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CAPÍTULO 1 I

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Estratégias ou Velhós Impasses do Paradigma da
Complexidade?
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Nao mar de Almeida Filho
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~ .•. f~ '7~·~] INTRODUÇÃO
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"" ~ Desde 1990, venho trabalhando em urna revisão sistemática

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de propostas de formas de produção 'de conhecimento alternativas ao
paradigma dominante no campo da Satlde Coletiva. Em conexão com·
''

essa exploração conceitual, tenho buscado avaliar criticamente as


definições de complexidade, disciplinaridade e correlatos, explorando
i suas possibilidades de aplicação nos campos cientfficos da saúde,
focalizando particularmente a Epidemiologia, minha área de formação
e pesquisa (Almeida Filho 1997, 1997a, 1998; 2000). Nessa busca, I
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encontrei uma detalhada classificação evol~tiva das alternativas de 1·:·'
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interação ou integração de distintos campos 'disciplinares proposta ,.1 .'. '

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por Jantsch (1972), atualizada por Vasconcelos (1996, 2002) e adaptada ;:·
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por Bibeau (1996), que funcionou como ponto de partida para uma
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série de textos sobre temas epistemológicos da Saúde Coletiva e dos ··'
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corpos de discursos que a estrnturam (Almeida Filho 1990, 1994, 1997, ··:'
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2000, 2000a). ,.'·' 1,',

No presente ensaio, dando seguimento a esse programa de i;


estudo, recupero argumentos e atualizo uma reflexão em curso sobre
os conceitos de transdisciplinaridade e complexidade. Com este 1
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· ..., " Antonio VIrgílio Slttencourt Bastos e t'Jádla Maria Dourado Rocha (Orgs.)
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Psicologia: Nova$ Direções no Diálogo com Outros Cempos de Seber

objetivo, primeiro discutirei algumas arriculações da noção de O ressentimento democrático nega q~talquer coisa q~te não
'disciplina' (e seu correlato 'espepialidade') no referencial possa ser visto por todos,· na academia democrática a verdade
epistemológico do cartesianismo que aparece como fundamento dos submete-se à verificação pública,· a verdade é o que qualquer
paradigmas dominantes na ciência da modernidade. Em segundo lugar, imbecil pode ve1: Isto é o que se entende quando se fala de método
introduzo brevemente princípios e ell;mentos constitutivos do que tem cientifico: o que recebe o nome de ciência é a tentativa de
sido denominado de "paradigma da· complexidade", proposto como democratizar o con'hecimento,· o esforço de substiwir a
marco transformador da ciência. contemporânea. Terceiro, perspicácia pelo método, o gênio pela mediocridade, mediante
apresentarei uma síntese evolutiva dos projetos metodológicos de um procedimento uniforme de operação. Os grandes
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organização da prática científica e tecnológica que-têm sido 'equalizadores p~oduzidos pelo método cientifico são as
denominados de interdisciplinaridade (incluindo âsérie semântica que ferramentas analíticas.
a precede: pluri-multiftmeta) e transdisciplinaridade. Em paralelo, Com o sentido primitivo de "demonstração", o termo 'análise'
buscarei discutir de modo um pouco mais sistemático as condições compôs o título atribuído a uma das obras de Aristóteles (As
de desenvolvimento e uso de tais conceitos, a fim de avalia~ o que 'Analtticas). Entretanto, o uso moderno como uma fonna especial de
tenho proposto como perspectiva de integraç~o conceitual desses raciocfnio em Lógica e em Filosofia foi primeiro estabelecido por
conceitos no âmbito da prática cientffica. Pretendo completar o texto Descartes, em i 635, já como postulado de oposição à noção de
aprofundando algumas das questões epistemológicas e teóricas sfntese. 1 Nesse sentido, conhecer implicava necessariamente uma
esboçadas, atualizando um debate em aberto com interlocutores e etapa inicial de .fragmentação (para ser mais claro, de destruição) da
críticos, com a íntenção de contribuir para o avanço do debate coisa a ser transformada em objeto de conhecimento. Este seria o
epistemológico em Saúde e campos científicos correlatos. preço mínimo que se deveria pagar para ascender ao conhecimento
racional. Então o princípio da parcimônia, no sentido da simplificação
RAÍZES DA DISCIPLINARIDADE NO PARADIGMA reducionista, validaria os modelos explicativos do novo modo de
CARTESIANO produção de conhecimento- pois o conhecer reduzia o agora objeto
,a seus componentes elementares. Apesar da declarada
Descartes ( 1970 [ 1637]) inaugura a epistemologi'a com sua indissociabilidade entre análise e síntese, estava fora de questão, pelo
obra-mestra, Discurso do Método, enfatizando que a razão ou o reconhecimento do primado da experiência, que o conhecimento
senso comum, orientada pelo método, seria suficiente gara o acesso poderia ser de algum modo totalizante, conforme com clareza, atesta
à verdade, não mais privilégio exclusivo de poucos eleitos, herdeiros Locke (1988[1690]:188):
iniciados ou membros de ordens secretas, mas compartilhada por todos
I 1Etimologicamente, 'análise' provém do Orego ana - prefixo de semântica variável,
os seres humanos, mesmo os "homens comuns". Este momento de "atrás", "invel'$0", "sempre" ou "de novo", e- /u.vis (di~soluyão, decomposição,
ruptura com o saber esotérico das academias mfsticas foi avaliado destruição). O emprego do tenno 'análise' foi sucessivamente estendido para a matemática
(e.g. álgebra e geometria anal!ticas) e para as ciências naturais (e.g. análise qufmica e
por Norman Brown (1972:277), da seguinte maneira: geológica), no fina\ do século XVJl, para a gramática (análise sintática e semântica) e 2 '
para as protopsicologias, já no século XYlll (Rey 1993).
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Antonio Vlr9fllo 61ttencourt 6astos ;: Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs,) Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber
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Não devemos, pois, incorporar sistemas duvidosos histórico-institucional da ciência, baseada na fragmentação do objeto
como ciências caau:zletas. nem 'noções inintelig(veis por e numa crescente especialízação do sujeito científico, como a
demonstrações cientificas. No conh.ecimento dos corpos disciplinaridade.
devemos nos contentar a recolher o que pudermos dos Na Roma Antiga, os seguidores de um magister (mestre) eram
experimentos particulares, desde 9ue não podemos, da chamados disciP,uli; o .termo passou em seguida a designar aqueles
descoberta de suas essênciai reais, apreender ao mesmo que aderiam à filosofia de uma escola ou de um grupo ou que se
t~empo todo o cqtJ.iunto, e às. pressas compreender a ligavam a um mesmo modo de pensar. Nesta família semântica,
rzatureza e propriedades de todas as espécies ~eunidas _,_discipLina inicialmente significava a ação de aprender, de instruir-se;
(grifas nossos). ' em seguida, a palavra foi empregada para referir-se a um tipo particular
Como corolário da analítica cartesiana, .certamente sua mais de iniciação, a uma doutrina, a um método de ensino. Posteriormente,
poderosa estratégia de operação, a ciência ocidental se desenvolveu veio a conotar o ensino-aprendizado em geral, incluindo todas as formas
com base na noção de especialidade (e seus correlatos: especialista de educação e formação. Por metonímia, a partir do século XIV, com
e especialização), O ideal renas<:entista do sábio·artista-cientista, a organização das primeiras universidades ainda no contexto
encarnado na genialidade de da Vinci, e ·o moYimento iluminista do escolástico, disciplina passou a designar uma matéria ensinada, um
1mcic!opedismo exemplificado pelo talento múltiplo dos pioneiros ramo particular do conhecimento, o que depois viria a se chamar de
dentistas, que eram simultaneamente físicos, médicos, filósofos, uma "ciência", Assim, a disciplina tornou-se equivalente a princípios,
matemáticos, astrônomos, naturalistas e alguns até literatos e regras e métodos caracterfsticos de uma ciência particular e, por
políticos), também, em certa medida, marginais em relação à história extensão, de toda a ciência (Rey 1993; Bibeau 1996).
da ciência normal. A ampliação do escopo da nascente prática O marco epistemológic:o do reducionismo cartesiano constrói e
institucional da ciência, com suas sociedades e academias, produzia trata, muito bem, dos objetos simples. Tem sido designado como um
campos disciplinares cada vez mais rigorosamente delimitados, como paradigma da explicação, justamente por buscar uma transparência e
se fossem - e eram - territórios inexplorados, demarcados e uma publicidade (sem ironia), termos aliás contidos no sentido original
apropriados pelos seus desbravadores. de explicar (ex-plicare, des~enrolar, des-envolver, ex-temalizar) (Rey
Por outro lado, na arena científica, mais e mais se valorizava a 1993). O velho e bem-finnado reducionismo cartesiano de fato tem
especialização, tanto no sentido de criação de novas disciplinas subsidiado a maior parte dos avanços científicos e tecnológicqs da
científicas quanto na direção de subdivisões internas .nos próprios moderna sociedade industrial. Sem dúvida, oreducionismo valoriza acima
campos disciplinares; no campo das práticas sociais, novas profissões , de tudo a simplicidade e parcimônia como elementos fundamentais dos
I eram criadaS; 00 âmbitO da reproduÇãO ampliada, UrTI nOVO SÍStema seus objetos e modelos. Apenas por brevidade, chamemo-lo de
de ensino e formação estruturava-se com base nesta estratégia "ParadigmaS" (paradigma da simplicidade, ou da simplificação).
"minimalista" de recomposição histórica da ciência e da técnica. Numa fase posterior de expansão do imperialismo científico, já
Podemos em princípio designar esta estratégia de organização no século XX, a formaç.ão de novos campos disciplinares exigiu que 3
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~ Antonio VIrgílio Blttencourt Bastos e• Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.) Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros C<lmpos de Saber

