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TECIDOS IMUNOLOGICAMENTE 
PRIVILEGIADOS 
 

Os tecidos imunologicamente privilegiados são tecidos que estão protegidos do 


sistema imunológico, pois a resposta imune possui alto potencial de gerar lesão 
ou falha reprodutiva nestes. Esses tecidos consistem no olho, cérebro, testículo, 
placenta e feto. O termo imunoprivilégio surgiu através da identificação da falta 
de respostas imunes a tecidos transplantados no cérebro e na câmera anterior 
do olho. Assim, antígenos estranhos, que poderiam induzir respostas imunes na 
maioria dos tecidos do corpo, são frequentemente tolerados nos tecidos 
imunologicamente privilegiados. Os mecanismos que garantem o 
imunoprivilégio variam e ainda não estão totalmente definidos, porém, alguns 
mecanismos são parecidos com os presentes na regulação imunológica do 
intestino e da pele. Os tecidos imunologicamente privilegiados apresentam uma 
comunicação atípica com o corpo, pois, nesses locais, o líquido extracelular não 
passa através dos vasos linfáticos convencionais. Porém, algumas proteínas 
podem migrar desses tecidos e provocar efeitos imunológicos. Além disso, 
fatores solúveis, como citocinas, que atuam nas respostas imunes, são 
produzidos nos tecidos imunoprivilegiados.  

Na ausência de infecção e sinais próinflamatórios, antígenos reconhecidos, em 


conjunto com o fator de transformação do crescimento β (TGF-β), induzem 
resposta de células Treg, que não danificam os tecidos, ao invés de induzirem 
respostas Th17 pró-inflamatórias, que são induzidas por TGF-β na presença 
de IL-6. Outra característica importante dos tecidos imunologicamente 
privilegiados é a expressão do ligante de Fas (FasL), que pode garantir nível 
adicional de proteção através da indução da apoptose de linfócitos efetores que 
expressam Fas e entrem nesses sítios. Porém, antígenos sequestrados nesses 
tecidos podem ser alvos do ataque autoimune, como, por exemplo, a proteína 
da mielina, na esclerose múltipla. Isso demonstra que alguns antígenos 
expressos em tecidos com imunoprivilégio não induzem ativação em situações 
de normalidade. 

 
Entretanto, se linfócitos autorreativos forem ativados, esses autoantígenos 
podem se tornar alvo para o ataque autoimune. Os tecidos imunologicamente 
privilegiados do olho, cérebro, testículo, feto e placenta serão abordados a 
seguir. 

​• OLHO 

Devido ao olho possuir uma estrutura muito sensível, alguns mecanismos 


diminuem a probabilidade de ocorrência de respostas imunes e inflamação. Na 
câmara anterior do olho, há um espaço preenchido por fluido que se localiza 
entre a córnea transparente, à frente, e a íris e o cristalino, atrás. A inflamação 
da câmara anterior do olho pode causar opacidade da córnea transparente e do 
cristalino, acarretando em perda da visão. Essas propriedades de privilégio 
imunológico também são encontradas em outros locais oculares, como a 
cavidade vítrea e o espaço subretinal. As características anatômicas da câmara 
anterior do olho que contribuem para o privilégio imunológico são as junções de 
oclusão e a resistência ao extravasamento de líquido dos vasos sanguíneos 
para os tecidos ao redor da câmara anterior (barreira hemato-ocular); a 
avascularidade da córnea; e a ausência de vasos linfáticos drenantes da câmara 
anterior, que limita o acesso do sistema imune aos antígenos do olho. Há várias 
substâncias imunes solúveis com propriedades imunossupressoras e 
antiinflamatórias no humor aquoso da câmara anterior, como neuropeptídios 
(hormônio estimulador de α-melanócitos, peptídios vasointestinais e 
somatostatina), TGF-β e indolamina 2,3-dioxigenase. Além disso, as células da 
câmara anterior, como o epitélio da íris e o endotélio, expressam o FasL e 
PD-L1, que podem induzir morte ou inativação das células T. O imunoprivilégio 
do olho pode ser alterado em situações de trauma ocular, que gera a exposição 
dos antígenos oculares ao sistema imune. Um exemplo disso é a oftalmia 
simpática, em que os antígenos liberados devido ao trauma estimulam o 
desenvolvimento de uma doença autoimune tanto no olho lesionado como no 
não lesionado.  

