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ANAIS DO XI CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGUÍSTICA APLICADA

FICHA CATALOGRÁFICA

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ANAIS DO XI CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGUÍSTICA APLICADA

RECONHECIMENTO DO ERRO NA PRONÚNCIA


NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NÃO NATIVOS
FALANTES DE ESPANHOL:
ESTUDO DE CASO NUMA TAREFA DE AUTO-DIAGNOSE

Rocío Alonso Rey (Un. Salamanca)


rocioalonsorey@usal.es

RESUMO

O ensino da pronúncia é um dos âmbitos mais desatendidos tanto na formação de professores


(BREITKREUTZ et al.: 2001, BURNS: 2006, DERWING: 2010) como nos materiais de ensino
(SILVEIRA & ROSSI, 2006). Assim, na disciplina de Fonética e Fonologia do Português no curso
de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Salamanca, junto com os temas funda-
mentais da fonética e fonologia do português, foi introduzido um ponto no programa que diz respei-
to à aprendizagem e ao ensino da pronúncia segundo a metodologia de Llisterri (2003). A partir de
um conjunto de atividades de auto-diagnose, desenvolvidas no tratamento dessa parte da matéria,
que tinham como objetivo pedagógico o desenvolvimento da capacidade de reconhecer erros na
pronúncia do português, é realizado um estudo de caso com o objetivo de explorar a capacidade de
reconhecimento do erro e a relação com o conhecimento da fonética da língua portuguesa. Aten-
dendo à compreensão e o encalço dos fenômenos, os resultados indicam que há um conjunto de as-
pectos que o aprendente é capaz de reconhecer como desviados em relação com a pronúncia da LO
mas que respondem a diferentes graus de (re)conhecimento do problema.

ABSTRACT

Pronunciation teaching has been neglected in teachers instruction (BREITKREUTZ et al: 2001,
BURNS: 2006, DERWING: 2010) and teaching materials (SILVEIRA & ROSSI, 2006). In the dis-
cipline of Phonetics and Phonology of Portuguese, in the course Estudios Portugueses y Brasileños
of the University of Salamanca, beside the fundamental points of Portuguese phonetics and phono-
logy, it was added to the program of contents an issue about learning and teaching the pronuncia-
tion, based on the Llisterri (2003) methodology of pronunciation. This paper presents a case study
and analyze the results on a set of auto diagnosis activities, conducted to develop the capacity of er-
rors recognition in the Portuguese pronunciation, to explore the relations between this capacity and
the knowledge of Portuguese phonetics. Attending comprehension and trail of the phenomena, the
results indicates that there is a set of aspects that learner can recognize as deviant but they show
different levels of (re)cognition of the problem.

Introdução

A pronúncia é um dos âmbitos mais desatendidos no ensino de línguas, sendo


considerada como a órfã (DENG et al.: 2009; GILBERT: 2010), a enteada (BARTOLÍ:
2005) ou a cinderela (CELCE-MURCIA et al.: 1996) nas aulas de língua estrangeira.

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Este caráter marginal (DERWING e MUNRO: 2005) ou a queda em desgraça da pro-


núncia (ISAACS: 2009) também se verifica no caso do Português como Língua Não
Materna (PLNM) como assinalam Silveira e Rossi (2006). A pronúncia não é objeto de
estudo na sala de aula ao mesmo nível que outros domínios linguísticos e é trabalhada,
em muitos casos, de forma parcial, superficial ou não sistemática, sem planificação pré-
via, a partir do feedback corretivo que o professor fornece (BAKER: 2011, FOOTE et
al.: 2011, MACDONALD: 2002). Um trabalho que é determinado pela intuição e não
guiado pelas pesquisas na matéria (LEVIS: 2005).

Este papel secundário é devido, segundo os especialistas, a diversos fatores, tais


como as dificuldades para desenvolver uma metodologia comunicativa do ensino da
pronúncia (CELCE-MURCIA et al.: 1996, MORLEY: 1991 ), a existência de poucos
estudos dedicados ao ensino da pronúncia (BAKER & MURPHY: 2011, DENG et al.:
2009) ou o divórcio entre a investigação e o ensino (BREITKREUTZ et al.: 2001,
DERWING e MUNRO: 2005, LEVIS: 1999), mas também é relacionado com a forma-
ção dos professores. Numerosos especialistas apontam que os docentes não recebem
formação suficiente (BREITKREUTZ et al. 2001; BURNS, 2006; DERWING, 2010;
DERWING e MUNRO, 2005; FRASER, 2001; MACDONALD, 2002), de forma que
não se sentem confiantes para desenvolver este ponto na sala de aula e não valorizam a
importância e a necessidade do estudo desta matéria.

