Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
OpenEdition
Press
Memória e novos patrimônios | Cécile Tardy, Vera Dodebei
regimes de
patrimonialização
Jean Davallon
Traduction de Germana Henriques Pereira de Sousa
Résumé
O exercício teórico exposto neste capítulo consiste em questionar a evolução do modelo da
patrimonialização, desenvolvido anteriormente pelo autor (2006), a partir do caso do patrimônio material
quando deslocado para o patrimônio imaterial. O desafio da abordagem é colocar em discussão a etapa da
ruptura entre o mundo de origem dos objetos patrimoniais e o mundo do tempo presente. Essa etapa havia
sido colocada como necessária na produção patrimonial, ainda que pareça não ser mais efetiva com
relação ao patrimônio imaterial, uma vez que este garantiria uma continuidade entre os dois mundos.
Porém, no caso de uma tal continuidade, que diferença haveria entre as definições cultural e jurídica do
patrimônio? Este capítulo nos permite analisar o processo de transmissão do patrimônio imaterial pela
observação cuidadosa da passagem de uma transmissão oral na sociedade para uma transmissão sobre a
sociedade. Os desafios teóricos em torno desses modos de existência do patrimônio imaterial na sociedade
serão explanados por meio do exemplo simples e eficaz dos cantos tradicionais com várias vozes, oriundos
da Córsega e inscritos na lista da UNESCO de salvaguarda de urgência do patrimônio cultural imaterial da
humanidade.
Note de l’éditeur
Este capítulo foi traduzido do francês.
Texte intégral
https://books.openedition.org/oep/866 2/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
Uma das respostas sugeridas por diversas críticas feitas ao modelo dos processos de
patrimonialização, e, para alguns, à concepção que sustenta a existência de uma
obrigação de guardar fundamentada no sentimento de dívida perante àqueles que
produziram esses objetos, seria aquela em que talvez estejamos assistindo hoje a uma
diluição do estatuto patrimonial – tradicional, europeu e fundamentado no patrimônio
material – para dar lugar a uma concepção de patrimônio definido como tal pelo grupo
ou comunidade (ou seja, o coletivo) que dele reivindica a propriedade contínua desde o
passado. Não há, portanto, nenhuma ruptura entre o mundo de origem do patrimônio e
o mundo presente. Pelo contrário, é a continuidade entre os dois mundos que garante o
fato de que realmente se trata de patrimônio coletivo: seria considerado patrimônio tudo
aquilo que o coletivo considera como seu. No fundo, voltaríamos, assim, a uma
assimilação da definição cultural e da definição jurídica do patrimônio, a primeira
alinhando-se à segunda. De acordo com meu ponto de vista, tal assimilação questionaria
a dimensão simbólica do patrimônio cultural e, portanto, requer um exame, mesmo que
https://books.openedition.org/oep/866 3/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 4/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
3 Acrescentemos que a transmissão deve não apenas ser pensada no tempo dentro de um
grupo social, o que é, obviamente, fundamental aqui, mas também entre grupos sociais
de culturas diferentes.
https://books.openedition.org/oep/866 5/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
proposta por Maurice Godelier no L’Énigme du don (segundo a qual não pode haver
sociedade que perdure sem realidades subtraídas às trocas que servem de ponto de
referência), o desafio reside, como afirmei acima, não apenas no fato de se transmitir tais
realidades (objetos materiais), mas também no fato de se transmitir os significados que
lhes são agregados. Não sei se esse postulado é válido para as outras sociedades, mas é
de grande importância para a nossa sociedade, na qual a circulação dos significados é um
fator determinante da representação que ela produz sobre si mesma (Jeanneret, 2008).
