anos setenta, as investigações sobre as músicas dos povos
indígenas das terras baixas da América do Sul têm revelado, sob a perspectiva do campo da etnologia,
sistemas musicais e cosmologias densamente elaboradas, com trabalhos como os de Aytai (1985),
Menezes Bastos (1990,1999), Beaudet (1983, 1997), Fucks (1989), Smith (1977), Travassos (1984),
Seeger (1987) e Hill (1992, 1993), Ermel (1988), Estival (1994), Olsen (1996), que abordaram,
respectivamente, a música entre os Xavante, Kamayurá, Waiãpi (Beaudet pesquisou no lado da
Guiana Francesa e Fucks no lado brasileiro), Amuesha, Kayabi, Suyá, Wakuénai, Cinta-Larga,
Assuriní e Arara, e Warao. A partir do final dos anos 90, ocorre um crescimento nesta linha de
pesquisa nos quadros universitários brasileiros, através de trabalhos como os de Bueno da Silva
(1997), sobre a música Kulina (Alto Purús); Piedade (1997), sobre os Tukano; meu trabalho sobre a
música Wauja (Mello, 1999); Cunha (1999), entre os Pankararú; Montardo (2002), sobre amúsica
Guarani; Werlang (2001), sobre os Marubo e Piedade (2004) sobre a música das flautas kawoká entre
os Wauja.
4
A tese de Piedade (2004) é fundamental para a compreensão do complexo musical que envolve as
flautas masculinas e os cantos femininos, na medida em que o repertório instrumental por ele
analisado serve de modelo para as análises que empreendo sobre a música vocal.
5
Peirano (2001) apresenta uma síntese das perspectivas antropológicas que lidam com o ritual na
atualidade e assume o pensamento de Tambiah como forma de escapar da rigidez das definições que
impedem que percebamos que “o caráter performativo do ritual está implicado na relação entre forma
e conteúdo que, por sua vez, está contida na cosmologia” (op. cit: p. 26). Para Tambiah (1985), o
ritual é um sistema de comunicação simbólica culturalmente construído, composto de eventos
especiais, mais formalizados, esteriotipados, redundantes e condensados do que aqueles da vida
120 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Esta pesquisa analisou mais detidamente o ritual feminino de iamurikuma, e sua relação
com o ritual masculino das flautas kawoká. Estes rituais apresentam uma relação profunda
entre si e constituem um único complexo músico-mítico-ritual. No contexto intertribal,
estes dois rituais podem ser chamados de “rituais de gênero”, entendidos como rituais nos
quais questões relativas às relações de gênero são enfatizadas.6 Eles podem também ocorrer
em versões intratribais, quando participam apenas os membros do próprio grupo. É
importante destacar que os rituais de kawoká e iamurikuma, principalmente em suas
versões intratribais, estão relacionados ao xamanismo, e desta forma, às doenças cuja causa
é a ação dos seres apapaatai, “espíritos”.7 Os apapaatai têm a capacidade de ouvir os
pensamentos e desejos dos humanos e podem detectar insatisfações e desejos não
realizados pelas pessoas. O estado de insatisfação torna possível que estes seres penetrem
nos corpos dos humanos na tentativa de roubar suas almas. Esta explicação, um tanto
sintética neste texto, serve aqui para fornecer a dimensão metafísica e ética em que os
rituais estão inseridos, bem como lançar alguma luz sobre as concepções Wauja de doença
e cura.8
Note-se que são vários os rituais promovidos para curar doenças provocadas pelos
apapaatai, estes rituais sendo em sua maioria intratribais e seu repertório musical podendo
tanto ser masculino (vocal e/ou instrumental), feminino (sempre vocal), ou misto, quando
homens e mulheres cantam juntos. Conforme o discurso nativo, na verdade são incontáveis
os rituais de cura, visto que a doença é percebida como resultado da ação dos apapaatai e
estes seres existem em um número desconhecido. O iakapá, o “pajé”, é o responsável por
descobrir qual apapaatai é o causador do mal que acomete o doente e, a partir de seu
diagnóstico, uma série de procedimentos e comportamentos rituais poderão ser adotados.
cotidiana. Para este autor, a eficácia do ritual advém de três fatores: primeiramente, dizer algo na
performance ritual significa efetivamente fazer algo, ou seja, o dito é um feito (inspirando-se aqui nas
idéias de Austin); além disso, no ritual são utilizados vários meios de comunicação através dos quais
os participantes experimentam os eventos de forma intensa; por fim, há no ritual uma profusão de
valores indexicais vinculados ou inferidos pelos atores durante o ritual.
6
Ficando aqui com esta definição preliminar, a questão de haver rituais especificamente dedicados à
oposição ou complementaridade dos sexos é muito trabalhada na literatura antropológica da
Amazônica e da Melanésia (ver MCallum, 2001; Gregor & Tuzin, 2001; Herdt, 1982), sendo tomada
ora como uma guerra dos sexos (Gregor, 1985), resultado do antagonismo sexual (S. Hugh-Jones,
1979), por cultos de fertilidade (Hill, 2001), ou como derivação da questão mais funda da
maternidade (Biersack, 2001) ou ainda como expressão de aspectos da consagüinidade e afinidade
(Descola, 2001). Lembro também que a própria ênfase na questão de gênero pode ser vista como
resultante do viés ocidental (cf. Overing, 1986; Piedade, 2004, revela uma posição semelhante).
Destaco ainda que entendo o complexo iamurikuma-kawoká como simultaneamente rituais de gênero
e rituais musicais (cf. Basso, 1985).
7
A categoria apapaatai pode ser traduzida muito aproximadamente por “espíritos”. Estes seres
sobrenaturais habitam o cosmos Wauja, podendo provocar doenças e mortes, ou se tornarem aliados
dos humanos, desde que estes últimos realizem os rituais apropriados para cada caso. Os apapaatai
povoam a maioria das narrativas míticas e representam um elemento fundamental na atividade do
xamã, atividade que pode ser vista como uma política cósmica com estes seres. Esta política, que é
uma negociação do xamã com os seres sobrenaturais visando que eles não roubem as almas dos vivos,
engendra, por sua vez, uma ética e uma estética que se explicitam tanto no ritual, através das mais
diferentes formas visuais e sonoras, quanto na economia da vida diária.Os Wauja distinguem as
doenças causadas por apapaatai daquelas outras que chamam, em português, de “doença de branco”,
estas sendo causadas por outros processos e curáveis através de remédios “de branco”: por exemplo,
gripe, sarampo, leishmaniose, malária, etc. Tal distinção é comum entre os xingüanos (ver Menezes
Bastos, 1999a).
8
Todos estes conceitos são densamente elaborados ao longo da tese (Mello 2005), bem como estão
respaldados em amplo corpus mítico recolhido durante a pesquisa de campo.
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 121
ao mito de origem da festa. Também foi comum ver as mulheres usarem deste espaço ritual
para reclamarem de atitudes dos homens através de canções especialmente compostas por
elas. Ao longo de todo o período, foram executados cerca de duzentos cantos diferentes,
organizados em quatro sub-repertórios, dos quais, pode-se destacar o de iamurikuma
propriamente (aqueles cantos que se referem ao mito), e o de kawokakuma (cuja referência
das canções são as flautas kawoká) como os principais sub-repertórios.
Com base nas análises de mitos e em análises musicológicas busquei compreender a ligação
entre a música vocal do ritual de iamurikuma e a música instrumental das flautas kawoká,
pois as mulheres afirmavam que “música de iamurikuma é música de flauta”. No entanto,
pelo fato delas serem proibidas de ver as flautas, esta afirmação parecia um contra-senso.
Caso aconteça de alguma mulher ver as tais flautas kawoká -tanto em repouso quanto ao
serem tocadas-, ela será estuprada por todos os homens da aldeia, não importando se ela
infringiu a regra propositalmente ou involuntariamente. Contudo, não se tem registro de
que tenha ocorrido tal fato nos últimos quarenta ou cinqüenta anos.
A partir dos mitos e músicas, das exegeses e traduções de canções, e do discurso nativo
sobre música, surgiu a temática das relações de gênero como fator a ser problematizado,
bem como verificou-se que há uma raiz comum, dada pela estrutura musical, para o
conjunto de canções de iamurikuma e para a música instrumental das flautas kawoká, onde
se nota que os temas principais em ambos repertórios são frases muito próximas do ponto
de vista rítmico-melódico, como variações de uma frase básica realizada tanto pelas flautas
quanto pelo canto feminino.9 A partir destas observações pode-se dizer que o repertório de
flautas kawoká é como que “transponível” para os cantos femininos, ou vice-versa.
A música e a dança, através do canto das mulheres, são os marcadores dos momentos
densos do rito. A movimentação coreográfica varia de acordo com o número de
participantes, com a disposição das dançarinas entre si, e o deslocamento destas pelo
perímetro da aldeia. Tais variáveis estão relacionadas ao repertório musical, pensado aqui
como um roteiro, que, por sua vez, deve se adequar aos períodos do dia (manhã, tarde, noite
e madrugada) e aos momentos específicos do rito, tais como pescaria dos homens, abertura,
encerramento. Há uma série de diferentes disposições coreográficas ao longo do ritual que
apontam para momentos com distintas motivações, “enquadrando” comportamentos que
podem ir da brincadeira à agressão. As idéias que Bateson desenvolve em sua teoria sobre a
brincadeira e enquadre (1998 [1972]) ajudam a pensar sobre os conjuntos de mensagens
que estão em jogo em cada um dos diferentes contextos ao longo do ritual. Há um pano de
fundo que é dado pela diferença entre homens e mulheres, uma disputa por espaço, presente
na maioria das falas dos rapazes e no comportamento das moças. Iamurikuma aitsa
awojopai, “iamurikuma não é legal” (tradução livre), dizem os rapazes a todo o momento.
Iamurikuma apokapai, peietepei, “iamurikuma está louca, brava”, afirmam os mais velhos.
As mulheres parecem indiferentes às provocações, mantendo-se sempre altivas e distantes,
exceto nos momentos em que resolvem, em grupo, atacar os homens. Elas tanto podem
bater, arranhar, dar beliscões, quanto atacar sexualmente, indo, também em grupo, até suas
redes. Bateson chama a atenção para o fato de que não há entre a brincadeira, o blefe, e a
ameaça uma delimitação clara, na verdade “formam juntos um único e indivisível complexo
de fenômenos” (op.cit. p. 61). Há, portanto, que se adotar o frame correto para não
extrapolar os objetivos.
9
Esta hipótese já havia sido levantada anteriormente em minha dissertação de mestrado (Mello,
1998), sendo que só se confirmou após trabalho de campo mais aprofundado durante as pesquisa de
doutorado desenvolvidas por mim e por Piedade (2004).
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 123
Parte do repertório musical deste ritual, aquele aqui classificado como iamurikuma, é como
que um roteiro para o ritual, baseado no script do aunaki, o “mito”. Cada canto narra um
momento do mito e pode se repetir em diferentes dias, o que evoca uma não linearidade do
ritual. Há algo semelhante àquilo que Menezes Bastos (1990) detectou no yawari como
uma compressão e distensão do tempo. Este autor usa a imagem do fole de uma sanfona
para evocar a alternância entre momentos de total retraimento (pensados como
adensamentos) e de completa distensão dos eventos rituais.
Neste canto, a ênfase está no tema , o tema acrescido de letra, pois ele é repetido
várias vezes. Aqui ocorrem operações já observadas em outros cantos, precisamente o fato
126 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
deste iniciar com o tema , que aparece por duas vezes antes que o seja cantado. Em
nota-se que o motivo (f) está em diálogo estreito com o motivo (e), cuja alternância é do
tipo pergunta e resposta. É provável que o intervalo descendente, que atinge a nota Fá,
carregue tal característica, apontando para o caráter dialógico entre os motivos. O tema
está englobado em e, portanto, a aparição tardia de não causa surpresa. Após cantarem
, e novamente , iniciam uma grande seção de , que será apresentada quatro
vezes, sendo que entre a segunda e a terceira vez, reaparecem, , , , . Nesta peça,
fica evidente uma preponderância de e , que pode ser considerada uma marca desta
face feminina do gênero musical kawokakuma-kawoká. Além disso, há um destaque para a
letra, que trata da jocosidade: as mulheres Mehináku estão aqui ridicularizando uma mulher
Matipú, que quando sorri exibe uma “boca torta”: trata-se do mote do defeito físico, muito
freqüente em vários cantos. Neste, as cantoras se dirigem ao marido desta mulher, um
homem Mehináku que se casou com uma mulher de outro grupo, fato que é sempre motivo
de reações deste tipo, e que, no fundo, demonstra o ciúme coletivo provocado por
casamentos interétnicos.
Das cerca de cinqüenta transcrições apresentadas ao longo da tese, as análises musicais
destacam várias operações fundamentais no âmbito motívico das músicas de kawokakuma,
que podem ser resumidas em: variação tética, variação sufixal, fusão, tipo bordadura, jogo
alternante 3M/3m, motivo justaposto de citação, adição, exclusão, prolongamento rítmico,
motivo de dissolução e motivo de retomada. Nota-se a importância das terminações de
motivos, frases e temas, bem como o englobamento do tema pelo tema . No âmbito
das letras, encontrou-se nexos entre a canção, o mito e as paixões, aparecendo algumas
temáticas recorrentes, como por exemplo o do mote do defeito físico, quando a cantora
expõe na letra da canção qualquer defeito que a pessoa a quem ela queira atingir possua. Na
relação letra-música, notou-se fatores importantes como a inversão de texto e a
flexibilização rítmica. A distribuição de todas estas operações composicionais acentua a
idéia de que a música do ritual de iamurikuma não constitui um único gênero musical, mas
sim dois: iamurikuma e kawokakuma, este último sendo a face feminina de um supergênero
que tem na outra face a música do ritual de flautas k a w oká. Estudar os processos
composicionais dos repertórios masculino e feminino, sob um prisma comparativo, se
configura como um caminho estimulante para futuros trabalhos.
Considerações finais
Homens e mulheres usam da tática de se provocarem mutuamente através dos cantos,
principalmente incitando o sentimento de uki, “ciúme-inveja”, inserindo uma terceira
pessoa na situação descrita pela letra das canções. Muitos cantos de kawokakuma procuram
provocar uki nos homens ou em mulheres que estejam rivalizando com as cantoras. É
através da criação poético-musical que os conflitos suscitados por sentimentos como uki
são contornados. A positividade ou negatividade de uki, contudo, é uma questão de grau:
todas as estratégias de que eles lançam mão para lidar com este sentimento, através de
brincadeiras, mitos, e ritos específicos,10 tudo isto concorre para a busca de um ponto
intermediário em um continuum entre o excesso e a ausência de uki. Segundo os Wauja,
ciúme-inveja não é algo com relação a que se deva mostrar indiferença ou rejeitar por
completo, diferentemente de sentimentos como kamusixiapa, “raiva ou ódio”,11 que devem
10
Ver na tese em questão as explicações sobre o Ritual do Pequi. Esta festa gira em torno de disputas
entre homens e mulheres, durante a qual realizam diferentes brincadeiras físicas e provocações
musicais.
11
A raiz desta palavra, usixa, significa “queimar”.
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 127
ser prontamente aplacados. Ao contrário, uki deve ser cultivado, e se deve aprender a lidar
com isto desde cedo. Segundo os Wauja, uki é a faísca que acende as relações: como me
disse um informante, “é como a pimenta que arde, mas é boa”, sem a qual a comida ficaria
insossa. O mérito de saber lidar com estes sentimentos estaria no controle da medida certa
em provocar e em aceitar provocações, em saber a hora certa para o revide, em não
provocar além do limite aceitável. Durante as brincadeiras jocosas, avalia-se muito o
quanto homens ou mulheres agüentam de provocação sem revidar, mas também é esperada
e até mesmo apreciada a boa resposta no momento certo. Vê-se que, através de toda a
elaboração estético-ritual, detectada desde o tratamento detalhista na construção motívica
dos cantos, passando pela transferência dos cantos de kawokakuma de um gênero sexual a
outro, e por re-elaborações de fatos do cotidiano que são inseridos nos moldes dos cantos,
todo este processo, enfim, só surge durante a performance ritual, que acaba por dar
concretude ao mito e significado às questões existenciais. Toda a criação ritual trata da
demarcação de limites, de estabelecer proporções, de precisar doses, criar diferenças,
construir fronteiras, criar o espaço humano de agência no mundo. E este espaço se instaura
no ritual, onde a música é o “dito” que se torna “feito”.
A linguagem enfeitada e pintada que é o canto, os corpos enfeitados e produzidos, as
formações coreográficas e seus traçados entrecortando a aldeia, indicam a necessidade da
elaboração ritual por meio de uma alta formalização. Assim, as regras que observamos nas
práticas rituais Wauja, bem como nas construções composicionais, aparecem
explicitamente como uma forma de codificação, no sentido exposto por Bourdieu,12 e
apontam para a construção de um sistema coerente que dê conta das tensões suscitadas
pelos afetos.
Aqui está, creio, a centralidade da música no ritual: onde se encontra a formalização em seu
grau máximo. Basso (1985) afirma que esta posição fundante da música no ritual xingüano
está diretamente ligada ao fato dos nativos crerem que, através da execução musical, podem
compensar as ilusões da criação verbal. Opinião confirmada por Franchetto ao afirmar que,
neste cenário, há um continuum indo da fala ao canto, em cujos extremos estariam situadas
a mentira e a verdade, o mais humano e o sobrenatural (1986, p. 249). Para esta autora, os
mitos fundamentam a execução ritual, e esta, por sua vez, tem a música como seu aspecto
mais importante, pois os nativos, “através da sensualidade e dos sentimentos que a
musicalidade inspira, transformam a consciência de si, a consciência coletiva e a apreensão
do mundo” (1986, p. 288).
Estudar, de forma detalhada, todos os aspectos envolvidos no ritual, como a pintura
corporal, a música, a dança, os discursos e as narrativas míticas, é uma forma de acessar
esta codificação e, assim, buscar uma compreensão mais substancial do evento como um
todo. É no momento do ritual que a sociedade Wauja cria condições privilegiadas para que
homens e mulheres, através de um jogo em torno dos sentidos e das proporções, tratem, de
forma intensa e musical, de questões importantes como namoro e sexo, e de afetos
fundamentais como o ciúme e a inveja.
12
Bourdieu chama a atenção para o fato de que o grau de codificação adotado por um determinado
grupo em relação a diferentes situações deve variar de acordo com o grau de risco em que tal situação
está envolvida. É quando o habitus dá lugar à condutas reguladas por rituais metodicamente
instituídos e mesmo codificados (1990, p. 98).
128 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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130 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Introdução
Desde sua primeira publicação em 1966 o Traité des objets Musicaux de Pierre Schaeffer
tem sido uma obra referencial para a composição e para o estudo da música contemporânea,
principalmente as que se enquadram na vertente acusmática. Dentro desse panorama, o
Traité também se tornou obra teórica central para o estudo e desenvolvimento de estéticas
musicais que colocam a percepção como fundamento para a construção de técnicas e
procedimentos composicionais. Diversos autores deram seguimento ao trabalho de
Schaeffer no intuito de completar e expandir sua perspectiva de música contemporânea, dos
quais podemos destacar Simon Emmerson (1987), François Bayle (1993) e Michel Chion
(1994). É a noção de acusmática que possibilita a colocação da percepção (écoute para
Schaeffer) como foco central para a atividade composicional. Essa transformação de foco
da dupla fazer/ouvir para um ouvir/fazer, entendendo o fazer como o próprio processo
composicional, é decorrente de um amplo estudo e críticas às posturas tradicionais da
atividade musical ocidental.
Schaeffer parte de uma análise, breve, porém profunda da situação da música que lhe era
contemporânea, esboçando alguns problemas a serem resolvidos e críticas a posturas
composicionais dominantes de sua época. Aponta para as transformações que a musicologia
deveria enfrentar, decorrentes das mudanças das noções de escala de alturas como base para
a construção musical; o crescente desenvolvimento de formas de produção sonora, advindas
dos equipamentos eletrônicos e dos instrumentos não ocidentais; os problemas que a crítica
musical enfrentava por não apresentar nem conteúdo nem terminologia apropriada para a
explicação do fenômeno musical.
O autor afirma que o surgimento da postura estruturalista em música, do início do século
XX, foi uma reação a esses “impasses” da musicologia, já que fica justificada, em meio a
tal crise, o apoio sistemático em parâmetros “seguros” da física. Dessa forma, Schaeffer
refere-se à perspectiva estruturalista como geradora de uma música a priori, por esta
colocar a construção e manipulação abstrata de símbolos musicais, que apresentam uma
analogia com parâmetros acústicos, como fato primeiro em relação à escuta. Criticando
essa postura que não toma a experiência do material sonoro que ocorre na escuta, Schaeffer
sugere uma alternativa que inverta a ordem da conduta composicional estruturalista e a
denomina de música concreta e posteriormente de música experimental.
132 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
1
As alternativas explicativas aos problemas conceituais apresentados nesta seção serão descritos em
maior profundidade nas próximas seções.
2
A palavra receptor designa uma passividade no sentido de que o órgão recebe o estímulo ao invés de
buscar por ele. (Gibson, 1966).
134 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
3
Há alternativas à Descartes que são contemporâneas a ele mesmo como é o caso de Spinoza. No
entanto, o cartesianismo já em sua época tornou-se tendência dominante.
Uma abordagem atuacionista 135
como um mundo objetivo, existente independente de um percebedor, como foi posto pela
tradição dualista. Nem como um mundo construído em mim como representação de um
mundo objetivo fora de mim. Mas como um mundo vivido, experimentado. Segundo o
próprio autor, pela experiência perceptiva me afundo na espessura do mundo. (M.-Ponty,
1996, p. 275.). Estando então ‘afundado’ no mundo, não necessito copiá-lo dentro de mim.
Isso não quer dizer que a fenomenologia negue a ocorrência de atividade neuronal, por
exemplo. O que ocorre é que com a fenomenologia há uma orientação para que o foco do
estudo da percepção esteja na experiência perceptiva, e não em supostas causas ou
conseqüências. Em outras palavras, a orientação dualista direciona o estudo das atividades
perceptivas como se fossem ou conseqüências ou causas das atividades neuronais (que
seriam as próprias representações mentais), e a fenomenologia aponta para a necessidade de
se focalizar a experiência de um corpo em um mundo se a intenção é estudar a percepção.
Com isso M.-Ponty apresenta uma definição de percepção completamente diferente daquela
trazida pelo processamento de informação. Entendendo o mundo, as coisas como
correlativos de meu corpo, M.-Ponty (1996, p. 429) afirma que a coisa nunca pode ser
separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas
articulações são as mesmas de nossa existência. Nesse caminho não faz sentido a noção de
um sujeito que processe as informações recebidas de um mundo dado de antemão. Para a
fenomenologia não há esse mundo dado antes da experiência, ou nas palavras do autor: o
que é dado não é somente a coisa, mas a experiência da coisa (...). (M.-Ponty, 1996, p.
436). Também esse sujeito não existe desligado do mundo, M.-Ponty é muito claro e direto
ao afirmar que:
O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão um
projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que
ele mesmo projeta. (M-Ponty, 1996, p. 576)
Assim, não há como argumentar em favor da percepção e da significação que ocorre na
percepção, como reelaboração construída por um sujeito que opera interpretando um
mundo que lhe é estranho e externo. Mas abre-se a perspectiva para entender a percepção
como certa maneira de agir no mundo, certa maneira de ser no mundo. Tal perspectiva será
desenvolvida também por outros autores além de M.-Ponty, como Varela, por exemplo, que
no início da década de 90 mostra-se comprometido com uma perspectiva que valoriza a
experiência para a explicação dela mesma. Há diversos outros autores que desenvolvem
pesquisas acerca de percepção e cognição e que vêm engrossando as fileiras de um
paradigma não dualista-cartesiano. Escolhemos abordar o trabalho de Varela por entender
que ele acaba condensando todo um conjunto de esforços que se desenvolve sob um nome
comum de ciência cognitiva e dialoga diretamente com a filosofia da mente.
para a mente não são alcançados suficientemente. Tal ansiedade é ainda geradora de
niilismo conforme afirmam na seqüência (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 152): (...)
nossa ganância por um alicerce, seja ele interno ou externo, é a origem profunda de
frustração e ansiedade. A concepção de cognição como um tipo de representação de um
mundo dado, construída por uma mente é que temos apontado e criticado naquilo que
chamamos de adesão ao paradigma dualista-cartesiano.
Além da preocupação crítica Varela, Thompson e Rosh se incubem da tarefa de descrever
cognição de uma nova maneira, não dualista e que leve em conta, sobretudo o
conhecimento na experiência cotidiana do viver. Eles descrevem a cognição através da
noção de enacção4 ou atuação5, sempre como cognição corporificada e ação situada. Nesse
sentido apontam uma nova maneira de descrever atividades perceptivas, como a
discriminação de cores, por exemplo:
Vimos que as cores não estão “lá fora”, independentes de nossas capacidades
perceptivas e cognitivas. Vimos também que as cores não estão “aqui dentro”,
independentes do mundo biológico e cultural à nossa volta. Contrariamente à
visão objetivista, as categorias de cores são experienciais; contrariamente à
visão subjetivista, as categorias de cores pertencem ao nosso mundo biológico
e cultural. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 176)
Colocando as coisas dessa maneira, os autores apontam um caminho contrário ao dualismo,
e com isso a possibilidade de evitar as conseqüências problemáticas de tal opção teórica. A
abordagem atuacionista que vem sendo desenvolvida por mais de dez anos no seio da
ciência cognitiva e da filosofia da mente tem demonstrado importantes frutos quando
aplicadas por áreas de estudo tão diferentes como as artes, a lingüística, ou a robótica
evolucionária.
Os autores propõem a noção de percepção como ação perceptivamente orientada, e afirmam
também que as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensório-motores recorrentes
que possibilitam a ação ser perceptivamente orientada. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p.
177). Isso é a própria definição da abordagem atuacionista para os autores citados. Para
essa abordagem do estudo da percepção não é importante, como no caso do paradigma
dualista-cartesiano, determinar como um mundo independente de um observador pode ser
recuperado, mas sim determinar os princípios comuns entre os sistemas sensorial e motor
que explicam como a ação pode ser orientada em um mundo dependente de um observador.
(Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Em trechos subseqüentes os próprios autores
reconhecem sua filiação à tradição fenomenológica de M.-Ponty e trazem claramente sua
concepção de percepção não só como parte (ou embutida) de um mundo, mas como
colaboradora com a atuação desse mesmo mundo.
Aí está, de forma resumida, um conjunto de argumentações destacando possibilidades
explicativas da percepção e cognição no contexto da ciência cognitiva e filosofia da mente.
Acabamos de apresentar a abordagem denominada atuacionista de Varela, Thompson e
Rosh, que se desenvolve a partir de e concepções fenomenológicas de M.-Ponty. Tais
abordagens para o estudo da percepção (de M.-Ponty e Varela, entre outros) apontam para
uma alternativa no contexto das explicações sobre percepção. Elas não concebem nem um
4
De acordo com tradução de ennaction para o portugês de Portugal em edição do Instituto Piaget.
5
De acordo com tradução do termo ennaction para o portugês do Brasil em edição da Artmed.
Uma abordagem atuacionista 139
sujeito absoluto que existe e age separado de um mundo (que por sua vez também existe e
age independente do sujeito), nem um mundo objetivo, com coisas que existem
independentes de algum percebedor que as possa distinguir. Concebem então um
percebedor e um mundo que se fazem enquanto estão atuando acoplados estruturalmente
mantendo sua organização. Nesse sentido foi o título dessa seção afirmando que o conhecer
é atuar, viver, possuir uma história de acoplamento estrutural com o meio. E perceber é a
própria ação no mundo, que nunca existe sem orientação perceptiva, e não com
representações ou orientações para um mundo externo.
Um outro autor bastante importante para a pesquisa sobre cognição e percepção, H.
Maturana, que não será aprofundado no presente texto por uma questão do recorte
momentâneo, tem uma citação muito rica para concluir a presente seção. Com ela Maturana
amplia a noção de percepção, saí da perspectiva do per-capere (literalmente: obtido por
captação) e entende percepção como o nome que um observador atribui a uma conduta
específica, ou um mundo de ações. Nas palavras do autor:
O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se assemelha a isso:
produzimos um mundo de distinções através de mudanças de estados que
experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os
diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então,
usando nossas mudanças de estado como distinções recorrentes em um
domínio de coordenações de coordenações de condutas consensuais
(linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenações de ações
com as quais descrevemos nossas coordenações de ações. (Maturana,
1997/2001, p. 103).
Percepção Direta, ao contrário das teorias da Percepção Indireta que explicam os processos
perceptuais com o uso da mediação.6
Para explicar a atividade de acoplamento estrutural entre organismo e meio na experiência
sonoro-musical, Oliveira & Oliveira 2003 utilizam-se de noções advindas da Teoria da
Percepção Direta de Gibson:
A percepção quando descrita como o acoplamento estrutural entre organismo e meio,
elimina a noção de representação da explicação da atividade perceptiva. Essa maneira de
abordar a percepção como um ciclo de percepção-ação é o que Gibson denomina como
percepção direta (Gibson, 1979). De acordo com tal teoria, Gibson categoriza a percepção
em dois tipos: primeira e segunda mão. Naquilo que Gibson denomina por percepção de
primeira mão encontra-se um tipo de ação que é caracterizada pela imediatidade. O
organismo percebe o mundo e age sem que tal ação envolva aquilo que se caracterize por
um planejamento anterior (representação mental). Como exemplo desse tipo de ação,
podemos tomar o caso de alguém que caminha em um terreno acidentado. No seu caminhar
ele desvia dos acidentes e procura um caminho estável para que seu andar possa ocorrer.