O resultado é que os estudantes apresentam problemas de competência no âmbi-


to fonológico, dificuldades que serão herdadas pelos aprendentes que estudam para se
tornar professores dessa língua. Esta situação é a que se encontra no caso estudado neste
trabalho e a partir do qual são exploradas as relações entre o reconhecimento do erro e o
conhecimento do sistema fonológico.

Contextualização

Atendendo aos problemas anteriormente assinalados, o programa da disciplina


Fonética e Fonologia do Português (FFP) para o ano 2014/15 foi revisado e modificado
com o intuito de melhorar a formação dos futuros professores de Língua Portuguesa que
frequentam o curso de português, o Grado en Estudios Portugueses y Brasileños, lecio-

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nado na Universidade de Salamanca. Na FFP, uma matéria de opção que os alunos po-
dem escolher no 3º ou no 4º ano, até esse ano eram desenvolvidos os temas fundamen-
tais de fonética e fonologia do português e a evolução desde o latim. A parte diacrônica
foi substituída por novos conteúdos estabelecidos segundo a metodologia do ensino da
pronúncia proposta por Llisterri (2003), que se organiza em torno a 5 pontos fundamen-
tais:

a) a análise contrastiva e o estudo da interlíngua,

b) estabelecimento de uma progressão de conteúdos a partir de uma hierarquização


dos erros,

c) técnicas e estratégias de correção,

d) seleção e elaboração de materiais,

e) avaliação dos resultados.

Estes aspectos foram inseridos no programa (Quadro 1) em três novos temas, a


saber, (i) Contraste entre espanhol e português, (ii) a aprendizagem da pronúncia e (iii)
o ensino da pronúncia.

Programa FFP Metodologia de LListerri (2003)


Temas fundamentais de FFP
Contraste entre espanhol e a) análise contrastiva e o estudo da interlíngua
português
Aprendizagem da pronúncia b) estabelecimento de uma progressão de conteúdos a partir de uma hie-
rarquização dos erros
Ensino da pronúncia c) técnicas e estratégias de correção,
d) seleção e elaboração de materiais
e) avaliação dos resultados.

Quadro 1. Nova configuração do programa em


relação com os pontos da metodologia do ensino da pronúncia de Llisterri (2003).

No início do ano foi feito um teste diagnóstico, procedimento estandardizado


como atividade introdutória, que se realiza em várias disciplinas do Grado, para avaliar
os conhecimentos teóricos prévios dos aprendentes e o grau de desenvolvimento da
competência linguística, fonológica neste caso. Os resultados indicaram que os alunos
apresentavam deficiências nos conhecimentos sobre fonética geral e do português e di-
ferentes graus de desenvolvimento da competência fonológica.

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Para o tratamento deste último problema foi desenvolvida uma estratégia de in-
tervenção tomando como ponto de referência a competência de aprendizagem do Qua-
dro Europeu de Referência para as Línguas (CONSELHO DA EUROPA: 2001, p.
155), nomeadamente três aspectos relacionados com as capacidades de estudo:

- a consciência dos seus pontos fortes e dos seus pontos fracos enquanto aprendente;

- a capacidade para identificar necessidades e objetivos próprios;

- a capacidade para organizar estratégias e procedimentos próprios para atingir esses


objetivos, de acordo com as suas próprias características e os seus próprios recur-
sos.

Esta capacidade foi explorada em relação com as técnicas e estratégias de corre-


ção, ponto c) da metodologia de Llisterri (2003). Tendo em conta que (i) uma das tare-
fas do professor no desempenho da labor docente é a provisão de feedback, isto é, fazer
correções, e (ii) que a condição é que seja capaz de reconhecer o erro, foi desenvolvida
uma tarefa com o objetivo pedagógico de desenvolver esta habilidade do professor, mas
utilizando a própria produção, de forma que como objetivo secundário se desenvolvesse
a competência de aprendizagem e se melhorasse a competência fonológica.