Por exemplo, não basta que objetos do passado estejam hoje presentes, que práticas
continuem a existir, é preciso ainda que sua significação seja transmitida e aceita. Assim,
a memoração e a patrimonialização devem ser consideradas como uma operação de
produção de acontecimentos, práticas ou dispositivos culturais singulares, permitindo a
transmissão ao longo do tempo de objetos e/ou de práticas acompanhadas de suas
significações sociais, ou seja, de saberes, de experiências e de valores. Tais práticas ou
tais dispositivos são forçosamente híbridos, estratificados e autorreferenciais (no sentido
em que eles significam as operações que efetuam).
8 Esses dois primeiros pontos nos levam a especificar, em terceiro lugar, as operações em
que se baseia a eficiência social – melhor dizendo, a operacionalidade simbólica – dos
acontecimentos, práticas ou dispositivos culturais suscetíveis de produzir significado
transmissível ao longo do tempo. São quatro operações:
https://books.openedition.org/oep/866 7/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 8/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 9/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 10/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 11/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
saber construído, é um indício de seu contexto passado. É desse modo que podemos
afirmar que o objeto é um testemunho do mundo de origem e que pode suscitar, naquele
que o contempla ou toca, o sentimento de “sublime do passado” de que fala Dulong
(1998, p. 180-184).
14 Quanto ao destinatário, ou seja, aquele que está em contato com esse objeto patrimonial,
o duplo caráter do objeto patrimonial serve de base para o que podemos chamar de uma
adesão patrimonial. Esta vai além do simples interesse pelo conhecimento sem por isso
ficar reduzida ao prazer da exploração de um mundo imaginário ou ainda apenas ao
prazer da relação estética. É exatamente a conjunção do sensível e do inteligível que
serve de base para a experiência tanto do descobridor como do visitante. A dimensão
testemunhal do objeto, a operacionalidade da presença, quando é sentida pelo homem
do presente, pode colorir o saber e atribuir-lhe um caráter de anamnese, o que pode, por
exemplo, conferir à visita de uma exposição ou de um sítio visual (ou a qualquer forma
de mediação) um caráter comemorativo. O saber atrelado ao objeto material pode,
assim, despertar o interesse do grupo e circular novamente na memória social.
15 Mas para que isso aconteça, é indispensável suscitar um interesse inicial pelo objeto
material ou pelo saber a ele atrelado, um processo de empatia, de identificação, para
encetar uma apropriação pelos indivíduos e pelo grupo que responde ao “desejo de se
transplantar no passado”6, como afirma Dulong7. Esse interesse continua a ser uma das
chaves do conhecimento do estatuto patrimonial dos objetos vindos do passado. Sem
isso, na melhor das hipóteses, podem recair no esquecimento, na pior, serem destruídos.
https://books.openedition.org/oep/866 12/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 13/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
assim como instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são associados”.
Qualquer um que tenha se interessado pela questão sabe que fica postulado que esse
patrimônio pode se recriar continuamente em razão da natureza e das contingências dos
grupos.9 Mas há um pressuposto segundo o qual o dito patrimônio continuará sempre
sendo ele próprio, ou seja, um patrimônio; sem isso, seria difícil ver como ele poderia
continuar sendo reconhecido pelo grupo. Um mínimo de características permanentes
parece, portanto, necessário para que seja reconhecido como tal. Assim formulada, uma
tal definição coloca um problema de lógica, que é resolvido ao menos em teoria, pelo fato
de que é o grupo (a comunidade ou suas variantes) que reconhece os elementos que
fazem parte do seu patrimônio. Se mantivermos essa definição, trata-se, portanto, de
uma patrimonialização por reconhecimento. Que esse reconhecimento seja, em seguida,
objeto de declarações emitidas pelos Estados e sobretudo pelos especialistas da
UNESCO, isto não altera nada o fato de que o reconhecimento é o ato primeiro pelo qual
alguma coisa adquire estatuto de patrimônio. Esse reconhecimento é o único gerador de
patrimonialização explícito, o único referente posto como capaz de dar ao processo sua
razão de ser e sua coerência.