No entanto ao visualizar um buraco, por exemplo, nosso caminhante não tem tempo de
planejar que tipo de posição de perna, de pé, enfim, o de corpo inteiro, ele irá tomar. Seu
corpo se coloca, imediatamente, em condições de superar o obstáculo. Não há como
observar aí um plano prévio, por mais rápido que pudesse ocorrer. O corpo se molda à
situação, age sem intermediários, age orientado diretamente pela percepção. Em se tratando
de música, os exemplos de percepção de primeira mão são também esclarecedores.
Tomemos o caso de um regente à frente de uma orquestra. Por mais que o regente tenha
preparado previamente seu conjunto de movimentos, fundamentado no estudo da partitura,
o momento da execução exige um tipo de ação imediata do regente, para adequar a
sonoridade resultante da performance, a cada momento. Variações em diferentes aspectos
musicais (dinâmica, agógica, articulação...) ocorrerão e cabe ao regente adequá-las para
conseguir a sonoridade esperada. A realização de seus padrões gestuais, é sempre orientada,
no momento da execução, pela percepção daquilo que está sendo gerado na performance da
orquestra. Forma-se assim o ciclo percepção-ação. Em contra-partida, o planejamento do
gestual para a performance, e todo o conjunto de conceitos teóricos musicais utilizados para
a construção de tal planejamento caracterizam-se pelo que Gibson, Maturana, M-Ponty e
Varela entendem como percepção de segunda mão7. Essa percepção caracteriza-se por um
nível superior de recorrência do acoplamento estrutural, por isso ser um segundo, que é
sempre orientada e orienta a primeira mão. Com isso podemos observar a ação de um corpo
(encarnado) em uma situação específica (situado) num ciclo de percepção-ação que ocorre
com diferentes níveis de recorrência. Se optarmos pela descrição de cognição de Varela et
al (1991) e Maturana (1995) podemos entender que aquilo que denominamos por percepção
e por conhecimento são descrições condutuais consensuais mais ou menos recorrentes
observadas nos diferentes níveis de sub-redes sensóriomotoras em seu operar no meio,
6
Gibson não nega a existência das representações mentais, mas afirma que na atividade perceptual
elas não são utilizadas. Para uma visão aprofundada sobre a crítica à representação mental no
processo perceptual ver Haselager (2003).
7
Apenas Gibson utiliza o termo second-hand perception. No entanto os outros autores citados
também apresentam um tipo de categorização da percepção que pode ser descrito adequadamente
segundo a noção gibsoniana referida.
Uma abordagem atuacionista 141
guardando suas identidade e mantendo seu acoplamento estrutural. Tal nível maior ou
menor de recorrência está diretamente relacionado com aquilo que entendemos por
percepção de primeira mão (baixa recorrência) e percepção de segunda mão (alta
recorrência).
Como já afirmamos, Schaeffer se aproxima muito dessa categorização ao agrupar as
funcionalidades da escuta na dupla banale e praticienne. O agrupamento do escutar e do
ouvir em uma escuta banale, de dia-a-dia segundo Windsor (1995), corresponderia à
primeira mão tal qual descrevemos acima e a dupla entender/compreender agrupada em
uma escuta praticienne corresponderia à segunda mão. Temos assim uma substituição
possível às funcionalidades schaefferianas da escuta que resolveria os problemas de
conceituação e de explicação da percepção apoiadas em uma abordagem dualista-
cartesiana, que era exatamente o que Husserl e a tradição fenomenológica pretendia
expurgar.
Devemos ressaltar que nossa reformulação não apresentará prejuízos para o retorno que
Schaeffer realiza ao quadro das funcionalidades no intuito de realizar a passagem da música
tradicional para a música experimental. Para isso Schaeffer propõe a inversão no
direcionamento das atitudes perante o fenômeno sonoro. Na música tradicional esse
direcionamento ocorre de uma etapa de identificação dos valores musicais, que englobam o
compreender e o escutar como domínio da musicalidade, para uma qualificação, que
engloba o ouvir e o entender em um domínio da sonoridade. Temos assim o domínio da
musicalidade que representa as identificações abstratas e conceituais sendo posteriormente
efetivadas no mundo no domínio da sonoridade. A inversão se da a partir de uma
qualificação realizada no domínio da sonoridade, através da escuta reduzida e sua
decorrência no objeto sonoro, para posteriores identificações e organizações de coleções de
significações no domínio da musicalidade. Ao reorganizarmos o quadro das
funcionalidades da escuta, teremos a escuta como um todo, que num nível de recorrência
inferior é caracterizado pela percepção de primeira-mão e num nível de recorrência superior
pela percepção de segunda-mão.
A inversão da atividade composicional, do fazer-ouvir para um ouvir-fazer, pode ser
melhor descrita, nos termos das teorias abordadas aqui, como um caminho de valorização
da percepção de primeira mão. Da maneira que Schaeffer apresenta sua inversão, não é
possível, ou melhor, não é objetivo da escuta reduzida a ocorrência de significação na
percepção de primeira mão, mas ela própria é a proposição de um segundo nível de
recorrência (segunda mão) sobre a percepção imediata. Nesse sentido o autor nem
considera a possibilidade da emergência de significação na percepção de primeira mão. O
que consideramos central para a crítica e proposições realizadas no presente estudo é
apontar que diversos autores8 indicam um tipo de significação perceptiva, próprios da
ocorrência do ciclo percepção-ação de um corpo em um meio específico. O caminho que os
referidos autores propõem é um tipo de descrição para as significações próprias de cada
uma das duas categorias de percepção. É relevante observar que Gibson, ao argumentar em
favor de uma significação própria da percepção de primeira mão, não rejeita a possibilidade
de um tipo de significação que ocorra utilizando mediações. Ao contrário, tal autor afirma
8
Gibson, Maturana, Varela e M-Ponty, por exemplo.
142 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
que o caso de um tipo de significação indireta, mediada por representações,9 pode ser
descrito adequadamente como de segunda-mão, ou seja, com um nível maior de recorrência
da coordenação condutual consensual no operar do organismo em seu meio.
Essa reformulação do quadro de escutas nos direciona para uma reformulação do próprio
conceito de objeto sonoro. Como afirmamos, o objeto sonoro de Schaeffer é obtido pela
redução fenomenológica. Tal redução visa a eliminação dos condicionamentos culturais
(hábitos) da escuta, para que seja desvelado o objeto sonoro. Tal objeto está relacionado à
noção de essência, o que coloca a experiência apenas como um aspecto passageiro e menos
importante na percepção. Nesse sentido a experiência é uma das etapas na construção das
significações possíveis para o objeto sonoro. Com tal posição Schaeffer incorre ao mesmo
erro cartesiano criticado por M-Ponty, de substituir o mundo por uma representação do
mundo, ou mais especificamente no caso hussleriano, substituir a experiência do mundo por
suas essências. Tais essências se configuram em um conjunto de características universais
dos múltiplos objetos possíveis à escuta. Com isso Schaeffer espera criar um sistema de
categorização que seja independente de qualquer situação de escuta. Ao comparar as
escutas do músico, do engenheiro e do ouvinte comum, Schaeffer encontra diferenças de
significação decorrentes da escuta especializada de cada um deles e atribui à escuta
reduzida a função de revelar o objeto sonoro, enquanto essência, e a função de possibilitar
uma classificação que será comum a todas as pessoas em todas as situações de escuta. No
entanto, ao propor um tipo de escuta próprio para acessar a essência da experiência sonora,
seu objeto sonoro, o autor acaba por substituir um grupo de hábitos de escuta, por um outro
hábito, denominado por ele mesmo como antinatural, como podemos ler:
Como posso descrever no plano puramente sonoro um galope? (...) Necessito
volver à experiência auditiva, recapitular minhas impressões, para reencontrar,
através das mesmas, informações sobre o objeto sonoro, e não mais sobre o
cavalo. (...) Na verdade se trata de um retorno às fontes, à ‘experiência
originária’, como diria Husserl – que se tornou necessária por uma ‘mudança
do objeto’. Antes que um novo treinamento me seja possível e que possa ser
elaborado um outro sistema de referências, desta vez apropriado ao objeto
sonoro, eu deveria libertar-me do condicionamento criado por meus hábitos
anteriores, passar pela prova da époché. Não se trata de forma alguma de um
retorno à natureza. Nada nos é mais natural do que obedecer à um
condicionamento. Trata-se de um esforço ‘antinatural’ para perceber aquilo
que antes determinava a consciência inadvertidamente. (Schaeffer, 1966, p.
270)
É especificamente quando qualifica a experiência à qual se deve recorrer (experiência
originária) para descrever adequadamente um evento sonoro, que Schaeffer tira a
experiência do evento sonoro-acontecendo do centro da descrição dele próprio e coloca em
seu lugar um tipo de representação mental anteriormente elaborada e armazenada na
memória. Tal representação seria uma espécie de essência do evento percebido, ou seja, o
objeto sonoro encontrado a partir da escuta reduzida.
A partir dessas observações sobre essa importante citação, confirma-se que a noção de
objeto sonoro, que Schaeffer desenvolve no Traité, está relacionada diretamente à própria
noção de representação mental adequadamente elaborada. A experiência de estar ouvindo
9
Estamos nos referindo à noção de representação não como representação interna/mental.
Uma abordagem atuacionista 143
para a composição musical contemporânea, uma vez que fundamenta a explicação sobre a
percepção em bases alternativas ao dualismo cartesiano.
Dessa forma, ao abordar a tipo-morfologia de Schaeffer e sua estruturação final no quadro
de solfejo dos objetos musicais, podemos pensar que todo o seu conjunto de categorizações
pode ser entendido como uma possibilidade de escuta entre muitas possíveis. Como
afirmamos acima, tais categorizações podem ser a descrição das distinções que afirmamos
acima, porém em uma história de acoplamentos estruturais típicas de um compositor
acusmático que passou pelo treinamento (aquisição de hábitos) de perceber segundo os
critérios tipo-morfológicos de Schaeffer. O mais importante dessa abordagem é que a tipo-
morfologia passa a ser não um fundamento essencial da percepção, mas sim uma possível
descrição de um tipo de escuta de um indivíduo que possui essa história de acoplamentos
com o meio. Em Toffolo 2004, sugerimos uma re-adequação do quadro do solfejo dos
objetos musicais que visava uma simplificação das inúmeras categorias. Tal simplificação
foi no sentido de limpar alguns conceitos presentes no quadro que apresentavam grande
dubiedade e tal dubiedade é decorrente dos problemas aqui apresentados. Ao reorganizar os
conceitos chaves da teoria de Schaeffer chegamos à um quadro mais funcional e enxuto da
tipo-morfologia que se apresentou como uma ferramenta interessante tanto para a
composição como para a análise do repertório acúsmático e de Paisagens Sonoras.
Com o apresentado neste trabalho acreditamos contribuir para uma renovação da teoria de
Schaeffer tornando-a atual e condizente com as bases fenomenológicas modernas, o que só
reforça a importância e a grandeza do Traité e o seu caráter de indispensável para o estudo
da percepção e da composição musical contemporânea.
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tipo Paisagem Sonora”. Dissertação de Mestrado: Unesp, 2004.
Varela et al. A mente Incorporada. Porto Alegre: Artmed, 2003.
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo: Compositor, professor de Composição e Matérias
teóricas da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisa na área de psicologia
ecológica, inteligência artificial aplicada à música e ciência cognitiva. André Luiz
Gonçalves de Oliveira: Licenciado em Música pela Universidade Estadual de
Londrina – 1997. Mestre em Filosofia – Universidade Estadual Paulista – 2002.
Compositor e professor de música em ensino superior, fundamental e pós-graduação.
Pesquisador na área de ciência cognitiva e filosofia da mente.
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2
Introdução
Grande parte do repertório musical brasileiro ainda está por revisar, e é de difícil acesso, a
exemplo de muitas obras de Villa-Lobos que ainda não foram editadas, e as que estão, em
sua maioria na França e Estados Unidos, ou as de Camargo Guarnieri, que só atualmente
estão sendo editadas também no exterior, ou ainda da nossa produção mineira do período
colonial que tem muito por revisar e editar. Em contraste com essa situação, ao
executarmos peças de compositores europeus, além de encontrarmos várias edições da obra,
encontramos literatura sobre o compositor, sobre sua obra e inúmeras gravações, podendo
assim começar o trabalho interpretativo munidos de informações sobre o universo artístico
do compositor. A tudo isto se some o fato de o repertório de viola não ser muito extenso
comparado ao de outros instrumentos como piano ou violino. Estas razões nos motivaram a
escolher dentro do repertório nacional uma peça que justificasse uma pesquisa.
Tivemos nos últimos 15 anos contato com o compositor Cyro Pereira por participarmos
como violista da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, onde ele atua como
maestro, compositor e arranjador1 tendo assim a oportunidade de conhecermos uma grande
parte de sua obra.
Justificativa
Cyro Pereira é, na nossa opinião, um dos grandes compositores brasileiros da atualidade.
Apesar de se considerar um músico popular2 e ter militado nesse tipo de música quase toda
sua vida, a sua obra indica que muitas vezes os limites entre música popular e erudita talvez
não sejam tão delineados. Sua obra é imensamente diversificada, desde peças para
instrumentos solo, passando por música de câmara e chegando a grandes formações
orquestrais. Dentro destas últimas, existem peças de sua autoria assim como arranjos de
músicas populares. Cyro3 não foi vinculado à escola nacionalista, apesar de ter sido
influenciado por ela no contato que teve em seus anos de trabalho em radiodifusão com
1
A Jazz Sinfônica é uma orquestra que foi criada por Arrigo Barnabé em 1990, na gestão de
Fernando de Moraes como secretário de cultura do Estado de SP. Seu primeiro diretor artístico foi o
compositor Eduardo Gudin. Seu maior objetivo é o de resgatar o passado das orquestras de rádio que
existiram no Brasil até a década de 70, em que a música brasileira era tocada com arranjos sinfônicos.
Esta proposta foi sendo ampliada para as diversas vertentes da música brasileira. Nestes 15 anos de
existência, ela além de ter acompanhado quase todos os grandes nomes da música popular brasileira,
sejam cantores ou instrumentistas, abriu campo para novos arranjadores que muitas vezes estavam
restritos ao mercado fonográfico ou publicitário. Passaram pelos palcos da Jazz muitos nomes, dos
quais citaremos alguns apenas para ilustrarmos a diversidade: Tom Jobim, Milton Nascimento,
Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Edu Lobo, Dori Caymmi, Zélia Duncan, Sivuca, Naná
Vasconcelos, Cássia Eller, MPB4, Os Cariocas, Leila Pinheiro, Ivan Lins, Zizi Possi, Chico César,
grupos instrumentais como Pau Brasil e Uakti, arranjadores como Edmundo Villani e Luís Arruda
Paes, e nomes internacionais como Joe Zawinul, Turtle Island Quartet, Arturo Sandoval entre muitos
outros. Ela dispõe de um acervo de mais de 700 arranjos e músicas quase todos escritos especialmente
para ela e conta até esta data com 9 CDs gravados.
2
Entrevista concedida ao autor em 17/05/2004
3
Ao nos referirmos a Cyro Pereira, optamos usar o primeiro nome, Cyro, do que seu sobrenome.
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 147
alguns compositores desta escola. Sua obra tem uma linguagem própria, sempre
despretensiosa como uma boa música popular, e com grande refinamento de escrita e
orquestração.
Esta peça, a Brasiliana n. 2, se mostrou apropriada para uma pesquisa por ter sido pouco
tocada,4 divulgada e não estar editada. Ela é uma obra escrita na forma suíte-concerto, em
três movimentos (rápido-lento-rápido), para viola e orquestra. Estes movimentos são
escritos em formas bem brasileiras, um Samba, uma Valsa Brasileira e um Choro. É uma
peça virtuosística, de grande desafio técnico ao solista, pela mestria da instrumentação, e
pela originalidade aliada à simplicidade das formas. Sua revisão, com possibilidade de
esclarecimento de possíveis dúvidas com o próprio compositor, somando-se sua edição e
execução, tem como objetivo preservar, enriquecer, e difundir o repertório musical
brasileiro para viola e a obra de Cyro Pereira.
Objetivos
a) Fazer análise interpretativa verificando sua estrutura formal, sua orquestração, sua
harmonia, aspectos idiomáticos, bem como comentários técnicos de execução.
b) Editar, revisar, executar com orquestra e reduzir a partitura orquestral para piano para
aumentar a possibilidade de execução.
Executar a obra em concertos.
d) Discutir a questão dos caminhos possíveis de interpretação da obra.
Procedimentos técnicos:
1. Edição do manuscrito: A partitura foi digitalizada a partir de cópia do original.
Foram extraídas da partitura as partes de cada instrumento, e editadas, tendo sido
comparadas com as partes copiadas pelo compositor, anotando-se todas
contradições encontradas em uma tabela. Foi discutida com o compositor cada
uma dessas anotações e acrescentadas as conclusões a esta tabela. A partitura foi
digitalizada em versões de tamanhos A 4 e A3. A partitura e as partes foram
revisadas duas vezes, uma delas por um outro músico,5 para corrigir erros de
digitação ou do autor.
2 . Redução: Realizamos uma redução para piano do 1º e 3º movimentos. O 2º
movimento já existia nesta versão feita pelo próprio Cyro Pereira. O objetivo desta
redução é, além servir para estudo e conhecimento da obra, o de tornar possível
sua execução com piano em recitais de música de câmera. Esta redução foi
mostrada ao compositor, que aprovou o resultado final.
3 . Estudo da Obra para sua execução: Este estudo consiste da leitura e estudo
práticos da obra no instrumento, anotando-se todas as dificuldades,
desenvolvimento de dedilhado, arcadas, articulações, enfim, tudo o que se refere à
execução propriamente dita. Está agendada a apresentação da obra para o
compositor, para discussão dos diversos caminhos técnicos e interpretativos.
4
Até onde pudemos apurar, além de Marcelo Jaffé, esta peça foi tocada, até esta data, somente por
Newton Carneiro e Alexandre de Leon com a Orquestra Jazz Sinfônica e estes últimos, apenas o 3º
movimento.
5
O violista Alexandre de Leon.
148 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Cyro Pereira
O compositor e arranjador Cyro Pereira, nasceu na cidade de Rio Grande, RS, em
14/08/1929. Mudou-se para São Paulo em 1950, onde vive e desenvolveu sua extensa
carreira. Trabalhou na rádio e televisão Record e posteriormente na TV Tupi. Na TV
Record participou como maestro e arranjador dos memoráveis Festivais de Música Popular
Brasileira de 1966 a 1969. Foi o criador em 1965, em parceria com Mário Albanese do
ritmo Jequibau, ritmo este que alcançou grande sucesso no exterior e foi gravado em 23
países. Ganhou diversos prêmios entre eles o Roquette Pinto em 1957 e 1966, e o Prêmio
Carlos Gomes em 1996. A partir de 1989 foi professor da Unicamp de orquestração dentro
do curso de graduação em música popular até se aposentar em 1999. No mesmo ano de
1989 participou da criação da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, onde
permanece até hoje como Maestro e compositor residente.6
A Suíte Brasiliana n. 2
Cyro Pereira escreveu quatro suítes Brasilianas até esta data. Como ele próprio define em
entrevista7, Brasiliana refere-se a uma suíte com danças e ritmos brasileiros.
Este nome, Brasiliana, é inspirado na obra de Radamés Gnattali, que usou este termo para
inúmeras peças (Barbosa, 1984, p. 73). Ele comenta nesta entrevista que ouvia muito os
arranjos de Gnattali no rádio, e que este tipo de música foi que o impulsionou mais tarde a
querer aprender a escrever para orquestra. Sua primeira Brasiliana foi escrita para o
Concurso de Composição Cidade de São Paulo, em que ganhou menção honrosa e foi
estreada em 29 de abril de 1963, com a Orquestra Municipal de São Paulo (Shimabuco,
1998, p. 22, 23). Ela está escrita numa forma um pouco diferente das outras subseqüentes,
contando com cinco movimentos tendo o caráter mais usual de suíte. Estes movimentos se
enquadravam na forma pedida no concurso, a saber: Dobrado, toada, valsa, choro e baião.
Já as outras três Brasilianas são na verdade concertos para instrumento solo, a segunda para
viola, a terceira para violoncelo e a quarta para trompete. A segunda consta de três
movimentos: Samba, Valsa e Choro. A terceira também conta com três movimentos,
Choro, Prelúdio e Frevo, sendo o prelúdio uma adaptação da primeira peça da Pequena
suíte para grandes amigos de 1998 para piano solo (Shimabuco, 1998, p. 51). Sua
orquestração conta com cordas e bateria. Até o momento permanece inédita. A quarta é
para trompete solo e orquestra de sopros, e foi estreada no Festival de Inverno de Campos
de Jordão de 2005, por Daniel D’Alcântara no trompete acompanhado pela Orquestra Jazz
Sinfônica. Seus movimentos são: Choro, Canção e Frevo. Seu terceiro movimento foi uma
adaptação do frevo Ventania para orquestra completa, de autoria do próprio compositor.
A Brasiliana n. 2 foi dedicada ao violista Gualberto Estades Basavilbaso8 e estreada em
01/03/94, em São Paulo, com a Orquestra Jazz Sinfônica tendo Marcelo Jaffé9 como solista
6
As informações contidas nesta pequena biografia foram retiradas principalmente da dissertação de
mestrado de Luciana Sayuri Shimabuco (1998, p. 11–48), além de outras fornecidas pelo próprio
compositor.
7
Entrevista cit.
8
O Prof. Basavilbaso foi professor de viola da Universidade de Campinas. Em sua tese de doutorado,
Origens e desenvolvimento técnico da viola, Unicamp, Campinas, 1995, insere três fragmentos fac-
símiles da Brasiliana n. 2 dentro de uma série de exemplos musicais sobre obras violísticas nas
páginas 275 a 277.
9
Marcelo Jaffé é um dos mais atuantes violistas brasileiros. Nascido em 1963 em São Paulo é
professor de viola da Universidade de São Paulo, violista do Quarteto de Cordas da Cidade de São
Paulo e foi diretor artístico da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo.
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 149
(Shimabuco, 1998, p. 51). Sua orquestração conta com os seguintes instrumentos: Cordas
completas, 3 flautas com a terceira revezando com flautim, 2 oboés, 2 clarinetas em si
bemol, 2 fagotes, 4 trompas, harpa, bateria e tímpano. A percussão não é usada no segundo
movimento enquanto que a harpa somente é utilizada nele.
Mesmo sendo uma suíte, a Brasiliana n. 2 é também um concerto na sua forma mais
corriqueira: “Uma peça instrumental que mantém contraste entre um conjunto orquestral e
um grupo menor ou um instrumento solista, ou entre vários grupos e uma orquestra inteira”
(Fuller, in Grove, v.4, p. 626, tradução nossa). Apesar das suítes geralmente serem
formadas por mais de três movimentos, esta obra possui apenas três. Este fato não
descaracteriza esta forma, mesmo porque, as formas sempre apareceram na história da
música de maneira muito variada (Bas, 1947, p. 296). Vale lembrar que os concertos
barrocos têm sua origem na forma suíte, contando geralmente com quatro movimentos com
caráter de dança.(Zamacois, 1985, p. 206 e 207), passando em época posterior a possuir três
movimentos, como por exemplo, os concertos de J.S. Bach para violino solo.
1º movimento: Samba
O Samba10 é um gênero que aparece em formas bem variadas. Suas características
principais são: compasso 2/4 (às vezes 4/4), melodia sincopada sobre uma batucada
característica. Os tipos mais popularizados são: samba canção, samba enredo, samba de
breque, samba-choro, entre outros. Geralmente a forma mais usada consta de duas partes
podendo ser uma delas um estribilho ou refrão: A letra da música vai mudando numa delas,
e na outra, o refrão, ela se repete. Esta forma se parece com um rondó, com a diferença que
no rondó uma das partes vai sendo variada, não na letra, porém na música, enquanto que a
outra, que é o estribilho, aparece inalterada. Este movimento difere principalmente do que
conhecemos por samba por ter sido escrito para viola, instrumento que tradicionalmente
não toca este tipo de música. Cyro usou a batida característica do samba na bateria, com
partes na viola solista escritas como se a viola fizesse o papel de um cantor (c. 41 a 47, Ex.
1):
10
Fontes consultadas sobre o samba: Andrade, 1965, p. 145; Cascudo, 2000, p. 614 e Enciclopédia da
Música Brasileira, 1998, p. 704.
11
O termo idiomático e sua aplicação foram amplamente discutidos na dissertação de mestrado de
Ricardo Kubala (vide bibliografia). Adotaremos também este termo, pois ele descreve
150 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
2º movimento: Valsa
O segundo movimento da Brasiliana n. 2 é uma Valsa, e foi inspirada na peça para piano
solo, Pois é!!! Nem parece! de 1993. Sobre este nome da peça quando na versão para piano
solo, o autor explica que, por ocasião do 65º aniversário de sua esposa, fez uma brincadeira
e lhe dedicou essa música.13 Realizou também uma adaptação para piano e viola deste
movimento e outra para violoncelo e piano. Esta última está um tom abaixo do original. As
duas foram compostas em novembro de 1993. Esta valsa é feita de uma forma bem
peculiar, onde às vezes não se sente o compasso, com muito rubato e fermatas, no estilo
que Cyro chama de Valsa Brasileira (Ex. 4).14
Cabe aqui um aparte sobre a história dessa forma abrasileirada de valsa. Segundo a
Enciclopédia Da Música Brasileira (1998, p. 803), a valsa aqui aportou com a vinda da
família real portuguesa, em 1808, e tornou-se popular nos salões. Logo passou a ser um
gênero popular influenciando as modinhas, que passaram a ser ternárias. Através dos
conjuntos de choro transforma-se em um gênero seresteiro, e Ernesto Nazareth a torna uma
de suas principais formas de composição. As valsas foram registradas desde as primeiras
gravações realizadas e tiveram seu apogeu na rádio na década de 1930 nas vozes de grandes
cantores. Foi também utilizada por diversos compositores brasileiros eruditos.
Vejamos o que diz Cazes a respeito:
A valsa, dança ternária oriunda da Áustria e da Alemanha, que chegou ao
Brasil com a corte portuguesa, desenvolveu aqui características próprias, com
andamentos bem lentos, para dar vazão a tanto sentimentalismo e um esquema
de modulações similar ao das polcas. Nazareth aprofundou as possibilidades
desses gêneros com uma obra volumosa e de qualidade homogênea. (Cazes,
1998, p. 36).
Na opinião de Cyro este gênero foi desenvolvido com maestria por Ernesto Nazareth,
Francisco Mignone e Radamés Gnattali.15
3º movimento: Choro
O terceiro movimento está na forma de choro. Este segundo Cazes teria surgido devido a
uma nacionalização de vários gêneros trazidos de colonizadores, principalmente a Polca, e
que foram adquirindo caráter nacional. Este processo ocorreu de modo semelhante em
vários países, somando-se o sotaque do colonizador e a influência negra, originando assim a
música popular urbana que hoje conhecemos (Cazes, 1998, p. 17). De acordo com ele as
características do choro seriam:
[...]Em resumo: Choro foi primeiro uma maneira de tocar. Na década de 10,
passou a ser uma forma musical definida. O Choro como gênero tem
normalmente três partes (mais modernamente duas) e se caracteriza por ser
necessariamente modulante. Mais recentemente, Choro voltou a significar
uma maneira de frasear, aplicável a vários tipos de música brasileira. A
obediência à forma rondó (em que sempre se retorna à primeira parte) aos
poucos tem sido flexibilizada (Cazes, 1998, p. 21).
Este choro possui duas partes, e sua forma geral é A-B-A mais uma coda. Nos choros de
Pixinguinha observamos que em geral há 3 partes, como por exemplo, nos choros:
Chorando Sempre (As partes estão respectivamente nas tonalidades de Sol, mi e Dó).16
Naquele Tempo (ré, Fá, Ré), Um a Zero (Dó, Sol, Fá) e Vou Vivendo (Fá, ré, Si bemol),
porém há exceções com apenas duas partes como Carinhoso, Atencioso, etc..
Já o famoso Brasileirinho de Waldir de Azevedo tem somente duas partes, mas a casa dois
da primeira parte pode quase ser considerada uma segunda parte por sua extensa dimensão.
A primeira está em Fá maior e a segunda em fá menor na partitura consultada.17
Com o passar do tempo o choro foi sendo composto mais em duas partes como nos choros
Noites Cariocas (Sol, Do e coda em Sol) e Nosso Romance (Do lá) entre muitos outros de
Jacob do bandolim, ou Choro Negro (sol e Sol) de Paulinho da Viola.18
Colocamos as tonalidades das partes dos choros entre parênteses para demonstrar que as
modulações nestes choros, que são uma amostragem expressiva do gênero, são feitas em
direção às tonalidades vizinhas como as relativas maiores ou menores, dominantes e
subdominantes. Nos choros tradicionais são usados acordes maiores, menores, de sétima de
dominante, menores com sétima e diminutos, mas raramente acordes com maiores
alterações. Nesta obra Cyro utiliza uma harmonia mais complexa, com acordes de nona,
décima primeira, etc., quartas superpostas, e utiliza-se de harmonia jazzística (Ex. 5).
Cyro escreve quase que exclusivamente sem armadura de clave em suas obras.
Inquirimos o compositor se a obra estaria escrita em uma tonalidade específica sobre o que,
ele nos explanou, que apesar de começar numa região tonal e terminar na mesma, ele
procurou não se fixar em nenhuma, modulando sempre rapidamente e passando por muitas
tonalidades, sendo essa uma característica geral de suas obras desde muitos anos atrás. Esta
15
Entrevista cit.
16
As tonalidades maiores serão descritas com a letra inicial maiúscula e as menores com minúscula
17
TA-389, Rio de Janeiro: Todamérica Música Ltda. 1950.
18
Cyro Pereira fez uma versão deste choro para viola e piano ainda manuscrita e que faremos uma
edição futuramente.