Justificação e objetivo.

O processo de ensino/aprendizagem de Português por Falantes de Espanhol


(PFE) apresenta um conjunto de características próprias quando comparado com o dos
falantes doutras línguas mais distantes (ALMEIDA: 1995, ALONSO: 2012, SIMÕES,
CARVALHO e WIEDEMANN: 2004). A proximidade entre as duas línguas faz com
que as diferenças entre os dois sistemas nem sempre sejam claramente percebidas ou
afixadas pelos aprendentes e sejam frequentes os fenômenos de transferência negativa
ou interferência do espanhol, como língua materna, para o português.

Um dos elementos chave na metodologia do ensino de português a este grupo de


aprendentes é a conscientização das diferenças entre os dois sistemas (ALMEIDA,
1995, GRANNIER, 2001, 2014). Um pressuposto metodológico que encontra o seu ar-
cabouço teórico na hipótese do noticing de Schmidt (1990, 2001), segundo a qual o

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aprendente deve aperceber-se das diferenças entre a sua produção e as formas corres-
pondentes da língua objeto. O reconhecimento dessas diferenças é considerado como
um primeiro passo, necessário, para a progressão da aprendizagem.

Os trabalhos sobre a aquisição da pronúncia são escassos no âmbito do Portu-


guês como Língua Não Materna. Na especialidade de PFE, nomeadamente, há alguns
estudos que descrevem determinados erros na produção destes falantes (CARVALHO
& BUENO: 2013, GUIMARÃES: 2011, SIMÕES & KELM: 1991, SOBRAL et al.:
2006, OLIVEIRA: 2006, entre outros), a percepção de determinados segmentos (AL-
LEGRO: 2011; FEIDEN et al.: 2014) ou as relações entre percepção e produção (SIL-
VEIRA e SOUZA: 2011) mas não temos constância de estudos que explorem a relação
com o reconhecimento do erro e, em último termo, com o conhecimento linguístico. O
objetivo deste trabalho é, portanto, explorar essa via; nomeadamente analisar as relações
entre os erros e o conhecimento linguístico através da capacidade de reconhecimento
dessas formas desviadas que têm os falantes.

O estudo

O sujeito analisado é um homem de 26 anos, de nacionalidade espanhola, com o


nome fictício de Zé305, estudante do 4º ano do Grado. Falante nativo de espanhol, tem
uma licenciatura prévia em Filología Hispánica e trabalha como professor de espanhol
numa escola de línguas. Relativamente aos seus conhecimentos de português, comple-
tou dois anos de estudo desta língua.

Os dados para a análise são constituídos pelos resultados obtidos em (i) um pré-
teste, que fazia parte do teste diagnóstico realizado para a disciplina de FFP no início do
curso e (ii) três testes de reconhecimento de erros, realizados dois meses depois, na tare-
fa de autodiagnose, referida na seção anterior.

O pré-teste consistia na leitura de um texto (em Anexo), que foi gravada com um
aparelho Sony ICD-UX522. Nos testes foi pedido ao sujeito que, durante a audição da

305O sujeito assinou um termo de consentimento livre e esclarecido para o uso das gravações e atividades realiza-
das na sala de aula. Em conversa informal indicou que fosse utilizado o nome de Zé a efeitos de identificação do in-
formante.

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gravação original, identificasse os erros na pronúncia e que apontasse na folha de res-


postas. No primeiro teste, a atividade foi feita sem qualquer apoio, apenas mediante a
audição; no segundo teste, foi entregue cópia escrita do texto e, no terceiro teste, a
transcrição fonética do referido texto.

Resultados

Os resultados obtidos no teste 1, mostrados na Imagem 1, indicam o reconheci-


mento de cinco fenômenos.

Imagem 1. Resultados obtidos no teste 1.

A relação entre os fenômenos assinalados e as palavras apontadas é a seguinte:

(F1) "Problemas com as S, deveriam ser predorsales": portuguesa, supressão, este

(F2) "Problemas com as vogais abertas, fechadas": outra, este, objetivo306

(F3) "O som G não está bem pronunciado": prestígio, divergentes, etimológica

(F4) "Pronúncia da V como bilabial": palavras

(F5) "Não nasalizo o final -ão, -m"

O primeiro aspecto a salientar é a forma pouco precisa com que identifica ou


descreve os fenômenos observados. O Zé utiliza pontualmente a terminologia relativa
306 Não é claro que indique a vogal, já que no teste seguinte assinala a grafia <j>.