20 Na realidade, como veremos, as coisas são um pouco mais complexas. Em que bases esta
patrimonialização está ancorada? A resposta dada pela UNESCO resulta de três
operações: uma transmissão geracional do elemento a patrimonializar; um interesse do
grupo por esse elemento que se pode supor estar ligado ao sentimento de identidade e de
continuidade; e uma declaração desse reconhecimento, sem a qual ninguém saberia que
se trata de um patrimônio. À primeira vista, temos, assim como para o patrimônio
material, uma construção patrimonial por homens do presente que consideram que tal
elemento constitui seu patrimônio. Porém, é melhor não se iludir. Diferentemente do
que acontece com o patrimônio material (a saber, a construção de um conhecimento
sobre o objeto e seu modo de origem servindo a estabelecer um estatuto patrimonial do
https://books.openedition.org/oep/866 14/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 15/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
faz patrimônio. Como acontece com o patrimônio material, vemos novamente o lugar
decisivo que a produção do saber ocupa na patrimonialização para determinar o que faz
patrimônio, em que e por que ele o faz. Mas o uso do saber não é exatamente o mesmo:
concentra-se principalmente no modo como podemos compreender esse elemento como
patrimônio e cujo fundamento evidente é a manifestação ou o traço desse patrimônio. É
isso que proponho examinar a partir de um exemplo.
https://books.openedition.org/oep/866 16/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
25 Vale precisar que a manifestação desses objetos ideais que são os objetos imateriais pode
tomar duas formas: a de uma “execução” (um evento, uma prática, uma performance,
uma realização, etc.) ou a de uma transcrição, de um relatório, uma descrição, etc., ou
seja, de uma “denotação”.12 Sem uma ou outra dessas formas de manifestação, ele
continua uma idealidade, uma representação mental. Como veremos, esta precisão terá
sua importância.
26 Tomemos como exemplo, ao mesmo tempo simples e suficientemente complexo, os
cantos tradicionais com várias vozes, oriundos da Córsega, e que estão inscritos na lista
da UNESCO de salvaguarda de urgência13 do patrimônio cultural imaterial da
humanidade. Esses cantos, por exemplo, a Messe des vivants de Sermanu (cantada nas
festas de padroeiros), fazem parte da classe dos cantos chamados cantu in paghjella.
Trata-se de um conjunto mais ou menos evolutivo de peças tendo essas características,
usos, formas mais ou menos similares. É esse conjunto, essa classe, que constitui
patrimônio. Estabelecer esse pertencimento (segundo, claro, o grau de expertise
musical) fica, aliás, mais ou menos evidente para os membros do grupo para o qual esse
conjunto se constitui como patrimônio. Esse pertencimento será facilmente reconhecido
pelos membros da comunidade corsa como fazendo parte do patrimônio corsa, tendo em
vista as especificidades dessa forma de canto com relação às outras formas, que, embora
muito próximas, não serão consideradas parte desse conjunto. Porém, esse
reconhecimento supõe que a missa em questão seja executada, cantada, objeto de
performance, se é que podemos usar esse anglicismo, por um grupo e que seja
transmitida.
Tabela 1: Regime de patrimonialização do Cantu in paghjella
Objeto Objeto genérico Objeto individual
Ideal Cantu in paghjella Versi
Real Execução e denotação (missa, concerto aprendizagem, etc.)