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 153
Conclusão
Quando nos defrontamos com a obra de Cyro Pereira, deparamo-nos com várias questões
que serão aprofundadas no decorrer de nosso trabalho de dissertação: Em que contexto se
insere esta obra e a qual tradição se vincularia? Mesmo Cyro considerando-se um músico
popular, este fato implicaria que seu método composicional seja o de um músico popular?
Estes termos, música popular e erudita, se não os definirmos claramente, podem não
explicar certo tipos de obras que se situariam na “fronteira”. Henrique Pedrosa, no seu livro
Música Popular Brasileira Estilizada, discute extensamente o que ele chama de música
estilizada, que seria aquela música popular que tem uma elaboração muito próxima da
música de concerto, a que chamamos de erudita ou mais popularmente de clássica. Entre
exemplos que são citados na obra, temos Joaquim Antônio Calado, Ernesto Nazaré, Baden
Powel, Egberto Gismonti e poderíamos acrescentar inúmeros outros, em que o termo jazz
ou música popular não seriam completos para definir o tipo de obra que fazem.
Pensamos que Cyro Pereira pertenceria a esta classe de músicos que não estão nem bem em
um estilo nem no outro. Esta questão está diretamente ligada aos caminhos a serem
tomados na interpretação da obra.
154 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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Renato Kutner: natural de São Paulo, é bacharel em viola e licenciado em Educação
Artística pela USP. É mestrando desde 2004 em práticas interpretativas na Unicamp
sob orientação do Prof. Dr. Emerson de Biaggi. Estudou com Perez Dworecki, Elisa
Fukuda, Paulo Bosísio, Alejandro de León e Alberto Jaffé. Em 1984 foi para Israel,
onde permaneceu cinco anos, estudando com Yuval Kaminkowisky, na Jerusalem
Rubin Academy of Music and Dance e participou da Rishon Le Zion Symphony
Orchestra. É membro da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, desde sua
fundação em 1990, e da Orquestra Sinfônica Municipal de Santos. Desenvolve intenso
trabalho didático, tendo lecionado no Conservatório do Brooklin-SP, Conservatório
Estadual de Pouso Alegre-MG, no Projeto Guri-SP, Festival de Música Internacional
de Campos-RJ (2001) , Universidade Livre de Música Tom Jobim-SP de 1993 a 2003,
entre outros. Emerson De Biaggi: Formou-se em violino com Lola Benda e viola sob
orientação de Johannes Oelsner. Bacharel em Música pela USP, foi aluno de Perez
Dworecki, Horácio Shaeffer e Marcelo Jaffé. É mestre pela Boston University sob
orientação de Rafael Hillyer e Steven Ansell e doutor pela Universidade da Califórnia
sob orientação de Heiichiro Ohyama, Donald MacInnes e Ronald Copes. Integrou a
Boston Philharmonic, a Vermont Symphony Orchestra e a Boston Modern Music
orchestra, e regressou ao Brasil em 1997 para integrar a Orquestra Sinfônica Estadual
de São Paulo. Foi professor de viola e música de câmara no Depto. de Música da
Unesp de 1997 a 2004 e leciona desde 1998, no Instituto de Artes da Unicamp.
Integra o duo de viola e cravo Sebastian, o trio de cordas Camaleon e o quinteto de
cordas Quintal. Como solista, tem se apresentado em diversas orquestras entre as
quais a de Câmara São Paulo, de Câmera do Teatro São Pedro de Porto Alegre, de
Câmera de Jundiaí, Sinfônica da Unicamp, Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo,
Experimental de Repertório, de Câmara de Curitiba, Sinfônica de Santo André e
Sinfônica Municipal de Santos.
156 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Resumo: Este estudo foi realizado para contextualizar a revisão musicológica e edição
de partitura da “Abertura da Ópera Issa”, de Gilberto Mendes, de 1995. Os
questionamentos que surgiram com esta pesquisa de mestrado foram: como a pós-
modernidade se manifesta, em linhas gerais, nas sociedades pós-industriais, como se
configura o pós-modernismo na história da música do século XX e, finalmente, como
a pós-modernidade se apresenta em algumas obras de Gilberto Mendes. Palavras-
chave: pós-modernidade, Gilberto Mendes, história, modernismo, filosofia.
Introdução
Percebe-se que a pós-modernidade não se vincula propriamente a uma circunscrição
geográfica e nem tampouco a um período histórico, pelo menos não se o intuito for
delimitá-la de uma forma geral. A respeito do tempo da pós-modernidade, Nicolau
Sevcenko se manifesta:
Pós-moderno, como está evidente, é um conceito que supõe uma reflexão
sobre o tempo, antes de mais nada. Segue-se a pergunta inevitável, a que
tempo se refere então? Não a um tempo homogêneo, linear, em que se
pudesse estabelecer um recorte e fixar uma data decisiva, um ato inaugural,
como se poderia esperar da visão simplista da história na qual somos
zelosamente educados. (Sevcenko, 1988, p. 45)
Ela parece atender melhor a uma classificação por especificidade de assuntos, segundo
Fernando Iazzetta: “A definição do pós-modernismo ainda é um assunto em discussão, e
sua delimitação temporal depende do âmbito do qual se está tratando.” (In: Guinsburg, J. e
Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 228)
Não há ainda um acordo sobre a pós-modernidade, seja quanto aos seus atributos, seja
quanto à sua própria existência, ou não. João Adolfo Hansen corrobora nossa opinião,
afirmando: “O objeto implicado nas discussões do ‘pós-moderno’ é, assim, o ‘moderno’,
falado a partir de vários posicionamentos, e sobre o qual não há nenhum consenso.” (In:
Chalhub, Samira, 1994, p. 38)
Ao tratarmos o assunto “pós-modernismo”, invariavelmente recorreremos também ao
modernismo, pois é pela comparação, no mais das vezes não simétrica, entre ambos, que se
estabelece o que é próprio de um ou de outro. Jair Ferreira dos Santos esclarece bem este
aspecto:
Mas se a pós-modernidade significa mudanças com relação à modernidade, o
fato é que não se pode dispensar o aço, a fábrica, o automóvel, a arquitetura
funcional, a luz elétrica – conquistas associadas ao modernismo. Assim, no
fundo, o pós-modernismo é um fantasma que passeia por castelos modernos.
(Santos, J. F., 2004, p. 18)
Conclui-se daí que a pós-modernidade, antes de ser algo com existência histórica
demarcada ou circunscrita geograficamente, é algo mais apropriadamente estudado no
âmbito filosófico, sendo bem identificada no modus vivendi, no comportamento e nas artes.
Quanto à terminologia “pós-moderno”, Ricardo Timm de Souza afirma que:
Federico de Onís (...) utilizou este termo, pela primeira vez, opondo-o ao
movimento ultramodernista (...) pela antologia dedicada ao poeta Antonio
Machado e publicada em 1934, organizada por Onís segundo esse esquema de
oposição – em que o postmodernismo representaria um “reflexo conservador”
no modernismo, um retorno a um intimismo reativo ao ultramodernismo e seu
vigor universal –, e que contava com colaboradores tão ilustres como o
160 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
próprio Lorca, Pablo Neruda, Jorge Luís Borges e Vallejo. (In: Guinsburg, J. e
Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 88)
Esta conotação foi bastante restrita a um determinado aspecto, não apresentando um caráter
universalista. No entanto, Souza prossegue: “Vinte anos depois, o termo é novamente
empregado, desta vez como categoria de interpretação histórica, por Arnold Toynbee, no
oitavo volume de seu A Study of History – desta vez localizando o surgimento da pós-
modernidade nas origens do século XX.”(In: Guinsburg, J. e Barbosa, Ana Mae, 2005, p.
88). Porém, só adquire a conotação com que hoje é mais usualmente empregado, segundo
Fernando Magalhães:
(...) seu status decisivo dá-se em 1979 com o lançamento do primeiro trabalho
em filosofia a fazer uso da concepção de pós-modernidade. É nesse ano que
Lyotard publica, em Paris, seu famoso livro La Condition Postmoderne.
Lyotard, contudo, aborda o problema no âmbito da superestrutura e refere-se à
posição do saber nas sociedades industrialmente desenvolvidas. (Magalhães,
2004, p. 62)
Antes de avançarmos, parece-nos apropriado estabelecer uma padronização quanto à
terminologia usada neste trabalho para designar a pós-modernidade, ou o pós-modernismo.
Com este fito, novamente nos servimos da afirmação de Magalhães:
Não obstante se reconheça uma diferença conceitual entre pós-modernismo e
pós-modernidade – a primeira refletindo na cultura as mudanças operadas no
meio político –, qualquer um dos dois termos pode ser utilizado de forma
abrangente, em virtude da estreita relação entre eles. ( Magalhães, 2004, p. 63)
Isto posto, cremos imprescindível um breve apanhado histórico para situarmos tanto a
modernidade como a pós-modernidade no âmbito desta pesquisa. Para tanto, nos apoiamos
em Teixeira Coelho:
O “projeto da modernidade” é lançado no século XVIII e firma-se ao longo do
XIX – marcado, neste, por processos como o da Revolução Industrial, de um
novo pensamento sobre o social (como o de Karl Marx) e o dos passos iniciais
da psicanálise, para ficar nos mais evidentes. “Nossa” modernidade, porém,
parece cristalizar-se e assumir contornos mais bem trabalhados nos primeiros
anos deste século XX. (Coelho, 1995, p. 25)
O século XX pode ser alcunhado de “o século do conflito”, pois nele se sucederam duas
guerras com menos de trinta anos de intervalo, para citar apenas aquelas que assumiram
proporções mundiais. Também não se pode olvidar que, após a última grande conflagração,
finda em 1945, estabeleceu-se a chamada “Guerra Fria”, cujo eixo era a disputa pela
hegemonia global entre as duas superpotências da época, Estados Unidos e União
Soviética. Sobre este século conflituoso, Anthony Giddens afirma:
Não apenas a ameaça de confronto nuclear, mas a realidade do conflito
militar, formam uma parte básica do “lado sombrio” da modernidade no
século atual. O século XX é o século da guerra, com um número de conflitos
militares sérios envolvendo perdas substanciais de vidas, consideravelmente
mais alto do que qualquer um dos séculos precedentes. (Giddens, 1991, p. 19)
E é neste contexto que a modernidade se firma no cenário mundial, sob a égide do avanço
tecnológico, da produção industrial, inovações em todos os setores, a ciência como esteio,
O limiar da Pós-Modernidade 161
com a força do átomo, com o receio da fissão de seu núcleo para fins militares e com a
convivência, no mais das vezes não-pacífica, entre várias culturas, cada qual em seu
momento histórico. Sobre a modernidade deste período, Jameson elucida:
(...) o modernismo deve ser visto como correspondendo de forma singular a
um momento desigual do desenvolvimento social (...) a coexistência de
realidades de momentos radicalmente diferentes da história – o artesanato ao
lado dos grandes cartéis, as plantações de camponeses com as fábricas da
Krupp ou da Ford à distância. (Jameson, 1997, p. 312)
Este cenário de coexistência proporcionou uma grande circulação de idéias e de
mercadorias, dando origem a uma maior mobilidade social, que predispôs as condições para
a identificação da novidade como valor máximo do modernismo. Foi a secularização da era
moderna com fé irrestrita no progresso e na história. Perante esta visão, importa reconhecer
o pós-moderno não apenas como novidade em relação ao moderno, mas também, e
principalmente, como dissolução desta mesma categorização do novo, exemplificada como
uma experiência de ‘fim da história’, mais do que como uma mera apresentação de uma
etapa diferente, seja mais evoluída ou mais retrógrada, da própria história. Com
propriedade, Gianni Vattimo expõe seu pensamento:
O pós de pós-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade,
que, na medida em que quer fugir das suas lógicas de desenvolvimento, ou
seja, sobretudo da idéia da ‘superação’ crítica em direção a uma nova
fundação, busca precisamente o que Nietzsche e Heidegger procuraram em
sua peculiar relação ‘crítica’ com o pensamento ocidental. (Vattimo, 2002, p.
VII)
Nesta referência à procura nietzschiana e heideggeriana, podemos depreender que, para
eles, a modernidade está vinculada à idéia da história do pensamento como uma iluminação
gradual, de caráter linear e evolucionista, uma apropriação gradativa das bases racionais do
conhecimento, exprimida pela noção de superação, qual seja, o surgimento de novos
entendimentos que selecionam o que tem valor do que não tem, no que diz respeito à
acumulação do conhecimento. E o que eles buscavam era justamente o distanciamento
desta noção de superação crítica, superação esta tão cara ao Iluminismo.
A modernidade revela também, como característica, o desejo do consenso universal, o
discurso das argumentações, a “necessidade” de uma metanarrativa como uma finalidade
entre os vários discursos existentes. E é justamente o desencanto com as grandes narrativas,
com os metarrelatos de estrutura totalizante, que começa a delinear na face das sociedades
os traços da pós-modernidade. A este propósito, Jean-François Lyotard se pronuncia:
(...) não parece possível, nem mesmo prudente, orientar, como faz Habermas,
a elaboração do problema da legitimação no sentido da busca de um consenso
universal em meio ao que ele chama o Diskurs, isto é, o diálogo das
argumentações (...) Compreende-se bem qual é a função deste recurso na
argumentação de Habermas contra Luhmann. O Diskurs é o último obstáculo
oposto à teoria do sistema estável. A causa é boa, mas os argumentos não o
são. O consenso tornou-se um valor ultrapassado, e suspeito. A justiça, porém,
não o é. É preciso então chegar a uma idéia e a uma prática da justiça que não
seja relacionada à do consenso. (Lyotard, 1986, pp. 118–119)
162 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Na época moderna, a inovação era o valor fundamental, ao qual todos os demais valores
eram referenciados. A necessidade de enumerar e categorizar foi significativa nesta época,
a tudo estabelecendo um paralelo em termos de juízo, ou seja, criando juízos de valor,
apoiados na ânsia do progresso e no ímpeto da ruptura, pilares destes tempos modernos.
Como já vimos, Nietzsche sintetizou de forma lúcida que a modernidade era a época da
superação. Ora surgem sinais de fadiga, compondo este sintoma um sinal próprio da pós-
modernidade, embora paradoxalmente, seja justamente o desejo da ruptura com tudo o que
as sociedades viveram nestes últimos séculos que anuncie este surgimento de um novo
estado de coisas. Sérgio Paulo Rouanet, citado por Raymundo de Lima em seu artigo “Para
entender o pós-modernismo”, descreve muito bem este paradoxo:
Depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Aushwitz [sic],
depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação
atômica, pela ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela
degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da
modernidade. Todos esses males são atribuídos ao mundo moderno. Essa
atitude de rejeição se traduz na convicção de que estamos transitando para um
novo paradigma. O desejo de ruptura leva à convicção de que essa ruptura já
ocorreu ou está em vias de ocorrer (...). O pós-moderno é muito mais a fadiga
crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino
de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não
corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples
mal-estar da modernidade. É literalmente falsa consciência, porque
consciência de uma ruptura que não houve, ao mesmo tempo, é também
consciência verdadeira, porque alude, de algum modo, às deformações da
modernidade (Lima, 2005)
Por este prisma, o niilismo preconizado por Nietzsche e o ultrapassamento da metafísica
ambicionado por Heidegger estão, ambos, se concretizando, profeticamente, na sociedade
atual, tendo em vista que o niilismo dirige-se para a mobilidade do simbólico e para a
maneira como vivemos, individualmente e coletivamente, na sociedade pós-moderna. Nela,
o sentido da história não tem a peremptoriedade metafísica e teológica que havia na
moderna, o que confirma Heidegger, que discursa sobre a necessidade de “abandonar o ser
como fundamento”, para “saltar” em seu “abismo”. Eugênio Rondini Trivinho indaga para
depois explicar, nas suas palavras:
O que é viver hoje?... Hoje, em vista das reciclagens contínuas e da aceleração
dos processos, é possível viver centenas de anos em um ano, três ou quatro
gerações em uma década. Doravante, a vida precisa ser vista não mais como
duração (extensão), mas como espiral de imersões no instante, como absorção
em seqüências condensadas em momentos perenes, como magma invisível de
várias eras. (Trivinho, 1992, pp. 72–73)
A crítica ao humanismo, e o niilismo consumado, nos remetem para uma experiência
“fabulizada” da realidade, levando hoje à indefinição do que é aparência e realidade,
indicando uma nova possibilidade para a experiência humana, como observamos na
declaração de Ariza:
(...) trata-se de uma tendência à estetização da vida cotidiana, propiciada a
partir da art pop, do dadaísmo, e do surrealismo, através de suas propostas de
integração da arte e da vida, como também o surgimento de uma cultura do
O limiar da Pós-Modernidade 163
Justificativa
Gilberto Mendes é um dos mais profícuos compositores do Brasil. Nasceu em Santos em 13
de outubro de 1922, sendo que seus mestres foram Cláudio Santoro e Olivier Toni. Criador
de uma extensa obra, abarcando repertório para instrumentos solistas, voz e piano, música
de câmara, peças corais e orquestrais, não optou pela insistência em uma única poética,
mas, sim, preferiu a riqueza da diversidade.
Instituiu o Festival Música Nova, em 1962, e é um dos seus responsáveis até hoje. De
espírito inquieto e questionador, foi um dos pioneiros, no Brasil, da música aleatória,
concreta e visual e, em 1963, foi co-autor do manifesto Música Nova. Sua peça coral de
1966, Moteto em Ré menor (Beba Coca-cola), alcançou popularidade internacional, sendo
164 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
apresentada em todos os continentes. Sua obra Blirium A-9 foi selecionada, em 1970, pela
Tribuna Internacional de Compositores - UNESCO, para difusão nas rádios da Europa. Em
1971 ganhou o prêmio da APCA pela melhor obra experimental, com Santos Football
Music.
Como professor convidado deu aulas de composição na Universidade de Milwaukee
(E.U.A), em 1978 e 1979. É autor do livro Uma Odisséia Musical (EDUSP) e suas obras
vem sendo executadas nas principais cidades do país e em vários eventos internacionais,
como Festival Internacional de Músicas Experimentais em Bourges (França); Sonidos de
las Américas no Carnegie Hall, em Nova York (E.U.A.); Festival de Música Brasileira em
Bonn (Alemanha); Inter-American Music Festival em Washington (E.U.A) e Festival de
Música de Vanguarda da Fundação Gulbenkian Lisboa (Portugal), entre outros. (Duprat,
Enciclopédia da Música Brasileira, pp.179–180)
Gilberto Mendes sempre transitou com desenvoltura entre os mais diversos sistemas
musicais, sendo ímpar sua propriedade de fundir linguagens diferentes, imprimindo nessa
fusão sua marca pessoal, podendo ser considerado um autêntico representante do pós-
modernismo no Brasil. Desta forma, pela contemporaneidade, relevância e originalidade do
assunto em questão, justifica-se esta pesquisa sobre como alguns aspectos do pós-moderno
influenciaram o processo criativo deste compositor.
A Vanguarda e o Pós-Moderno
O conceito de vanguarda é de origem militar e remonta à época de Napoleão Bonaparte,
quando também surgiu o conceito de ideologia. De acordo com Bauman:
Avant-garde significa, literalmente, vanguarda, posto avançado, ponta-de-
lança da primeira fileira de um exército em movimento: um deslocamento que
se move na frente do corpo mais importante das forças armadas – mas
permanece adiante apenas com o fim de preparar o terreno para o resto do
exército. (...) A vanguarda dá à distância que a separa do grosso da tropa uma
dimensão temporal: o que está sendo feito presentemente por uma pequena
unidade avançada será repetido mais tarde, por todas. (...) Num mundo em que
se pode falar de a v a n t - g a r d e, “para frente” e “para trás” têm,
simultaneamente, dimensões espaciais e temporais. (Bauman, 1998, p. 121)
Ao largo do século XIX o conceito de vanguarda se estendeu a outros campos,
principalmente para a política e a arte, que lhe deram um significado metafórico. Na
política, entendia-se por vanguarda aquele setor de um grupo social, ou político, cujas
idéias ou ações eram mais radicais, como, por exemplo, os socialistas utópicos da França e,
posteriormente, a minoria que liderava a revolução social marxista.
De acordo com Vattimo, as vanguardas atuavam por meio da “supressão dos limites do
estético, em direção a um alcance metafísico ou histórico-político da obra.”(Vattimo, 2002,
p.43)
No final do século XIX ocorreu um rompimento entre a vanguarda política e a artística.
Procedendo a uma análise das expressões da modernidade no âmbito musical, verificamos
que os “ismos” modernistas do século XX assumiram para si o conceito de vanguarda. Por
conseguinte, observamos três fases distintas na construção da modernidade musical: a
O limiar da Pós-Modernidade 165
primeira, compreendida entre as duas grandes guerras; a segunda, entre 1945 e 1960, com a
formação de dois núcleos composicionais (vanguarda e experimentação); e a terceira fase
da modernidade musical, com o ápice das vanguardas na década de sessenta, exprimindo a
busca constante do “novo”, o que levou ao seu exaurimento como linguagem musical.
O modernismo musical chegou esmaecido ao nosso país. Desde o século XIX, o
questionamento sobre a criação de uma música livre dos esquemas impostos pela Europa
foi preponderante no Brasil. Diante disto, esta primeira fase modernista brasileira
apresentou uma nostalgia das tradições derivadas dos movimentos artísticos nacionalistas.
A produção musical brasileira da Semana de 22 parecia desatualizada em relação às novas
conquistas modernistas como o dodecafonismo, exceção feita às obras de Villa-Lobos, nas
quais encontravam-se superposições politonais, atonalismo, polirritmias e experiências com
novas combinações instrumentais. De uma forma geral, as três fases nas quais podemos
dividir o modernismo musical brasileiro são: a primeira, de 1922 a meados dos anos de
1945, quando se firmou a poética nacionalista; a segunda inicia-se em 1946, quando da
declaração do Manifesto Música Viva, estendendo-se até a década de 1960; a terceira surge
também com um manifesto, Música Nova (1963), quando a influência de Darmstadt se fêz
presente aqui no Brasil.
Enquanto Villa-Lobos estava na Europa compondo os Choros, Mário de Andrade assumiu
o lugar de pensador e crítico da música brasileira, tendo como fiel discípulo Camargo
Guarnieri. Este compositor, a partir das diretrizes de seu mentor, constituiu escola,
trabalhando com a linguagem neoclássica de Hindemith, tendo com âncora a busca do
caráter musical brasileiro.
Após a Segunda Guerra Mundial, ocorreu, na Europa e nos Estados Unidos, a formação de
dois núcleos composicionais, quais sejam, respectivamente: o serialismo integral, derivado
da Segunda Escola de Viena; e o uso da indeterminação, iniciado com John Cage
(1912–1992). Nas palavras de Griffiths: “Somente um compositor norte-americano poderia
ter empreendido uma revisão tão radical do sentido da música, estabelecendo a ‘não
intenção’ zen no lugar da realização de um produto da vontade individual, finalidade da arte
européia desde o Renascimento.”(Griffiths, 1987, p. 120) Desta forma, o compositor
assume um papel completamente diferente daquele da tradição musical romântica,
começando a quebra das categorias de superação e originalidade, que veremos consolidada
na pós-modernidade.
Referindo-nos novamente ao Brasil, pela primeira vez tentou-se aqui desenvolver a
aplicação sistemática do dodecafonismo, pela iniciativa de Hans Joachim Koellreutter
(1915–2005). Compositores que estudavam com ele como Cláudio Santoro (1919–1989),
Edino Krieger (1928–), Eunice Catunda (1915–1990) e Guerra-Peixe (1914–1993)
lançaram o Manifesto Música Viva no Rio de Janeiro, em primeiro de novembro de 1946.
Ao se aproximar a década de sessenta, vários compositores em toda a Europa procuraram
novas soluções composicionais: Olivier Messiaen (1908–1992) elaborou uma arquitetura
sonora estática, concebida após incursões pelo canto gregoriano e pelas rítmicas grega e
hindu; György Ligeti (1923–) construiu densas texturas sonoras em obras como
Atmospheres (1961–); o realismo socialista manifestou-se na música dos poloneses como
Krysztof Penderecki (1933–) e Witold Lutoslawiski (1913–1994). Segundo Gubernikoff,
“A música ocidental se acreditava universal e histórica e baseava sua produção nessas
166 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
risco que um compositor pode correr hoje apareça no momento em que ele
procura retornar a estruturas tonais sem aceitar as facilidades das estratégias
de colagem pós-modernas. (Safatle, 2005)
As citações podem se configurar como as partes mais interessantes de uma obra se o
compositor não desenvolve uma linguagem pessoal, esquecendo-se da perspectiva
ontológico-existencial no seu processo formador de linguagem.
com a sétima maior, criando uma reminiscência tonal, que logo é esmaecida pelos
contornos vagos da melodia, apresentando assim o sincretismo próprio do pós-moderno. De
acordo com Kaminsky, “o que ocorre hoje, porém, é uma intensificação das identidades
sincréticas, geradas pelas migrações internacionais, e que refletem/são refletidas nas
produções artísticas.” (Kaminsky, 2002, p. 190–191)
Como pudemos notar, o universo pessoal de Gilberto Mendes permeia toda sua produção.
Ele navega entre estilos, tendências e influências musicais sob o signo da liberdade
criadora, com o ecletismo inerente ao pós-moderno.
Conclusão
Atualmente o compositor, carregado de informações tanto no campo das artes como na
ciência, traz consigo um passado cultural bem mais amplo que em períodos anteriores, com
a possibilidade de realizar metalinguagens usando todo material cultural à disposição.
Gilberto Mendes abarca um grande variedade de gêneros musicais e suas preocupações
poéticas não se encerram nas obras, mas sim nutrem outros procedimentos de criações
posteriores.
O estudo sobre as possíveis interfaces da pós-modernidade no idiomático de Gilberto
Mendes, no período de 1982 à 1995, nos leva a concluir ser este um período onde impera a
química de linguagens múltiplas e a mistura de protocolos, numa fusão de horizontes
musicais peculiar do pós-moderno.
O compositor encara o sistema atonal como uma expansão do sistema tonal e suas obras
revelam seu singular imaginário musical, que vai desde as lembranças fugazes de Vento
Noroeste até a corte imperial japonesa, presente na Abertura da Ópera Issa, através da
escala Ritsu do Gagaku. Neste sentido, demonstra outra faceta pós-moderna, a expressão da
individualidade do compositor, com cunho quase autobiográfico.
Nesta fase Gilberto Mendes prezou o ecletismo de sua paisagem sonora, exercendo seu
mister com simplicidade através da parcimônia na utilização de materiais, com técnicas de
citações que produzem, paradoxalmente, uma obra complexa e sofisticada. Suas obras deste
período parecem imbuídas da propriedade de serem captadas de modo direto pelo ouvinte,
remetendo à característica pós-moderna da feitura de uma arte que possa ser assimilada
tranqüilamente pelo público, sem a necessidade de “bulas” ou teorizações estéreis.
O objetivo de assinalar aspectos pós-modernistas na obra de Gilberto Mendes é trazer este
repertório respectivo para perto dos intérpretes e estudiosos, pois ele ainda é pouco
divulgado aqui no Brasil, valendo notar que esta sua produção recente é assaz executada na
Europa. Desta forma, esta pesquisa pretende incrementar as execuções deste repertório pós-
moderno de Gilberto Mendes em seu país natal.
Devido a tão exíguo espaço, o assunto não se esgota neste leve debruçar-se sobre ele,
restando vasto campo para ser abordado. O que aqui resta comprovado é a inegável relação
de Gilberto Mendes com os modos pós-modernos, e a extraordinária força expressiva que
consegue desta condição extrair, enriquecendo de maneira ímpar a música erudita.
172 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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Rita de Cássia Domingues dos Santos é Mestre em Musicologia pela ECA - USP. Em
2004 terminou a pós-graduação lato sensu: “Capacitação Docente em Música
Brasileira” na Universidade Anhembi-Morumbi. Graduada em Composição e
Regência pela UNESP e em Educação Artística pela FASM. Participou do III Fórum
de Pesquisa Científica em Arte – EMBAP com o trabalho “Carta de Mário de
Andrade a Camargo Guarnieri: um estudo sobre Inferência”. Em 1989 obteve o 3º
Lugar com a composição “Retrato Íntimo” no V Concurso Nacional Ritmo e Som da
UNESP. Em 1997 teve seu arranjo coral “Divertimento” executado na Fundação
Memorial da América Latina, pelo Coral “Amigos do Mundo” e Camerata Ikeda.
Regeu coros da graduação da UNESP (campus Araraquara) e do departamento de
Música da USP (campus Ribeirão Preto), dentre outros. Atualmente é professora de
educação musical no Colégio Benjamin Constant e pesquisa as interfaces do pós-
moderno com a música .
Educação musical e pedagogia
Introdução
Os anos iniciais da escola brasileira estão normalmente a cargo de professores generalistas.
Tais professores são aqueles que atuam na escola com todas as áreas do conhecimento,
tanto na Educação Infantil quanto nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série).
Em alguns sistemas educacionais, normalmente os privados, há professores especialistas
para certas áreas do conhecimento, como por exemplo, educação física, línguas estrangeiras
e artes.
A presença de professores especialistas nos anos iniciais da escola de certa forma altera o
princípio norteador da educação neste período escolar, pois o que se espera é que um
professor seja responsável pela introdução de conhecimentos diversos através de uma
perspectiva integrada. Esta integração se justifica do ponto de vista psicológico, e um único
professor durante os anos iniciais é mais adequado para a criança desta faixa etária. Além
da questão psicológica, um único professor atuando com todas as áreas do conhecimento de
forma introdutória, é uma alternativa que pode evitar a fragmentação do currículo.