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aos traços fonéticos, apoiando-se na escrita para se referir aos sons e identificando os
problemas com referências às grafias ("Problemas com as S", "O som G", ...).

Relativamente aos fenômenos identificados, em F1 faz uma identificação parcial


do problema, que, na verdade, diz respeito a três questões:

(a) /z/ com realização surda *[s]

(b) /s/ [ʃ] com realização alveolar fricativa [s]

(c) /s/ com realização apical e não pré-dorsal

Destes desvios apenas reconhece (c), no entanto, nas palavras que assinala apa-
rece também o erro (a), em "portuguesa", e o erro (b), em "este".

Em F2, o problema de interlíngua tem a ver com a realização das vogais médias
baixas [ɔ, ɛ] como altas *[o, e]. No entanto, nos casos que assinala não se verifica este
erro: "outra", "este". Em F3, com a realização da palatoalveolar fricativa sonora [ʒ] co-
mo velar surda *[x] ou palatal *[ʝ], identifica corretamente casos deste erro. No que diz
respeito a F5, em que estão envolvidos os processos de nasalização (cf. MIRA MA-
TEUS: 1982, 2003), identifica corretamente a ausência do traço de nasalidade, mas em
condições específicas, a saber, na posição final. Porém, não reconhece os erros, por
exemplo, em relação com a regra de nasalização no interior de palavra, "língua".

No teste 2, com o apoio do texto, o Zé realiza 27 marcas no texto e indica um to-


tal de 7 fenômenos.

Imagem 2. Resultados obtidos no teste 2.

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A relação entre fenômenos e casos apontados seria a seguinte:

(F1) "Som S, SS, Ç, Z, X": portuguesa, assinado, disso, exemplo

(F2) "Vocais abertas-fechadas": outra, todos, este

(F3) "G > J": objetivo, divergente, .....

(F4) "V bilabial": palavras, nova

(F5) "Nasales finales": fim, assim, criação, ....

(F6) "Pronuncia incorreta da R, nunca uvular": restantes

(F7) "Vocales átonas": fonético

O Zé encontra, portanto, duas novas áreas de dificuldade, F6 e F7. A primeira,


que têm a ver com a articulação de /R/, aparece representada no texto com um único
exemplo que é o que o Zé reconhece. No que diz respeito a F7, em relação com o pro-
cesso de elevação e recuo do vocalismo átono, com numerosos casos no texto, apenas
marca o caso indicado. Relativamente aos outros fenômenos, em F1 amplia o leque de
grafias na descrição do problema e os casos assinalados, que continua a tratar como um
único som. Em F5, acrescenta também um novo caso: "adotaram".

No teste 3, com o apoio da transcrição fonética, faz 53 marcas relacionadas com


os fenômenos anteriores. O mais destacável neste teste não é o que é marcado, mas os
casos que não são assinalados, já que a transcrição é a "solução" da tarefa, que fornece a
pronúncia certa na LO.

Em F1, para o segmento [z] aponta "exemplo" mas não os casos de "portuguesa"
ou "lusófono". Em F2, assinala casos de [ɔ] como "ortográfico", "ortografia" ou "lusó-
fono" mas não aponta nenhum caso de [ɛ]. Em F5, mantém-se a identificação consisten-
te do erro mas com uma localização seletiva na posição final.

Também chama a atenção que, por um lado, desaparecem as marcas relaciona-


das com F4, [v], e F6, [R] e, por outro lado, consegue identificar mais casos de F7, que
passaram praticamente desapercebidos nos testes 1 e 2. Trata-se de 14 casos de não ele-
vação de /o/ em diferentes contextos, com um reconhecimento amplo, que não se pro-

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duz para as vogais anterior /e/ e central /a/, em que aponta apenas casos pontuais ("de",
"unificada", "usada").