https://books.openedition.org/oep/866 17/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
27 Quando não houver mais traços desses cantos pertencendo a esse patrimônio, este
deixará de existir, até mesmo enquanto patrimônio. Daí a importância de duas formas de
manifestação, que são a execução (uma performance no contexto de uma situação social
tal como uma missa, uma festa, um concerto, etc.) e a manifestação da memória por
ocasião, sobretudo, da transmissão ou de uma pesquisa de memória. É o caso dessa
forma de transmissão por eventos que é a aprendizagem do canto, e que não passa de
uma forma de inscrição das modalidades de performance na memória dos indivíduos
sociais para produzir a memória coletiva. A memória individual e/ou coletiva é a base da
denotação, e por conseguinte, base do saber sobre o que caracteriza a obra como
pertencendo à classe dos cantu in paghjella. Essa denotação é o equivalente da partitura,
dos comentários musicológicos ou das indicações cênicas. Mas, diferentemente da
partitura (ou de outras formas de denotação escrita), que faz forçosamente uma redução
do canto, a transmissão por aprendizagem transmite não apenas as notas e os
comentários, mas também a capacidade de reproduzir o modo de manifestar o canto na
execução (para produzir uma réplica da obra). De fato, a execução deve ser feita segundo
as modalidades que garantem a manifestação efetiva da dimensão patrimonial, tal como
a escolha das peças de acordo com a situação, composição do grupo (distribuição das
vozes), escolha das circunstâncias, etc.14 Todas essas são condições para o sucesso de um
reconhecimento do caráter patrimonial.
28 Diferentemente do modo autográfico do patrimônio material, em que o caráter
patrimonial é atrelado ao objeto (modificar o objeto ou mudá-lo fará desaparecer o
caráter patrimonial), o estatuto do patrimônio imaterial existe anteriormente a suas
manifestações, ainda que a existência mesma desse patrimônio seja questionada se essas
manifestações vierem a desaparecer, sobretudo, ponto essencial, a memória, que permite
que elas aconteçam. Esta seria provavelmente a razão de se recorrer à gravação, para que
a memória seja fixada, uma vez que essas manifestações são na maior parte do tempo
https://books.openedition.org/oep/866 18/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
efêmeras. Nessas condições, compreende-se por que o desafio não repousa sobre a
validade semiótica da relação do objeto com seu mundo de origem (sua autenticidade),
como no caso do patrimônio material. Essa relação recai sobre a validade das
manifestações e traços do que faz patrimônio, de sua conformidade e de seu respeito ao
objeto ideal (é o caso da Messe des vivants de Sermanu, por exemplo), e do
pertencimento deste à classe que constitui patrimônio (o cantu in paghjella, para
reforçar o mesmo exemplo). Esse desafio é ainda maior quando só podemos apreender o
que faz patrimônio através de uma peça executada, através de suas manifestações.15 Os
saberes não servem, portanto, para reconstituir a memória perdida dos objetos a fim de
atestar sua autenticidade, mas, antes, servem para validar as modalidades de existência
físicas das idealidades patrimoniais, suas manifestações, e até mesmo o registro delas.
29 Não é espantoso, portanto, que os saberes sejam mobilizados para garantirem a validade
das relações entre os registros e a manifestação (aqui a execução dos cantos); entre a
manifestação e o que faz patrimônio (os cantos reconhecidos como patrimônio); entre
esses objetos e a classe à que pertencem e que faz patrimônio (no caso presente, o cantu
in paghjella); entre essa classe de cantos e a cultura à que ela mesma pertence (a cultura
corsa). Em cada ocasião, esses saberes são híbridos de memória e de conhecimentos
construídos. Se os membros do grupo sabem o que obedece ao caráter patrimonial e o
que não obedece, é por terem visto, ouvido, aprendido. Observamos que isso não
dispensa, muito pelo contrário, o estabelecimento de uma descrição pensada e de um
estudo científico durante o processo de patrimonialização.16 Essa descrição e esse estudo
vêm registrar, completar, traduzir sob forma de conhecimentos, os saberes transmitidos
implicitamente (durante as execuções) ou explicitamente (por aprendizagem).