os fundamentos da abordagem anal ftic~ do problema do conhecimento Paralelamente (e contraditoriamente) à superespecialização


fossem repensados (Maheu 1967). Nessa perspectiva, a produção assistimos a um apagamento de fronteiras (pessoal-político;
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do conhecimento científico visava não mais à fragmentação, mas à privado-público,· local-global,· individual-coletivo,' sagrado·
construção de objetos através de um processo de composição, ou profano," obj~to-sujeito) que jaz com qLte seja cada vez mais difícil
montagem, de elementos constituintes. Não mais uma busca de ao pesquisador· reencontrar-se nas práticas de pesquisa. Não
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desintegração, ou seja, análise, e· si'm uma integração totalizadora, a mais se sabe a que disciplina pertence o· autor de uma dada
síntese. Conforme Morin (1990), estratégias sintéticas de construção pesquisa ou artigo cientifico. Esta situação parece provocar um
de um dado campo científico configuram uma alternativa para abordar ;duplo efeito contrário. De um lado, encontra-se ambigüidade,
as especificidades e os enigmas dos eventos, pr,'ocessos, fenômenos, caos e incoerência seguida de fenômenos de fusão, mistura,
na natureza, na história e na sociedade, enquanto síntese provisória hibridização e mestiçagem entre métodos e teorias,· e de outro
de múltiplas determinações. Dessa· forma, de algum modo se lado, uma abertura de fronteiras, uma consideração dos
c.ontemplava a produção de objetos complexos, aqueles que não se contextos, uma desinsularização das disciplinas.
subordinam a nenhuma aproximação meramente explicativa, e que Desde o nnal do século passado, cresce no campo científico a
nem por isso mereceriam ser ex.clufdos do campo de visão da ciência consciência de que a ciência se configura cada vez mais como uma
justamente por serem ... indisciplinados. Tratava-se então não apenas prática de construção de modelos, de formulação e solução de
de explicar, mas de entender; não somente de produzir a descrição problemas num mundo em constante mutação (Maturana & Varela
rigorosa ou a classificação precisa, mas também a compreensão de 1992; Samaja 1994). De certo modo, o narcisismo antropocêntrico
uma dada questão científica (Minayo 1992). típico do cientista de tradição cartesiana parece não ter lugar em uma
Muitos agora dizem que a ciência contemporânea passa por ciência que mais e mais vàloriza a descentração e a relatividade. Por
uma crise paradigmática (Santos 1989). No seio de uma prática que outro lado, essa crise ocorre porque a prática da ciência continuamente
flagrantemente reafirma a fragmentação, os melhores cientistas, produz objetos novos. ~ão somente novas formas para referenciar
atuando na vanguarda das chamadas 11Ciências duras" (principalmente os mesmos velhos objetos, mas de fato objetos radicalmente novos,
físico-quírrúca, genética, biologia molecular, neurociênclas), se dão realmente emergentes.
conta de que não mais podem deter-se a (ou serem detidos por)
questões científicas localizadas, tornando-se especialistas O PARADIGMA DA COMPLEXIDADE
monotemáticos (Maheu 1967; Prigogine & Stengers 19S6; Maturana
& Varela 1992; Samaja 1994). Em outras palavras, tornam-se Hoje, em ·muitos campos científicos, anuncia~se que o
conscientes de que é necessário abrir a ciência a questionamentos Paradigma S teria exaurido sua capacidade de apreender as
em um plano mais fundamental, sob pena de terem suas disciplinas complexas realidades concretas da natureza, história e cultura humanas
transformadas em mero repertório de técnicas e procedimentos desde e, por conseguinte, teria alcançado os seus limites como um terreno
já superados. Segundo Bibeau (1996), fértil para o avanço da ciência. Desde a inauguração da perspectiva 4
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Antonio Vlrgfllo Blttencourt Bastos 'e Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.) Pslc:olog la: Novas Direções no Diálogo com outros Campos de Saber

;sistêmica, ilustres pensadores e cientistas de diversas áreas de pesquisa natureza, da sociedade e da história em busca da sua essencialidade
(uma curta lista: Wiener, von Bertallartfy, Prigogine, Thom, Boulding, (Robson 1996). Em minha opinião, o Paradigma C, produto da cultura
Maturana, Simon, Atlan, Lorenz, Morin, entre outros), vêm propondo e da história humanas como qualquer outra construção social, resulta
formas alternativas de superação das debilidades do reducionismo. A de uma prática social-intelectual·institucional chamada ciência, não
articulação sistemática desse desenvolvimento
.. crftico resultou na sendo definível, em uma perspectiva essencialista, por sua maior ou
composição de novos campos interdisciplinares como a Ciência da menor aproximação a processos factuais de uma realidade absoluta.
Informação e a Cibernética. Mais reéehtemente, essas propostas foram Várias possibilidades se apresentam no sentido de uma definição
finalmente unif1eadas, conformando o que veio a ser designado como .'da complexidade ~partir de uma perspectiva mais rigorosa do ponto
"paradigma da complexidade'' ou, abreviadamJnte, Paradigma C. de vista epistemológico (Samaja 1994). Assim, podemos catalogar
Alguns proponentes desses enfoq.ues (Ruelle 199 J ; Lorenz I993; como "modalidades" teóricas da complexidade as seguintes categorias:
Percival 1994) privilegiam componentes analíticos formais que ' . Sistemas dinâmicos -Definição que compreende estruturas
pretendem justificar a denominação genérica, para estas propostas, de sistêmicas abertas, em constante transfonnação, totalidades formadas
teoria do caos ou da não-linearidade. T~is propostas se apresentam por partes inter-relacionadas, elementos, conexões e parâmetros
q,uase como um "neo-sistemismo", atualizando ·e expandindo algumas mutantes. Estou convencido que, de fato, complexidade implica a noção
posições da teoria dos sistemas gerais que havia alcançado certa de transformação.· Nenhum dos modelos baseados na complicação,
influência no panorama científico dos anos 50 e 60. Por esse motivo, a por mais sofisticados e articulados que sejam, considera a ''flecha-
t1~rminologia "teoria dos sistemas dinâmicos" tem sido empregada com do-tempo" no sentido pdgoginiano. Mesmo nas suas versões mais
certa freqUência para designar os modelos complexos gerados no desenvolvidas, tais modelos têm se mostrado reducionistas, monótonos
contexto de propostas de um paradigma científico alternativo (Prigogine ou finalísticos e, acima de tudo, abordam a realidade complexa através
& Stengers 1986; Lewin 1992). Portanto, a abordagem da complexidade de "cortes de congelamento", ou seja, através da paralisia do seu
não constitui rigorosamente uma nova concepção. Apesar disso, elemento mais fundamental, a natureza dinâmica do ser. Um sistema,
concordo que a categoria 'complexidade' designa um paradigma que, seja o mais intricado, que sempre converge para o mesmo output
apesar de não tra2:er novidades, tem uma chance de se tornar dominante fixo, nunca será um sistema dinâmico. É por isso que a noção de
em diversos campos de conhecimento neste fim de milênio. retroalímentação revelou-se tão crucial para a teoria dos sistemas.
A idéia de complexidade seria dessa forma tomada como eixo Na mesma medida, isso explica por que a idéia de 'iteração' torna-se

principal que unificaria parcialmente, as diversas contribuições em chave para définir não-linearidade nos sistemas dinâmicos.
direção a um paradigma cientffico alternativo. Trata-se de uma Não.Unearidade - Trata-se da propriedade de interconexões
aplicação generalizada da premissa de que, ao contrário da abordagem slstêmicas que vão além das relações dose-resposta, produzindo efeitos
reducionista do positivismo, que tem como objetivo uma simplificação que tendem a exceder a previsão dado um conjunto de determinant~s.
da realidade, a pesquisa cientffica dentro de um novo paradigma deve A complexidade de um modelo pode ser entendida como a sua 5
respeitar a complexidade inerente aos processos concretos da natureza não-finalista, correspondendo na linguagem da teoria dos
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Antonio Vlrgfllo Blttencourt Bastos e •Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.)
Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber

sistemas à propriedade de retroalimentação de um modelo explicativo lineares no chamado "espaço-fase", Segundo, a noção de "sensibilidade
sistêmico. Os modelos de predição que. se fundamentam em modelos , às condições iniciais" enquanto uma propriedade essencial dos
teóricos de distribuição de eventos baseados em funções não-lineares, sistemas dinâmicos abre caminho para os modelos explicativos
descontínuas ou críticas têm sido preconizados como títeis para a baseados em efeitos "fracos" ou efeitos sensíveis (interações), ou
descrição das relações determinantes complexas. Dois sentidos têm seja, modelos com menQr grau de precisão ou de estabilidade predltiva
Sldo em geral agregados à noção de não·linearidade: Por um lado, com base em configurações conhecidas de fatores ou determinantes.
não-linear pode significar não finalístico, recursivo ou iterativo, no Aconsideração dos efeitos "fracos'' ou fatores de interação possibilita
s•:~ntido de efeitode g!ste(ll~s_dinâmicos não con_vergentes, Por outro _a operacionalização de modelos de sistemas dinâmicos sob a forma
lado, a não-linearidade pode estar associada à prq'priedade de relações de redes de pontos· sensíveis, a nosso ver com alto potencial para
entre séries de eventos que não seguem a lógica do efeito dose- tratar a questão do objeto saúde.
resposta específico. Emergência - Definida como a ocorrência do imprevisto,
Caos - O emprego do termo grego 'Kaos', equivalente a remete à transgressão das leis conhecidas da determinação,
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"desordem", antônimo de 'cosmos' (ta~bém originário do grego, engendrando o "nidica!mente novo". Em outras palavras, trata-se de
designando "ordem"), no sentido da descrição de sistemas de relações um processo de determinação desconhecida, concernente à ocorrência
não-lineares, indica que esta perspectiva abre-se à consideração de de algo que previamente não existia nq sistema. Este é um problema
paradoxos, ~ntoleráveis na epistemologia convencional, como por teórico fundamen.tal das diversas perspectivas paradigmáticas
exemplo, a concepção de "ordem a partir do caos'', De'todo modo, o alternativas, abrindo-se a ciência à possibilidade da 14 emergência", no
uso consagrado em um jargão instituído pela prática incorpora formas sentido de algo que não estaria contido na síntese dos determinantes
alternativas de determinação que emanariam de transições de fase em potencial. Novamente tolera-se um paradoxo como parte integrante
aparentemente desordenadas, ou seja, "caóticas". Esta referência da lógica científi9a do novo paradigma: "o novo a partir do existente".
particular, portanto incorpora um determinismo especial, distinguindo A propósito, a questão da d~scontinuidade tem recebido um tratamento
com clareza caos' de indeterminação ou de aleatoriedade, ambos matemático bastante sofisticado através da chamada teoria das
corolários do famoso princípio da incerteza que inaugurfi. a crítica à catástrofes, elaborada e difundida, principalmente por René Thom na
ffsica relativista contemporânea, década de 80. Esta questão vincula-se estreitamente, ao chamado
Na prática, caos tem sido definido como sensitividade às "problema da irreversibilidade", em que a concretude dimensional do
condições iniciais mais a imprevisibilidade do sistema como um todo. tempo é post~ em causa.
Em termos analíticos, algumas noções de base aparecem com Borrosidade (juzztness) - Refere-se à propriedade da
freqüência referidas à teoria do caos: ''atratores estranhos" e efeitos impre~isão de limhes entre elementos dos sistemas, qualidade de uma
~'fracos". Primeiro, os "atratores estranhos" constituem uma forma
realidade a·limitada, resultante da transgressão da lógica formal de
de expressão gráfica de associações de elementos dos sistemas conjuntos ou o efeitó do "borramento" dos limites intra ·e
iterativos, portanto apropriadas para a representação de relações não- intersistêmícos. Curiosamente, a "teoria dos conjuntos barrosos" (em 6
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Antonio Vlrgfllo Blttencourt Bastos oe Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.) Psicologia: Novas Direções no Diálogo corn Outros campos de Saber

inglês: c'fuzzy set theory"), proposta por Zadeh no início da década graficamente os padrões repetidos das relações não· lineares. A noção
de 1960, situa-se entre as concepções 'menos popularizadas das novas de "fractais" parece a mais fascinante e de maior utilidade para o
abordagens paradigmáÜcas. Trata-se de uma abordagem crítica das desenvolvimento de modos alternativos de produção do conhecimento
noções de limite e de precisão, essenciais à teoria dos conjuntos que científico. Trata-se de uma nova geometria, baseada na redução das
funda a analítica formal da. ciência moderna. O velho formas e propriedade~ dos objetos ao .. infinito interior", como por
convencionalismo aristotélico defirie os fundamentos lógicos da certeza exemplo na possibilidade de dividir uma linhà em duas partes iguais,
com base na identidade e na não~contradição. Como corolário, haveria que poderão por sua vez serem divididas, e assim sucessivamente,
três modalidades de incerteza - a contradição, a confusão e a . mantendo-se sempre a forma original de uma linha dividida pela
ambigüidade- não passíveis de formalização:l6gica e matemática, metade. Desta maneira, pode-se representar de um modo altamente
portanto fora dos limites da racionalidade científica, A essas· sintético a constatação da permanência de certas propriedades através
' aqrescente•se 0 Uborramento" propriedade particular dos sistemas
1
dos diferentes níveis do sistema. Uma variante desta noção pode ser
complexos no que se refere à natureza arbitrária dos limites infra- encontrada, com as devidas especificidades, na famosa questão local
sistêmicos impostos aos eventos (unidades do sistema) e ao próprio versus global, que tem alimentado uma discussão de extrema
sistema, em suas relações com os súpersi~temas (contextos) e
.. atualidade nas ciências sociais contemporâneas.
respectivos observadores, Nessa altura; é preciso considerar uma disti.nção fundamental
Inicialmente, a teoria dos conjuntos borrosos implicav!l uma entre simples, complicado e complexo. Nesse conjunto de definições,
crítica radical à noção de evento como uma fragmentação arbitrária 'simplicidade' resulta de ana-lysis, isto é, da operação que fragmenta
dos processos e da transformação dos elementos dos sistemas o sistema nas unidades mais simples possíveis. Isto equivale à redução
dinâmicos, impondo uma delimitação precisa onde ocorre uma fluidez das relações e processos sistêmicos às formas .elementares de
de limites, o que denominei de Borramento 1. Porém a consideração determinação, que constituem umo~elos simples". A transição da
da lógica barrosa poderá também implicar uma recuperação da simplicidade à complex~dade não é linear e direta, tendo a noção de
contextualização como etapa do processo de produção de complicação, como nível intermediário, imediatamente superior.
conhecimento. Neste caso, borram-se os·limites externQ~ do sistema, Complicado é um sistema que apenas multiplica nexos da mesma
ou seja, a interface entre o sistema e o contexto, confonnando o que natureza (por exemplo, nexos causais) entre elementos do sistema de
chamei de Barramento 2. Por último, da crítica à noção de limite um mesmo nível hierárquico. Multiplicar os elementos de um dado
resulta também um questionamento da categoria epis&emológica da sistema não é suficiente para nele "introduzir" complexidade.
objetividade, retomando o clássico problema do observador como efeito Consideremos como Hustração desse aspecto a definição
de um Barramento 3, neste caso referido à delimitação fluida, ambígua, epidemiológica de multicausalidade. Esta implica uma modelagem da
contraditória e confusa entre sujeito e objeto. complicação, mas não da complexidade, na medida em que não indica
Fractalidade - Indica uma geometria do microinfinito, hierarquia nem incorpora a diversidade complexa dos nexos presentes
desenvolvida por Mandelbrot (1994) como solução para analisar na realidade. Todas as interconexões entre os componentes são do 7
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" . Antonio Vlrgfllo Blttenc:ourt Bastos' e Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs,) Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber

mesmo tipo, tomando-o um sistema monótono. Trata-se de outra faceta Chamemos complexidade de Grau I à propriedade resultante
do reducionismo cartesiano, no sentiéio de que esta forma de modelar da introdução de não" linearidade no modelo, Na teoria clássica dos
a realidade reduz a diversidade dos nexos existentes em qualquer modelos sistêmicos, essa propriedade foi certa vez descrita como
fenômeno ou processo a relações estandardizadas. retroalimentação, ou feÇ!d-back. Os matemáticos atualm~nte
A incorporação de diferentes formas elementares de preferem chamá-la de "iteração", Creio qu~. podemos denominá-la
detenninação em um mesmo modelo pennite defini-lo como "modelo de 'retroação'. O que é interessante frisar nesse processo é que tais
complicado de segunda ordem". Abordagens transdisciplinares são formas de representação da realidade têm a intenção de superar a
especialmente indicadas para coilstruir e operar modelos desse tipo, /paralisação da realidade dos modelos pré~complexos. Modelos dessa
dispositivos intuitivos para a articulação de-' diferentes formas de natureza preenchem uma propriedade fundamental da complexidade
determinação, incluindo a transfonnação de componentes em fatores· - não-linearidade (retroação) -, mas ainda não a emergência. Isso
através de definições de variáveis tipó "proxy". Estes podem assumir quer dizer que, quando tomamos as variáveis no seu conjunto, o efeito
a fonna de modelos prototfpicos para a desejada integração entre as combinado resultante é equivalente à soma dos efeitos individuais.
ci,ências sociais (para processos macrosociais representados como Porém não é isso o que ocorre em modelos de situações reais, pois
relações de composição na base do modelo), lógica e semântica frequentemente o efeito resultante é maior que a soma dos efeitos
(justificando anamorfoses que produzem o link entre a base do modelo das variáveis individuais, Proponho que o excedente dos efeitos em
e os fatores modelados) e as ciências clínicas e da saúde pública geral, que constituem processos sinérgicos de interação, constituam
(responsáveis pela modelagem dos riscos, doenças ou outros efeitos exemplos de emergência em sistemas complexos. Nessa interpretação,
sobre a saúde). De fato, todas as relações internas do modelo convergem ao serem introduzidos no modelo, tais interações têm impacto sobre a
para um desenlace, assim visto como a finalização do processo. A variação que está sendo avaliada como resultante de um efeito
despeito do poder heurístico superior desse modelo em relação ao modelo convencionalmente predito. Temos aqui, portanto a formulação de
precedente, ele ainda opera no donúnio da complicação (mas não da uma modelagem de Co!l}plexidade Grau li.
complexidade) posto que nele não há qualquer tratamento da Nos modelos anteriores, cada um dos elementos se apresenta
transformação dos fenômenos na dimensão temporal. ... como isolado do conjunto das coisas, fenômenos, objetos e processos
Em uma perspectiva pragmática, buscando acercar a questão nos quais necessariamente se situa. Claro que não é assim, há transições
da complexidade a partir de uma abordagem descritiva, podemos de fase na variação modelizada que ~parentemente impedem que se
desenvolver um roteiro para o reconhecimento da complexidade onde .;·
, rr especifique, com precisão rigorosa e 'corte discreto, os limites exatos
ela se manifesta, ou seja, nos objetos·modelos ou nos quadros teóricos '~i
entre a situação anterior e a nova situação, Da mesma maneira, não é
do Paradigma C. Este roteiro leva ao reconhecimento de graus de possfvel definir os limites entre os efeitos de todos os fatores ativos no
complexidade: Grau I: não~linearidade; Grau li: não-linearidade + modelo. As fronteiras entre ser e não ser nem sempre podem ser
emergência; Grau III: não-linearidade+ emergência+ borrosidade; claramente demarcadas. Um dado modelo, que impõe limites entre 'os
Grau IV: não· linearidade+ emergência+ borrosidade + fractalidade, 8
elementos que o compõém, será necessariamente mais fiel ao conjunto
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acima de tudo, têm abordado a reaUdaàe complexa põr "cortes de
saber quando começa a situação alte'rada nem onde estão os limites
dos elementos entre si e deles com o seu contexto. No contexto do
paradigma da complexidade, tem.. se usado o tenno 'borrosidade' para
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congelamento", ou seja, através da paralisia do seu elemento mais
fundamental. a n·atureza dinâmica do ser. Um sistema, mesmo o mais
intricado, que s~mpre converge para o mesmo output fixo, nunca
designar esta propriedade dos sistlilmas reais, o que justificaria com será um sistema dinâmico. É por isso que a nOQãO de retroalimentação
t
isso definir modelos de Complexidade Grau III. r revelou-se tão crucial para a teoria dos sistemas. Na mesma medida,
A aplicação desses princípios,· métodos e lógicas, que às vezes isso explica por que a idéia de 'iteração' toma-se chave para definir
não parecem congruentes entre si, sugere que um novo paradigma
científico encontra·se em pleno desenvolvtmento, demandando
I /não-linearidade nos sistemas dinâmicos ..
O que é uni objeto complexo? Para responder a esta questão
I
categorias epistemológicas próprias (como parece ser a categoria da· devemos considerar que a atribuição de complexidade pode assumir
complexidade), novos modelos teóric'os (como a 14 teoria do caos") e distintas manifestações. Em primeiro lugar, o objeto complexo é
novas formas lógicas de análise (como por exemplo, a geometria minimamente. um objeto-modelo sistêmico, ou seja, faz parte de um
fractal e os modelos matemáticos não-lineares. O pressuposto de sistema de totalidades parciais e pode ser compreendido ele mesmo
base desta perspectiva é que as teorias dos processos irreversíveis e como um sistema, também incorporando totalidades parciais de nível
da entropia da Termodinâmica, da indeterminação e da causalidade hierárquico inferior. Em segundo lugar, podemos chamar de objeto
probabilística da Física quântica, dos sistemas dinâmicos da Biologia, , complexo aquele que, em sua fonna de objeto heurístico (cf. Bunge
enfim as abordagens da complexidade em geral, seriam capazes de 1972), não pode ser explicado por modelos lineares de determinação.
produzir as novas metáforas necessárias para compreender e superar Em outras palavras, trata-se de um objeto-modelo submetido a funções
o distanciamento entre o mundo natural e o mundo histórico. Estas não-lineares de determinação. Por isso o objeto complexo não possibilita
metáforas descrevem sistemas dinâmicos complexos, auto-regulados, a predição, nem a partir dele se pode diretamente gerar tecnologia.
mutantes, imprevisfveis, produtores de níveis emergentes de Conceitualmente o objeto complexo é sintético, não-linear,
,organização. Mesmo que ainda não se observe um padrão de múltiplo, plural e emergente. Para uma abordagem respeitosa destes
modelagem teórica com uma aceitação geral, as. propostas intrigantes atributos, a organização convencional da ciência, em
encaminhadas valorizam a fragmentação fractal, a parcialidade ou disciplinas autônomas e até estanques, precisa ser superada por novas
relatividade, o dinamismo, a indeterminação e a contingência como modalidades da praxis científica, instaurando fonnas alternativas de
características da formulação alternativa perseguida. , disciplinaridade. Sabemos também que metodologicamente o objeto
De fato, complexidade implica a noção de transformação. complexo é aqudle que pode ser apreendido em múltiplos estados de
Nenhum dos modelos baseados na complicação, por mais sofisticados existência, dado que opera em distintos níveis da realidade. O objeto
~articulados que sejam, considera a "flecha-do-tempo" (Prigogine &
complexo é multi facetado, alvo de diversas miradas, fonte de múltiplos
I •
Stengers 1986). Mesmo nas suas versões mais desenvolvidas, tais discursos, extravasando os recortes disciplinares da ciência. Daí que
modelos têm se mostrado reducionistas, monótonos ou finalísticos e, 9
para construí-lo como referente é preciso operações de síntese,
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Antonio Vlrgfllo Blttencourt Bastos e Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.) l. Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber ,,
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produzindo modelos holísticos de· determinação complexa, e para
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FIGURA I- MULTIDISCIPLINARIDADE 1

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designá-lo apropriadamente, é necessário o recurso à polissemia .•.
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resultante do cruzamento de distintos discursos disciplinares. Dessas '
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operações resultam projetos metodológicos de organização da prática [t] i:


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científica e tecnológica que· têm sido denominados de

multi-meta) e transdisciplinaridade.' ·
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interdisciplinaridade (incluindo série semântica que a precede: pluri~
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PLURI·MULTI-META·INTER/ Pluridisciplinaridade: implica a justaposição de diferentes disciplinas
TRANSDISCIPLINARIDADE científicas que, em um processo de tratamento de uma temática
unificada t, efetivamente desenvolveriam relações entre si. Seria,
Coerentemente preocupado com a incidência desta questão no âmbito
portanto, ainda um sistema de um só nível (como na
educacional, Jantsch ( 1972) propôs u~a detalhada classificação
multidisciplinaridade), porém os objetivos aqui são comuns, podendo
evolutiva das alternativas de interação ou integração de distintos
existir algum grau ·de cooperação mútua entr~ as disciplinas. De todo
campos disciplinares. A base desta tipologia, retomada e adaptada
modo, envolvendo campos disciplinares situados num mesmo nível
por Vasconcelos (1996) e Bibeau (1996), seria a observação da própria
hierárquico, há uma clara perspectiva de complementaridade sem, no
prática cientffica e dos corpos de discursos por ela alimentados. Estes
entanto, ocorrer coordenação de ações nem qualquer pretensão çie
autores definem as seguintes etapas sucessivas:
criar uma axiomática comum (Vasconcelos 1996), Uma representação
Multidisciplinaridade: conjunto de disciplinas que simultaneamente gráfica esquemática desta modalidade, em que setas simbolizam a
tratam de uma dada questão, problema ou assunto (digamos, uma comunicação cooperativa, encontra~se na Figura 2,
temática t), sem q\le os profissionais implicados estabeleçam entre sí FIGURA 2 - PLURIDISCIPLINARIDADE
efetivas relações no campo técnico ou científico. É um sistema que
funciona através da justaposição de disciplinas em um único nível,
ausente uma cooperação sistemática entre os diversos campos [t]
disciplinares. Uma representação esquemática desta situação
encontra-se na Figura 1, onde os pequenos círculos indicam os
diferentes campos disciplinares A, B e C, dispostos isoladamente,
porém incorporados por um campo temático t.
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Antonio Vlrglllo Blttencourt Bastos e Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.) Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber

ínterdisciplinaridade auxiliar: interação de diferentes disciplinas sim como integradora do campo metadiscipli,nar, atuando como
científicas (A, B, C e D), sob a dominação de uma delas (no caso D), mediadora da comunicação entre as disciplinas do campo. Um exemplo
que se impõe às outras na condição de camp.o integrador e geral: desde a emergência da ciência moderna, as matemáticas têm
coordenador. O sistema apresenta dois níveis e aqui se pode atuado como linguagem formalizada de comunicação científica
reconhecer a posição superior de uma disciplina em relação às outras. , empregada por divers~s disciplinas (Granger 1980; Castoriadis 1988).
Por exemplo, os manuais de espeCialidades médicas em geral integram No campo da saúde coletiva, a cHnica bem que poderia ocupar esta
distintas disciplinas (como a patologia, a epidemiologia, a nutrição, a posição metadisciplinar. O esquema gráfico proposto por Bibeau
propedêutica, etc.) subordinando-as, posto que as informações tomadas (1996) acentua a dupla via de relação entre as disciplinas e a '
de empréstimo dessas disciplinas são cQlocadas a serviço da metadisciplina, conforme a Figura 4.
especialídade, considerando-a discipÜna-mestra (Vasconcelos 1996:7).
A Figura 3 traz uma representação 'gráftca desta modalidade. FIGURA 4 - METADISCIPLINARIDADE

FIGURA 3 ~ INTERDISCIPLINARIDADE AUXILIAR [t]

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lnterdisciplinaridade: implica uma axiomática comum a um grupo
de disciplinas conexas A. B, C e D, cujas relações são definidas a
partir de um nível hierárquico superior, ocupado por uma delas (no
Metadísciplinaridade: trata-se de uma contribuição de Bibeau (1996)
caso, D). Esta última, geralmente determinada por referência à
ao esquema original. A interação e as interrelações entre as disciplinas
proximidade da temática comum, atua não só como integradora e
são asseguradas por uma metadisciplina que se situa num nível
lj epistemológico superior. Esta não se impõe como coordenadora, mas
mediadora da. circulação dos discursos disciplinares, mas também
como coordenadora do campo disciplinar. Nas palavras de 11
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Antorilo Vlrgfllo Blttencourt Bastos 'e Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.)
II
~ Psicologia: Novas Direções no Diálogo com outros Campos de Saber