Discussão

Os resultados indicam claramente que o Zé apresenta um domínio baixo da me-


talinguagem e das convenções no âmbito da fonética após vários meses de formação.
Este domínio baixo faz com que a descrição dos fenômenos seja muito imprecisa e ina-
dequada ("som G") e se realize em base à escrita.

Por outro lado, é visível a falta de conhecimento explícito ou um conhecimento


insuficiente do funcionamento do sistema da L2 e das diferenças com a L1, muito cla-
ramente em F1. Tanto a descrição do sistema como o contraste foram trabalhados na sa-
la de aula mas esses conhecimentos foram afixados parcialmente: o Zé é capaz de lem-
brar, por exemplo, que o /s/ da L1 é pré-dorsal e não apical, como o da variedade do es-
panhol que ele fala; sabe que o português tem vogais médias altas e baixas ou que o vo-
calismo átono sofre algum tipo de processo307.

Este problema também se manifesta em relação com as convenções da transcri-


ção fonética308, no teste 3, onde a pesar de que estão todas as formas certas, grande parte
delas são ignoradas. Tudo aponta para o fato de que o Zé não domina o código da trans-
crição e tem dificuldades para relacionar os símbolos com os sons: por exemplo, a
transcrição como [u] é saliente para ele, mas não os pares [e/ɛ] ou [a/ɐ] ou o símbolo [ɨ].

Na análise da relação entre a capacidade de reconhecimento e o conhecimento, a


primeira é determinada pelos exemplos que aponta, isto é, pela identificação de formas
como desviadas ou incorretas. Pela sua vez, o conhecimento do sistema pode ser anali-
sado atendendo a:

– a compreensão do funcionamento da LO ou da diferença entre L1 e L2, que de-

307Uma explicação alternativa é que o aprendente tenha de fato esses conhecimentos mas não seja capaz de ex-
plorá-los na prática. No entanto, demonstra conhecimento parcial o que apoia a explicação de conhecimento incom-
pleto.
308Uma dificuldade já constatada nas aulas anteriores, que fez com que se optasse por utilizar para este teste uma
transcrição larga e sem indicação do acento

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monstra na identificação do fenômeno ou diferença;

– o alcance ou "encalço" do fenômeno, que tem a ver com os casos em que se pro-
duz um determinado fenômeno ou é aplicada uma regra, visível no enunciado de
identificação ou nos exemplos que aponta.

Estes três aspetos variam nos diferentes fenômenos apontados (Quadro 3) e reve-
lam uma relação complexa entre reconhecimento e conhecimento.

Fenômeno Reconhecimento Compreensão Encalço


F1 /s/ Amplo Não Não
F2 /ɛ, ɔ/ Pontual e errado Sim Não
F3 /ʒ/ Amplo Sim Amplo
F4 /v/ - - -
F5 [+ nasal] Parcial Sim: [+ nasal] Parcial
F6 /R/ - - -
F7 voc. átono Pontual ? -

Quadro 3. Reconhecimento, compreensão e encalço dos fenômenos.

Assim, que se reconheçam algumas formas como erradas não quer dizer que o
aprendente compreenda o desvio, isto é, o funcionamento da LO. É o que ocorre em F1:
sabe que está errado mas desconhece as formas corretas correspondentes e quando se
produzem.

Em F2 o caso é diferente: o Zé é consciente de que há fonemas na LO que não


possui a sua LM, mas é incapaz de reconhecer e encalçar este fenômeno. O conheci-
mento per se, sem discriminação efetiva na percepção, parece ineficaz para o reconhe-
cimento.

Em F3, há um reconhecimento amplo do erro, identifica o erro de forma consis-


tente e demonstra que, no mínimo, compreendeu que há uma diferença entre o som que
produz e o som da LO. No que diz respeito ao encalço, os casos que aparecem no texto
correspondem à grafia <g>, exceto um caso que não reconhece, "cujo", que se corres-
ponde com o espanhol cuyo, pronunciado como [ʝ], um dos sons desviados que o Zé
produz para [ʒ].