30 Permanecem abertas duas questões principais. A primeira é a de saber a partir de que
momento as mudanças nas manifestações vão abalar o caráter patrimonial do objeto
ideal (a Messe des vivants, nesse caso), e até mesmo a partir de que momento esse
https://books.openedition.org/oep/866 19/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
objeto pode perder seu caráter patrimonial. De aparência algo teórica, para não dizer
casuística, essa questão compromete de fato as possibilidades de evolução das
manifestações e da permanência do que as torna singulares e manifestações do
patrimônio de uma cultura. Ainda sobre esse ponto, não é garantido que o princípio que
consiste em devolver a pergunta à comunidade seja tão simples a ser executado quanto
parece à primeira vista.
31 A segunda questão diz respeito à maneira como é possível compartilhar o que constitui
patrimônio (o cantu in paghjella, para retomar nosso exemplo) e suas manifestações
(execuções ou saber). Diferentemente, portanto, dos membros da comunidade, que, pelo
menos em princípio, podem determinar o que constitui patrimônio e o que não constitui,
as pessoas externas ao grupo entram unicamente para assistir às manifestações. Isso
coloca um duplo desafio. Em primeiro lugar, o da abertura ou não desse patrimônio aos
outros (por meio de sua instalação e circulação no espaço público sob forma de concertos
ou programas de rádio e televisão, por exemplo). E, em segundo lugar, o modo como
essa instalação e essa circulação vão permitir aceder, refazer, digamos assim, o caminho
das manifestações à dimensão patrimonial e de se ir além da mera performance musical,
por exemplo. Retornarei a esses dois desafios mais adiante.
verbalização, seja por meio de uma prática. Uma das formas exemplares da manifestação
da memória coletiva é o testemunho, mas também é preciso mencionar todas as formas
de transmissão oral e prática, técnicas e saberes através de situações socialmente
definidas, como um ritual, um relato, um espetáculo, uma intervenção, uma discussão,
um encontro, uma aprendizagem, a realização prática de uma técnica, etc. Circulando,
assim, no grupo, a memória coletiva pode, em razão disso, produzir correntes de
pensamento que atravessam a sociedade. De qualquer forma, entendida em sentido
estrito, a memória coletiva permanece viva enquanto houver membros do grupo para
sustentá-la , mas ela desaparece com eles.
33 Comentando Halbwachs, Gérard Namer (1987, 1997) mostrou que a memória coletiva
poderia momentaneamente se tornar memória social, ou seja, ser conservada sob forma
de traços, lugares, materializações rituais, textos – e, hoje, gravações –, para ser em
seguida reativada. Dois casos se apresentam: ou não houve realmente ruptura, pois esses
a quem a memória escrita se dirige viveram ou conheceram os acontecimentos (a
recepção assume, então, a forma de uma recordação dentro da própria memória coletiva,
a forma de uma evocação da lembrança); ou houve ruptura entre os acontecimentos e
aqueles a quem se dirige a memória social e, nesse caso, o suporte, os traços, a escrita ou
o registro gravado da memória servem para reativar uma memória social no interior de
um grupo social, que, embora não seja o grupo de origem, faz parte do mesmo conjunto
desse grupo ou tem ligação com ele, na medida em que é, por exemplo, constituído por
seus descendentes ou porque pertence à mesma cultura (Rautenberg, 2003, p. 47). Estes
suportes servem, então, para assegurar uma continuidade da memória, para restaurar
esse tempo que, como explica Namer (1987, p. 113), “é o contexto social da memória
coletiva na medida em que é o presente imutável do hábito de pensamento de si feito
pelo grupo”.17 É a continuidade de um hábito de pensamento que é mantido ou
restabelecido.