Vasconcelos ( 1996:8), advogando 'est.a ,modalidade como integradora r. • Transdisciplinaridade: De acordo com o esquema Jantsch-
do campo da saúde mental, :

a ínterdisciplinaridade é entendida aqui como estrutural, havendo


reciprocidade, enriquecimento· mútuo, com uma tendência à
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.
Vasconcelos-Bibeau, trata-se do efeito de uma integração das
disciplinas de um campo particular sobre a base de uma axiomática
geral compartilhada. Baseada em um sistema de vários nfveis e com
objetivos diversificados, sua coordenação é as!'!!egurada por referência
horizontalização das relações de poder entre os campos
a uma finalidade comum, com tendência à hoHzontalização das
implicados. Exige a identificação ·de uma problemática comum,
relações de poder. Implica criação de um campo novo que idealmente
com levantamento de uma axiomática teórica e/ou política básica
/desenvolverá uma autonomia teórica e metodológica perante as
e de uma plataforma de trabalho conjunto, coLocando-se em
çiisciplinas que o compõem,. Vasconcelos (1996) assinala que a
comum os prindpios e os conceitos fundamentais, esforçando· ·
transdisciplinaridade significa uma radicalização da
se para uma decodificação destes conceitos, e desta forma
interdisciplinarídac;le "com a criação deu m campo teórico, operacional
gerando uma fecundação e aprendizagem mútua, que não se
ou disciplinar de tipo novo e mais amplo". Aecologia e a "nova saúde
efetua por simples adição ou mistura, mas por uma recombinação
mental", à maneira dos.campos oriundos da "verdadeira" integração
dos elementos internos.
de diferentes disciplinas, seriam exemplos desta proposição. A Figura
A Figura 5 representa esquematicamente esta modalidade, onde se 6 é apresentada por vários autores como ilustração de um campo
destaca o símbolo ó, indicando uma disciplina integradora do campo transdisciplinar.
interdisciplinar: ..
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FIGURA 6 - TRANSDISCIPLINARIDADE
FIGURA 5 - INTERDISCIPLINARIDADE ·~ ..

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Antonio Vlrgfllo 61ttencourt 6asto~ e· Nádla Maria Dourado

claro e preciso, capaz. de dar co1ha de tão relevante problema.


Rocha (Orgs,)

À primeira vista, dispomos de ~m esquema detalhado, adequado,


I Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber

estruturas, com um grau variado de autonomia, e sim que são instituídos


por uma praxis (Samaja 1994). Nesse caso, mais importante que uma
Entretanto, devemos analisá-lo cuidadosamente, visto que todo axiomática e uma disciplina (no senso comum do termo), para a
disposit'ivo conceituá! sustenta.. se em princípios e pressupostos que constituição do campo cientfftco contribuem decisivamente elementos
...r;·
necessitam ser revelados e ex~o~tos ao escrutfnio público, sobre eles intraparadigmáticos ~simbólicos, éticos, político~, pragmáticos, De acordo
aplicando o velho e infalível princípio da dúvida sistemática. Como com Knorr-Cetina (1 .981 ), Latour (1987), entre outros, para além de
vimos acima, este é sem dúvida tini dos mais importantes legados da fundamentos lógicos e questões metodológicas e temá~icas, a produção
filosofia cartesiana, talvez o principal fundamento do modo cientffico organizada do conhecimento científicos~ realizaria em uma complexa
f
de produção de saberes. rede institucional operada por agentes históricos concretos, ligada
Em um texto publicado em 19~7, em Ciência & Saúde Coletivà estreitamente ao contexto sociopolítico mais amplo.
(Almeida Filho, 1997), apresentei o esquema de Jantsch~Vasconcelos· I
Em consonância com este primeiro "contrapostulado" e em
Bibeau e desenvolvi um argumento crítico dos seus fundamentos, oposição ao postulado 2 acima, admitamos que, de fato, não são os campos
Avaliando o conteúdo das fonnulaçõe~ resumidas acima. identifiquei disciplinares que interagem, mas sim os sujeitos que os constróem na
os seguintes postulados subjacentes ao conceito de ciência nele implícito: . prática científica cotidiana, seus agentes institucionais representativos,
1, Campos disciplinares constituem estruturas, compostas por uma portanto. Em outras palavras, não existiriam campos vazios, ou pelo menos
axiomática teórica e certamente compreendendo uma matriz preenchidos por entidades abstratas (conceitos, noções, modelos, etc.).
metodológica cujos princípios e conceitos fundamentais são Os espaços institucionais da ciência seriam pennanentemente ocupados '
passfveis de decodificação. por sujeitos da ciência, agentes históricos, condutores e conduzidos da
2. Quando os campos disciplinares interagem, produzem relações prática científica. Podemos ousar mais ainda e propor que não existem
interdisciplinares que tendem a ser convergentes, com elevado campos disciplinares per se, ou melhor, estes só se realizariam na qualidade
li.
grau de reciprocidade, defmidas pela temática e pela axiomática de instituições de uma dada subcultura científica e como formas mentais
·~··
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do campo. .'
e efeitos práxicos (ou seja, na ação) dos seus agentes.
3. As relações de poder político internas a dado campo disciplinar Os agentes não seriam somente indivíduos ocupando posições
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equivalem (ou correspondem) às rel~ções de poder técnico que '.';
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'DI•'; e atores desempenhando papéis. Mais que isso, os sujeitos da ciência
estruturam as respectivas disciplinas. seriam essencialmente agentes sociais, organizados em grupos sociais
4. A comunicação interdisciplinar é desejável e factível, podendo ser peculiares que têm sido denominados de "comunidades científicas",
realizada pela tradução de princípios e conceitos entre as disciplinas. estruturados nas matrizes de pensamento e conduta que Thomas
Sem a presunção de assumir uma posição privilegiada de maior Kuhn (1970) com muita propriedade conceltuou como 'paradigmas'.
aproximação com a realidade, propus uma série oposta de pressupostos, Daí decorre que as relações interdisciplinares em princ~pio
buscando uma crftica lógica e pragmática da proposta analisada. tenderiam mais ao conflito do que ao diálogo. A convergência, a
Suponhamos que os campos disciplinares não constituem de. fato
13
reciprocidade,· o mdtuo enriquecimento, a fecundação e
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Antonio Vlr911io Blttencourt Bastos' e Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.) Psicologia: .Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber

aprendizagem conjuntas, tudo isso que Rorty (1991) denomina de Em O Nascimento da Clínica (subintitulado ''uma arqueologia
"solidariedade científica", são efeitos desejáveis que fortuitamente do olhar médico"), Foucault (1963) mostra como a protociência do
poderiam ocorrer nas relações entre campos disciplinares distintos, homem construiu uma visão de mundo, um paradigma, por meio da
porém infelizmente só aconteceriam com mais frequência no seio pragmática. Aqueles que foram enculturados no paradigma clínico
das raras "comunidades ideais de diálogo" (Habermas 1978) bem sabem quanto custa "aprender" a ouvir a mítica quarta bulha no
formadas no processo de construção da coesão interna dos meio de chiados e estalidos do estetoscópio, a reconhecer uma
paradigmas.. Como a comunicaç:ão·"franca" interparadigmática não estrutura histológica onde de fato se encontram manchas
se exerce, o paradigma não se torna dominante senão por meio de . mu-lticoloridas no microscópio, a identificar uma lesão patológica entre
uma luta pela hegemonia que se trava tem um dado campo borrões, claros e escuros da chapa radlográfica. O uso do termo
disciplinar. Neste particular, a proposição seguinte sobre a natureza <<enculturado" não é inocente. Ao fazê·lo, pretendi propor que a
especíal das rela9ões de poder deritro dos campos científicos me questão da comunicação interdisciplinar inscreve-se em um registro
parece preliminarmente prejudicada. De fato, apesar das simbioses similar ao da comunicação interétnica. Anos de trabalho de campo
e interaçõe~ possíveis no espaço da comunicação interdisciplinar etnográfico afinal arranharam o etnocentrismo dos antropólogos, que
e interparadigmátíca, Mario Testa· (1989) com facilidad.e nos pelo menos admitem que o seu mandato de intérpretes interculturais
convence de que o poder político tem natureza e determinações é descabido (Geertz 1973; Fabian 1979): ainda timidamente. falam
muito distintas do poder técnico, mesmo em âmbitos de aplica9ão agora em recriação (Asad 1994).
por definição valorizadores do poder técnico, como deve ser o Para que efetiva comunicação interdisciplinar
caso da arena cientffica. (interparadigmática, interétnica etc.) se estabeleça, será imprescindível
Caso concordemos com esta série de contrapostulados, resta-nos o compartilhamento de linguagem e de estruturas lógicas e simbólicas.
concluir que a comunicação interdisciplinar é impossível, rejeitando oquarto Paradoxalmente, caso isso ocorra, será porque as fronteiras já não
postulado do esquema analisado. Enfim, terminei por refutar o essencial fazem sentido. Mas não é esta abertura das fronteiras disciplinares,
do esquema analisado, da seguinte maneira (Almeida Fillio 1997): justamente a demanda que se impõe à ciência contemporânea? Não
Os princípios e conceitos fundamentais que ..compõem uma será exatamente esta a via privilegiada (quiçá a única via) de ac~sso
dada axiomática teórica e uma matriz metodológica qualquer não aos objetos complexos de que falávamos acima? Para alcançar a
podem ser decodificados, traduzidos e recombinados simplesmente desejada "síntese da complexidade", é certo que será necessário
porque axlomáticas e matrz'zes não são somente princfpios e conceitos. produzir um discurso capaz de atravessar as fronteiras disciplinares.
Mais ainda, o que .faz uma disciplina ou um paradigma é muito mais Mas será que os modelos propostos acima poderiam dar conta dessa
do que apenas uma combinação método-lógica. Somente a quem já tarefa, ou seja, operar como estratégias de apreensão-aproximação
se encontra 11 dentro" de um dado paradigma, e que por isso já o produzindo sínteses da complexidade?
incorpora (traz no seu corpo, faz dele seu corpo, é por ele possuído,
etc.), é dado ver o seu objeto privilegiado. 14
0: •
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Antonio Vlrglllo Blttencourt Bastos e oNádla Maria Dourado Rocha (Orgs.) Psicologia: Novas Direções no Diálogo com outros campos de Saber