Os professores especialistas em diferentes áreas certamente podem contribuir para um
ensino de qualidade nos anos iniciais. Mas o professor generalista deveria compreender o
papel de todas as áreas do conhecimento que estão presentes na Educação Infantil e nas
Séries Iniciais do Ensino Fundamental, e, de alguma forma, contribuir para o
desenvolvimento destas áreas ao longo de seu trabalho didático-pedagógico.
A área de artes tem sido tratada de maneira insatisfatória nos anos iniciais da escola
brasileira por diversas razões. Uma delas está diretamente relacionada à quantidade e
qualidade da formação artística oferecida nos cursos que preparam professores para os anos
iniciais da escola. Tal formação tem contribuído para que se perpetue a idéia de que as artes
só podem ser realizadas por alguns indivíduos dotados de talentos especiais. Esta forma de
pensar sobre as artes está muito arraigada no contexto escolar inibindo a realização de
trabalhos que envolvam artes de maneira consistente.
Especificamente sobre música, a formação oferecida em cursos de pedagogia que preparam
professores para os anos iniciais da escola, tem sido precária (Figueiredo, 2003). O
resultado desta formação (ou falta de formação) está refletido na ausência significativa de
propostas de educação musical para os anos iniciais da escola, gerando uma lacuna na
Educação Musical e Pedagogia 175
experiência escolar que é oferecida para as crianças nesta faixa etária. Quando há
professores especialistas nos anos iniciais atuando na área de música, reforça-se a idéia de
que música não é para todos, e o professor generalista parece não ser capaz de lidar com
atividades musicais em sua prática escolar.
Será possível oferecer uma formação musical durante os cursos de pedagogia de modo que
o professor que atuará nos anos iniciais da escola seja capaz de lidar com aspectos
educativo-musicais em sua prática docente? Este texto apresenta uma discussão acerca
deste assunto, procurando demonstrar que é possível aprimorar a formação musical de
professores generalistas de modo que tais professores possam contribuir para o
desenvolvimento musical das crianças nos anos iniciais da escola.
perspectiva utilitária, as artes carregam uma certa dose de ‘inutilidade’, o que justifica sua
posição secundária nos projetos curriculares em geral.
4) As artes servem para deixar tudo mais bonito e agradável na escola. Nesta concepção as
artes ocupam um papel coadjuvante, sugerindo que sua presença na escola deve sempre
estar ligada a algo mais significativo. As artes são utilizadas para entreter, auxiliar na
aprendizagem de outros conteúdos e para relaxar as crianças, oferecendo períodos de
descanso entre as atividades ‘sérias’ do currículo.
5) Este modelo de ensino de artes é o que vem sendo utilizado por muitos cursos de
pedagogia ao longo da história. A repetição de modelos anteriores sem reflexão tem sido
uma opção de vários cursos de pedagogia que formam professores generalistas. Ao mesmo
tempo faltam propostas concretas para o estabelecimento de novas perspectivas para as
artes nos cursos de pedagogia.
As cinco razões apresentadas para a falta de uma formação musical mais significativa em
música e em artes em geral nos cursos de pedagogia ilustram situações decorrentes de
práticas sem a devida reflexão. O discurso da formação integral da criança é diferente da
prática curricular que privilegia algumas áreas em detrimento de outras. A falta de
discussão sobre a formação musical e artística nos cursos de pedagogia também reflete uma
hierarquia curricular que vem sendo praticada, colocando as artes em uma situação
irrelevante na formação dos indivíduos.
Um aspecto importante para ser discutido é a falta de propostas diferenciadas para esta
formação musical. Há cursos que mantêm certas práticas em termos de formação musical
porque desconhecem outras propostas possíveis. Neste sentido, o que parece ser importante
é a revisão de conceitos sobre música, ensino de música, e música na formação escolar.
Para o senso comum, fazer música é tocar instrumentos musicais, e para tanto, é preciso ter
talentos especiais, é preciso ser muito musical. Ignora-se o fato de que todas as pessoas se
relacionam com a música de sua cultura e, nesta perspectiva, não existem indivíduos não
musicais. Como afirma Hodges (1999), “todas as pessoas possuem algum grau de
musicalidade, porque todos os indivíduos respondem de alguma forma à música de sua
cultura” (p. 30). Além disso, há diversas maneiras de lidar com música além de tocar um
instrumento musical, assim como, é possível realizar atividades musicais bastante simples,
acessíveis a todas as pessoas.
Uma proposta de música para a formação de pedagogos deve rever, em primeiro lugar, a
visão de que música deve sempre servir para algo que está fora dela, como, por exemplo,
ajudar na fixação de datas, números, ou outros conteúdos. Música serve também para
auxiliar na realização de outras tarefas, mas a formação musical deveria ir além desta
ênfase nos valores extrínsecos à música (Temmerman, 1991). A própria discussão sobre os
significados e as funções da música na sociedade poderia ser um dos componentes a serem
incluídos na formação musical de professores generalistas. Merriam (1964) é uma
referência importante para a discussão deste tópico.
A partir da pesquisa realizada (Figueiredo, 2003) constatou-se uma certa fragilidade nas
concepções sobre música no currículo dos cursos de pedagogia. Tal fragilidade incluía um
grau elevado de superficialidade nas propostas curriculares, oferecendo para os alunos
algumas atividades prontas, espécies de ‘receitas’, para serem utilizadas em momentos
específicos na escola (por exemplo, ensinar música para datas comemorativas). O que se
178 Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005
A partir destes autores mencionados é possível considerar que a atividade musical deveria
estar conectada com outras compreensões para fazer sentido no contexto educacional. Todo
programa de música deveria levar em consideração questões essenciais que pudessem
nortear as escolhas e as reflexões do professor. A Fig. 1 apresenta um esquema que inclui
algumas questões essenciais que poderiam ser utilizadas para o desenvolvimento de
programas de educação musical para professores generalistas.
O quê?
MÚSICA
Como? Onde?
dentro e fora da escola; o professor pode ser um estimulador desta constatação da música
em diversos contextos, o que também poderia ser um estímulo para buscar diversos tipos de
música, além de ampliar o contato com músicos e experiências musicais diversas. Quando a
educação musical deve ser incluída e de que forma ela poderia respeitar os diversos
aspectos do desenvolvimento da criança também deve ser um elemento de reflexão e estudo
do professor.
As questões essenciais apresentadas na Fig. 1 conduzem naturalmente a uma síntese de
componentes que poderiam ser considerados fundamentais na construção de uma estrutura
conceitual através da inclusão de áreas distintas do conhecimento que se somam para
atribuir sentido mais amplo à experiência musical na escola. Os componentes desta
estrutura conceitual derivam das questões essenciais. A Fig. 2 apresenta estes componentes.
Durante a formação oferecida nos cursos de pedagogia são oferecidas diversas disciplinas
que se referem aos assuntos aqui propostos. No curso de pedagogia se estuda filosofia da
educação, psicologia, sociologia, didática, e outras disciplinas cuja função é preparar o
futuro professor como um indivíduo que compreende sua atividade profissional num
universo muito amplo. Os componentes propostos na estrutura conceitual apresentada na
Fig. 2 poderiam ser discutidos em diversas disciplinas do curso de pedagogia. Compreender
a importância da música não é uma questão apenas da aula de música; entender e refletir
sobre a presença da música na sociedade é também um assunto que não pertence
exclusivamente à área de música; aprimorar o conhecimento sobre a criança e seu
desenvolvimento escolar obviamente também inclui questões de música, e assim por diante.
È possível estabelecer diversas conexões entre as áreas que estão sendo estudadas pelo
futuro pedagogo, e a música deve ser parte desta reflexão.
Componentes
musicais
Componentes Componentes
filosóficos psicológicos
Componentes Componentes
pedagógicos sociológicos
O conteúdo do curso
A estrutura conceitual apresentada norteou a elaboração de tópicos e atividades a serem
desenvolvidas durante o curso, considerando que todos os componentes eram
hierarquicamente similares (Figueiredo, 2004b, 2004c). Cada grupo de componentes foi
assim contemplado:
1) Componentes musicais: questões de apreciação, criação e execução musical; elementos
sonoros, melodia, textura, forma e estilo, dentre outros, foram aspectos explorados através
de exercícios individuais ou em grupo;
2) Componentes filosóficos: questões de estética, música e filosofia de educação musical;
foram apresentados e discutidos diversos argumentos em favor da educação musical na
escola;
3) Componentes psicológicos: teorias do desenvolvimento musical; todas as atividades
práticas foram permeadas de discussões acerca da viabilidade de realização de experiências
musicais com faixas etárias distintas;
4) Componentes pedagógicos: metodologias de educação musical; diversos autores foram
discutidos com o intuito de demonstrar diversas estratégias educativas em música;
182 Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005
Discussão
A formação musical dos participantes era inexistente ou bastante precária. Vários deles
relataram e registraram experiências musicais ruins ou pouco significativas ao longo da
formação escolar. Esta situação, infelizmente, não é privilégio destes participantes desta
pesquisa, já que em diversas partes do Brasil o ensino de artes é pouco sistemático e
descontínuo (Penna, 2004).
Apesar da pouca formação, os participantes foram unânimes e muito positivos ao se referir
à importância da música na escola, apresentando diversas razões. Música acalma, alegra,
faz bem para o espírito, desenvolve emoção e sensibilidade, facilita a aprendizagem em
outras disciplinas e faz parte do desenvolvimento integral da criança, foram os principais
argumentos para justificar a importância da música na visão dos participantes. Estes
argumentos apresentados são naturalmente mais dirigidos para valores extrínsecos à
atividade musical, confirmando a falta de formação musical específica dos participantes.
Para eles, música parece ter que sempre servir para alguma coisa, como se a música em si
não tivesse valor para poder ser incluída e justificada na escola.
O repertório variado apresentado durante o curso propiciou aos participantes uma vivência
com outras experiências musicais, o que contribuiu para a reflexão sobre os tipos de música
que poderiam fazer parte de programas escolares. Inicialmente muitos participantes
mencionaram os tipos de música que seriam adequados às crianças, demonstrando diversos
preconceitos com relação a várias manifestações musicais. Ao longo do curso ficou
evidenciado que a música desempenha diversas funções e, por esta razão, não deveria ser
simplificada ou utilizada de forma limitada na escola. A mídia também foi objeto de
reflexão dos participantes, que compreenderam a necessidade de um pensamento musical
autônomo, independente e crítico com relação à imposição dos meios de comunicação de
determinados tipos de música que estabelecem o gosto e as preferências musicais por
repetição e insistência. Este processo de ampliação do repertório foi estimulante para os
participantes.
A visão inicial dos participantes com relação a metodologias de ensino de música
apresentava forte tendência de se considerar ensino de música equivalente a ensino de um
instrumento musical, sempre evidenciando a necessidade de conhecimentos de teoria e de
grafia musical para se desenvolver qualquer atividade. Como a maioria das pessoas não
possuía esta experiência de tocar instrumentos musicais elas se consideravam inaptas para
qualquer atividade musical escolar. As atividades de audição e criação contribuíram para a
revisão destes pré-conceitos com relação ao fazer musical e as experiências ao longo do
curso redimensionaram diversos pontos de vista.
O nível de confiança para desenvolver atividades musicais básicas aumentou
significativamente de acordo com as respostas dos participantes. Apesar de se sentirem
mais confiantes e aptos a desenvolverem algum tipo de atividade musical na escola, a
maioria deles reconheceu a necessidade de mais aprimoramento, e lastimaram não terem
tido outras oportunidades ao longo do curso para se desenvolverem musicalmente.
Educação Musical e Pedagogia 183
A formação continuada em música foi uma opção apresentada por diversos participantes,
que entendem que a universidade não pode dar conta da formação completa. O professor
em suas atividades de formação continuada deveria participar também de cursos de música
que pudessem ampliar cada vez mais seus conhecimentos nesta área.
O curso de música oferecido, apesar de ser breve, foi avaliado muito positivamente pela
maioria dos participantes, enfatizando que os diferentes componentes do trabalho realizado
propiciaram reflexões importantes sobre diversos aspectos relacionados à educação
musical. Nas palavras de uma das participantes, “até a parte teórica do curso foi
importante”. Alguns participantes reconheceram que começaram o curso esperando
algumas ‘receitas’ práticas sobre como trabalhar com música na escola, mas
compreenderam que é necessário mais do que um conjunto de canções para serem repetidas
nas datas comemorativas da escola para que seja estimulado um real desenvolvimento
musical das crianças.
Considerações finais
Os resultados do curso foram considerados positivos pelos participantes, o que pode ser
visto como um estímulo para a continuidade de trabalhos desta natureza. O curso, apesar de
ser curto, propiciou reflexões importantes de acordo com os depoimentos de diversos
participantes.
A conexão entre a música e diversas outras áreas do conhecimento propiciou conexões que
fizeram sentido para muitos dos participantes. A compreensão sobre música foi ampliada
em várias direções, demonstrando a eficácia da estrutura conceitual utilizada para a
construção do curso de música oferecido. Evidentemente, a mesma estrutura deve ser
aplicada em outros contextos e situações, para que possa confirmar aspectos resultantes
desta primeira experiência, assim como verificar outros elementos que podem ser aplicados
a esta estrutura.
Os cursos de pedagogia que formam professores para os anos iniciais da escola poderiam
rever a qualidade da formação musical oferecida, contribuindo efetivamente para a
formação musical dos futuros professores. O professor egresso do curso de pedagogia é um
multiplicador, pois várias crianças estarão sob a responsabilidade deste profissional durante
alguns anos da escola.
É importante que se compreenda a importância da educação musical como elemento
fundamental na formação dos educadores dos anos iniciais. São estes educadores que
estabelecerão as bases para o desenvolvimento da criança na escola, e a compreensão da
música e suas funções na sociedade é imprescindível para que esta área do conhecimento
seja tratada de maneira mais significativa no contexto escolar.
O professor dos anos iniciais não será um substituto do professor especialista em música.
Ao contrário, quando mais professores e profissionais da educação em geral tiverem
consciência da importância da música na escola, maiores serão as chances de se conquistar
um espaço mais digno e mais nobre para a educação musical escolar.
184 Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005
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Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo é Bacharel em Composição e Regência pela
FAAM, SP, Mestre em Educação Musical pela UFRGS, RS, e Doutor (Ph D) pelo
Royal Melbourne Institute of Technology (RMIT University), Melbourne, Austrália.
Atuou como professor de diversas áreas na Faculdade de Artes Alcântara Machado,
SP, e atualmente é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC,
em Florianópolis. Suas áreas de pesquisa incluem educação musical, especialmente
formação inicial e continuada de professores, e regência e prática coral. Possui
diversos artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Foi Diretor
Regional da ABEM Sul – Associação Brasileira de Educação Musical, e atualmente é
representante adjunto da América Latina na ISME RESEARCH COMMISSION
(International Society for Music Education), e no Comparative Music Education
Group CME.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda segundo o modelo de Luiz Tatit
Resumo: Cantigas de Roda e Acalantos são entoados no Brasil desde sempre. Saber
como se estruturam, partindo de um olhar semiótico é o objetivo principal desta
pesquisa, tendo como base as concepções semióticas levantadas por Luiz Tatit (1951).
Nessas concepções, se apresentam três parâmetros de análise: tematização,
passionalização e figurativização enunciativa. Estes elementos, que Tatit usa para
analisar a música popular brasileira, são as ferramentas escolhidas para realizar uma
leitura diferente das canções infantis. Este outro olhar, exemplificado na análise
prática de alguns destes acalantos e cantigas de roda, permite uma compreensão mais
profunda do processo de assimilação que a criança apresenta, no seu papel de
receptor. Palavras Chave: Música Infantil; Cantiga e Acalantos; Semiótica.
A eficácia da canção
Considerações preliminares.
Quando a mãe brinca com seu filho cantando “pirulito que bate, bate...”, ou quando a
mesma criança adormece ouvindo “Nana neném...”, ela não só está criando uma relação
afetiva com o bebê, como também não está só iniciando-o na sua futura relação com a
música. Ela transfere uma significativa quantidade de informação musicológica, acumulada
em séculos de intercâmbio histórico e cultural, e que mais adiante virá a ser utilizada na
construção de referenciais de identidade, grupo social, nação, povo, etc.1
Acalantos e cantigas de roda têm sua origem na miscigenação dos povos latino-americanos.
Isso se levando ainda a forte influência da colonização ibérica.2 Lydio R. Silva (1961)3
distingue três pontos principais de influência na formação da música no Brasil: a inegável
presença européia representada pela música portuguesa e espanhola, os ritmos e sons
negros trazidos pelos escravos, e o aporte ameríndio.4 Esta mistura permeia as diferentes
camadas da estratificada sociedade colonial do novo mundo, especialmente em seus
desdobramentos musicais, na música folclórica. Além disso, algumas melodias, comuns no
Brasil, podem ser encontradas também em outros lugares do mundo, e um recorte
embasado nas concepções de Silva,5 deve ser utilizado com o suficiente cuidado para
evitarem-se complicações conceituais.
1
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. pp. 5–27.
2
Ibidem, p. 11.
3
Músico e compositor, arte-educador, musico terapeuta e curitibano, Lydio Roberto Silva é mestre
em Psicologia Organizacional pela UFSC e especialista em fundamentos estéticos da arte-educação e
especialista em educação especial. Atualmente é professor da Faculdades de Artes do Paraná (FAP)
4
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 10.
5
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 11.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 187
A música para crianças no Brasil, então, faz parte desse universo folclórico ao qual
Fontoura e Silva fazem referência. Elas apresentam como característica principal a
“perpetuação pela tradição oral de um povo, transmitidas de geração em geração” (Silva,
2001, p. 11). Cabe destacar também a relação de predomínio da melodia sobre o texto, que
por sua vez, mostra-se, às vezes, incoerente. Silva explica este fenômeno afirmando que
originalmente a canção teve um sentido, mas com o tempo este se foi perdendo: “Na
medida em que tivermos a origem completa e exata do fato, o mesmo deixará de ser
folclórico” (Silva, 2001, p. 13). Tentar compreender o significado dela modificaria sua
condição de música folclórica.
Cantigas e acalantos
O brinquedo, a brincadeira, são parte fundamental do desenvolvimento das habilidades
necessárias para a subsistência. A brincadeira exerce um papel educador de diferentes
fatores requeridos para a convivência social, e desta maneira, o indivíduo toma consciência
de suas funções dentro da sociedade, desenvolve sua sociabilidade, sua motricidade, etc.6
As cantigas de roda não escapam a esse processo.
Silva, no segundo capítulo do seu livro Cancioneiro Folclórico Infantil, cita a tese do
escritor Lourenço Chacon Jurado Filho, que destaca a função social da cantiga de roda, que
nem sempre foi a mesma. Silva repara na evolução da brincadeira ao longo do tempo e
como e por quem ela foi praticada. Inicialmente e até o início do século XX, uma atividade
realizada por adultos, jovens e, por imitação, pelas crianças, a brincadeira de roda passa
então a ser cada vez menos valorizada, devido aos progressivos avanços tecnológicos e as
mudanças de visão de uma nova sociedade,7 ficando reduzida finalmente só ao âmbito
infantil.
A brincadeira de roda sempre foi um dos principais meios de socialização. Nela encontra-se
o divertimento, a representação dos papeis sociais, coreografias que despertam a
motricidade e o apresentam a importância do trabalho em conjunto, o pretexto para se
iniciar no jogo amoroso, etc. Atualmente a brincadeira de roda é utilizada nas escolas com a
finalidade de criar hábitos nas crianças e tendo seus textos modificados, fato que vem a
reafirmar a mobilidade temática que a música folclórica apresenta.8
Brincadeiras de roda são danças. O lúdico se sobrepõe ao estritamente musical, que é o foco
principal dessa comunicação. Já os acalantos têm outra função. Eles procuram deixar a
criança relaxada para poder dormir, mas igualmente revelam uma predominância melódica
sobre a textual.
6
Ibidem, p. 17.
7
Ibidem, p. 18.
8
Ibidem, p. 18.
9
Luiz Tatit é Professor do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade e São Paulo. Tem desenvolvido seu trabalho na “Semiótica da Canção”.
188 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
brasileira. Dita gramática visa a estabelecer a relação existente entre melodia, harmonia e
texto dentro da canção. Esse modelo foi escolhido segundo sua aplicabilidade decorrente da
semelhança entre a música folclórica e a música popular urbana, na sua realidade
estrutural10.
Um fator importante para compreender o modelo de Tatit, é o vínculo constante que ele
estabelece entre fala coloquial e canto, que segundo o autor, é o aspecto principal de toda a
canção popular, quando depreende sua origem da fala cotidiana11.
O modelo de Tatit baseia-se nos postulados do semioticista francês Algirdas Julien Greimas
(1917–1992). Para uma melhor compreensão desse modelo, é conveniente buscar entender,
ao menos em linhas gerais, o que se conhece como Quadrado de Greimas, que explica as
relações entre dois termos. “Consiste na representação visual da articulação lógica de uma
categoria semântica”.12 Pode-se situar o quadrado semiótico de Greimas na semântica
fundamental,13 que é o começo também do processo gerativo, entendido como o percurso
de “produção do objeto semiótico”, neste caso a cantiga e a canção de ninar, desde um
ponto complexo até um ponto simples:14
s1 s2
ñs2 ñs1
Fig. 1 Quadrado de Greimas
Existe uma relação entre s1 e s2 que se estabelece na negação de um pelo outro
reciprocamente. Desta forma, s1 vai se negar, provocando uma contradição (ñs1), o que vai
gerar uma incompatibilidade entre ambos os termos (s1 e ñs1), pois eles não podem coexistir
Publicou até a data, sempre sobre semiótica, suas duas teses e cinco livros. Em 1986 “A Canção:
Eficácia e Encanto” (Ed. Atual), em 1994 “Semiótica da Canção: Melodia e Letra” (Ed. Escuta), em
1996 “O Cancionista: Composição de Canções no Brasil” (Edusp), em 1997 “Musicando a Semiótica:
Ensaios” (Ed. Anna Blume) e em 2001 “Análise Semiótica Através das Letras” (Ateliê Editorial),
além de numerosos artigos no Brasil e no exterior.
10
É importante sinalar que é só na sua parte estrutural pois as características de gênero fazem delas
dois “formas” diferentes.
11
Tatit, Luiz. O Cancionista, composição de canções no Brasil. São Paulo. Udesp. 1996. p. 12.
12
Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
13
“A semântica fundamental estuda as estruturas elementares da significação e cobre conjuntamente
com a sintaxe fundamental o estudo das estruturas designadas pelos conceitos de língua (Saussure) e
de competência (Chomsky)”; Fidalgo, António. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06
de abril de 2005.
14
Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 189
juntos. A afirmação de ñs1 vem logo, obtendo-se s2. O processo é repetido agora com s2
com relação à s1, como representa o gráfico (Fig. 1).15
As relações que vão se estabelecer como conseqüência deste processo podem ser
denominadas de relação de contradição (linhas bidirecionais contínuas); relação de
contrariedade (linhas bidirecionais segmentadas) e; relação de complementaridade (linhas
unidirecionais), tal como mostra o gráfico (Fig. 2.).16
s1 s2
ñs2 ñs1
Fig. 2
A partir deste quadrado semiótico, é possível:
Indexar todas as relações diferenciais que determinam o nível profundo do
processo gerativo. A combinação das relações de identidade e alteridade,
figuradas pelo quadro semiótico, constitui o modelo ou esquema a partir do
qual se geram as significações mais complexas da textualização.17
Tatit adverte que desta relação do processo gerativo do objeto lingüístico, vai surgir um
termo complexo (S), que vem a determinar que s1 só fará parte da complexidade S
encontrando um equilíbrio em s2, sem que o grau de importância, ou melhor, de
dominância, afete este processo, como explica o gráfico18 (Fig. 3.)
S
s1 ≠ s2
Fig. 3
15
O modelo foi extraído de: Tatit, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo. Ateliê
Editorial, 2001, p. 23.
16
O modelo foi extraído de: Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em:
http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06 de abril de 2005.
17
Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
18
Tatit, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo. Ateliê Editorial, 2001, p. 24.
190 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Tatit explica de uma maneira bastante didática como se articula o processo gerativo do
nosso objeto semiótico canção por parte do “cancionista”,19 além de introduzir ao leitor na
compreensão global dos mecanismos que nele participam.
Partindo da primeira escuta, sem prestar atenção nos detalhes e sim no conjunto, aquela
escuta leiga na teoria musical e na semiótica, o ouvinte consegue reconhecer alguns
elementos. Ele começa “cantarolar” uma melodia e com isso pode identificar uma canção.
Tatit faz o leitor reparar neste detalhe. Esse é o ponto inicial do estudo das correlações
numa canção. Para ele, “todas as designações de gênero denotam a compreensão global de
uma gramática” (Tatit, 1997, p. 101), ou seja, que o ouvinte consegue juntar elementos
sonoros com outros e reconhecer o contexto onde eles funcionam de uma determinada
forma. O ouvinte, então, tem consigo um background de dados incorporados na forma
como ele escuta a música. Mesmo fazendo generalizações – misturando, às vezes, estilos
que são próximos, como pagode e samba – consegue identificar um paradigma. Este
processo é denominado pelo autor como apreciação empírica.
Os mecanismos de reiteração, ou seja, aqueles que se fazem freqüentes num discurso
musical, operam também como outro mecanismo de apreciação empírica. As reiterações
são, nas palavras do autor de A Canção: eficácia e encanto, um mecanismo de gramática
melódica que atinge principalmente a memória, ou seja, facilita a retenção de elementos,
frases, células, motivos, palavras, etc., e para as possibilidades de prever o que a música, na
sua temporalidade, pede. A memorização de refrões e estribilhos das canções entra neste
parâmetro de entendimento, sendo também uma forma de apreciação empírica. “A
reiteração torna significativo o fluxo inexorável do tempo. Basta um ligeiro apuro musical
do ouvido para se depreender reiterações” (Tatit, 1997, p.101).
Um outro aspecto é o reconhecimento das relações tonais do discurso musical. A percepção
de que uma seção de música é mais ou menos tensa no contexto tonal, não tem direta
relação com a teoria que estamos tratando. Esta percepção tem a ver com uma determinada
forma de escuta e, até, com fatores físicos.
O elemento melódico e o narrativo, vão tendo igual importância na estrutura analítica
levantada, mesmo que a narrativa seja menos explícita. A fala vem cobrando importância
no processo discursivo, assim como as rítmicas impostas pelas consoantes e pela
acentuação vocálica imprimem um sentido narrativo à canção e às vogais, mais ou menos
esticadas, o que nos leva pelo caminho da paixão e do sentimental. A mistura destes
elementos, mais a interpretação (timbre) do discurso definem o estilo e gênero da canção.
Podemos definir estes elementos como entoação.
Na primeira parte do seu livro O Cancionista,20 o autor diz que a junção do fator melódico
e do fator textual fica evidente em três elementos que, tanto se separam, aparecendo
praticamente isolados numa canção, como se misturam, situação mais comum, para dar
maior força entoativa. Entramos aqui no âmbito das categorias persuasivas. Essa
reiteração, que foi mencionada em parágrafos anteriores manifestando-se como uma grande
unidade textual, agora pode ser vista em fragmentos menores.
19
O cancionista é quem cria e/ou canta uma canção. Na obra homônima ao conceito, Tatit sobrepõe a
figura do compositor à do cantor, mesmo outorgando mérito a este último.
20
Tatit, Luiz. O Cancionista, composição de canções no Brasil. São Paulo. Udesp. 1996.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 191
Análise
Foram escolhidas duas músicas representativas do cancioneiro folclórico infantil. Um
acalanto (Iaiá) e uma brincadeira de roda (O trem de ferro). Para grafar as curvas melódicas
das canções analisadas, foram usados os gráficos semelhantes aos propostos por Tatit. Cada
21
Tatit entende a tensão como os pontos mais importantes do discurso canção. Eles são os que
determinarão o caráter da mesma.
22
Ibidem. p. 103.
23
Ibidem. pp. 117–127.
192 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
uma das linhas representa um semitom, e as linhas mais grossas são os limites da
tessitura superior e inferior, como mostra o exemplo.
Fig. 4
Primeiro Exemplo – Iaiá
Este acalanto apresenta uma linha melódica rica, uma letra simples e curta, que exalta as
belezas da primavera. Fontoura e Silva explicam que a palavra Iaiá vem da antiga forma
usada para se referir as filhas dos seus patrões. Esta palavra está presente reiteradas vezes
no cancioneiro popular brasileiro.24 Chama à atenção a métrica dos versos nesta cantiga de
ninar. Ela não é regular como a grande maioria das canções do gênero, mesmo que a
divisão dos compassos seja simétrica. Isto acontece porque a acentuação prosódica está
deslocada, o que gera a impressão de assimetria. A movimentação melódica é grande.
Começa com um salto de uma oitava que é sustentado, seguido por um movimento
24
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 116.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 193
oscilatório suave por intervalos de segundas e terças, as vezes lento, as vezes um pouco
mais rápido, e descansando em estiramentos das vogais na metade e no final da música
(Fig. 5 e 6). O texto, de caráter alegre, porém sereno, complementa esta movimentação da
melodia criando um clima de introspecção e com uma alta carrega emotiva.
Parte 1
são
as
Iá, que das flo
lin
Da
pri
8a
res ma ve
ra!
Ia
Fig. 5
194 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Parte 2
que
che
co mi go ra gou
ve
vem Pa ra
jar pri
Fig. 6
Nas duas partes nas que é possível dividir a música, é evidente passionalização no discurso
representado nas prolongações das vogais, no nome da personagem Iaiá e no final do
acalanto. O fato que seja o nome onde se produze esta tensão reafirma a idéia de diálogo.
Esta representação simulada fica de manifesto em frases como “... comigo vem...” ou na
mesma invocação do nome.
b) O trem de ferro
O trem de ferro,
Quando sai de Pernambuco,
Vai fazendo fuco-fuco,
Até chegar no Ceará.
Rebola, bola,
Você diz que dá, que dá,
Você diz que da na bola,
Na bola você não dá.