 
• CÉREBRO  

Uma inflamação no cérebro pode acarretar disfunção e morte dos neurônios, o 


que é muito grave. Por isso, aspectos anatômicos do cérebro dificultam o 
contato da imunidade adaptativa aos antígenos, como a falta de drenagem 
linfática de maneira convencional e a baixa quantidade de células dendríticas. 
Além disso, as junções de oclusão entre as células endoteliais microvasculares, 
que formam a barreira hematoencefálica, presentes no cérebro, torna menos 
eficiente a chegada das células e dos mediadores inflamatórios do sistema 
imune.  

A ação dos neuropeptídios, assim como no olho, também estão presentes no 
cérebro. Estão presentes no cérebro macrófagos residentes, chamados de 
micróglia, que se ativam em resposta ao dano tecidual ou à infecções no 
cérebro. O limiar para ativação da micróglia é maior do que de outros 
macrófagos em outros locais do corpo. Acredita-se que isso deriva da 
sinalização inibitória pelo receptor CD200, expresso pela micróglia. Evidências 
indicam que a vigilância imunológica contra microrganismos ocorre no sistema 
nervoso central. Assim, algumas infecções oportunistas no cérebro são mais 
frequentes em pacientes imunossuprimidos. Pacientes tratados com anticorpos 
monoclonais que bloqueiam a adesão de linfócitos e monócitos às células 
endoteliais têm risco significativamente aumentado de ativação do vírus JC 
(John Cunningham) latente, que pode causar leucoencefalopatia multifocal 
progressiva e outras patologias em pacientes imunossuprimidos, indicando que 
o tráfego de células T ou de monócitos para o cérebro é necessário para manter 
o vírus latente sob controle. 

• TESTÍCULO 

O testículo possui privilégio imunológico para limitar uma inflamação, o que 


poderia prejudicar a fertilidade masculina. Muitos antígenos próprios do 
testículo humano são expressos na puberdade, depois do desenvolvimento de 
um sistema imune competente. Assim, o privilégio imunológico no testículo 
também pode atuar na prevenção da autoimunidade.  

 
O testículo, assim como outros tecidos, também possui uma barreira 
hematotecidual que limita a exposição de células e de moléculas para os locais 
de espermatogênese. Esta barreira é constituída por células de Sertoli que 
revestem a camada mais externa dos túbulos seminíferos, onde ocorre a 
espermatogênese. Os hormônios também possuem uma característica 
anti-inflamatória sobre os macrófagos, principalmente a testosterona, que está 
presente em abundância nesse local. Além disso, há também o TGF-β, 
produzido por células de Leydig, de Sertoli e peritubulares, que possivelmente 
contribui para a supressão imune local.  

• FETO E PLACENTA  

O feto dos mamíferos expressa genes herdados do pai, alogênicos aos da mãe, 
os quais são reconhecidos pelos anticorpos e linfócitos T maternos contra as 
moléculas de MHC paternas, porém, os fetos não são normalmente rejeitados 
pela mãe. Esse fato decorre da evolução dos mecanismos que protegem o feto 
do sistema imune materno, que ainda são pouco compreendidos, mas que 
provavelmente estão envolvidos com aspectos moleculares e de barreira 
particulares da placenta e com a imunossupressão local. A falha na rejeição do 
feto é baseada na região de contato físico entre a mãe e o feto. Os tecidos 
fetais da placenta que possuem contato íntimo com a mãe são os trofoblastos 
vasculares, que possuem contato com o sangue materno para realizar a troca 
de nutrientes, e os trofoblastos dos locais de implantação, que se infiltram 
difusamente no revestimento uterino, também chamado de decídua, com o 
objetivo de fixar a placenta à mãe. 