TRANSDISCIPLINARIDADE. COMO PROJETO fatru1ia dos programas rnicropolíticos. Contudo, a sua contribuição
lCPISTEMOLÓG ICO potencial para a construção de uma ciência da complexidade, no
sentido já apontado, me parece reduzida, posto que buscam compor o
A multidisciplinaridade e a "interdisciplinaridade auxiliar" do objeto complexo através de uma síntese tipo interparadigmátlca. Esta
e:squema Jantsch-Vasconcelos-Bibeau pretendem superar a síntese seria obtida graças à circulação dos discursos produzidos pelos
fragmentação pela somatória, como se a síntese pudesse ser produzida distintos campos disciplinares, tarefa impossível pela vía da
por meio de uma operação de adição. No primeiro caso, esta seria comunicação, conforme argumentei acima. Cabe incorporar nesse
resultante de algum processo espontâneo, de duvidosa possibilidade _ --tl1ª!ffiQ_grupo de. estratégias criticáveis no plano lógico a
de ocorrência, como se a síntese pudesse emergir pelo mero contato •(transdisciplinaridade" tal como definida no esquema analisado, na
entre campos disciplinares disti~tos. No segundo caso, os autores do medida em que este a assume como uma radicalização da
esquema indicam uma possibilidade de síntese pela via digamos interdisciplinaridade.
"totalitária", imposta por um campo disciplinar hierarquicamente Entretanto, a proposta da metadisciplinaridade de Bibeau (1996),
Huperior. Pragmaticamente avaliando a factibilidade desse modelo, a no sentido de uma linguagem axiomática comum a um grupo de
sua eficácia de certo dependerá de qual modalidade de síntese disciplinas conexas,. parece destoar do restante do esquema, por isso
estivermos falando. Se considerarmos aquele tipo de síntese mesmo abrindo uma interessante possibilidade de construção
subordinada ao projeto tecnológico da produção industrial, resultante "metateórica". Trata-se do único modelo que permite um tratamento
da soma dos atributos de objetos simples do reducionismo cartesiano, da questão interdisciplinar na qualidade de problema relacionado às
't:~·..,
então a chamada interdisciplinaridade auxiliar poderá constituir a :· \,
formas de comunicação possíveis entre matrizes disciplinares distintas.
estratégia mais econômica (portanto, mais eficiente) para a produção O seu problema fundamental, considerando a estrutura da crftica aqui
de objetos complicados. Se, por outro lado, estivermos tratando de desenvolvida, é que também não escapa aos argumentos levantados
.-~~
objetos complexos, as limitações dessa estratégia são tão evidentes contra os postulados l, 2 e 3. Tal como os outros modelos acima
que dispensam comentário. De todo modo, trata·se de urna modalidade desconstrufdos, também trata os campos disciplinares como entidades
·11:·
de ação conjunta entre disciplinas científicas que resiste .a..uma crítica míticas abstratas, produtoras de interrelações fetichizadas e
pragmática, mesmo ~evelando a sua incapacidade de dar conta das idealizadas. E como fazer para incorporar tanto a crítica lógica quanto
demandas de atualização da prática científica frente à complexidade. a' perspectiva pragmática? Creio, e penso que nisto se resume a minha
Por outro lado, modelos de pluridisciplinaridade e contribuição p·essoal, que a resposta ·para esta questão passa por
interdisciplinaridade, tais como definidos no esquema analisado, i redefinir o conceito de 'transdisciplinaridade',
parecem revelar mais um caráter ideplógico, prescritivo ou normativo, A proposta esquematizada na Figura 7 baseia" se na possibilidade
do que propriamente uma proposta de prática de apreensão~ de comunicação não entre campos disciplinares, mas entre agentes
,'I{:
aproximação dos objetos complexos. Nesse sentido, a em cada campo, através da circulação não dos discursos (pela via da
pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade plena enquadram-se na •• y'".

tradução), mas pelo trânsito dos sujeitos dos discursos. Tomemos a 15
i.
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55
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Antonio Vlrglllo Slttencourt aastos e Nádia Mõ!rla Dourado Rocha (Orgs,)

série V·Z para representar os campos disciplinares que se relacionam


em tomo do objeto complexo Ob, cada·;um tendo acesso a uma faceta
particular deste objeto. Por seu tu mo, a série a-h refere-se aos agentes
I Psicologia: Npvas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber

Figura 7- Transdisciplinaridade como praxis

da prática científica, sendo que os sujeitos a, b, c, d são capazes de


transitar entre pelo menos dois campos disciplinares (c, no esquema
apresentado, poderá circular por três campos) enquanto os especialistas
eJ f, g, h permanecem restritos aos seus re~pectivos campos.
Com a intenção de melhor clarificar a proposta por meio de um
I
exemplo, mas certamente correndo o risco de nã? conseguir respeitar I

a complexidade do objeto, apliquemos este esquema ao campo da


Sartde Coletiva. Certamente que não haverá campo científico
contemporâneo mais justificadamente transdisciplinar, nem objeto de
conhecimento com mais alto grau de complexidade que os integrais
de sat'íde-doença-cuidado .. , Como propus em ou~ro momento (Almeida
Filho 2000a), o "complexo saúde~doença-cuidado" é um daqueles Cada um desses campos disciplinares dispõe de um ponto de
objetos indisciplinados, não-lineares, múltiplos, plurais, emergentes, observação privilegiado em relação a cada faceta de Ob; nenhum
multi facetados, que exigem dos pesquisadores um tratamento sintético deles, no entanto, é capaz de apreender todos os ângulos do objeto.
.···
e totalizante. Consideremos V como o campo disciplinar da Vejamos agora os nossos agentes: a, especializado em Antropologia
Epidemiologia, ao tempo em que Z representará o campo da Clínica, Médica e em ecologia, transita do campo das Ciências Sociais para o
Y a Biologia e X as Ciências Sociais em Saúde. campo da Biologia: b é portador de uma dupla formação em
Imunobiologia e em Clínica Médica, podendo deslocar-se do campo
biológico para o campo ~Jínico sem dificuldades; c é capaz de
atravessar os campos da Clínica, da Epidemiologia e das Ciências
Sociais em Sartde; finalmente, d possui uma formação na subárea
que tem sido denominada de Epidemiologia social. Os "especialistas:'
/(sociologia da comunicação), g (histopatologia), h (neuropsiquiatria)
e e (epidemiologia de doenças crônicas) são competentes na método·
., lógica, nos conteúdos e na linguagem dos seus respectivos campos
disciplinares, tal como o são os seus colegas "transdisciplinares".
Apenas para concluir este exercício, ímaginemos que o objeto
complexo seja Depressão e que sua abordagem como um importante
~t
problema de saúde coletiva dependerá da produção eficiente de um 16
r~.;
57
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• Antonio VIrgílio Slttencourt Bastos e' Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.)
Psicologia: Novas Dlreçl!\es no Diálogo com Outros Campos de Saber

discurso coordenado, resultante de ·operações cognití vas de diversas biológica" (só para atestar que a era da transdisclplinaridade
naturezas, relativamente válido comQ objeto-modelo sintético destinado já começou) é atraente para ilustrar a questão, pois os anfíbios
a orientar a ação sobre aquele complexo de múltiplas determinações. são animais que passam parte da vida em um meio biológico e
Retornando ao plano geral, dessa maneira, a síntese poderá parte em outro meio ambiente e que, por isso mesmo, possuem
ser construída em dois níveis: (a) uma sfntese paradigmática no âmbito uma enorme capacidade de adaptação. (Alm~ida Filho, 1997: 18)
de cada campo científico e (b) uma ~íntese transdisciplinar construída Assim, para além de uma síntese paradigmática no âmbito de
na prática transitiva dos agentes científicos particulares. A primeira cada campo cientfficó, será necessária uma síntese transdisciplinar
1