Rebola o pai,
Rebola a mãe, rebola a filha,
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 195
O trem de ferro tem muitas versões, como comentam Silva e Fontoura. A letra muda no
nome do trem, na onomatopéia do barulho da locomotiva e os vagões passando pelos
trilhos, etc.,25 mas não em partes importantes do discurso. Será analisada, assim, a versão
apresentada pelos autores. É possível até discutir se esta é realmente uma cantiga de roda,
simplesmente porque ela tem estrutura rítmica fortíssima, o que a assemelha com as
parlendas. É neste ponto onde radica a maior particularidade desta música, na sua forte
predominância consonantal. Isso imprime na cantiga um caráter de fala. Mas numa análise
mais profunda pode-se constatar que o simulacro criado pela figuratização enunciativa está
presente de uma forma pouco clara. O diálogo entre personagens não existe, e o discurso é
apresentado sem destinatário claro. É um relato para muitos e não a “encenação” de um
colóquio.
Primeiros versos
fer ro, Quan do sai de
de bu co,
trem Per
O nam
Segundos versos
Rá.
Vai fa Zen do fu co,_A té che gar a
fu ce
co no
25
Ibidem. p. 82.
196 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Pela marcada presença do ritmo que não pára e que sempre leva ao ouvinte dentro de um
“trem” imaginário, é complicado fazer uma divisão das partes desta música. A separação
dos dois primeiros versos dos segundos responde só a uma questão de organização.
Desta maneira, A oscilação apresenta-se só como um recurso cadencial harmônico sem que
o movimento nunca seja maior a uma terça maior. A insistência na fundamental e o
deslocamento à sétima maior, cria, com o mínimo esforço a tensão. A passionalização está
ausente neste exemplo.
Entender a estrutura lingüística do gênero da música infantil, vem a ser um importante
avanço na compreensão de como é recebida a mensagem canção por parte da criança, no
seu papel de receptor. A interação que esta criança terá com a cantiga tem direta relação
com o valor simbólico que esta tem, o que significa ou pode chegar a significar para ela,
sob a premissa de entender a canção como fala.
O natural desdobramento de uma pesquisa em semiótica aplicada implica aprofundar os
estudos anteriores na elaboração de estruturas que suportem a complexa relação existente
entre texto e música (entendidas como elemento comunicador), seu emissor e finalmente o
seu receptor. Porém, é possível dizer que existem alguns padrões recorrentes, e estes
padrões dizem respeito a determinados estilos. Nos textos das cantigas e acalantos
encontra-se a tendência ao privilégio da representação (figurativização enunciativa). A
presença do diálogo e da história contada por um terceiro reforça este aspecto,
provavelmente pela sua empatia com a criança e pela fácil assimilação das idéias principais
por parte da mesma.
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FONTOURA, Mara; SILVA, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que
já foi dito. Curitiba. Cancioneiro, 2001.
Carlos Gustavo González González, chileno residente no Brasil, é formando do curso
de Educação Musical – Licenciatura, da Universidade Federal do Paraná, UFPR.
Estudou Teoria Musical e Violão Popular no Conservatório de Música Popular
Brasileira de Curitiba, com os professores Christiane Rodrigues e Cláudio Menandro
respectivamente. Até a data, não tem trabalhos publicados.
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico a portadores do HIV
Resumo: Esse trabalho é resultado de um estudo feito a partir de uma nova visão
sobre a AIDS. Foram reunidos relatos, textos e citações de pesquisadores renomados
no que diz respeito a uma nova teoria sobre esta doença. É também apresentado os
aspectos psicológicos, sob a ótica da psicologia, aos quais estão sujeitos os portadores
dessa doença. Estudado esses dados, foi feito uma abordagem dos processos
musicoterápicos, analisando a maioria dos aspectos físico-psicológicos relacionados à
doença. Esses processos consistiriam em emanações de freqüências específicas para a
estimulação de energia do corpo, juntamente com um trabalho musicoterapeutico e
podendo se estender também à expressão corporal de cada individuo ou em processos
grupais. Palavras-chave: AIDS, chakras, depressão, HIV, musicoterapia.
Histórico da AIDS
Em 1984, foi encontrado um retrovírus, considerado como o agente etiológico de uma
doença que já havia infectado pessoas pelo mundo e que posteriormente seria designada
como Aids. Dois grupos de cientistas reclamaram ter sido o primeiro a descobri-lo, um do
Instituto Pasteur de Paris, chefiado pelo Dr. Luc Montangnier e o outro dos Estados Unidos,
chefiado pelo Dr. Robert Gallo. O fato é que uma das pesquisadoras do Instituto Pasteur de
Paris, Françoise Barre-Sinoussi, conseguiu cultivar um retrovírus em laboratório e enviou o
material para o laboratório de Robert Gallo, para que este confirmasse o seu achado, por se
tratar de um eminente cientista. Com base neste material, Gallo divulgou a descoberta como
se fosse sua, vindo a retratar-se somente no início da década de 90. Gallo é um importante
virologista, e já havia identificado outros dois retrovírus, o HTLV – 1 e o HTLV 2 (Human
T Leukemia-limphoma vírus type 1 and 2) e, por isso, o agente etiológico da AIDS foi
inicialmente conhecido, nos Estados Unidos, como HTLV – 3. Na França, ele foi
reconhecido como LAV, associado a linfadenopatia. Depois das disputas da comunidade
científica serem devidamente esclarecidas, chegou-se ao consenso de denomina-lo HIV, ou,
em português, vírus da imunodeficiência humana.
Em 1986, foi aprovada pelo órgão norte-americano de controle sobre produtos far-
macêuticos FDA (Food and Drug Administration), a primeira droga antiviral, a
azidotimidina ou AZT. Este revelou um impacto discreto sobre a mortalidade geral de
pacientes infectados pelo HIV. Em 1994, um novo grupo de drogas para o tratamento da
infecção passou a ser estudado, os inibidores da protease. Estas drogas demonstraram
potente efeito antiviral isoladamente ou em associação com drogas do grupo do AZT (daí a
denominação "coquetel"). Houve diminuição da mortalidade imediata, melhora dos
indicadores da imunidade e recuperação de infecções oportunistas. Ocorreu um estado de
euforia, chegando-se a falar na cura da AIDS. Entretanto, logo se percebeu que o
tratamento combinado (coquetel) não eliminava o vírus do organismo dos pacientes. Some-
se a isso também os custos elevados do tratamento, o grande número de comprimidos
tomados por dia e os efeitos colaterais dessas drogas. A despeito desses inconvenientes, o
coquetel reduziu de forma significativa a mortalidade de pacientes com AIDS.
198 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Atualmente, na área, há duas linhas principais de pesquisa: uma busca uma vacina eficaz,
visando imunizar os indivíduos pertencentes a populações sob risco; e outra visando buscar
drogas antivirais mais potentes e com menos efeitos colaterais, visando erradicar o vírus do
organismo de pacientes infectados. Os resultados com os antivirais têm sido melhores,
entretanto dificilmente a AIDS será curada farmacologicamente. As esperanças depositam-
se no desenvolvimento de uma vacina eficaz. Infelizmente, até o momento não há relatos
promissores sobre vacinas.
citou uma frase bem interessante, ele disse “Às vezes nós, virólogos temos um vírus em
busca de uma doença”.
Os testes que são usados para a contagem de carga viral também são duvidosos. O
PCR(Polymerase Chain Reaction), também conhecido como teste de quantificação viral,
aparece com algumas controvérsias.O PCR detecta e multiplica genes isolados, não o vírus,
e mais freqüentemente, fragmentos de genes.Quando detecta dois ou três fragmentos de
vírus genéticos de talvez uma dúzia de genes completos, isto não é uma prova de que todos
os genes, ou o genoma completo, estão presentes ou que uma partícula viral completa do
HIV esteja presente. Além disso, uma pessoa pode trazer um genoma retroviral inteiro em
suas células por toda a vida, sem nunca produzir um único vírus. Os testes que detectam o
HIV no corpo humano tem em seus kits escrito assim, “Atualmente não existe um padrão
reconhecido para estabelecer a presença ou ausência de anticorpos do HIV-1 e do HIV-2 no
sangue humano”, e sobre os testes de carga viral, “Não se destina a ser usada para triagem
ou como diagnóstico para confirmar a presença de infecção por HIV”. Além disso, os testes
para detecção do HIV, apresentam 68 tipos diferentes de alteração, como: artrite
reumatóide, gripe, hepatite, malária, cálculos renais, vacina contra tétano, hemofilia, entre
outras. Ou seja, pessoas que tem algum desses 68 tipos de alteração, podem estar infectadas
e receberem o resultado negativo para a infecção, podendo também, acontecer o contrário.
O pesquisador que criou o PCR, e que ganhou o prêmio Nobel de química de 1993, Kary
Mullis, disse “Não é sequer provável, muito menos cientificamente provado, que o HIV
provoca a AIDS. Se existe alguma prova de que o HIV causa AIDS, deveriam existir
documentos científicos que comprovem esse fato. Não existem tais documentos.”
Os cientistas até hoje, não conseguiram de maneira satisfatória, comprovar o ataque
fulminante do vírus HIV em células defesa. O HIV só consegue atacar as células, quando
utilizados elementos químicos nas culturas onde ele está inserido. E mesmo assim, ataca um
número mínimo de células, que não poderiam afetar o sistema imunológico a ponto de
causar danos a saúde. Na medicina, existe um parâmetro que se usa para identificar as
causas e de como essa doença se manifesta. Ele é conhecido como os Postulados de Koch,
que foi formulado para estabelecer uma relação de uma bactéria ou vírus com uma provável
doença. São 4 postulados que se resumem em: o patógeno deve ser identificado em todos os
casos da doença; o patógeno deve ser isolado do hospedeiro e deve crescer em cultura pura;
o patógeno deve reproduzir a doença original quando inoculado em um hospedeiro
suscetível. (capacidade para transformações); o patógeno deve ser identificado no
hospedeiro experimental infectado. Em nenhum desses 4 casos o HIV se encaixa.
Esse próximo parágrafo talvez abra a verdadeira resposta sobre o que causa a AIDS.
Juntamente com esses outros aspectos já mencionados, o uso de medicamentos pode ser a
principal causa da doença.
O tratamento convencional para a AIDS é chamado de tratamento anti-retroviral, ou mais
popularmente conhecido coquetel para a AIDS. Há uma variedade grande desses remédios,
que podem ser tomados combinados entre si, fazendo com que o paciente possa se adaptar
ao melhor “coquetel”. Ou seja, para que ele possa ter menos reações adversas no
tratamento, podendo assim ter uma melhor qualidade de vida. Porém, há muitas
controvérsias sobre a utilização desses medicamentos. Vamos analisar aqui apenas 3 tipos
desses medicamentos, como forma de exemplificar o que é, discutido severamente sobre os
pesquisadores que adotam a opinião de que a causa da doença está nesses medicamentos.
200 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Por essa teoria apresentada, seus defensores afirmam que a AIDS é decorrente de uma série
de fatores inter-relacionados e não pela simples infecção pelo HIV. A AIDS pode ser uma
co-relação de diversos fatores, entre eles: uso de drogas(inclusive remédios, como o próprio
AZT); sexo sem proteção, não pela AIDS, mas pelas DSTs , por sua destruição em parte do
sistema imunológico; má alimentação; pouco descanso; estresse; depressão; angústia; falta
de exercícios; etc.
Essa teoria que foi estudada e analisada tem como principais encorajadores: Peter
Duesberg(professor titular da cadeira de biologia molecular e celular da Universidade da
Califórnia e foi eleito membro da Academia Nacional de Ciências em 1986, devido ao
mapeamento da estrutura genética dos retrovírus); Charles Thomas(Phd, antigo diretor do
departamento de biologia celular do Scripps Research Institute); Rob Hodson(Ex-professor
de anestesiologia da Universidade do Alabama); Kary Mullis(Prêmio Nobel de Química em
1993, pela invenção do exame PCR); entre muitos outros, em todo o mundo.
Leon Tolstoi, escritor russo nascido em 1828, nos indaga com o seguinte pensamento:
“Sei que a maioria dos homens, incluindo aqueles que se sentem à vontade
com problemas muito complexos, têm dificuldade em aceitar a verdade
simples e óbvia se isso vai obrigá-los admitir que suas conclusões, explicadas
com tanto prazer aos colegas e ensinada com orgulho a outros, são falsas”.
Aspectos psicológicos
Os pacientes portadores do HIV têm um aspecto psicológico deteriorizado, por conta de
toda a informação que a mídia e os profissionais de saúde colocam em sua vida. Depressão.
Síndrome do pânico e transtornos afetivos são algumas das variantes desse contexto
psicológico que estão presentes no comportamento do indivíduo portador. Aqui vamos
somente tratar da depressão específica em pacientes com AIDS.
O termo Depressão pode significar um sintoma que faz parte de inúmeros distúrbios
emocionais sem ser exclusivo de nenhum deles, pode significar uma síndrome traduzida por
muitos e variáveis sintomas somáticos ou ainda, pode significar uma doença, caracterizada
por marcantes alterações afetivas. A sintomatologia depressiva é muito variada e muito
diferente entre as diferentes pessoas. A psicopatologia recomenda como válida a existência
de três sintomas depressivos básicos, os quais darão origem a variadíssimas manifestações
desta alteração afetiva. Essa tríade sintomática da Depressão seria: sofrimento moral,
inibição global e estreitamento vivencial. É comprovado que relacionamentos pessoais
insatisfatórios e a falta de apoio social podem afetar intimamente o sistema imunológico.
Na Quarta Conferência Anual Brasil em HIV/AIDS, o Dr. Thomas Koenig faz uma
interessante explicação sobre a depressão em pacientes com HIV.
Há muitas razões porque é importante tratar a depressão em pacientes com HIV. Primeiro,
eu acho o mais importante, é porque é possível melhorar a qualidade de vida de nossos
pacientes. A depressão impõe ao paciente fardos enormes. Na área psicológica, a depressão
influi em como a pessoa vê o mundo. É como se estivesse olhando para o mundo por óculos
escuros - tudo parece mais difícil; os desafios crescem e podem parecer inconquistáveis. A
depressão rouba da pessoa a motivação e, até mais importante, a esperança, a capacidade de
acreditar que as coisas podem melhorar. Neste estado psicológico o paciente pode perder o
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 203
chakra(2):
sacro, coccigiano, fundamental, sagrado.
nome: swadhistana (o fundamento de si – morada do sol).
localização: na raíz dos órgãos genitais, 4 dedos abaixo do umbigo.
cor: laranja (cor quente).
indicações: asma, bronquite, vesícula, rins, bexiga, cálculo biliar, gota, hipotiroidismo,
resfriados, reumatismo crônico, fraturas, tumores, alergias, câimbras, fígado, pâncreas,
ovários, trabalha a alegria de viver e a extroversão, afasta o medo, aviva as emoções, traz
cordialidade, fortalece o pulmão e os ossos.
contra-indicações: inflamações dos nervos.
mantra: vam.
som: u.
glândulas: glândulas sexuais(gônadas).
órgão do conhecimento: língua.
órgão de ação: mãos.
órgãos físicos: rins, bexiga, sistema reprodutor, sistema circulatório.
sistema fisiológico: genital e urinário.
nota musical: ré
equilíbrio emocional: capacidade de união sexual, procriação, coragem de viver, alegria
instintiva, prazer físico, capacidade de planejamento e construção, poder de evoluir.
virtudes: tolerância, compaixão, alegria de viver, senso comum, precisão,
compartilhamento, idealismo.
desequilíbrio físico: doenças dos rins, distúrbios gástricos e intestinais, medo, alergias, má
adaptação, incapacidade de construir, problemas hormonais, infertilidade, doenças do
fígado, pâncreas, vesícula, bexiga, insegurança, problemas de menstruação, doenças
sexuais.
chakra(3):
plexo solar.
nome: manipura (a cidade da jóia).
localização: um pouco acima do umbigo.
cor: amarelo (cor quente).
indicações: digestão lenta, problemas no baço, no fígado e no pâncreas, diabetes,
problemas de pele, esgotamento, depressões, hemorróidas, indigestão, prisão de ventre,
remove imperfeições da pele, paralisias, verminoses, gordura no fígado, estimulante dos
nervos motores, vermífuga.
contra-indicações: inflamações dos nervos.
mantra: ram.
som: ó.
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 205
chakra(4):
cardíaco.
nome: anahata (o som não produzido).
localização: na região do tórax e está conectado com a glândula timo.
cor: verde (cor neutra).
indicações: asma, dores de cabeça, problemas de fígado, problemas de coluna, hipertensão,
insônia, doenças nervosas, doenças de pele, doenças intestinais, diarréias, febres,
nevralgias, sinusites, úlceras, problemas do coração, irritabilidade, hemorróidas, doenças
venéreas, estados de cólera, reduz problemas mentais e emocionais, cntra infecções,
inflamações, intoxicações, bactericida, reconstrutora de células e tecidos, alivia tensões e
emoções.
contra-indicações: o uso do verde pode acarretar fadiga e cansaço.
mantra: yam.
som: a.
glândulas: timo (responsável pelo sistema imunológico).
órgão do conhecimento: pele.
órgão de ação: órgãos genitais.
órgãos físicos: coração, sistema circulatório , sistema imunológico.
sistema fisiológico: circulatório.
nota musical: fá.
equilíbrio emocional: amor próprio e pela humanidade, compaixão, benevolência,
aceitação, perdão, ajuda ao próximo, bondade, sabedoria, pacificação, fé na vida e nas
pessoas, temperamento ameno, inteligência transparente.
virtudes: amor, aceitação, compaixão, amor pelo próximo.
desequilíbrio físico: doenças cardíacas, problemas em veias e vasos, distúrbios
circulatórios e de pressão, problemas pulmonares, asma, bronquite, depressão, angústia,
dores de cabeça, constipação intestinal(prisão de ventre).
chakra(5):
laríngeo
206 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
chakra(6):
frontal.
nome: anja (o chakra do comando).
localização: entre as sobrancelhas, em cima da raíz do nariz.
cor: azul índigo (cor fria).
indicações: dor de garganta, dor no ouvido, dor nos olhos, apatia, apendicite, asma,
bronquite, pneumonia, catarata, convulsões, tosses, coqueluche, sinusite, dor ciática, dor na
coluna, nevralgias, cólicas abdominais, reumatismo agudo, traumatismos, edemas,
sangramentos, hemorragia, nefrite, caxumba, hipertireoidismo, paralisia facial, surdez,
obsessões, estimula a intuição, acalma a excitação mental, eleva a consciência, aumenta a
defesa imunológica, purifica a corrente sanguínea, tônica muscular e depressora
respiratória.
contra-indicações: não há.
mantra: om.
som: ei.
glândulas: pituitária (responsável pela produção de endorfina).
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 207
chakra(7):
coronário.
nome: sahasrara (o lótus das mil pétalas).
localização: no alto da cabeça, como uma coroa.
cor: violeta (cor fria).
indicações: dores na coluna, dor ciática, meningite, perturbações mentais, perturbações
nervosas, reumatismo, rins, tumores, crescimento dos ossos, problemas na bexiga,
epilepsia, pele, choques, alcoolismo, vícios, indigestão crônica, cistites, raquitismo, tosse
seca, queda de cabelos, cicatrizante, estimula o baço, a leucocitose, depressor cardíaco,
alimenta o sangue, alimenta a região superior do cérebro, ameniza os estados de irritação.
contra-indicações: não há.
som: i.
glândulas: pineal (responsável pela produção de melanina).
órgão do conhecimento: nenhum.
órgão de ação: nenhum.
órgãos físicos: sistema imunológico, parte superior do cérebro, olhos, ouvido, sistema
endócrino, epífese, pituitária.
sistema fisiológico: sistema nervoso central.
nota musical: si.
equilíbrio emocional: capacidade de transformações, espiritualização, acesso ao eu
superior, fé profunda, força, coragem, firmeza, poder de comandar, liderar, servir com amor
universal e dedicação.
virtudes: libertação do ego, desapego, liberdade da materialidade, sabedoria iluminada,
perda do medo da morte, coragem, entendimento da imortalidade da alma.
desequilíbrio físico: depressão, insônia, problemas endócrinos, tumores, inflamações dos
nervos, problemas nos ouvidos e nos olhos, problemas imunológicos, envelhecimento
precoce.
Portanto, os chakras tem uma importância essencial em nosso organismo. Eles regulam o
fluxo de energia no corpo, e regularizam todas as funções corpóreas. A partir desses
estudos analisados, seria utilizada uma freqüência sob forma de emanação, diretamente a
cada chakra, que seria a nota musical correspondente àquele chakra.
208 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
O papel da musicoterapia
Depois de ter abordado o tema AIDS sob uma nova visão, os aspectos psicológicos do
indivíduo portador da doença e um possível tratamento através das emanações de
freqüência, veremos agora como a musicoterapia pode ajudar nesse conjunto variável de
aspectos.
A música sempre foi uma constante na vida do homem desde os primórdios das
civilizações. Era com ela que os povos conseguiam intervir perante os deuses, curar
doenças, tanto físicas, quanto psicológicas, além de todo o aspecto religioso que tinha uma
interação íntima com a música.
A musicoterapia é processo no qual o indivíduo entra em contato com o seu ISO
(Identidade Sonora), e é aonde ele começa a ser trabalhado junto com os aspectos psico-
socio-culturais da pessoa. No princípio do ISO, o indivíduo se identifica com os primeiros
sons, ruídos, barulhos, melodias no qual ele ouvia quando era criança. A utilização da
musicoterapia é de extrema importância para esse primeiro contato com o indivíduo que se
encontra com algum déficit psicoemocional.
O Dr. Aschoff, criador do método dos ritmos biológicos, considera os principais ritmos
como: cardíacos, celulares, digestivos, hormonais, metabólicos, entre outros. Esses ritmos
têm relação com os ritmos externos, onde se criou uma especialidade chamada
cronoterapia.
Já o Dr. Gardner, usa os efeitos do som para aliviar as dores em pacientes de consultórios
odontológicos. Conhecida como audioanalgia, o método se explica porque qualquer
impulso sensitivo passa obrigatoriamente pelo tálamo, ou seja, se este estímulo for
aumentado, um grande número de neurônios que ali estão, se retiram por não ter uma
passagem suficiente de impulsos algésicos(via tálamo), para o córtex cerebral.
André Brandalise, musicoterapeuta brasileiro, trabalha com um método chamado de
musicoterapia músico-centrada. Nesse método, ele coloca a importância da música, como
ela, em muitas vezes, sendo a própria terapia.
A musicoterapia atualmente, se encontra inserida nos mais diversos campos da medicina e
da psicologia, podendo se estender à psiquiatria. Doenças como sendo consideradas novas,
estão tendo uma boa aceitação e ótimos resultados quando tratadas pela musicoterapia.
Síndrome do pânico, transtornos afetivos, câncer, AIDS, e outras, têm um efeito benéfico e
duradouro na qualidade de vida dos pacientes expostos a essas doenças.
No caso específico da AIDS, no qual estamos trabalhando nesse artigo, o paciente que é
acometido pelo contágio desse vírus, e posteriormente pela doença, deve receber um
tratamento especial. Sua condição psicológica está debilitada a ponto de uma fácil
instalação da depressão em seu organismo. Essa depressão está tanto em âmbito
psicológico, quanto no físico. A palavra depressão parece estar relacionada somente ao
estado psicológico, porém ela é definida também como um abaixamento de nível, que
também pode se estabeler a nível corpóreo. Portanto, deve se fazer o processo
musicoterápico, levando em consideração tudo que deve estar se passando no
psicoemocional do indivíduo.
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 209
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Cristiano Steenbrock: Estudante do segundo ano do curso de Musicoterapia da FAP,
Faculdade de Artes do Paraná. Participação no Primeiro Simpósio Internacional de
Cognição e Artes Musicais, com a apresentação na seção pôster, com o tema “A
musicoterapia e a utilização das tonalidades”. Participação no Primeiro Seminário de
Pesquisa em artes da FAP, com a apresentação oral dos temas “Redução de dores
através da emanação de freqüências específicas” e “Como a música auxilia o aspecto
visual na recepção de informações”. Participação no simpósio “Paradigmas da
Saúde”, como ouvinte. Participação no simpósio “Ciência e Espiritualidade”, como
ouvinte. Participação do ciclo de palestras “O Efeito da Música sobre o Homem”,
como ouvinte. Compositor, arranjador e músico autodidata.
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense
1
José Maria Neves se refere, dessa forma, ao que posteriormente denominou-se “música
erudita”- termo que, no período citado, vale mais pelo contexto em que a obra é executada do
que um gênero.
2
A musicóloga Helza Cameu realizou análise profunda desta obra no estudo “A importância
histórica de Brasílio Itiberê da Cunha e da sua fantasia característica A Sertaneja”. (NEVES,
1996, p. 59)
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense 211
Fragmento de “Balaio, meu bem, balaio” (extraído de Brasílio Itiberê, de José Maria
Neves)
Compositores paranaenses ou radicados no Paraná, da primeira metade do século XIX,
acompanham esta tendência e nos mostram indícios de aproveitamento de elementos
folclóricos, principalmente regionais. No âmbito do acervo da Biblioteca Renné
Devrainne Frank, incluído no Museu da Imagem e do Som de Curitiba, destacamos a
produção de Benedito Nicolau dos Santos Filho, Bento Mossurunga, Antonio Melillo e
Brasílio Itiberê II. Todos eles realizaram, em algum período da vida, estudo galgado
nas tradições populares.
Folclore Regional
Por folclore regional refere-se às manifestações tradicionais que assumiram, no Paraná,
características únicas. Cláudio Alfredo d´Almeida cita, no boletim da comissão
paranaense, a existência, atualmente, de 264 danças e folguedos folclóricos no estado,
sendo as mais recorrentes a folia de reis, a dança de São Gonçalo, o cateretê ou catira, o
fandango, a congada, as cavalhadas e o folguedo do boi. Das danças citadas, restringiu-
se este estudo ao fandango - expressão popular que hoje sobrevive no litoral
paranaense, e que reúne uma série de danças coreográficas - por maior
representatividade no universo pesquisado.
Sobre os costumes populares do Paraná antes do final do século XIX, Magnus Pereira
analisa a mudança de olhares na questão das tradições. A exaltação do progresso e da
modernidade – sinônimo de adoção de posturas morais e hábitos burgueses - é
substituída pelo lamento à “perda da singeleza e pureza de antigamente”, inclusive das
danças populares, que eram vistas, no início do século, como lascivas. Numa província
em processo de firmação e modernização, os “batuques e fandangos” foram reprimidos
e adquirindo aspectos de dança adotados pelos bailes da burguesia, e cujos
remanescentes são as expressões atuais dos fandangos.
Além das danças, foram encontradas, no acervo, as temáticas expressas em lendas e
mitologia nativas, bem como aspectos da cultura indígena e sertaneja. Inúmeros títulos,
como “caboclo”, “canção ao pinheiro”, “campeiras”, “cantares do sertão paranaense”,
“chimarrão”, “guairacá”, “saudade do caboclo”, “toada sertaneja”, chamaram a atenção
para este estudo, demonstrando a valorização da temática regional como material de
criação. Outras obras, apresentadas no catálogo do acervo com subtítulos (gênero)
como “folclore”, “toada tingui”, “toada a moda caipira”, “canção regional”, “toada
paranaense” também indicam a intenção de aproximação com a cultura popular. Dentro
do universo pesquisado, foram escolhidas as obras que atenderam, da forma mais
explícita, aos propósitos deste trabalho.3
3
Infelizmente uma partitura que poderia acrescentar conhecimentos aqui propostos não pôde ser,
até então, encontrada, intitulada “No sertão: cateretê quasi uma canção”, de Bento Mossurunga.
212 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Fandango Paranaense
Tida como a mais autêntica manifestação cultural popular do Paraná, o fandango é
objeto de crescente interesse no campo de pesquisas musicológicas e artísticas locais,
fazendo parte, também, da cultura litorânea paulista e da cultura gaúcha, com as quais
compartilha algumas similaridades. No Paraná, adquiriu sentido genérico de festa ou
reunião com danças e é atualmente vivenciado no litoral, apesar de encontrarmos
evidências de que o baile, em tempos remotos, ocorria também no interior paranaense e
nos centros urbanos. Fernando Azevedo aponta, em estudo realizado na década de 70, a
existência de cerca de 30 “marcas” - como são tipicamente chamadas cada dança
coreográfica - divididas em batidas e bailadas, acompanhadas instrumentalmente por
viola, rabeca e adufe, além dos cantos. Entre as mais recorrentes, citamos: anu,
queromana, cana-verde, vilão de lenço, marinheiro, domdom, xará, andorinha,
chamarrita e serrana. (Fandango do Paraná, 1978). Praticamente todas as músicas são
apresentadas em compasso binário.
Suas origens, de acordo com Roselys Roderjan, remontam às danças dos salões
aristocráticos europeus do século XVIII, principalmente do norte de Portugal, de onde
partiram muitos migrantes ao Paraná. A historiadora observa a afinidade das danças
populares portuguesas às dos demais países europeus, conferindo-lhes uma origem
comum na Idade Média, ocorrência que explicaria as constâncias melódicas comuns ao
canto gregoriano presente no fandango e em outras músicas folclóricas.
Apesar dos primeiros relatos de prática do fandango datarem do séc. XVIII, não há
conhecimento de registros sonoros até a década de 30. Oneyda Alvarenga confirma a
escassez de documentação musical sobre o fandango, especialmente do Paraná (Música
Popular Brasileira, 1950). Se tal panorama ocorria já nos anos 50, poucos exemplos do
fandango tradicional foram preservados ou resgatados. Restam algumas iniciativas,
iniciadas na década de 60, como a criação do “Grupo de Folclore e Arte Gralha Azul de
Curitiba” (fundada em 1969) por pesquisadores e artistas interessados, pesquisas atuais
baseadas, principalmente, no conhecimento empírico dos “caboclos”, e o estudo das
obras que utilizaram o fandango e que estão, hoje, alocadas nos acervos de música
paranaense.