https://books.openedition.org/oep/866 21/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
A memoração social
34 Se admitimos a distinção proposta por Halbwachs entre memória e história, a memória
social – chamada também de memória cultural – pertence, evidentemente, ao registro
da memória, no sentido em que ela tem a capacidade de dar continuidade à transmissão
no seio de um grupo. Em oposição, sabemos que a reconstrução histórica ou patrimonial
é feita a partir do tempo presente e pressupõe a mediação dos documentos (o arquivo), e
não a dos testemunhos ou documentos produzidos para fins de transmissão. A diferença
fica evidente com a história, que, segundo afirma Halbwachs, “é necessariamente um
atalho e é por isso que comprime e concentra, em alguns momentos, evoluções que se
estendem ao longo de períodos inteiros: é nesse sentido que ela extrai as mudanças da
duração”18 (Halbwachs, [1950] 1997, p. 165). Autores como Raphael Samuel (1994, p. ix-
x) contestaram essa oposição entre história e memória, que é, talvez, segundo ele, um
legado do romantismo. Ampliando a noção de história a uma forma social de
conhecimento, ele considera a memória segundo o modo da etnografia contemporânea:
não como um banco de imagens do passado, mas como uma força ativa, construtiva,
dinâmica, que contribui para fazer esquecer tanto como para fazer lembrar. Mas o que
resta é precisamente o caráter de fluxo da memória, a dimensão humana da palavra (a
encarnação do enunciador); em suma, a importância dos aspectos sociais, afetivos,
sensíveis, e não apenas cognitivos.
35 Se a passagem da memória coletiva à memória social preserva a origem do saber
transmitido, ou seja, a posição do destinatário, ela interrompe, contudo, o fluxo, fixa os
saberes, corre o risco de fazer desaparecer a dimensão incarnada da fala, de apagar o
contexto social de enunciação na medida em que esses saberes e essa palavra serão daí
por diante fixados, porque inscritos num suporte. Trata-se, portanto, de um estado da
memória que é estabelecido, transcrito, porém, a recriação contínua fica interrompida.
https://books.openedition.org/oep/866 22/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
36 Na qualidade de memória, ela deve ser executada, manifestada para existir. Mas,
enquanto memória social, devem ficar, forçosamente, traços dessa execução, dessa
performance. A forma mais simples e mais antiga apela para a transcrição, a descrição, o
relato, etc.; em outras palavras, apela para a escrita. Além da dificuldade de sua
realização quando se trata de performances um tanto quanto complexas, o
inconveniente dessa forma é a importante redução que ela opera. Ora, sabe-se que há a
possibilidade de registro do som, da imagem fixa e animada, o que permite conservar
traços não apenas daquilo que se diz, mas também da situação de enunciação, das
práticas, expressões, das relações e dos corpos. Fica evidente, porém, que o mesmo
registro, por mais completo que seja, opera sempre uma redução. De onde a necessidade
de uma verdadeira escrita, na forma da escolha do que é gravado, do ponto de vista e da
montagem, criando, assim, um contexto destinado a dar conta do contexto de origem do
elemento gravado, como nos ensinou a antropologia visual. Teremos, desse modo, a
criação de um olhar sobre a memória gravada, que a formata, editora de um certo modo,
lançando mão, para isso, do conhecimento científico, geralmente, do saber da etnologia.
A criação desse olhar introduz um compartilhamento entre, de um lado, a memória e o
mundo de onde ela vem e de outro o mundo que operou o registro; seja entre um mundo
de origem que enuncia a memória e um mundo da recepção que a põe em forma e a
conserva. O tratamento da memória social se aproxima, então, da história e, em todo
caso, engaja, de facto, um processo de patrimonialização.