dessas sínteses permite uma participação interessada inclusive dos · c;onstTU-fEla-fla-prá~icatraRsitiva dGs agentes ~ientíficos particulares. A
especialistas, que poderão ter o seu viés discipfinar e paradigmático síntese paradigmática permite uma participação interessada inclusive dos
enriquecido com aportes transdisciplinares·. Porém, somente a segunda especialistas, que poderão ter o seu viés disciplinar enriquecido com aportes
síntese seria aquela capaz de dar conta do objeto complexo Ob por transdisciplinares. Porém, somente a segunda síntese será capaz de dar
meio de totalizações provisórias, const~ídas através de uma prática conta do objeto comple}Ço por meio de totalizações provisórias, construídas
cotidiana "transversal,. dos sujeitos do conhecimento e operadas na através de uma prática cotidiana "transversal" dos sujeitos do
concretude dos seus aparelhos cognitivo·s. Em suma, não se trataria conhecimento e operadas
' .. na concretude dos seus aparelhos cognitivos.
de sínteses abs.tratas na esfera retórica, como um efeito comunicativo, Avaliando o potencial de aplicação dessa concepção alternativa de
e sim de um processo práxico exercido pela mentecorpo de transdisciplinaridade ao contexto da saúde pública contemporânea, Paim
pesquisadores em trânsito. & Almeida Filho (1998) adiantam que a fonnação desses agentes seria
Finalizei o texto base deste argumento, comentando sobre o essencialmente "anfíbia", com etapas sucessivas de treinamento-
perfil dos novos mutantes metodológicos prontos para o trânsito socialização-enculturação nos distintos campos científicos que estruturam
interdisciplinar, transversais, "operadores transdisciplinares da ciência", o campo de práticas da Saúde Coletiva.
c:apazes de trans~passar fronteiras, à vontade nos diferentes campos
de trans-formação, agentes tra11sformadores e transformantes. CRÍTICAS E DEBATES
enculturados nos distintos campos científicos que estruturam os campos
de práticas transdisciplinares, Este posicionamento tem sido objeto de intensa crftica, o que
Serão (ou são, porque de fato já estão por aí) mutantes me tem trazido mais oportunidades de avançar e aprofundar alguns
metodológicos, sujeitos prontos para o trânsito in.t?Jrdisciplinar; dos seus pontos principais. Castiel ( 1997) fez uma crítica pertinente
transversais, capazes de trans-passar fronteiras. a vontade n~s ao me atribuir uma expectativa otimista de homogeneidade interna
diferentes campos de trans1ormação, agentes transformadores nos distintos campos disciplinares. Concordo que sfnteses
e transformantes. A formação desses agentes será essefl.cialmente paradigmáticas compartilhadas são condição essencial para qualquer
"anflbia ", com etapas sucessivas de treinamento·socialização- movimento de síntese transdisciplinar. Porém, 9 movimento da
enculturação em distintos campos científicos. Esta "metáfora 17
transdisciplinaridade se deve iniciar com algum grau de concordância
·~

·~
Antonio VIrgílio 61ttencourt Bastos e 'Ná.dla Maria Dourado .Rocha (Orgs.) Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber

dos estatutos de cientificidade dos objetos nos respectivos campos. formalismo nem como mais uma proposta doutrinária, o meu ato
Nesse caso, diferente do que assinala Castiel (1997), os "objetos ilocucionário vagarne~te pretendeu certa "subversão atenuada" de
complexos" não compreendem apenas sistemas adaptativos com graus cunho ostensivamente pragmático,
diferenciados de complexidade, e sim também "produtos culturais" Avaliando essa linha de abordagem da transdisciplinaridade,
resultantes de uma prática social. o~ todo modo, as contribuições de Carvalheiro (1997) leva.nta críticas relevantes que merecem ser
Gil Sevalho (1997) e Vera Portocarrero (1997) trouxeram à baila os incorporadas ao seu desdobramento. Em primeirb lugar, a análise do
objetos fronteiriços, objetos híbridos, quase~objetos, objetos complexos, tema da tradução impossível como um elemento de enfraquecimento
objetos estruturados, semi~estruturados e não-estruturados revelados do1 p_ots:m.QiªLd~ integração interdisciplinar foi claramente equivocada.
pelos estudos sociais das ciências. A partir dess~ plataforma, poder- A' ~'comunicação imperfeita'' será justamen'te a brecha por onde se
se-ia avançar a proposta de uma nova família d~ objetos científicos, podem infiltrar possibilidades de emergência do novo (talvez a
simultaneamente fronteiriços, híbridos, mestiços e complexos, os alteridade castoriadiana). Ainda bem que não se pode traduzir
"trans-objetos". perfeitamente, diriam os artistas, porque af está a liberdade de criação
1

Ayres (1997) também pôs em dúvida meu otimismo prepositivo, e recriação. Em segundo lugar, constatando que a transdisciplinaridade
assinalando que nada garante que do trân'sito dos sujeitos científicos situa-se no registro de uma "dupla ruptura epistemológica", Carvalheiro
resultará alguma transdisciplinaridade e que a natureza de meu ato (1997) faz séria restrição (com a qual concordo integralmente) à
de definir uma transdisciplinaridade poderia abortar uma "promissora concepção de que a mobilidade transdisciplinar seria privilégio
vocação subversiva" da proposta. Acho qtie isso é possível, mas só a exclusivo dos campos da ciência.
prática nos permitirá saber. Para que se instaure esta prática alguma Retomando o fio da sua contribuição pioneira à reflexão
voz terá de "ilocucionariamente" enunciar tal proposição. Com o texto epistemológica em saúde, de certo modo por ele inaugurada no Brasil
alvo desse debate, pretendi fazê·lo pela via da desconstrução do com o pequeno clássico Saúde & Sistemas (1972), Mario Chaves
discurso convencional da disciplinaridade, seguida da construção de ( 1998) propõe uma abordagem multidimensional como plataforma de
uma proposta de definição· provisória e interessada da Juta teórica contra o. processo de contínua fragmentação e intensa
transdisciplinaridade como superação pragmática do esquema vigente. disciplinaridade do conhecimento, a partir dos conceitos de
Aceitando o debate (Almeida Filho, 1997 a), recorri à distinção 'transdísciplinaridade' e 'complexidade'.
austiniana entre ato locucionário (onde a fala expressa algum sentido), A idéia de 'transdisciplinaridade' da linhagem teórica Piaget~
ato ilocucionário (que traz uma intenção ao dizer- algo) e ato Jantsch-Morin a que se fi lia Mario Chaves indica uma integração das.
perlocucionário (em que falar produz certos efeitos, desejados ou não) disciplinas de um campo particular sobre a base de uma axiomática
para me posicionar em relação à questão central do debate: "será geral compartilhada. Baseada em um sistema de vários níveis e com
que a mera locução da série prepositiva 'multi-pluri~inter-meta-trans~ objetivos diversificados, sua coordenação é assegurada por referência
disciplina' na verdade não esconderia um projeto de construção a uma base de conhecimento comum, com tendência à horizontalização ·
semântica e pragmática de um objeto~em-campo?" Não como das relações interdisciplinares. Desse modo, a transdisciplinaridade 18
.: ,
... '\~
Àntonló Vlrgfllo 61ttencourt Bastos e Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs,)
Pslçologla: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber
implica a criação de um campo novo que idealmente seria capaz de
Eduardo Vasconcelos (2002), em Complexidade e Pesquisa
desenvolver uma autonomia te6rica':e metodológica perante as
Interdisciplinar, pretende responder a algumas das críticas que eu
disciplinas que o originaram, como teria ocorrido com a moderna
,teria feito à sua obra anterior (Vasconcelos 1996). Como é comum em
ecologia, oriunda da biologia evolucionista, em sua interface com a
controvérsias acadêmicas, muitas vezes as tintas tornam~se mais
química orgânica e as geociências. ·
carregadas do que efetivamente o são. Eu não atri?uf uma perspectiva
O conceito de complexidade é·sumarizado no texto de Chaves a
acrítica, a·histórica, idealista e reificada da noção de disciplina, muito
partir de uma retificação da s.uposta conotação do senso-comum que o
menos qualquer imputação de ingenuidade, ao importante esforço
toma como equivalente a caos, desordem e obscuridade para valorizá-
··tnrelectualpioneiro e ainda quase solitário .de Vasconcelos. Talvez
lo como fundamento de uma "nova ciência". Frente ao dilema de tratar
somente respeito um pouco excessivo (mas perdoável) à matriz geradora
a complexidade como teoria ou como paradigma, Chaves (1998) prefere
do esquema Piaget-Jantsch- que tem fortes traços neokantianos e um
seguir Edgar Morin, profeta do holismo epistemológico deste fim de
viés de "imperialismo epistemológico". Aliás, este viés encontra·se bem
século, com a expressão ''pensamento complexo". Desse modo, Chaves
identificado e fortemente criticado no trabalho recente do autor
pretende articular os dois conceitos, considerando complexidade em
(Vasconcelos 20021, onde constato uma análise détalhada e cuidadosa
nível superior de abrangência em relação à transdisciplinaridade.
dos obstáculos e limitações à análise das práticas inderdiscip!inares a
Complexidade refere-se a uma propriedade totalizante do "Mundo
partir do referencial da·pedagogia social de base piagetiana.
Real" (grifado pelo autor no seu texto), enquanto que
De todo modo, Vasconcelos (2004) retoma o esquema evolutivo
transdisciplinaridade seria seu equivalente na esfera do conhecimento. '· de Jantsch no sentido da construção de um projeto interdisciplinar de
Em suas próprias palavras: "A complexidade está para o mundo real
prática científica em uma perspectiva que considero mais crítica.
como a transdisciplinaridade está para o mundo acadêmico".
Primeiro, amplia o escopo da questão para além da disciplinaridade,
No que concerne à definição do que é efetivamente
incluindo interações e interfaces não somente entre campos
complexidade, Chaves (1998) seleciona dois importantes aspectos:
disciplinares, mas também cqnexões interparadigmáticas, interteóricas,
por um lado, complexidade como a propriedade de sistemas que
multiprofissionais etc. Segundo, inspirado em propostas de construção
"mantêm a distinção entre as partes, (... que) associa ..sem tirar a
de um novo sensó·comum emancipatório (a "segunda virada
identidade das partes que a compõem, mas sempre considerando que
epistemológica" de Boaventura Santos), contextualiza a questão das
o todo é maior que a soma das partes". Por outro lado, a complexidade
práticas multi-plurí-inter/trans ao conceito de "campos de saber/fazer"
aparece por ele referida en passam como a coexistência. de mundos
e a conecta ao tema dos novos paradigmas. Finalmente, buscando
entrelaçados em um mesmo espaço·tempo. Aqui encontro um primeiro
uma salutar abertura pragmática, articula o esquema evolutivo de
ponto de crítica: em minha opinião, as opções de Chaves frente à
Jantsch a uma tipologia descritiva de sistemas equivalentes a quatro
polissemia do conceito de complexidade privilegiam justamente, ;r;;. modalidades de prática (multi-, pluri-, pluri~auxiliar, inter·) e um campo
aspectos de mais difícil operacionalização nos processos concretos ?f:
,Jt~.;
(trans-). Convergimos no que diz respeito aos dois primeiros pontos,
de produção de conhecimento. . ;,~ especialmente porque foram ambos enfocados na série de críticas
19
:fi.·
I'