Uma dessas obras, utilizada por Renato Almeida, é a transcrição de duas canções
recolhidas por Antonio Melillo e Odilon Negrão. As canções pertencem a uma
querumana e um anu, ambas sem data. Do anu, diz-se ser a primeira dança do baile,
onde “só os homens sapateiam, como, aliás, acontece com todas as marcas. Os
tamancos batem fortes no chão, uníssonos, numa cadência perfeita e substituem o
batido.” (Azevedo, 1978). A queromana é também batida e valsada, considerada das
mais difíceis e por isso pouco dançada.
Há, também, a peça “para canto, piano e sax em Mi bemol” intitulada “Fandango”,
cuja letra, de Odilon Negrão, infelizmente não pode ser encontrada. A data também não
é descrita. Apesar de apresentar harmonia diatônica simples, recorrente na música
popular, não foi encontrado parentesco próximo à música de alguma marca particular
de fandango. Mas esboça claramente, através do ritmo, um tempero regional, como
pode ser atestado pelo fragmento seguinte:
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense 213
Fragmento de “Eu amei uma tirana” (extraído do livro “Música Popular Brasileira, de
Oneyda Alvarenga).
De fato, além deste exemplo, são conhecidos também os registros das músicas de sete
tiranas realizada por Antonio Vieira no códice “Cifras para Saltério”, do fim do século
XVIII (Budasz, p. 25). Nos estudos recentes sobre o fandango, são escassas as alusões
à tirana e nulos os registros coreográficos ou musicais. Já alusões à “tiraninha”
aparecem com maior freqüência, porém ainda são raras as informações mais detalhadas
a respeito de sua música.
Tal constatação torna ainda mais interessante o “fandango caboclo”, que possui
algumas semelhanças à “eu amei uma tirana” - como é possível constatar comparando
os dois fragmentos – o compasso ternário, o tratamento melódico-rítmico e o tema
poético. Porém, difere completamente da tiraninha, que se trata de uma dança em
compasso binário, exposto a seguir:
Lendas e mitos
Compositor com grande número de obras editadas no Paraná, Bento Mossurunga se
aproveita amplamente da temática regional, fato que pode ser, em partes, deduzido pelo
“contato com violeiros populares, com a música produzida numa colônia de negros
4
Benedito Nicolau dos Santos escreveu, dentre outros, o livro “Lendas e Tradições do Paraná”
lançado pela Imprensa oficial da UFPR em 1973.
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense 215
libertos (...)”.5 Exemplo disso é o álbum que traz 14 peças sob a seguinte inscrição
“Bento Mossurunga, interpretando temas de lendas, crenças e costumes regionais
descritos por poetas paranaenses, apresenta, neste álbum, canções de sua autoria.”
Nas obras desse álbum, há recorrências constantes ao universo caboclo, como se
verifica nos versos de “Festa Ensombrada”: “É noite de são João / Em torno de uma
fogueira, / A caipirada faceira / Dança o fandango e o baião. / Sapecada, estala o
pinhão / Ao lado, numa braseira / Ferve a água na chaleira / Para o mate chimarrão”
com letra de Correia Junior, e nos versos e textura melódica de “Trova Rústica”:
5
Moçurunga Bento. In: Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular. São
Paulo: art, 1977. v.1, p. 492.
216 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Considerações finais
A frente de pesquisa “Patrimônio Musical: arquivística e organologia” desenvolvido no
Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná contempla estudos ligados à
preservação do patrimônio musical paranaense, como o projeto “Acervos de Música
Paranaense”, âmbito no qual este trabalho tem sido realizado. Restringida aos acervos
da 6Casa da Memória de Curitiba e da Biblioteca Renné Devrainne Frank, no Museu da
Imagem e do Som, esta pesquisa deverá se estender aos outros acervos compreendidos
pelo projeto, a fim de possibilitar maior contextualização do nacionalismo na música
paranaense e compreensão dos usos e costumes, bem como as mudanças transcorridas
nas manifestações folclóricas desde o século XIX:
∑ Escola de Música e Belas Artes do Paraná: música impressa da primeira
metade do século XX.
∑ Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá: inclui obras corais e pianísticas
de compositores parnanguaras de fins do século XIX e primeira metade do
século XX.
∑ Banda da Polícia Militar do Estado do Paraná: contém música de banda do
final do século XIX e início do século XX, na grande maioria em cópias
recentes.
∑ Faculdade de Artes do Paraná: contém um pequeno conjunto de obras de
Antonio Melillo, além de música de banda de compositores diversos das
décadas de 1930 e 40.
6
Este estudo foi realizado no âmbito dos acervos da Casa da Memória de Curitiba e Museu da
Imagem e do som, compreendidos no projeto de catalogação “Acervos de Música Paranaense”.
Porém, para adequar-se ao objetivo proposto, foram utilizados apenas exemplos do acervo do
Museu da imagem e do som, com exceção de “A sertaneja”, de Brasílio Itiberê, que pertence ao
acervo da Casa da Memória, e cujo fragmento, entretanto, foi extraído do livro de José Maria
Neves.
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense 217
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Curitiba: FUNARTE, 1980. Ano 4, n. 4.
Lílian N. Nakahodo é graduada Turismo pela Universidade Federal do Paraná e
atualmente estuda Produção Sonora na mesma universidade. Foi bolsista, em
2001, do programa kenshu em Okinawa (Japão), monitora da disciplina de
História da Música Popular Brasileira em 2004 e desde então, participa do
218 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
1
Para maiores detalhes nesta trajetória da Musicologia, ver Kerman (1987).
2
Bastos (1995) mostra como a música desempenhou um papel importante na distinção
“nós”/”outros” na história do Ocidente.
220 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
disso, quase todas as anotações de que se dispunha eram, de forma geral, informações
assistemáticas (Lühning, 1991). Essas expedições científicas davam atenção especialmente
às diferenças raciais entre os diversos povos, e eram feitos estudos das características
morfológicas do ser humano: altura, estatura, etc. Além disso, ainda que de forma
superficial, também foram estudadas questões ligadas à esfera social, incluindo assuntos
como religião, rituais e artes e mesmo que a comissão de cientistas fosse formada quase que
apenas por especialistas na área das ciências exatas, foram recolhidos alguns exemplos de
cultura material, que foram então guardados em museus de antropologia. Lembre-se que o
pensamento social, nesta época, é marcado pelo paradigma do evolucionismo.
Com o surgimento do fonógrafo, em 1887, inventado por Thomas Edison, surgiu a
possibilidade pela primeira vez da fixação de um som e sua reprodução.3 A partir de então,
todas as expedições cientificas passaram a levar fonógrafos consigo, para gravar músicas e
línguas desconhecidas. Estas gravações, consideradas inicialmente simples complementos
das pesquisas, num primeiro momento não mereceram grande atenção por parte dos
pesquisadores, ficando assim guardadas sem qualquer comentário ou descrição. Somente no
início do século XX, pesquisadores começaram a se interessar por estes documentos
sonoros que continham músicas tão diferentes de tudo que se conhecia na época: Erich Von
Hornbostel, Carl Stumpf, Curt Sachs, entre outros.4 Curiosamente, nenhum deles era da
área da música.5 A partir deste interesse em compreender os sons gravados, estes cientistas
desenvolveram métodos de trabalho que são importantes até hoje, como a transcrição
musical. Inicialmente, nas transcrições era utilizada a escrita ocidental com alguns símbolos
adicionais, mas com a diferença de que a partitura resultante não tinha como função a
execução, mas sim a anotação descritiva do som para criar uma visualização da música
gravada. Talvez por serem ligados às ciências exatas, estes cientistas tentaram analisar a
música com um espírito analítico, como se a música fosse apenas uma acumulação de
elementos mensuráveis. Além disso, estavam influenciados pela teoria de Darwin e
voltados para uma busca das origens e para a evolução da música, sempre convencidos de
ser a música ocidental o auge de toda a arte musical, isto de forma coerente com o
pensamento evolucionista.
Essas idéias foram as diretrizes dessa primeira fase em que se estuda a música “extra-
européia” (ressaltamos: inclua-se aqui o universo popular) através desta chamada
musicologia comparada. O nome se dá justamente porque um de seus métodos principais é
a comparação dos diversos parâmetros constitutivos da música, como escalas, tonalidades,
ritmos, sempre em relação ao modelo ocidental. Este primeiro momento duro até as décadas
de 30 e de 40, e pode ser resumido como uma tentativa de compreensão das culturas
musicais do mundo através das gravações contidas em arquivos de fonogramas É
importante ressaltar que as análises destas gravações não foram feitas por quem as coletou:
ou seja, os cientistas não conheciam pessoalmente os músicos e nem a cultura do povo que
estavam estudando. Porém, havia a consciência de que, além das questões diretamente
ligadas ao nível sonoro, existiam muitas outras que pertenciam mais à área da antropologia
e que somente pelas gravações não se era possível abordar (cf. Lühning, 1991).
O termo “musicologia comparada” foi abandonado em prol de “etno-musicologia”, termo
cunhado por Jaap Kunst em 1950 (Kunst, 1950), isto acompanhando uma transferência do
centro de excelência de Berlim para os Estados Unidos, onde a disciplina se consolidou.
Este hífen posteriormente foi cancelado, e surgiu o termo “etnomusicologia”, isto nos
3
Para Bastos, “congelar” os sons é uma idéia arquetípica do Ocidente, apontando para a tentativa
de suprimir a distância (Bastos, 1995, pp. 18–20).
4
Estes pesquisadores trabalharam em torno do arquivo de fonogramas de Berlim (ver
Christensen, 1991; Bastos, 1995; Lühning, 1991 e Pinto, 2001).
5
É importante ressaltar que o fato destes pesquisadores não serem originalmente da área de
música é significativo, sendo este um fato importante até hoje, como comentaremos adiante.
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira 221
6
Por exemplo, estudos antropológicos da música indígena, repletos de transcrições e análises
musicais, como Bastos (1990), Mello (2004), Montardo (2002) e Piedade (2004).
7
Veja-se, por exemplo, as diversas publicações da editora 34 sobre música popular (por exemplo
Calado, 1997; Dreyfus, 1999; Giron, 2001).
222 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
8
De fato, uma História da Musicologia Brasileira ainda é um projeto em elaboração (Castagna,
2004).
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira 223
9
Dentre suas principais obras, podemos destacar (Mariz, 1983; 1985; 1997).
10
Esta é uma narrativa ainda muito freqüente que reflete uma espécie de ciúme pela vivacidade
da música popular brasileira. Trata-se de um nexo importante que navega na dicotomia
popular/erudito no Brasil: o que está em jogo é o “reconhecimento” ou a falta de reconhecimento
público. O outro lado da moeda, aquele que vai reconhecer ou deixa de fazê-lo, é, na verdade, o
cenário internacional, palco onde o Brasil se espelha e onde anseia refletir sua profundidade
interior. Esta questão está imersa naquilo que Bastos (1995) chama de “concerto das nações”.
Veja uma recente aparição deste tipo de queixa, no caso do ano do Brasil na França (2005),
quando diversos artistas da música erudita brasileira lamentaram a ausência da “música
brasileira de concerto” no evento, em contrapartida com a abundância de apresentações das
músicas populares do Brasil.
224 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
11
Percebe-se aqui outra questão da musicologia brasileira que foi a completa desconsideração da
música indígena na história da música brasileira, merecendo poucas menções por parte destes
autores que escrevem sobre o assunto (digna exceção: Cameu, 1977). No caso de Kiefer (op.cit),
isto se torna bastante problemático pelo caráter didático do livro, que reproduz um preconceito
que somente nas últimas décadas está sendo reconhecido. Não é nosso objetivo aqui oferecer
contrapontos a esta visão, que já foi tão criticada e, pode-se dizer, atualmente foi quase
abandonada (ver Bastos, 2000).
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira 225
Para concluir estes comentários, lembramos de José Ramos Tinhorão, autor que parece
diferir desta linha mais crítica mencionada por Eugênio (2000). Tem sido um importante
colaborador na construção da história da música brasileira, com muitos livros publicados
sobre o assunto (Tinhorão, 1997; 1998), além de ser organizador de um grande e importante
acervo de dados sobre a música brasileira. Tinhorão se aproxima mais da linha
historiográfica, que está em busca da origem, da preservação do “autêntico”, e, desta forma,
se afina mais a Mario de Andrade. Também quando trata da indústria cultural, Tinhorão
discorda radicalmente das teorias de Vianna, vendo esta indústria como uma instituição que
promove a homogeneização em escala planetária, pondo em risco a preservação das músicas
verdadeiramente brasileiras. Aí se manifestam, portanto, pressupostos já presentes no início
da musicologia no modernismo.
Mapeamentos
Destacamos agora os esforços de construção de mapas da música no território brasileiro.
Estes mapeamentos da música brasileira constituem buscas etnográficas da musicalidade do
Brasil profundo: ou seja, um território, imaginado como qualquer outro, entendido como
interior, que abriga as mais profundas raízes da musicalidade (Piedade, 2005).
Em 1928 e 29, Mário de Andrade faz sua primeira viagem ao nordeste e, em 1938, o
Departamento de Cultura do Estado de São Paulo, chefiado por este pesquisador, enviou ao
nordeste uma Missão de Pesquisas Folclóricas. Esta missão representou um fato histórico
importante nos estudos sobre música brasileira. Na década de 1940, Luiz Heitor Correa de
Azevedo, compositor e estudioso do folclore brasileiro, realizou quatro expedições a quatro
regiões do Brasil, alcançando um estado em cada uma delas. Nas regiões centro-oeste,
nordeste, sudeste e sul, foram visitados os estados de Goiás (1942), Ceará (1943), Minas
Gerais (1944) e Rio Grande do Sul (1945). Estas expedições revelam a aspiração deste autor
de construir um mapa da musicalidade brasileira em suas várias manifestações regionais:
retratos da musicalidade do Brasil (Azevedo, 1943; 1950; 1954).
Na década de 90, enquanto o espírito da world music imperava no cenário internacional,
músicos e musicólogos retomaram a busca do Brasil profundo. No Brasil, ocorre o
ressurgimento de práticas musicais tradicionais que estavam relegadas ao mundo tradicional
e que ganharam a mídia e o universo jovem: gêneros nordestinos, chorinho, entre muitos
outros. Neste período surgiram grupos musicais que praticaram suas próprias pesquisas,
como, por exemplo, o grupo paulista “A Barca”, que viajou pelo país coletando
informações sobre ritmos e danças como jongo, carimbó, coco e samba de roda, servindo de
base para o repertório de seus próprios discos.12 A partir desta década começa a se falar em
“resgate”, conceito importante e revelador,13 justamente como aquele de “tradições
ameaçadas”, idéias que hoje fundamentam ações de Estado e políticas culturais
internacionais14. Um esforço de mapeamento é o caso da série de programas para televisão
“Música do Brasil”, produto de expedições a várias regiões do Brasil sob o patrocínio da
12
A este respeito, ver Travassos (2003).
13
“Resgate” implica em salvamento: salvar da mudança. A ideologia do resgate se opõe à
aceitação das mudanças culturais, procurando congelá-las em sua autenticidade (imaginada).
14
Por exemplo, o registro e tombamento do patrimônio imaterial e programas da UNESCO (ver
Londres et al., 2004).
226 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
Abril Cultural15. Surgem também mapeamentos regionais, como o projeto “Bahia Singular
e Plural”.16
Os mapeamentos, portanto, continuam sendo entendidos como algo que deve ser feito, que
tem utilidade representacional na construção da brasilidade. Nesta primeira década do século
XXI, o Brasil volta-se para dentro mais uma vez, acreditando na autenticidade das raízes e
na profundidade de sua musicalidade. Estes esforços “musicográficos” merecem uma
abordagem musicológica mais fina e uma reflexão antropológica, no sentido de alcançar os
nexos sócio-culturais e os diversos significados envolvidos.17
Comentários finais
Pode-se observar que grande parte da nova e crescente bibliografia sobre música popular
publicada no Brasil é escrita por profissionais de áreas como jornalismo, estudos literários,
comunicações, ciências sociais. O interesse pelo estudo da música popular urbana no Brasil
se deu primeiramente entre radialistas, produtores, jornalistas, já que os musicólogos que se
interessavam pelo assunto se voltavam geralmente para o folclore, herança do início da
musicologia brasileira no modernismo (Ikeda, 2000). O envolvimento de musicólogos (de
formação) com os estudos sobre música popular ainda é incipiente, já que estes continuam
tendo um maior interesse na área da música erudita. Mesmo quando se torna objeto de
estudo acadêmico, a música popular brasileira continua sendo objeto de estudo
preferencialmente de áreas como estudos culturais, antropologia, sociologia, história, e a
música erudita continua a ser estendida como província de estudos da musicologia. Alguma
mudança neste cenário vem ocorrendo nos últimos anos, com a consolidação da superação
do positivismo e de uma postura mais reflexiva e relativizadora na pesquisa em música
(Lucas, 1995).
Longe de ser um fenômeno da musicologia brasileira, podemos perceber esta questão já em
Kerman (1987). Este autor afirmou que a música popular tem que ser entendida, em
primeiro lugar, em termos de uso e valores sociais, afirmação esta que até hoje é
compartilhada por muitos musicólogos. Mas podemos nos perguntar: por que o estudo da
música popular em especial deve ter essa abordagem sociológica? No início do capítulo de
introdução, quando o autor fala sobre o impulso de musicólogos em seus estudos, a paixão
pela música aparece como principal motivo para o mergulho nas estruturas musicais. Mas
será que essa justificativa não é suficiente também quando se trata de música popular? Esta
abordagem especialmente sócio-antropológica que têm os estudos em música popular talvez
se deva ao fato de que uma partitura de música erudita em geral pareça muito mais “rica” do
que uma de música popular. Porém, isto se deve não a uma falta de complexidade, mas a
escolhas de elementos para transcrição: se fossem transcritos com precisão todos os eventos
sonoros de uma peça de música popular, incluindo acentuações especiais, variações
microtonais, escrita para percussão, etc., a partitura se tornaria igualmente “rica”. Portanto,
não é preciso que se aplique conhecimentos da sociologia ou da antropologia como que para
preencher uma “lacuna de música” na música popular: não há esta “falta”. As perspectivas
sócio-culturais são fundamentais na compreensão de um repertório musical,
independentemente de se utilizar ou não partituras, seja música erudita ou popular. Como
15
Destacamos também a série de vídeos “Som da Rua”, da Zero Produções, e a “Cartografia
Musical Brasileira” (2000/2001), projeto coordenado pelo músico Benjamim Taubkin e
produzido pelo Itaú Cultural.
16
Coordenado por Fred Dantas, este é um projeto do Instituto de Radiodifusão Educativa da
Bahia (IRDEB), tendo produzido até o momento oito CDs.
17
Para Ikeda, “musicografia” é um procedimento pré-científico, mera descrição do objeto
estudado ou coleções de música e documentos de interesse geral (1998). Este autor argumenta
que o material musical per se não revela as redes de significado que envolvem sua produção
enquanto objeto histórico e o cultural (Lucas, 1998).
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira 227
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18
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230 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
Introdução
A cidade da Lapa, por conta de sua importância histórica e sua participação heróica na
história do Brasil, apresenta neste início de século um potencial turístico crescente. Com
uma história de 236 anos, também é cenário de destaque no campo da cultura popular e
religiosa, especificamente na manifestação folclórica devocional da Congada “... folguedo2
de formação afro-brasileira, em que se destacam as tradições históricas, nos usos e
costumes tribais da Angola e do Congo, lembra coroação do rei Congo e da rainha Ginga
(Cascudo, 2000, p. 149)”. Por meio do projeto de revitalização3 ocorrido em 2004, este
folguedo tem acontecido com mais freqüência, ganhando espaço e destaque no cenário
atual.
A Congada da Lapa faz parte da história deste município, sendo apresentada de costume, no
dia 26 de dezembro de cada ano,4 na tradicional festa em louvor a São Benedito5, além de
outras datas.6 Entretanto, apesar de sua importância, apenas uma pequena parcela da
população lapeana conhece em detalhes a Congada além dos próprios participantes (Terno
de Congos).
Assim, o objetivo desta pesquisa foi levantar à história do folguedo, suas características
mais marcantes, a transmissão entre gerações, desvelando processos “nativos” de
aprendizagem “etnopedagogias” entre os Congos, e a sistematização de algumas de suas
músicas, compondo um material conciso que venha a servir de consulta para possível
aplicação nas aulas de artes da Lapa. Justificando esta pesquisa, por se tratar de uma
manifestação regional e importante (Congada), entende-se que suas músicas consistem em
1
Formalmente este artigo traz um recorte de um trabalho mais amplo, homônimo, elaborado como
pré-requisito para conclusão do curdo de Educação Musical da Universidade Federal do Paraná,
realizado neste corrente ano.
2
“Manifestação folclórica que reúne juntos os seguintes elementos: letra, música, coreografia e
temática ex: Congada (Cascudo, 2000, p. 241)”.
3
Projeto realizado em 2004 que teve como objetivo principal o resgate e a continuação das Congadas
no município da Lapa, dando-a condições de subsistência (DVD Congadas da Lapa, 2005).
4
Segundo dona Laura Baron, diretora da cultura da Lapa, “... ainda na época da escravidão, todo o dia
26 de dezembro - dia do santo preto São Benedito - os senhores davam as sobras da ceia de natal aos
negros para que festejassem ao seu modo (Stival.; Mota.; Markus.; 2005, p. 1)”.
5
Também chamado "Santo Preto", este santo é objeto de devoção dos Congos, os quais, segundo a
história, foram os responsáveis pela construção da primeira capela para abrigar a sua imagem.
(Fernandes, 1977, p. 4).
6
A Congada, após o projeto de revitalização, também vem sendo apresentada em datas cíveis e
comemorativas como o aniversário da cidade da Lapa, o que a tornou atração turística do município.
232 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
As Congadas da Lapa
7
“... Fernandes formou-se médico em 1927 pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro.
Entre os cargos que ocupou, se destacou como professor da UFPR. Foi fundador do Museu de
Arqueologia e Artes Populares, da UFPR. Dr. Loureiro era ainda membro da Academia Paranaense
de Letras e do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico do Paraná (Garcia, 2000, pp. 205–207)”.
8
De acordo com as autoras Lakatos e Marconi (1991), consiste nas técnicas de observação (fotos e
anotações em diários), e entrevista (feitas neste caso de forma mais aberta, em conversas informais
nos ensaios e na casa dos participantes).
Congadas da Lapa 233
9
Após inúmeras pesquisas, esta foi à única fonte encontrada pelo pesquisador que informa a data da
chegada deste folguedo ao Paraná.
10
Garcia provavelmente referiu-se a 1ª montagem das Congadas feita para gravação e documentação,
ou ainda, a primeira montagem após o fim da escravidão, o que parece sensato, visto que uma das
formas encontradas pelos congos para manutenção do folguedo, foi recorrer aos órgãos públicos.
234 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
11
Também chamado de Caderno do Embaixador, este manuscrito é guardado a sete chaves pelos
congos remanescentes, que não o emprestam mais de maneira alguma, segundo seu Ney (embaixador
da Congada da Lapa), em entrevista ao pesquisador, o motivo se dá pelo fato da conservação do
mesmo (Ney, abril de 2005).
12
“... A primitiva imagem venerada no Santuário é de madeira, imagem dos tempos coloniais, rústica
com pequeno resplendor de prata, medindo 70 centímetros de altura, em torno dessa imagem
formaram-se lendas (Fernandes, 1977. p. 4)”.
Congadas da Lapa 235
13
Fidalguia se refere à representação das pessoas que freqüentam a corte, incluindo príncipes,
vassalos e serviçais.
236 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Sintetizando o enredo da Congada, a história representa um mal entendido entre ambas (do
rei e da rainha). O conflito é travado por meio de diálogos agressivos, na forma de versos,
ditos pelos participantes e simulando uma guerra:
... Oi lá vois secretário.
Vai me vê que gente é essa.
Entrando meu Reino adentro.
Sem ordem e sem licença.
(Filho, 1979, p. 103).
As falas são intercaladas com danças14 e evoluções com espadas e lanças ao som dos
instrumentos. Após os “desentendimentos”, a embaixada da rainha Ginga é dominada e tem
seus integrantes presos.
Ao final, desfaz-se o mal entendido, os membros da embaixada da Ginga são perdoados e
todos cantam e prestam louvores a São Benedito, que se torna a razão principal da
Congada, como o santo que influenciou o perdão do rei.
Nas Congadas apresentadas na Lapa, nota-se influência dos costumes portugueses:
... O Rei e sua corte constituem sem dúvida uma marqueação da monarquia
portuguesa. Há na Congada da Lapa, uma influência muito acentuada dos
costumes da nobreza portuguesa, influencia que provavelmente se exerceu
através dos conhecimentos que tinham dos antigos hábitos da nossa corte, que
se refletiam os dos antigos fidalgos portugueses. (Fernandes, 1977, p. 5).
Esta influência também ocorre nas indumentárias usadas para encenação do folguedo, que
sofreram mudanças após a escravidão (deixando de ser vistosas e luxuosas):
... É a vós unanime [SIC], que, antigamente, fino era o vestuário, pois, quando
eram cativos, vestiam-se melhor que agora, que são forros. Sente-se nessas
narrativas, a influência da instituição social que era a escravidão, na realização
e no desenrolar da Congada. Era a emulação, entre os senhores, a melhor
apresentarem seus negros, com a colaboração das sinhás [SIC], para que, nos
festejos públicos, os Congos representantes da escravaria de casa louvassem o
auto, não só pelo fiel desempenho de seu papel, mas pelo apuro da
indumentária com a qual se apresentavam. (Fernandes, 1977, p. 5).
Atualmente (após revitalização em 2004), novas roupas puderam ser adquiridas, elaboradas
de acordo com as antigas, dando um brilho complementar ao espetáculo.
14
A dança caracteriza-se “... por uma performance multi-expressiva de cores, formas, movimentos,
sons, palavras, gestos, disputas, união, competitividade, ... (Arroyo, 2003, p. 15)”.
15
“... agência de desenvolvimento, uma entidade que desenvolve projetos na area da cultura (Correio
Metropolitano, 15 de outubro de 2004, p. 6).
Congadas da Lapa 237
16
“... Construído em estilo elisabetano, o Teatro São João continua sendo o centro cultural da Lapa.
Com capacidade para 212 espectadores, foi construído em 1873 e possivelmente inaugurado em 1876.
Dádiva dos tropeiros. (Revista Cidades do Brasil, junho/2002)”.
17
Frase do encarte das Congadas para distribuição turística, elaborado pela secretaria da cultura da
Lapa.
18
Os pais dos conguinhos de hoje, herdaram este costume de seus pais, que por sua vês também
herdaram de seus pais e assim sucessivamente, o que evidencia a importância do parentesco na
conservação do folguedo, pois são os mais novos que vão perpetuar a tradição.
238 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Nas Congadas da Lapa, “seu” Miguel Ferreira (rei Congo) e seu irmão Ney (embaixador),
ambos nascidos e residentes neste município, são os responsáveis principais pelos
encontros, reuniões e ensaios do grupo, tarefa às vezes desafiadora, como contou Miguel:
... A jornada longa de trabalho semanal às vezes dificulta bastante os ensaios
do grupo, que encontra muita dificuldade em reunir todo pessoal (Miguel,
abril de 2005).
Os textos, as falas e definições de papeis ficam por conta do Rei da Congada,19 que possui
lugar de destaque na hierarquia. Segundo informações dos próprios Congos, por ocasião
dos ensaios, ele pode anotar em um pedaço de papel a fala de cada um dos participantes,
que devem decorá-las, assim o rei reconhece nos ensaios o papel de todos e pode ajudá-los.
Geralmente os mais velhos já sabem suas falas décor, repassando-as aos mais novos.
Da mesma forma dos textos e da dança, as músicas também são ensinadas aos mais novos
nos ensaios, como o caso do filho de seu Ney Ferreira, de apenas cinco anos de idade, que
já possui e toca um tambor (especialmente desenvolvido para ele, em tamanho menor), em
todos os ensaios e apresentações do grupo. Sempre acompanhado dos mais velhos, o
menino vai aprendendo o batido pelo ato da escuta, da imitação gestual e do fazer musical
dos músicos mais experientes.
De acordo com Arroyo, ocorrem aí processos “nativos” ou “informais” de aprendizagem,
“etnopedagogias” (Arroyo, 2003, p. 16). A educação não está subordinada a professores e
educadores na escola, ela acontece em locais diferentes, de acordo com os ensaios do
grupo. Nestes múltiplos espaços, os mais velhos por meio da imitação e do fazer musical e
gestual, procuram demonstrar aos mais novos seus conhecimentos do folguedo.
Souza (2001), falou desta real possibilidade de aprendizado em seu artigo ‘múltiplos
espaços e novas demandas’, apresentado no X encontro anual da abem, onde relatou:
... Na área especifica da educação musical, a tarefa de ensinar e aprender
música também já não é exclusividade da escola. Crianças e jovens talvez
“aprendam” musica, hoje, mais em seus ambientes extra-escolares do que na
escola propriamente dita, pois não há dúvida de que é possível aprender e
ensinar música sem os procedimentos tradicionais a que todos nós
provavelmente fomos submetidos (Souza, 2001, p. 85).
A Congada é um exemplo de aprendizado extra-escolar, onde os mais novos aprendem
música (entre outras coisas), no ato do fazer musical implícito no ritual. Arroyo (1999), em
sua tese de doutorado, estudou de maneira aprofundada estes processos de educação
ocorridos no contexto do congado, segundo a autora:
... na linha interpretativa do ritual como veiculador de mensagens, conforme
Leach (1992), estas são constituídas e constituidoras no cenário cultural. Esta
dialética traz implícito um processo de aprendizagem em permanente ação. A
teoria do ritual aponta para seu caráter pedagógico (Arroyo, 2003, p. 15).