Esses tecidos, os trofoblastos, falham em expressar moléculas de MHC 


paternas, o que explica a sobrevivência do feto. Ainda, mesmo que as células 
trofoblásticas expressem moléculas de MHC, elas podem perder as moléculas 
coestimulatórias e falharem em atuar como células apresentadoras de 
antígenos. Além disso, a decídua uterina pode ser um local na qual as respostas 
imunes são funcionalmente inibidas. Assim, as bases do imunoprivilégio podem 
ser explicadas não somente por uma barreira anatômica, já que as células 
trofoblásticas apresentam contato com o sangue materno, mas também por 
uma inibição funcional gerada por diversos mecanismos. 

 
As células Treg também podem atuar na tolerância materna ao feto através da 
prevenção de reações imunes contra antígenos paternos. Inclusive, alguns 
estudos indicam a possibilidade de associação entre defeitos nas células Treg e 
abortos espontâneos recorrentes.  

As respostas imunes ao feto podem ser reguladas por concentrações locais de 
triptofano e de seus metabólitos na decídua. Isso é explicado pelo fato de as 
respostas de células T ao feto poderem ser bloqueadas por níveis baixos de 
triptofano na decídua devido a atividade da enzima indolamina 2,3-dioxigenase 
(IDO), que cataboliza o triptofano.  

Outros mecanismos também estão envolvidos na ausência de resposta imune 


materna ao feto, como a expressão de FasL por células trofoblásticas fetais que 
induzem a apoptose de linfócitos maternos ativados que expressam Fas; a 
geração de células dendríticas tolerogênicas devido a expressão de galectina-1 
na decídua; e o prejuízo na migração de células dendríticas do útero para os 
linfonodos.  

Outra condição importante envolvida com a resposta imune da mãe ao feto 


está relacionada aos antígenos Rh e seus anticorpos, os anti-Rh. Os antígenos 
de Rh consistem em proteínas de superfície celular encontradas nas hemácias, 
que são codificadas por dois genes homólogos, mas que apenas um deles, o 
RhD, é utilizado na tipagem sanguínea. Isso ocorre pois até 15% da população 
possui uma deleção ou alteração do alelo RhD, o que o denomina como Rh 
negativo. Essas pessoas não são tolerantes ao antígeno Rh e produzem 
anticorpos para o antígeno se forem expostas a células do sangue Rh positivas. 
A principal implicação clínica dessa não tolerância está relacionada a reações 
hemolíticas na gravidez, semelhantes às reações de transfusão. Mães com Rh 
negativo que possuem um feto Rh positivo podem ser sensibilizadas por 
hemácias fetais que entram na circulação materna, geralmente durante o parto. 
Como o antígeno Rh é uma proteína, os anticorpos IgG são gerados em mães 
Rh negativas. 

 
Assim, uma mulher que está em sua primeira gestação, não irá gerar os 
anticorpos, a não ser que ocorra contato do sangue fetal com a mãe 
previamente ao parto. Porém, as próximas gestações em que o feto é Rh 
positivo estão em risco, pois os anticorpos IgG antiRh presentes na mãe são 
capazes de atravessar a placenta e causar a destruição das hemácias fetais, 
implicando na chamada eritroblastose fetal (doença hemolítica do 
recémnascido), que pode ser letal para o feto.  

A eritroblastose fetal pode ser evitada através da administração de anticorpos 


anti-RhD na mãe dentro de 72 horas após o nascimento do primeiro bebê Rh 
positivo, prevenindo que as hemácias Rh positivas do bebê que entraram na 
circulação da mãe induzam a produção de anticorpos anti-Rh na mãe. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAS, Abul K.; LICHTMAN, Andrew H.; 


PILLAI, Shiv. Imunologia celular e molecular. 8ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015. 
MURPHY, Kenneth. Imunobiologia de Janeway. 8ed. Porto Alegre: Artmed, 
2014. 

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