~ J}J'

~ Anto11lo Vlrgfllo Sittencourt eastos e 'Nádla Maria Dourado Rocha (Orgs.)
Psicologia: Novas Direções 110 Diálogo com Outros Campos de Saber

resumida acima. Ainda assim, epara manter odebate vivo, com relação .-~· cada vez mais se afasta do rigor epistemológico necessári.o aos
ao terceiro ponto eu diria que não faz':sentido considerar a conexão
embates pela consolidação de novas formas de 'prática científica, Em
inter- exclusivamente como prática, nem a modalidade trans~ como
segundo lugar, creiq que a sua definição quase estruturalista de
campo. Pelo contrário, creio que o dinamismo dos trânsitos, dos
transdisciplinaridade, com ênfase em disciplinas, superposições,
atravessamentos, das transições apontam muito mais para processos
interstícios e espaços vazios, perde a oportunid{lde de considerar o
práxicos do que para estruturas topológicas tipo "campos'',
caráter transitivo, praxiol6gico e "desancorado" daquele conceito. Em
terceiro lugar, o seu tratamento das relações entre transdisciplinaridade
EPÍLOGO '
e .complexidade,- propondo uma duvidosa equivalência de nível
simultânea a uma espe~ificidade teórica, resulta em hierarquização e
Mas, enfim, em que a concepção de ttansdiscíplinaridade por
discriminação dos espaços de aplicação dos conceitos.
mim proposta se distingue e avança em relação à idéia de
~.... Realmente,. as relações entre complexidade e
transdisciplinaridade de Piaget-Jantsch~Morin e seus seguidores? ~- transdisciplinaridade não haviam sido efetivamente exploradas no
A noção de transdisciplinaridade havia sido originalmente ;;·
·~-
texto-base desse debate, conforme assinalado por Vasconcelos (2002).
concebida por Jean Piaget articulada à proposição· de uma epistemologia
· Isto ocorreu talvez porque me pareceu mais adequado concentrar a
genética que, não obstante seu potencial, foi concebida como meta-
discussão sobre o probl.ema dos limites (a propósito, uma das vertentes
projeto, um devi r inalcançável, e não como conceito senso~estrito, As
:.-i; de definição da complexidade), justamente porque não me agrada a
proposições posteriores dos seus discípulos, principalmente no campo
noção de interface: trata-se de uma aceitação implícita da
da filosofia da Educação, confonne a sistematização de Jantsch (1972), :Ri;
·~t~!.
inevitabilidade da~ fronteiras (ou fases, ou faces) disciplinares,
não conseguem, insisto, escapar do idealismo neokantiano e sua avaliação .. :/.
justamente o que a penneabilidade e a transitividade da idéia-prática
· otimista do potencial transformador da praxis humana. Aí encontro um 'fl\'
'.11'>.: da transdisciplinaridade buscam superar. Mais do que definir ou
primeiro elemento de crítica, quando se propõe que o sonho piagetiano :J.l'
•.G.:.
1

especificar uma construção doxo 16gica com a idéia de


(ou mais precisamente, dos seus herdeiros intelectuais) da transdísciplinaridade, pretendi observar e registrar uma potencialidade
transdisciplinaridade teria hoje dadas as condições de ser· realidade. -.~·.
de desenvolvimento de objetot método e campo científico, propondo
A proposta de articulação· entre complexidade e '-.-r~

}.... formas de crítica e articulação lógica, epistemológica e praxiol6gica


transdisciplinaridade de Morin (1990) implica uma referência à
de dado discurso-prática. Realmente não. consegui encontrar maneira
capacidade do pensamento complexo de lidar com a Incerteza e a mais apropriada de abordar a hermenêutica científica vigente do que
possibilidade de auto-organização, além da sua dependência da noção o recurso à desgastada noção kantiana dos juízos sintéticos que subjaz
de "unidade do conhecimento". Porém é nessa "utopia da síntese", na dualidade análise-síntese. Não obstante, mantenho o argument~
que concentro o foco da minha críti<:a, desenvolvida nos textos citados de que, eni uma perspectiva de crítica histórica, toda operação de'.
acima, sob três aspectos: Em primeiro lugar, o abstracionismo de Morin, sintetização produz tot.alizações provisórias, através de uma prática
apesar de expressar um pensamento criativo, fascinante e sedutor, 20
cotidiana de produção de "objetos práxicos",
t"

... ~~ J))
Antont'o Vlrg!llo Slttenc:ourt Bastos e' Nadia Maria Dourado Rocha (Orgs,)
Psicologia: Novas Direções no Diálogo com Outros Campos de Saber

Além disso, não me parece adequado usar a categoria campo científico e ciência como modo de produção de conhecimento,
'complexidade' para resumir o conjunto de propriedades dos objetos mediada em todas as instâncias pelo conceito de prática científica
concretos, realçando as raízes empíricas dos processos complexos (Pickering, 1992i Samaja, 1994). Trata·se de uma abordagem
como elementos essenciais para a constituição do novo paradigma. materialista~histórica da ciência, fundamentando uma definição
Uma leitura epistemológica das· perspectivas paradigmáticas pragmática da transdisciplinaridade como processo, estratégia de ação,
alternativas não reforça a deter.minação do empírico sobre o modalidade de prática, e não como propriedade ou atributo de relações
conceitual. A mera existência de um'objeto concreto não gera objetos modelares entre campos disciplinares. Dessa maneira, fará mais
de conhecimento, porém a produção de objetos de conhecimento pode
serWiao ass1naláto caráter instrumental da transdisciplinaridade como
gerar objetos concretos. Há cada vez mais exefnplos na história da prática de transformação da "ciência normal" em ciência
ciência de geração de objetos concretos, como verificamos na Física "revolucionária", para respeitar a terminologia kuhniana, na
moderna (Powers 1982) ou mesmo em todos os objetos no mundo da emergência de novos paradigmas no campo cientffico e de novas
informática, que é um espaço cibernético (o famoso cyberspace), ~stratégias de ação no campo da prática social.
um mundo absolutamente criado e que agora se constitui como
realidade, neste caso como realidade virtual. ·
Enfim, será que estamos mesmo à beira de um novo renascimento, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
uma nuova scienza? Sem dúvida, temos novas demandas. Certamente ALMEIDA FILHO, N.aomar (1990) Paradigmas em Epidemiologia.
necessitamos de uma transformação radical do sistema de formação dos lo Congresso Brasileiro de Epidemiologia. Epidemiologia e
sujeitos da ciência, no contexto de um novo enciclopedismo. Conforme Desigualdade social: Os Desafios do Final do Século, Anais,
assinala Morin (1990:125-6), "precisamos pensar/repensar o saber, não Campinas·SP, 2 a 6 'cte setembro.
sobre a base de uma pequena quantidade de conhecimentos como nos ALMEIDA FILHO, Naomar (1989) Epidemiologia Sem Números
séculos XVII e XVIII, mas considerando o estado atual de dispersão, - Uma Introdução Crítica 4 Ciência Epidemiológica. Rio: Editora
proliferação, parcelamento dos conhecimentos". De acordo. Porém, Campus.
devemos procurar não um enciclopedismo· com base na genialidade de ALMEIDA FILHO, Naomar (1992) A Clínica e a Epidemiologia.
sujeitos individuais como na Renascença ou no Iluminismo, e sim uma Salvador/Rio de Janeiro: Apce/Abrasco.
fomla renovada de enciclopedismo construído coletivamente. Cada vez ALMEIDA FILHO, Naomar (1997) Tr~nsdiscipllnaridade e Saúde

mais o processo de produção do conhecimento científico será social, Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, II (1/2):5-20.
político-institucional, matricial, amplificado. Nesse cenário, a produção ALMEIDA FILHO, Naomar (1997a} The paradigm of complexity:
competente da ciência viabilizará abordagens totalizantes, apesar de parciais applications in the field. of public health. In: Advisory Committee on
e provisórias, sínteses transdisciplinares dos objetos da complexidade. Health Research. A Research Policy Agenda for Science and
Em suma, a proposição de transdisciplinaridade que defendo Technology to Support ,Global Health Development. Geneve: World 21
sustenta~se na relação entre ciência comà rede de instituições do Health Organization, p.l-15.
.
'

"

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exercício críticq de qualquer campo de conhecimento. Neste sentido,
as relações entre psicologia e filosofia seguem os padrões das demais
ciências, concentrando-se no exame de questões fronteiriças e
controversas. Temos como exemplo, o problema ontológico da
representação, isto é, se a intermediação simbólica é ou não' é
imprescindível para comportamento humano (Peter, 2004), ou o debate 24
............

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