19
"... OS REIS CONGOS sempre foram muito respeitados na comunidade e mesmo as pessoas mais
gradas tinham-lhes grande consideração. Sua presença na CONGADA era solicitada com empenho e
indispensável era a sua orientação nos ensaios (Filho, 1979, p. 101)”.
Congadas da Lapa 239
A autora exemplifica citando dois autores, Damatta e Brandão: “... o ritual é um dos
elementos mais importantes não só para transmitir e reproduzir valores (Damatta, 1990, p.
26 in Arroyo, 2003, p. 15)”. “... tudo o que acontece (no ritual) ensina (Brandão, 1984, p.
35 in Arroyo, 2003, p. 15)”.
Para Arroyo, o fazer musical ocupa lugar de destaque no ritual, tornando-se um dos
símbolos dominantes20. Segundo a autora “... por meio das ações de tocar, dançar, cantar,
fazer música, sentidos de continuidade, identidade, resistência, pertencimento são
constituídos, reafirmados e aprendidos (ibid, 2003, p. 15)”.
Coleta do material
Feitos exaustivos levantamentos bibliográficos não foi encontrada pelo pesquisador a data
das músicas relacionadas para o estudo. O primeiro registro foi feito por Fernandes (1951),
que as transcreveu e editou.
Para levantamento das musicas, foi utilizado o DVD Congadas da Lapa (elaborado,
gravado e lançado pela agência Lux em março de 2005), e o material recolhido por
Fernandes, fundamental para elaboração das transcrições.
As quatro músicas selecionadas para estudo foram:
Calunga.
Não queremos guerra.
Dança dos bastões.
Chamada dos Conguinhos.
20
A autora explica que “(...)como símbolo, ele participa do processo dialético de veiculação de
mensagens(...)”. (Ibid, p. 15.).
240 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Analise da forma
Levantou em cada uma das músicas as frases musicais, que foram representadas por vogais
(A, B, a’). A tabela traz ainda a determinação do número de compassos, introdução ou
refrão, como segue:
Música Forma Refrão Introdução Número de
Compassos
Harmonia
A análise harmônica apresentou as tonalidades de cada musica. A tabela a seguir mostra as
tonalidades praticadas nas Congadas de 1951 (transcritas por Fernandes) e as praticadas em
2005 (selecionadas e transcritas pelo pesquisador), para fins de comparação:
Tonalidades
Músicas
1951 2005
Calunga Mi bemol maior (Eb) Sol maior (G)
Não queremos guerra Fá maior (F) //
Dança dos Bastões Lá maior (A) //
Chamada dos Conguinhos Fá maior (F) //
Tabela 2: Harmonia; relação das tonalidades encontradas nas musicas em 1951 e em 2005.
Apesar das tonalidades permanecerem maiores, nota-se que foram transpostas todas para
sol maior (2005). Segundo os músicos do grupo, esta transposição para mesma tonalidade
foi um meio encontrado para facilitar a prática de conjunto entre ambos.
Instrumentação Utilizada.
As Congadas da Lapa atualmente contam com os seguintes instrumentos: uma viola, um
violão, duas sanfonas (sendo uma delas um acordeom e um a gaita ponto), uma rabeca21,
três xeques-xeque,22 três tambores, sendo dois maiores (adultos) e um menor, (infantil),
distribuídos e organizados conforme Tabela 3:
Instrumento Função Família Nº de Instrumentos.
21
É uma espécie de violino, de timbre mais baixo, com quatro cordas de tripa, afinadas em quintas,
sol, ré, lá, mi, e friccionadas com arco de crina, untado no breu. Tem sonoridade ranfenha,
melancólica e quase inferior (Cascudo, 2000, p. 567). Vale lembrar que a rabeca utilizada na Congada
é a do Fandango do Paraná, possuindo apenas três cordas, mas as características são idênticas.
22
Caracteriza-se “... por uma cabaça grande, envolta num trançado semelhante à rede de pescaria,
tendo presos pequenos búzios nos pontos de intersecção das linhas. Também é conhecido por xaque-
xaque, cabaça, ágüe, piano-de-cuia (Cascudo, 2000, p. 10)”.
242 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Considerações finais
Ao auge de seus 239 anos, a cidade da Lapa (importante marco histórico do Paraná), vive
um período calmo de conquistas no campo social. Recentemente ganhou sua primeira
faculdade, a FAEL (Faculdade Educacional da Lapa), e está no roteiro turístico do Paraná,
com um potencial crescente.
Um de seus destaques é a Congada (que ganhou novo impulso após o projeto de
revitalização [2004]). Este folguedo apresenta resistência à cerca de dois séculos na cidade,
sendo o único do Paraná a ainda ser apresentado.
Ao longo do trabalho de campo, com o estudo detalhado do folguedo, algumas questões de
grande relevância foram surgindo:
A Congada faz parte da identidade cultural do lapeano;
Na Congada ocorre um processo informal de educação;
O folclore é uma possibilidade real de ensino de música;
Estas questões foram verificadas após contato direto do pesquisador com os Congos em
seus ensaios.
A primeira questão é sobre identidade cultural lapeana. Apesar de não se saber a data exata
da 1ª congada realizada na Lapa, por meio dos estudos de várias fontes, a probabilidade
maior é que remontam a meados do século XIX neste município, na época colonial, visto
que trata-se de um auto trazido pelos ancestrais escravos das primeiras famílias de Congo
da Lapa.
Congadas da Lapa 243
A Congada da Lapa já ultrapassou cinco gerações, ou seja, sua história é quase tão antiga
quanto a história do próprio município. Por esta razão, atualmente são consideradas como
parte da identidade cultural dos lapeanos, tratadas por alguns pesquisadores como raiz no
município. Este fato é motivo de orgulho entre os Congos remanescentes da Lapa.
Outra questão se refere ao processo implícito de educação que ocorre a cada ensaio
realizado pelo grupo (no qual as gerações de agora estão sendo ensinadas). Esta discussão
vem ganhando forca entre os educadores, que a cada dia, estão mais atentos aos “múltiplos
espaços e novas demandas do mercado” (Souza, 2001, p. 85).
Como já falado anteriormente, o aprendizado “informal”, ou seja, fora da escola, pode se
dar de maneira muitas vezes mais eficiente que o escolar( ibid, 2001, p. 85). Arroyo (2003)
também explana a este respeito, e vai além, a autora desenvolve uma parte de sua tese de
doutorado estudando os processos de ensino-aprendizagem no contexto do Congado. A
autora relata que ao se estudar estes processos que chama de “nativos” de educação
(etnopedagogias), o pesquisador está ampliando seu próprio universo como educador.
A terceira questão é referente a uma velha discussão que abrange desde folcloristas a
cientistas sociais. É sabido que o folclore é dinâmico, ele atravessa gerações e se mantém
vivo entre nós, os folguedos são prova disto (exemplo, cirandinha).
Entretanto, ao se pretender trabalhá-lo na escola, algumas questões básicas devem estar
bem claras ao educador, por exemplo: O que se quer trabalhar ao usá-las em sala de aula e
quais ferramentas devem ser utilizadas pelo educador para repassar este conhecimento.
Estas questões são fundamentais para que o processo de ensino não ocorra em vão, e possa
estar a serviço da educação. Este é um dos desafios do educador, possuir habilidade para
trabalhar tais processos e aproveitá-los no ambiente escolar.
Por fim, este trabalho não possui pretensões de nenhum método prático sobre Congadas. A
intenção deste estudo foi levantar alguns aspectos do folguedo para uma possível aplicação
em sala de aula, como material de apoio para consulta.
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LAZ012005 Produção Audiovisual. Março/2005.
FERREIRA, Miguel. Entrevista cedidas ao pesquisador em 17 de abril de 2005, em sua residência na
Lapa/PR.
Márcio Horning é graduando do 4º ano do curso de Educação Musical pela
Universidade Federal do Paraná. Desenvolveu atividades como monitor da disciplina
de atividades práticas complementares com os professores Valter Lima Torres
(UFPR) e Beatriz Senoi Ilari (UFPR), no 1º semestre de 2005. Atualmente é professor
auxiliar no curso de musicalização infantil do departamento de música desta
universidade.
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva
Resumo: Esta comunicação é uma exposição inicial do trabalho que pretende estudar
a convergência de idéias entre o musicólogo nacionalista Mário de Andrade e o grupo
Música Viva, tendo como base O Banquete, (último trabalho do autor), no qual
observamos vínculos com a concepção do Manifesto de 1946 e, a posteriori, apontar
as sínteses geradas por este encontro entre duas posições distintas e marcantes na
música brasileira. Palavras-chave: Música Viva, Manifesto 1946, Mário de Andrade,
Banquete.
Esta comunicação é uma exposição inicial do trabalho de pesquisa que estamos realizando
sobre a importância do Manifesto de 1946 do grupo Música Viva na história da música
brasileira do século XX e está sendo desenvolvido no âmbito do Núcleo de Estudos
Musicológicos1 coordenado pela Profª. Dr.ª Mónica Vermes da Universidade Federal do
Espírito Santo.
O interesse pela produção de um trabalho de pesquisa com uma temática relacionada ao
grupo Música Viva foi despertado durante o curso da disciplina de História da Música I, na
qual abordava-se também a história da música brasileira. Como trabalho final da disciplina,
apresentamos um trabalho expositivo e uma monografia sobre a história do Música Viva. O
contato com o tema e a descoberta de afinidades com as idéias adotadas pelo grupo e
principalmente por Koellreutter, nos levaram a dar prosseguimento a uma pesquisa
acadêmica mais profunda sobre este tema, que, por sua vez, só recentemente tem sido
abordado de forma mais ampla pelos pesquisadores nacionais. Chegar à decisão de
trabalhar com o cruzamento das idéias de Mário de Andrade e do grupo Música Viva2 foi
fruto de um extenso trabalho de leitura, visto que a possibilidade de estudar apenas o
histórico do grupo seria algo redundante, já que o musicólogo Carlos Kater publicara um
trabalho bastante detalhado sobre o assunto.
Nesta comunicação, apresentemos dois tópicos que pertencem à redação oficial do projeto:
Introdução e Justificativa, e Objetivos. Logo em seguida, já começaremos a expor alguns
tópicos desenvolvidos no trabalho.
Introdução e Justificativa
As três primeiras décadas do século XX da história da música brasileira são marcadas
pelo embate entre o modernismo nacionalista e a cultura musical da época, centrada em
posturas provenientes do período romântico, com uma estética ainda voltada apenas para a
beleza, e para a aceitação e apreciação da obra pelo público.
O surgimento do Movimento Modernista, principalmente com a Semana de Arte
Moderna de 1922, teve fundamental importância para o início do desenvolvimento de um
processo de reflexão e atualização em todos os campos das artes e da literatura brasileira.
Mais tarde, no campo musical, o modernismo provocaria um novo embate, agora, entre as
1
Este trabalho foi concebido de forma independente e mediante à criação do Núcleo de Estudos
Musicológicos, foi incorporado ao mesmo. Lembramos que o Núcleo está em processo de registro no
CNPq e na Pró-reitoria de Pesquisa da UFES.
2
Durante a comunicação será exposto o porquê do cruzamento de duas idéias aparentemente tão
contraditórias.
246 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
suas idéias para a formação de uma música nacional e as novas correntes que surgiriam a
partir da década de 1930. Mas o florescer das novas idéias modernistas foi essencial para
acabar com o marasmo na vida artística brasileira no começo do século XX. Graça Aranha,
um dos grandes nomes do movimento, na sua conferência proferida na abertura da Semana
de Arte Moderna, no dia 13 de fevereiro de 1922, afirmou (Teles, 2000, pp. 280–286):
A remodelação da estética do Brasil iniciada na música de Villa-Lobos, na
escultura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti, Anita Malfaltti, Vicente
do Rego Monteiro, Zina Aita, e na jovem e ousada poesia, será a libertação da
arte dos perigos que a ameaçam do inoportuno arcadismo, do academismo e
do provincialismo.
As idéias modernistas pautadas no processo destruição/construção, na transitoriedade, na
negação do academismo, tinham a proposta de romper com o passado, mas, não excluíam
sua devida importância até aquele presente. Os literatos propunham o fim do
parnasianismo, ou seja, o fim de um movimento já solidificado e saturado no seu campo de
atuação, a literatura. A música, estava representada unicamente, num primeiro instante, pela
figura de Villa-Lobos, que na década de 1920, tinha uma postura semelhante às idéias
modernistas (vale lembrar que a concepção musical de caráter nacional já estava presente
em sua obra pelos menos desde 1917). O maestro junta-se à “balbúrdia modernista” e
rompe com o academismo, o conformismo e com certas concepções herdadas do
romantismo.
Aproveitando temas folclóricos, empregando técnicas composicionais ligadas a
experiências musicais mais recentes e esquemas harmônicos enriquecidos por super-
posição de tonalidades, recusando normas cadenciais, convergindo a música popular e a
música erudita, e introduzindo instrumentos típicos brasileiros nas suas orquestrações,
Villa-Lobos amplia seu olhar sobre a forma de compor, e junto com outros compositores –
Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Glauco Velasquez, Arthur Pereira, Assis
Republicano, Jaime Ovalle, Camargo Guarnieri –, amparados pelas idéias da criação da
música nacional de Mário de Andrade, passam a utilizar as proposições modernistas nos
seus processos composicionais. Dá-se início ao movimento nacionalista na música
brasileira.
Nesse momento, a música do país começa a sua solidifição como movimento, mesmo que
ainda não articulado de forma plenamente organizada, mas, que buscava um objetivo em
comum que era a construção da música nacional. Porém, mesmo com o movimento musical
modernista, a música brasileira ainda transitava por caminhos distantes das novas
concepções estéticas de composição que surgiam naquele momento na Europa e não
conseguira romper totalmente com as concepções românticas.
Coube a grupos minoritários de renovação introduzir esses novos recursos no meio musical
do Brasil. Dentre eles, o mais importante foi o Música Viva, considerado por vários
musicólogos, como: Vasco Mariz, José Maria Neves e Carlos Kater, como o grupo que deu
vida a uma nova escola de composição brasileira. O Música Viva é criado em 1939 pelo
alemão Hans-Joachim Koellreutter (1915–2005), que chegou ao Brasil no ano de 1937, e
liderado também por Cláudio Santoro (1919–1989) e César Guerra-Peixe (1914–1989).
Junto com a proposta musical dodecafônica – introduzida no Brasil por Koellreutter –, o
grupo também apresenta novos posicionamentos (ou princípios) perante a situação musical
daquele momento. Os mesmos eram divulgados através de programas de rádio, revistas e
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 247
Objetivos
Existe, já publicado, o trabalho de Teca Alencar de Brito, Koellreutter educador (2001), na
área de educação musical, relacionado à forma como H. J. Koellreuter propõe a educação e
os seus métodos de trabalho, baseados nas suas premissas filosóficas, que o acompanham
desde o grupo Música Viva, e o trabalho do compositor e musicólogo Carlos Kater, Música
Viva e H. J. Koellreuter: movimentos em direção à modernidade (2001), que retrata a
história do grupo e as atividades que este desempenhava.
Tanto Brito (2001) como Kater (2001) trazem ao público trabalhos que representam uma
nova faceta para a discussão sobre a importância de H.J. Koellreuter e do grupo Música
Viva para a história da música brasileira contemporânea. Visto que antes havia uma
carência de material que abordasse esses temas, do ponto de vista educacional e do ponto
de vista musicológico histórico, salvo alguns autores como Mariz (1970, 1994) e
principalmente Neves (1981), que dedicaram pequenos capítulos a Koellreutter e ao Música
Viva em seus respectivos livros de história da música nacional.
Até onde chegamos em nossa pesquisa, ainda não encontramos trabalhos que abordem de
forma aprofundada a importância dos princípios adotados pelo movimento de Koellretteur
para outros músicos e grupos pertencentes à história da música brasileira pós-Música Viva.
Também é fato que ainda não observamos a existência de estudos sobre a importância que
outros movimentos brasileiros anteriores ao grupo exerceram sobre a concepção de sua
postura vanguardista. Kater (2001, p. 92, nota 97), alerta:
A influência de Mário de Andrade, especialmente através de seu O Banquete,
aflora muitas vezes citações diretas e ligeiramente adaptadas (várias das quais
sem menção explícita do autor original). Carece ainda um estudo detalhado e
profundo da pregnância das idéias de Mário sobre seus contemporâneos, em
especial Koellreutter, pois ela parece ser bem maior do que temos
considerado.
Baseando-se na indicação do maior especialista no grupo Música Viva do país, Carlos
Kater, e também em um comentário de etnomusicóloga Maria Elizabeth Lucas sobre o
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 249
O Manifesto e o Diálogo
A palavra Manifesto vem do latim manifestu e significa declaração pública ou solene das
razões que justificam certos atos ou fundamentam certos direitos, declaração pública de
idéias ou de novas doutrinas literárias ou artísticas. Esse tipo de texto é a marca principal
dos movimentos de vanguarda que surgiram nas primeiras décadas do século XX. Basbaum
(1995, p. 381) diz: “o artista moderno adota, basicamente, o manifesto como principal
modalidade discursiva – que soma às obras mas não se confunde com elas.” Teles (2000, p.
10) fala sobre o que este típico texto dos movimentos de vanguarda trouxe de novo:
Os seus manifestos ... acabaram fundando um gênero novo, nem poesia, nem
ficção e nem crítica, mas um discurso misto de linguagem e metalinguagem,
pois, ..., trata-se de um texto novo e conotativo que se vale da linguagem
poética para apresentar e divulgar idéias teóricas e críticas sobre as artes e a
literatura, como nos manifestos futuristas nos dadaístas e nos de Oswald de
Andrade.
O surgimento dos movimentos de vanguarda e a publicação de seus princípios em
manifesto, tomava conta do terreno artístico no começo do século XX, vide o futurismo,
expressionismo, cubismo, dadaísmo, espiritonivismo, que acabaram por influenciar na
concepção e proposição de idéias do movimento modernista brasileiro.
No âmbito literário, o modernista Oswald de Andrade destaca-se com sua produção de
manifestos que são até hoje referências para a literatura brasileira. Através de suas idéias e
atitudes condizentes com o seu tempo, o movimento modernista foi considerado
vanguardista e erroneamente chamado de futurista, pois naquela época, o que era novo seria
considerado futurista.
Na música brasileira, a chegada de H.J. Koellreutter em 1937 e a criação do grupo Música
Viva em 19394 são momentos que marcam um novo rumo para a música contemporânea
nacional. Seus princípios estéticos e filosóficos foram fortemente combatidos pelos músicos
tradicionais, que por vezes não compreendiam e desprezavam a nova música. Estava
aplicado, então, o status de vanguarda ao movimento de Koellreutter.
O grupo, como todo movimento de vanguarda, começa a divulgar seus princípios através da
publicação de textos e emissões radiofônicas. Assim, destacam-se entre as principais
3
O comentário de LUCAS e o texto original de Koellreuter foram publicados no Caderno de Estudos:
Educação Musical. Ver bibliografia completa em referências bibliográficas.
4
Para saber maiores detalhes sobre a História do grupo Música Viva ver: Kater (2001), Neves (1981),
Mariz (1970).
250 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
publicações a Revista Música Viva n.º 1, e os manifestos de 1944, 19455 e o mais complexo
e mais importante, o Manifesto de 1946.
O Música Viva então escolheria como seu principal meio de diálogo com os adeptos de seu
pensamento a publicação de manifestos. Observando a forma como foi redigido o
Manifesto de 1946, que é o objeto de pesquisa deste trabalho, percebemos como ele se
encaixa em uma das três maneiras que Teles (2000, p. 10) aponta para o desenvolvimento
de um discurso dentro de um manifesto. Verifica-se que: “A linguagem poética e a
linguagem crítica de um texto novo, fragmentário e descontínuo, que constitui em si mesmo
um exemplo de renovação e vanguarda,...”
Já a palavra Diálogo nos remete ao conceito de fala alternada entre duas ou mais
personagens, uma conversação sobre um determinado assunto qualquer. Jorge Coli e Luiz
Carlos da Silva Dantas, que assinam o prefácio intitulado “Sobre O Banquete”, publicado
junto com os textos que formam O Banquete de Mário de Andrade, assim falam sobre o uso
da forma dialogada numa exposição temática (Andrade, 2004, pp. 13–14):
(...) a forma dialogada, na sua história, acomodar-se-á em funções menores:
facilitação pedagógica (...) ou exposições de argumentação, ocasionais e
secundárias, como os diálogos de Berkeley ou Leibniz. Nos dois casos,
entretanto, ela depende de um corpo filosófico já solidamente estabelecido, e
no fundo a forma do diálogo não é senão um meio... formal. E que justamente
reaparecerá, vívida e necessária, num pensamento que se ajeita mal com
tratados, que faz apelo continuamente a experiência para se alimentar, que não
gosta de falar abstratamente e construir sistemas áridos: será o meio de
expressão de Diderot, por excelência, por vezes mesmo se distinguindo um
pouco do teatro.
Mário de Andrade utiliza-se deste artifício para expor suas idéias n’O Banquete6 a respeito
de uma temática variada que permeia o campo musical da época, sem se preocupar em ser
essencialmente pedagógico ou expositivo. Ele não pretende criar uma filosofia, mas deixa-
se levar por um desenvolvimento dialético do texto e usufrui desse meio para proferir seu
pensamento pragmático, concreto.
Temos, então, dois textos: um diálogo, sutil, irônico, bem-humorado e escrito de forma
simples, mas que expõe assuntos que foram cruciais para o amadurecimento da música
brasileira e que acaba desembocando num manifesto, escrito com extrema seriedade e que
propõe de forma muito mais agressiva a ação dos músicos em relação, principalmente, à
utilidade social da arte.
Guardados os devidos problemas contraditórios dos dois textos7 e os devidos conflitos entre
nacionalismo vs. universalismo, é perceptível que esta transfusão de idéias de Mário de
Andrade para o grupo Música Viva (e aqui leia-se também para o trabalho de Koellreutter)
5
Resgatado por Kater (2001) que afirma não ter obtido informação suficiente para se certificar de que
ele tenha vindo a ser veiculado ou se foi apenas um esboço pessoal de Koellreutter para a elaboração
do Manifesto de 1946.
6
Idéias estético-filosóficas que remetem o leitor à obra Banquete de Platão, porém são longínquas as
ligações entre os dois textos (Andrade, 2004, p. 13).
7
Durante o trabalho os dois textos serão analisados em tópicos separados e serão apontadas algumas
situações contraditórias de cada escrito.
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 251
será atingida na publicação do Manifesto de 1946, e que este, por sua vez será refletido,
mesmo que involuntariamente, no trabalho de artista posteriores, principalmente no debate
sobre a função social da arte.
Será então o Manifesto de 1946 uma continuação do inacabado O Banquete?
pilar para a comparação com a música de sua cidade, porém em alguns momentos em que a
discussão toma um teor mais tenso, Andrade, mesmo tentando omitir-se do texto, reflete
sua opinião pessoal na voz da personagem, ou seja, confunde-se ela. Ao perceber essa
confusão, faz o texto voltar a realidade de Mentira.
Um exemplo bem claro é quando Janjão fala sobre o princípio de utilidade, e Sarah Ligth o
traz à realidade (Andrade, 2004, p. 144):
(..) Toda arte brasileira de agora que não se organizar diretamente do princípio
de utilidade, mesmo a tal dos valores eternos: será vã, será diletante, será
pedante e idealista. Que bem me importa agora si eu não fico que nem um
Racine, que nem um Scarlatti?... Que bem me importa si não vou ser
bustificado num jardim público, dentro de cem anos?... Que bem me importa
não ficar eternamente redivivo, se vivi...?
Mas meu amigo, nesse caso sempre você também esta fixando o Brasil como
elemento da relação, para os seus julgamentos, de valor.
Percebemos que quando Janjão diz: “Que bem me importa agora si eu ...”, ele coloca-se
como cidadão brasileiro, e isso ocorre em vários momentos do texto, mas logo no capítulo 1
– “Abertura” – , quando o autor está apresentando a personagem Siomara Ponga e expondo
sua vontade de cantar em Mentira, ele mostra a nacionalidade de Janjão, até então omitida
no texto (Andrade, 2004, p. 55): “(..)E si eu desse ao menos um recital das primeiras
cantatas italianas, das primeiras pastorais?... Si eu desse em Mentira, afinal pátria dele, ao
menos uma parte de recital dedicada às canções de Janjão?(...)”
Desta maneira, Mário de Andrade se torna Janjão ou Janjão se torna Mário de Andrade? De
fato, o autor provoca este tipo de confusão para o leitor. Durante o texto, ele às vezes
também assume o papel da personagem Siomara Ponga, principalmente no capítulo 3 -
“Jardim de Inverno” – quando ela disserta sobre as sensações estéticas.
Fica claro que ele tenta omitir-se, mas a força de seus questionamentos o faz, mesmo sem
querer, entrar no texto e ao perceber, retira-se, usando como ponto de fuga as próprias
personagens para alertá-lo. Apontando alguns pontos contraditórios do texto, confirmamos
que o mesmo desenvolve-se de forma dialética. Todavia, o que importa é que a contradição
que toma conta d’O Banquete é o primeiro ponto em comum com o Manifesto de 1946,
outro texto bastante contraditório. Óbvio que o âmbito das contradições funcionam de
forma diferente nos dois textos, mas, o desenvolvimento dialético dos pensamentos tanto de
Mário de Andrade quanto do Música Viva é que chama a atenção para como seus princípios
foram elaborados e apresentados à sociedade.
Após esta pequena análise do texto, levantamos um mapa das temáticas abordadas durante
as discussões das personagens, para mais à frente, compararmos com as idéias propostas
pelo Manifesto de 1946 do Música Viva. Seguem abaixo relacionados os pontos a serem
comparados:
∑ O combate ao conformismo, academismo, virtuosismo, prazer estético da técnica e
a “arte pela arte”;
∑ A postura adotada pela crítica e pelo público em relação à arte;
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 253
Mapa do Manifesto de 46
Escrito em 1º de novembro de 1946, sob o título de “Declaração dos Princípios”, ele foi
publicado na revista Música Viva, n.º 12, datada de janeiro de 1947, momento marcante em
que o grupo retoma suas atividades de publicação, que estavam estagnadas desde 1941.
Também foi publicado sob o título de “Manifesto Música Viva”/ Declaração dos
Princípios na Revista Paralelos, n.º 5, em junho de 1947.
Esse manifesto marca o início do terceiro momento no grupo – que se estenderia até a sua
dissolução –, no qual o Música Viva se firma como um grupo musical na vanguarda estética
e movimento de frente sociocultural, já que em 1939, data de sua criação, era apenas um
grupo de compositores que ansiavam por discutir sobre a estética e a evolução da
linguagem musical, e atualizar seus estudos. Assim, a valorização das questões ligadas
fundamentalmente à realidade social de seu tempo se torna a força motriz das suas
atividades e de seus engajamentos e rupturas (termo usado por KATER, 2004), que agora
são feitos de forma intensa e são refletidos na construção do texto do manifesto pelo uso de
palavras como: escolhendo, acreditando, compreendendo, ou ainda, repelindo,
combatendo.
O furor desses posicionamentos gerou diversas reações na comunidade musical brasileira
desde a publicação do Manifesto de 1944. O que a Declaração dos Princípios proporciona
em seu texto é uma amplificação das temáticas já previamente desenvolvidas pelo grupo
desde suas primeiras publicações: combate ao academismo, valorização à busca do novo e à
criação; só que desta vez de forma mais complexa. Kater (2004, p. 68) resume a concepção
do manifesto:
Uma simples leitura do manifesto, referência oficial do momento, torna
evidente o grau de complexidade com que é tratado o fato musical. Enfoques
estéticos, sociais e econômicos se mesclam, refletindo, antes de uma coerência
propriamente, um mosaico de flashes intensos de consciência.
254 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
8
Ver tópico O Manifesto e o Diálogo.
9
Tanto o Manifesto 1946 quanto esta carta citada foram publicados no livro de Kater, ver referência
completa no fim desta comunicação.
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 255
sobre o manifesto resolvemos adotar como pontos básicos para o trabalho os cincos tópicos
em que ele resume a exposição do grupo:
∑ A música como produto da vida social;
∑ A música como expressão de uma cultura e de uma época;
∑ A necessidade de se educar para a nova música;
∑ A concepção utilitária da arte;
∑ A postura revolucionária essencial (associamos à função do artista).
∑ E acrescentamos mais dois pontos que são:
∑ A postura da crítica com relação ao movimento;
∑ A postura do movimento quanto à música popular.
Próximos passos
Depois de avaliar os dois textos de forma individual, pretendemos aprofundar ainda mais a
análise desse material para validar os pontos selecionados em cada tópico e observar como
os pensamentos de Mário de Andrade e do Música Viva se desenvolviam em relação aos
temas propostos para cada texto central de pesquisa. Depois desta avaliação, partiremos
para a aproximação das idéias selecionadas nos dois textos a fim de estudar o que de fato
foi absorvido e repelido pelo grupo em relação às idéias sugeridas por Andrade em seu
último trabalho, e como elas foram traduzidas para um posicionamento considerado
antagônico ao do escritor modernista.
Referências Bibliográficas:
AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22: subsídios para uma história da renovação nas
artes no Brasil. 4. Ed. São Paulo: Perspectivas, 1979.
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 2 Ed. São Paulo: Martins, 1972.
_____. Introdução à estética musical. São Paulo: Hucitec, 1995.
_____. Música, doce música. 2. Ed. São Paulo: Martins, 1963.
_____. Música e Jornalismo. São Paulo: Hucitec, 1993.
_____. O Banquete. 3. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004.
_____. Obra Imatura. 3. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
_____. Prefácio Interessantíssimo. Paulicéia desvairada. In Poesias Completas, São Paulo: Martins,
1966.