37 O registro, e a fortiori a escrita, das manifestações da memória acarreta uma profunda
modificação no modo de existência social da memória. A mudança mais importante é
certamente a possibilidade de não apenas voltar sobre manifestações anteriores da
memória dentro do grupo (Goody, 1977), mas ainda de torná-la pública, ou seja, de ser,
de dá-las a conhecer e fazê-las circular fora do grupo, num outro espaço social. Mede-se
a extensão dessa mudança pelo fato de que o objeto suporte desse registro pode se tornar
https://books.openedition.org/oep/866 23/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 25/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
Em uma dada cultura, a posição das pessoas que possuem ao menos em parte uma
memória lateral sobre o objeto imaterial e o patrimônio ao qual pertence, ao lado
dos saberes constituídos sob forma documental e que podem, por essa razão, e pelo
menos parcialmente, apreciar a dimensão patrimonial da manifestação;
A posição das pessoas externas àquela, que não possuem essa memória lateral e
acedem ao objeto imaterial pela manifestação e/ou pelos saberes constituídos. Para
essas, o risco (de um ponto de vista patrimonial) é de que a manifestação funcione
como uma performance cultural, como uma obra autônoma, desconectada da
idealidade, ou seja, daquilo que faz patrimônio.21
43 Essa clivagem das posições comunicacionais de emissor e destinatário tem por efeito
produzir uma cultura comum entre os membros do grupo e as pessoas externas a ele.
https://books.openedition.org/oep/866 26/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
Notes
1. Por exemplo, um retrato pintado representa o modelo segundo um modo icônico (o laço entre o
significante e o referente será baseado na semelhança), um retrato fotográfico será baseado numa relação
indicial devido à reprodução do modelo permitida pela máquina fotográfica, enquanto um diagrama será
de natureza simbólica, uma vez que traduz o fenômeno representado por um cálculo.
2. “L’archive et l’objet de musée, comme la relique sacrée, sont des pièces à conviction.” (Dulong, 1998, p.
181) [“O arquivo e objeto de museu, como a relíquia sagrada, são provas documentais.”] [Nossa tradução]
3. Retomo o termo de Krzysztof Pomian (1978, 1987, 1996), determinando sua natureza semiótica.
4. Para considerar aqui apenas a dimensão patrimonial desses objetos e não sua dimensão artística.
5. Por exemplo, Lowenthal (1998).
6. “vœu de se transplanter dans le passé” [Nossa tradução]
7. “Le désir d’histoire a le pouvoir de remonter le fil du temps en utilisant tout ce qui fait lien.” (Dulong,
1998, p. 194) [O desejo de história tem o poder de refazer a linha do tempo utilizando o que favorece a
https://books.openedition.org/oep/866 27/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
https://books.openedition.org/oep/866 28/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
Linguistichi Culturali è Economichi, éd. Créaphis 1996 (coll. Les cahiers du CERIMM).
17. “est le cadre social de la mémoire collective dans la mesure où il est le présent immuable de l’habitude
de pensée de soi du groupe” [Nossa tradução]
18. “est nécessairement un raccourci et c’est pourquoi elle resserre et concentre en quelques moments des
évolutions qui s’étendent sur des périodes entières : c’est en ce sens qu’elle extrait les changements de la
durée” [Nossa tradução]
19. Observa-se o mesmo fenômeno com os objetos contemporâneos oriundos do mesmo regime de
patrimonialização.
20. Refiro-me ao sítio onde consta o relato da patrimonialização. Disponível em: http://www.cantu-in-
paghjella.com/, consultado em 8 de novembro de 2011.
21. Nesse caso, a manifestação funciona como uma obra tendo um modo de existência autográfica. A
criação substitui a dimensão patrimonial por um enfoque maior na parte da criação do que na execução.
No outro caso, eles vão buscar uma autenticidade da experiência patrimonial.
Auteur
Jean Davallon
Professeur émérite en Sciences de l’Information et
de la Communication
Jean.Davallon@univ-avignon.fr
http://www.univ-
https://books.openedition.org/oep/866 29/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
avignon.fr/fr/recherche/annuaire-
chercheurs/membrestruc/personnel/davallon-
jean.html
Du même auteur
https://books.openedition.org/oep/866 30/31
30/10/2022 12:39 Memória e novos patrimônios - Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização - OpenEdition Press
Creative Commons - Attribution - Pas d'Utilisation Commerciale - Pas de Modification 4.0 International -
CC BY-NC-ND 4.0
https://books.openedition.org/oep/866 31/31