BASBAUM, Ricardo. Migração das palavras para a Imagem. Gávea 13. Rio de Janeiro: PUC-RJ, set.,
1995, pp. 373–392.
BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter educador. Petrópolis: Fundação Petrópolis, 2001.
Caderno de Estudos: Educação Musical, Belo Horizonte: Atravez/EM-UFMG/FEA, n. 6, fev., 1997.
256 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Introdução
Este artigo é sobre a chamada “música instrumental”, ou seja, a música popular
instrumental brasileira. Chamada de “instrumental brasileiro” ou “música instrumental”
pelos músicos e apreciadores, este gênero da música popular brasileira, além de ser
instrumental, tem como característica fundamental uma tensão com o jazz norte-americano
e uma tensão com a MPB, conforme os estudos de Piedade (1997, 1999, 2003, 2005). A
“música instrumental” é também conhecida como “jazz brasileiro”, principalmente no
cenário internacional, e doravante será referida pela sigla MI. Neste artigo, inicialmente
comentaremos a tensão entre MI e MPB, que envolve a dicotomia música/letra, elementos
importantes na compreensão da MI. Em seguida, este artigo traça um esboço do
desenvolvimento histórico da MI.
modinha é questionada, sendo que alguns autores afirmam que ela é portuguesa. Conforme
este autor, as modinhas brasileiras são análogas às portuguesas no que confere à melodia,
mas a modinha brasileira teria uma característica rítmica acentuada que lhe é vital,
característica compartilhada pela maior parte da música popular urbana do Brasil. Na
origem da modinha encontra-se o compositor e tocador de viola Domingos Caldas Barbosa,
figura importante da música popular brasileira (Bastos, 2000; Tinhorão, 2004). Este músico
levou a modinha brasileira à Europa, mostrando seu caráter essencialmente amoroso.
Muitas das modinhas eram tocadas em duos, com linhas melódicas em terças ou sextas
paralelas, com acompanhamento de viola. Surgida nos salões da elite, em pouco tempo a
modinha já estava nas camadas populares (cf. Kiefer, 1986). É claro que a modinha não é
música instrumental, porém seu lirismo melancólico constitui uma importante faceta da
musicalidade brasileira que se faz presente no choro e na MI, aparecendo ali claramente em
temas e improvisos.
O lundu descende diretamente do chamado “batuque” das populações afro-brasileiras.
Segundo Tinhorão (1975), a palavra “batuque” era aplicada de forma genérica a todos os
ritmos produzidos à base de percussão. No final do século XVIII, devido ao fracasso das
medidas repressivas tomadas pelas autoridades colonizadoras e pela igreja em relação às
música afro-brasileira, a metrópole acabou “cedendo” e as “danças dos pretos” passaram a
ser toleradas, ao contrário das danças “gentílicas e supersticiosas”. Neste período, o lundu
surge como uma adaptação da coreografia do fandango ao “batuque dos negros”, realizada
por brancos (Kiefer, 1986). Tanto o ritmo quanto as chamadas “umbigadas” permanecem
no lundu como marcas de sua africanidade. Apesar da confusão entre batuque e lundu, o
aparecimento do lundu não eliminou o batuque (op.cit.). Note-se que o lundu era um gênero
instrumental, somente mais tarde se tornando vocal. No início do século XVIII, o lundu-
dança instrumental inicia sua ascensão à classe dominante, percorrendo o caminho
contrário do que seguiria, mais tarde, a modinha. Kiefer (op.cit.) levanta a hipótese de que
foi Caldas Barbosa quem transformou o lundu-dança em lundu-canção, isto pela
impossibilidade de vê-lo dançado em Portugal (em sua forma instrumental) e para que, lá
vivendo, pudesse “matar as saudades do Brasil”. Para Oneyda Alvarenga (1950), o lundu
deu à música brasileira características musicológicas importantes, como a sistematização da
síncope e o emprego da “sétima abaixada”, ou seja, acordes de sétima menor.
Na segunda metade do século XIX o lundu perde a força, fundindo-se com a polca, dança
instrumental importada da França. A “polca-lundu” tomou conta do Rio de Janeiro na
época. Por outro lado, o lundu-dança foi desembocar, juntamente com elementos de outras
danças, no maxixe, gênero que foi, por algum tempo, expoente máximo da dança urbana
brasileira. Além disso, o lundu-dança manteve-se, em manifestações esporádicas, até o
século XX (Moura, 1983). Vejamos, então, alguns pontos sobre a polca e o maxixe.
A polca foi lançada no Brasil pelas companhias teatrais. Sua semelhança com o lundu na
divisão rítmica fez com que acontecesse uma “fusão” entre os dois e que surgisse uma
forma moderna de dançar que teria seu desdobramento no maxixe. Moura (1983) sugere
que, em 1873, com um anúncio no Jornal do Comércio sobre a polca-lundu intitulada
“Quem não tem ciúmes não ama”, surge a música popular brasileira moderna.
Vindo dos bailes negros e das gafieiras da Cidade Nova (bairro que fazia a fronteira entre o
Rio de Janeiro da elite e aquele dos subalternos) o maxixe era uma dança marcada pela
corporalidade africana, interpretada como sensual ou erótica, passando a atrair o público
masculino de classe média. O maxixe, que começou ao som dos chamados “tangos
260 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
brasileiros”, foi inicialmente mais um modo de dançar do que um gênero musical. O ápice
do maxixe se deu na segunda década do século XIX, continuando depois com menos peso
até ficar praticamente desaparecido a partir da chegada do fox-trot no Brasil e, depois, com
o surgimento do samba. O conceito de maxixe chegou a se confundir com o de samba,
aparecendo em composições como “Pelo telefone” (cf. Moura, 1983), de Donga e Mauro de
Almeida. O maxixe é um elemento muito importante na formação da música instrumental
do choro, como veremos.
Com estes breves apontamentos sobre modinha, lundu, polca e maxixe, procuramos
destacar que se tratam de gêneros fundamentais da musicalidade brasileira, e que se
encontram presentes na MI. Um estudo musicológico do repertório da MI poderá revelar
como ali se encontram nexos com o lirismo melancólico da modinha e a sensualidade do
lundu. Passaremos agora para o choro, que constitui um gênero instrumental da música
brasileira que se prolonga até o presente momento.
Para o folclorista Luís da Câmara Cascudo, a palavra “choro” viria de “xolo”, baile de
escravos, que teria se modificado até chegar em “choro”. Já Vasconcelos afirma que a
origem do termo está nos chamados “choromeleiros”, músicos do período colonial
brasileiro, sendo que na época passou-se a chamar qualquer agrupamento instrumental de
“choromeleiros” e, depois, teria surgido a abreviação “choro” (Vasconcelos, 1964).
Tinhorão menciona outra origem: o termo viria da impressão de melancolia gerada pelas
“baixarias” do violão (Tinhorão, 1998). Se a idéia de melancolia, ou mais propriamente
nostalgia, é coerente com o espírito do choro, as linhas de baixo do violão de sete cordas
não parecem abrigar este ethos: parecem muito mais surgir como emulação do papel de
instrumentos de sopro como tuba ou bombardino5. Lembre-se que, desde a segunda metade
do século XIX, as bandas de sopros eram uma formação muito popular e, portanto, tuba e
bombardino eram instrumentos comuns.
A palavra “choro” apareceu, portanto, com diversos significados no decorrer da história.
“Choro” podia significar grupo de chorões, a festa aonde se tocava choro, um modo de
tocar. Somente na década de 10 é que o termo passa a designar uma forma musical fixa e a
significar um gênero musical (Cazes, 1998). Segundo Oliveira (2000), a origem do choro
está na nova classe formada no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX,
que ele chama de “pequenos burgueses”. Nesta época eram comuns, principalmente na
capital do império, os chamados grupos de “pau e corda”, constituídos por violão,
cavaquinho (cordas) e flauta (“pau”, pois eram de ébano).6 Devido à carência de eventos
públicos para o divertimento dessa classe, os funcionários públicos faziam encontros nas
suas próprias casas. Para animar estes encontros, os próprios participantes da festa tocavam
em trios de “pau e corda”, e foi nesses encontros que o choro nasceu. No final do século
5
A origem do violão de sete cordas é intimamente relacionada ao desenvolvimento desta linha de
baixo no gênero. Aparentemente, tem relação com uma comunidade de ciganos na chamada “Pequena
África” (ver Moura, 1983). Após entrarem em contato com esta comunidade, China, irmão mais velho
de Pixinguinha e integrante dos Oito Batutas, bem como o músico Tute, teriam sido os primeiros a
usar este instrumento no choro. Mas foi somente com “Dino 7 Cordas” que este instrumento e sua
função polifônica típica se desenvolveram completamente no universo do choro, isto a partir dos anos
50. Os princípios básicos das “baixarias” foram ali cristalizados: frases que ligam mudanças de
acordes através de escalas em grau conjunto, em geral em espaços intermediários de frases do tema,
qual comentários melódicos deste, algumas vezes em terças paralelas com um violão de seis cordas.
6
É possível que esta designação esteja relacionada aos nordestinos da Pequena África e ao carnaval
de Recife.
O desenvolvimento histórico da “música instrumental” 261
XIX, o trio mais conhecido era “O Choro Carioca”, do qual Antônio da Silva Callado fazia
parte. Callado foi um dos muitos flautistas virtuoses da sua época (Diniz, 2002) e
contribuiu com o seu grupo no abrasileiramento da polca e na afirmação do choro como
gênero musical (Oliveira, 2000).
O choro nasceu da mistura de estilos e sotaques: partindo das danças européias
(principalmente da polca), do acento português (o nostálgico toque metálico da guitarra
portuguesa) e da influência negra (essencialmente no âmbito rítmico). Note-se que o
processo de desenvolvimento das músicas populares urbanas, como o choro, aconteceu de
forma similar em diversos países: por onde houve colonização portuguesa, a música
popular se desenvolveu basicamente com o mesmo instrumental, cavaquinho e violão, nem
sempre com flauta. (Cazes, 1998).
Em termos formais, o choro tem normalmente três partes e se caracteriza por ser
necessariamente modulante. Um tipo de forma rondó (seções diferentes intercaladas pela
repetição do “A”), sendo também característica a improvisação e o espírito de competição
(cf. Cazes, 1998). A competição, no choro, acontece em dois patamares: entre os grupos e
entre os músicos de um mesmo grupo. A competição entre os grupos tem uma herança dos
trios de pau e corda, que tocavam no mesmo recinto, disputando sucesso. A competição
entre os músicos do mesmo grupo funciona como uma espécie de jogo do solista, que tenta
“derrubar” os acompanhadores, e vice-versa (Oliveira, 2000). Comentaremos a seguir
aspectos da improvisação no choro.
O improviso no choro deve ser entendido como uma variação da melodia do tema principal.
No jazz, o improviso é muito mais a criação de novas melodias em cima de uma harmonia
fixa (cf. Oliveira, 2000). De fato, no choro o solista improvisador toca a melodia com
liberdade para interpretá-la, floreá-la, variá-la, mantendo seus traços temáticos sempre
claros. Pode-se dizer que o solista, assim como o acompanhamento de base, especialmente
as linhas de baixo, estão improvisando (variando) durante a música inteira. Atualmente,
temos notado choros com improvisos em seções do tipo chorus, ou seja, o foco no
improviso de um músico solista sobre a base harmônico-polifônica do tema. Este tipo de
improviso com chorus é provavelmente uma influência do jazz no choro.7 Um aspecto
comum entre o jazz e o choro é, sem dúvida, a improvisação generalizada e o caráter de
interação entre os músicos na performance (para o caso do jazz, ver Monson, 1996). Um
exemplo de grande improvisador de choro é Pixinguinha, que ainda adolescente tocava
flauta na Orquestra do Teatro Rio Branco e já era conhecido como grande improvisador,
pois “floreava” as melodias (Oliveira, 2000).
Pixinguinha foi um grande instrumentista (tocava flauta e saxofone), arranjador e
compositor. Segundo Cabral (1978), houve um momento em que Pixinguinha trocou a
flauta pelo sax: foi aí que, tocando com Benedito Lacerda e desprovido da condição de
solista, passou a compor e improvisar contracantos. Abaixo comentaremos aspectos deste
momento importante no choro. Pela sonoridade que tirava do saxofone e pelo seu estilo,
Pixinguinha acabou tendo muitos seguidores da sua música, criando uma verdadeira escola
do saxofone no Brasil. Além disso, a sua forma de arranjar influenciou e continua
influenciando grandes músicos brasileiros, sem falar nas suas composições consagradas,
7
Note-se que nos primórdios do jazz não havia improvisação tipo chorus, mas sim variações, a
exemplo do choro.
262 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
que são tocadas até hoje em qualquer roda de choro e por muitos instrumentistas (Cabral,
1978).
Falar de Pixinguinha é falar dos chamados “Oito Batutas”. Surgido em 1919, este grupo
possuía em seu repertório músicas instrumentais e cantadas: maxixes, lundus, canções
sertanejas, batuques, cateretês. A estréia dos Oito Batutas foi na sala de espera do renomado
Cine Palais, no Rio de Janeiro, e no fim de 1919, já estavam fazendo viagens pelo interior
do Brasil (ver Cabral, 1978). Em 1922, são convidados para ir a Paris, ali ficando em torno
de seis meses, em contato com o jazz do cenário francês dos anos 20. Quando voltaram
foram acusados de terem sofrido influência das jazz bands (Oliveira, 2000). De fato, o
saxofone entrou para o mundo do choro com a volta de Pixinguinha, que trouxe um sax de
Paris (Coelho, 2004), e neste mundo ele foi incorporado de modo impressionante.8 Tanto
que um dos maiores expoentes atuais do choro, Paulo Moura, é saxofonista. Em geral, estes
instrumentistas tocam clarinete, e o papel do saxofone no choro está ligado a este outro
instrumento.
Já comentamos a importância da entrada do saxofone no choro, ligada ao papel polifônico
de contracantos. Coelho (2004) notou que Pixinguinha passa gradualmente da primeira para
uma segunda voz, criando uma textura polifônica no choro, fundamental no
desenvolvimento deste gênero (ver também Oliveira, 2000). Os contrapontos de
Pixinguinha eram tão bem feitos que acabam muitas vezes roubando a cena do tema
principal, que nos Oito Batutas era tocado por Benedito Lacerda na flauta (Coelho, 2004).
Os Batutas voltaram ao Brasil com algumas novidades: uma delas, bem marcante, é que, ao
invés de percussão, os ‘Oito Batutas’ agora tinham também uma bateria. O grupo passou,
então, a se chamar “Bi-orquestra Os Batutas”, com bateria e trombone. Seria ao mesmo
tempo um grupo de choro e uma jazz band.
De fato, a idéia de jazz band, ao menos para o jazz francês do início do século XX, estava
ligada à formação instrumental de banda de sopros com piano e bateria (ver Cabral, 1978
apud Coelho, 2004). As jazz bands tocavam marchas, emboladas, maxixes, choros e
músicas latino e norte-americanas (Cabral, 1978). Por volta de 1933, foi criada uma
orquestra nos moldes norte-americanos para tocar ao vivo na recém-inaugurada Rádio
Tabajara, na cidade de João Pessoa. Esta orquestra foi montada com a “nata” musical
paraibana da época, e tocavam arranjos trazidos da Europa e dos Estados Unidos. Em 1936,
Severino Araújo foi convidado a integrar esta orquestra e, logo em seguida, substituiu o
falecido regente Olegário. Severino tinha apenas vinte e um anos quando assumiu a
regência da Orquestra Tabajara e mesmo assim fez exigências para aceitar o cargo: quis
modificar o som da orquestra de salão e fazer dela uma big band brasileira. Severino
assumia a influência norte americana: nesta época, já admirava Benny Goodman
(clarinetista e arranjador que fez muito sucesso no início dos anos 30). Quando a Orquestra
Tabajara veio para o Rio de Janeiro, em 1944, Araújo passou a escrever arranjos de peças
do repertório de música popular brasileira conforme a linguagem americana de
orquestração de jazz. O novo repertório incluía músicas de K-Ximbinho, importante
compositor e arranjador que fundia muito bem o choro e os elementos harmônicos do jazz.
Segundo Cazes, K-ximbinho compunha choros que sugeriam acompanhamentos do tipo
daquele da futura bossa nova (Cazes, 1998).
8
Para um aprofundamento na importância musical e sócio-cultural dos Oito Batutas na música
brasileira, ver Bastos (2005).
O desenvolvimento histórico da “música instrumental” 263
grupos de tendência jazzística. Pode-se dizer, em termos da estrutura formal, que a forma
de improvisar é um demarcador importante entre choro e MIl: enquanto o primeiro é
calcado em princípios de variação, o segundo segue o modelo de criação e articulação de
frases-padrão em estrutura do tipo chorus. Assim, a MI se mantém como MI, mesmo
quando se toca choro.
É claro que estas duas tendências do choro atual não são separadas com tanta clareza.
Existem intersecções e trocas entre as duas categorias9. Podemos citar aqui o nome de
algumas pessoas que estão no campo do choro e que atuam em uma ou ambas tendências:
Isaías, Israel, Maurício Carrilho, Pedro Amorim, Paulo Moura, Proveta, Jorginho do
pandeiro, Altamiro Carrilho, Luiz Otávio Braga, Paulinho da viola e Yamandú Costa. Mas
se há uma preocupação em distinguir MI e choro, e se o choro não é a matriz básica de
onde surgiu a MI, onde ela se encontra? Para Piedade, no mundo instrumental em torno da
bossa nova (Piedade, 1997, 1999, 2003).
A bossa nova surgiu nos anos 50, na zona sul do Rio de Janeiro. Ali, cantores,
instrumentistas e compositores amantes do jazz americano, da música brasileira e da música
erudita se reuniram e criaram este gênero que viria a influenciar a música mundial (Castro,
1990). Esta triangulação está expressa por Scarabelot (2004) na divisão da bossa nova em
três pilares: João Gilberto com seus sambas peculiares, Tom Jobim com sua experiência
erudita e jazzistas de Copacabana. Nos anos 60, com Laurindo de Almeida, Charlie Byrd e
Stan Getz, a bossa nova é apresentada ao público norte americano. Foi nesta época que o
jazz começou a incorporar elementos da bossa nova, assim como nos anos 40 incorporou
elementos da música cubana. Se o samba e a música de Carmem Miranda representavam
para os americanos a criatividade “exótica”, a bossa nova penetrou intensamente na cultura
americana, mas pela inovação na mescla de refinadas harmonias, espírito cool e batida
rítmica típica (Scarabelot, 2004). Embora a influência do cool jazz na bossa nova seja
reconhecida pelos próprios bossa-novistas, as raízes da bossa nova podem estar muito mais
fortemente estabelecidas na própria música brasileira, na dimensão dos arranjos (ver
Pinheiro, 1992) e mesmo na melódica das modinhas (Bastos, 1996).
Ao mesmo tempo em que a bossa nova se tornava conhecida no mundo, toda uma geração
de instrumentistas influenciados pelo jazz se envolvia com este gênero no Brasil. Estes
instrumentistas formaram grupos que tocavam um repertório de bossa nova e jazz
instrumental, sendo que muitos eram na formação clássica jazzística de trio (piano,
contrabaixo e bateria), como o Tamba Trio, Zimbo Trio, Milton Banana Trio, Jongo Trio,
Bossa Três, Sambalanço, e outras formações, como o Quarteto Novo (de Hermeto Pascoal),
samba-jazz (de J.T. Meireles) e os Copa 5.
Para Piedade (1997, 1999, 2003), é neste universo instrumental da bossa nova que surge a
MI. O jazz brasileiro cresce apoiando-se, portanto, menos no choro e mais na bossa nova, aí
destacando o encontro entre a bossa e o jazz norte-americano. O encontro real entre Stan
Getz e João Gilberto simboliza um diálogo entre as musicalidades da bossa nova e do jazz
norte americano que é, para este autor, uma característica fundamental da música
instrumental brasileira.
Assim, chegamos ao momento no qual o esboço da história da música instrumental
brasileira está traçado, da modinha à bossa nova. A partir daí, o gênero se consagrou pouco
a pouco. De início, através de músicos brasileiros que moravam nos Estados Unidos, como
9
O choro tem sido objeto de diversos estudos recentes, tais como Freitas (2005) e Oliveira (2003).
O desenvolvimento histórico da “música instrumental” 265
Airto Moreira, Eumir Deodato, Flora Purim, Oscar Castro Neves, entre outros. Através da
atuação destes músicos e dos expoentes da bossa nova, elementos da música brasileira
foram incorporados à música norte-americana, daí se difundindo para o mundo. E,
especialmente no caso do jazz, estas leituras e apropriações acabaram voltando para
fertilizar a música instrumental brasileira, no movimento reflexivo entre duas musicalidades
globais.
Apesar da cultura brasileira ter sido bastante afetada pela ditadura militar, no Brasil (anos
70) surgem alguns selos no eixo Rio/São Paulo que veiculam a MI, como o Lira Paulistana.
O selo Lira Paulistana tinha também um teatro para apresentações musicais, o que
contribuiu para a consagração da MI.
Em outros centros urbanos do país o gênero também se desenvolveu significativamente,
como, por exemplo, em Minas Gerais, onde surge o Clube da Esquina. Clube da Esquina é
o nome de dois LPs de Milton Nascimento (Clube da Esquina e Clube da Esquina II) que
reuniam diversos instrumentistas, cantores e letristas mineiros como: Lô Borges, Tavinho
Moura, Beto Guedes, Toninho Horta, Fernando Brant, Wagner Tiso e Márcio Borges.
Segundo Caetano Veloso (BORGES, 1996), “Milton Nascimento foi -é- o elemento
catalisador, o próprio lugar de inspiração do movimento”. Para este autor, a música de
Milton Nascimento e do Clube da Esquina é “um desdobramento da bossa-nova (...), uma
continuidade em relação ao samba-jazz carioca, uma fusão que – partindo de premissas
muito outras e de uma perspectiva brasileira – confluía com a ‘fusion’ inaugurada por Miles
Davis”. Em 1964, além de cantar em bailes, Milton Nascimento tocava baixo acústico em
um trio de bossa nova e jaz com Wagner Tiso e Paulinho Braga, o Tempo Trio. Fica claro
que a relação do Clube da Esquina com a MI, independentemente da letra ou da voz, está
fincada em uma relação de continuidade com a bossa nova e no diálogo com o jazz e os
jazzistas.
A partir dos anos 80, o jazz brasileiro entra no circuito internacional de festivais de jazz
(por exemplo, o de Montreux). A partir deste momento, as obras de Hermeto Pascoal e
Egberto Gismonti têm sido muito importantes para a formação da MI como um gênero
pleno, com termos temáticos, estruturais e estilísticos relativamente estáveis. Com a
maturidade do jazz brasileiro nos anos 80, os anos 90 representaram um período de
impressionante crescimento e vigor. Atualmente, a produção da MI gira em torno de
gravadoras que são, na maioria das vezes, administradas pelos próprios músicos (p. ex.
Núcleo Contemporâneo, Maritaca, entre outras). Ou seja, a MI continua inscrita em um
circuito alternativo, havendo um mercado restrito para o gênero no Brasil. Faz parte deste
mundo da MI festivais e oficinas periódicas, realizadas em várias cidades brasileiras. Estes
encontros reúnem nomes como: Proveta, Daniel Sá, Mané Silveira, Vinícius Dorin, Arismar
do Espírito Santo, Cizão Machado, Paulo Moura, Lea Freire, Raul de Souza, entre outros
instrumentistas conceituados.
Comentário final
Neste artigo, pretendemos focalizar, inicialmente, uma característica da música
instrumental brasileira que se relaciona justamente com o fato de ser uma música
instrumental e, portanto, que exclui a letra e o cantor, sendo que procuramos destacar as
questões da hierarquia e da ambigüidade destes fatores. Em seguida, o artigo apresentou um
breve panorama histórico da MI, especialmente em contraste com a história do choro. Com
os subsídios até aqui obtidos, acreditamos que seria importante investigar mais a fundo a
266 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
MI, principalmente no que toca à profundidade antropológica de toda esta faceta da música
brasileira. Ao mesmo tempo, justamente com estes nexos sócio-culturais e históricos em
mãos, a análise musical propriamente dita de peças do repertório da MI poderá consolidar
uma musicologia deste importante gênero da música brasileira, e revelar toda a sua riqueza
e interesse.
Referências bibliográficas
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BORGES, MÁRCIO. Os Sonhos Não Envelhecem. São Paulo: Geração Editorial, 1996.
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O desenvolvimento histórico da “música instrumental” 267
Referências discográficas:
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Janeiro, Brasil.
Marina Beraldo Bastos: Estudante de graduação em Música (UDESC); bolsista de
iniciação científica (PROBIC/UDESC); Membro do grupo de pesquisa
MUSICS/UDESC/CNPq; Atua na cidade de Florianópolis (S.C.) nos grupos “Poré
Poré” e “Quarteto Sonoroso”, como flautista, no “Poliphonia Khoros”, como cantora,
e na Escola Livre de Música Compasso Aberto, como professora. Acácio Tadeu de
Camargo Piedade Doutor e Mestre e Antropologia (UFSC), Bacharel em Música
(UNICAMP); professor e pesquisador nas áreas de musicologia/etnomusicologia e
composição/arranjo no Departamento de Música da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC); membro dos grupos de pesquisa MUSICS (Música, Cultura e
Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e
Caribe)-UFSC/CNPq; membro do International Council for Traditional Music
(ICTM), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) e da Associação Brasileira de
Etnomusicologia (ABET).
|resumos de pôsteres|
Resumo: Vivemos em uma era em que a economia tem importância central em toda a
vida da sociedade. É em torno do capitalismo que tudo gira, inclusive a música. Não
se pretende, com esse artigo, fazer juízo de valor quanto a essas relações econômicas,
mas investigar alguns pontos sobre a música que é feita nessa era e as críticas e
soluções que alguns autores apresentam. Caminharemos na direção da ‘solução’
apresentada por Habermas, representante da Escola de Frankfurt, sob a forma do
conceito de ‘razão comunicativa’. Tal estudo de Habermas não enfoca pontualmente a
música e nem a estética, mas todas as manifestações culturais, sociais e políticas da
sociedade. Sendo assim, a música enquanto expressão cultural, se encaixa em tais
observações habermasianas. Analisaremos, ainda, a criação musical contemporânea
do ponto de vista da crescente individualização/ globalização do gosto, seja técnico ou
subjetivo, seja puramente objetivo e voltado à comercialização.
Música e comunicação
Resumo: Acredita-se hoje que a música e a linguagem oral possam ter tido uma
origem comum, uma forma de comunicação classificada muitas vezes como proto-
música por musicólogos ou como proto-linguagem por lingüistas. O objetivo da
presente pesquisa de caráter experimental é analisar esta possibilidade de um ponto de
vista evolutivo, utilizando como objeto de estudo as vocalizações de bebês com idade
Resumos 273
Uma concepção de relação entre arte e vida sob a ótica da filosofia de Friedrich
Nietzsche
Resumo: O artigo apresenta uma reflexão sobre os aspectos relacionados com o papel
da Educação Musical e a formação dos professores, agentes na mudança das práticas
educativas, na procura de procedimentos que favoreçam o desenvolvimento de
habilidades e competências na constituição de sua profissionalidade docente. O
enfoque teórico, a partir de materiais sobre cultura, educação, arte e música, inspira-se
em idéias de Forquin, Gramsci, Nóvoa, Sardelich, Penna, entre outros, para ponderar
sobre as condições de construção do docente e seu conhecimento pedagógico-musical,
exigidos pelas demandas do atual mercado profissional e para o exercício de uma
cidadania efetiva. Compara grupos de professores analisados por três pesquisas
realizadas em diferentes estados brasileiros e traça um perfil desse profissional: sua
formação, condições de trabalho, perspectivas e construções.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal refletir sobre o papel da
percepção auditiva em quatro propostas de educação musical. Iniciaremos realizando
uma revisão das propostas de Violeta Gainza, Shinichi Suzuki, Murray Schafer e
Hans J. Koellreutter. Na seqüência apontamos para a necessidade da descrição clara e
adequada da noção de conhecimento musical segundo a tradição do estudo da ciência
cognitiva e da filosofia da mente. Posteriormente nos ocupamos da descrição de
diferentes atividades que envolvem audição em cada uma das propostas dos autores
citados acima. Nossa intenção é investigar as possibilidades funcionais atribuídas à
audição no processo de desenvolvimento musical dentro de cada abordagem
metodológica. Também esperamos, com isso, destacar a importância da audição como
fundamento para o desenvolvimento da cognição musical em todos os seus aspectos
envolvidos em diferentes perspectivas de educação musical.
276 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Resumo: Música nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental é uma pesquisa que vem
sendo desenvolvida em uma escola da rede pública municipal. Nas séries iniciais
atuam professores generalistas, os quais devem mediar conteúdos de todas as áreas do
conhecimento, sendo a música uma destas áreas. Entende-se que é fundamental que
estes profissionais possuam uma vivência com os aspectos musicais, além de um
conhecimento básico e fundamentado dos conteúdos de música a introduzir em suas
aulas. O principal objetivo desta pesquisa é verificar a presença da música nas séries
iniciais do ensino fundamental, especificamente relacionada à prática dos professores
generalistas e com vistas ao estabelecimento de competências necessárias para que
tais profissionais possam contribuir para o desenvolvimento musical nos primeiros
anos escolares. A metodologia qualitativa foi empregada neste trabalho, pois o que se
pretende é estudar a presença da música na escola pesquisada sob a visão dos
profissionais atuantes nas séries iniciais, e não gerar dados estatísticos ou
generalizações. Os dados foram obtidos através de questionários, entrevistas e
278 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Brasileira