Para F4 e F6 não há exemplos suficientes no texto mas parece que há compreen-


são do fenômeno. Em F5 há que salientar, em primeiro lugar, o reconhecimento parcial
do fenômeno, uma localização seletiva que se associa exclusivamente à posição final,

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tanto no reconhecimento como na identificação ("Nasales finales"). No que diz respeito


à compreensão, o Zé reconhece a ausência do traço da nasalidade, mas não é claro que
compreenda o encalço do processo de nasalização, no sentido de regra da língua, isto é
quando aparece esse traço. Um indício disto é que não reconhece os casos de grau 2 de
nasalidade em que aplica a regra de ajustamento da nasalidade (MIRA MATEUS: 1982,
p. 59-60), como em "língua" ou "pretende".

Esta relação entre compreensão, reconhecimento e encalço tem implicações em


relação com o processo de aquisição. Parece provável que a aprendizagem da nasalidade
esteja baseada na incorporação do traço [+ nasal] como parte da componente lexical do
item e não como processo; por outro lado, esse traço poderia estar a ser incorporado
nessa componente com a ajuda de pistas gráficas, como o til nasal no ditongo -ão e o -m
final (fim, assim). O apoio na língua escrita já foi apontado por Akerberg (2004) como
uma das características da aprendizagem da pronúncia no PFE.

Neste sentido, é interessante comparar F5 com F2. A distinção entre médias altas
e baixas é marcada, na maioria dos casos, na componente lexical (ou por processos fo-
nológicos específicos como a alternância vocálica na morfologia verbal) e as pistas grá-
ficas são menos numerosas que no caso da nasalidade (dependendo das regras de acen-
tuação). Isto poderia fazer com que seja mais difícil de reconhecer e incorporar à inter-
língua estes elementos a partir dessas pistas gráficas. À dificuldade da formação da ca-
tegoria das médias baixas, junto com a necessidade de reformular a categoria das mé-
dias altas (FEIDEN et al.: 2014) haveria que acrescentar, portanto, o problema da afixa-
ção ou associação das novas categorias aos itens lexicais concretos sem o apoio de pis-
tas gráficas sistemáticas.

Outra questão que se levanta tem a ver com o ensino da pronúncia na sala de au-
la. No PFE não há estudos de conjunto que analisem a progressão da aprendizagem do
sistema fonético/fonológico; são, na maioria, estudos que descrevem as dificuldades ou
erros encontrados na produção de determinados segmentos. Assumindo que a discrimi-
nação é o passo prévio para a produção correta e, em consequência, a percepção e a
compreensão do fenômeno marcariam o começo de um possível tratamento do erro, o
Zé estaria pronto para trabalhar F3, isto é, a produção de /ʒ/, enquanto os segmentos de
F1 e F2 possivelmente precisam ainda de ser reformulados como categorias. Em F5 o

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problema seria diferente se a nasalidade é entendida como processo de nasalização, com


uma aprendizagem parcial com umas regras próprias da IL.

Considerações finais

Com as precauções impostas pela limitações próprias de um trabalho explorató-


rio baseado em apenas um caso, o estudo da percepção dos erros na própria produção
abre uma perspectiva diferente no estudo da aquisição da pronúncia, centrada tradicio-
nalmente na produção e, em menor medida, na percepção, que permite explorar as rela-
ções com o conhecimento linguístico. Tendo em conta à compreensão e ao encalço dos
fenômenos, os resultados indicam que o aprendente é capaz de reconhecer alguns ele-
mentos como desviados em relação com a pronúncia da LO, mas que respondem a dife-
rentes graus de (re)conhecimento do problema: desde problemas que são reconhecidos
mas não são compreendidos, quando o sujeito é consciente da não correspondência com
a LO mas desconhece o funcionamento da LO e as diferenças com a L1 (o duplo pro-
blema de F1, distinção /s/ /z/ e realizações de /s/), até problemas que são compreendidos
mas não reconhecidos (diferença entre vogais médias altas e baixas, em F2), problemas
que são reconhecidos mas compreendidos parcialmente (nasalidade, em F5), chegando
até dificuldades que são compreendidas e reconhecidas com facilidade (F3).

Esta perspectiva, que toma como ponto de referência a percepção do próprio su-
jeito dessas dificuldades, ajuda na compreensão das dificuldades que experimenta o
aprendente e dá indícios de como está a integrar na IL as novas categorias e processos.

Por outro lado, se assumimos que a capacidade de perceber um problema e o de-


senvolvimento do conhecimento explícito podem ajudar na aprendizagem, estes diferen-
tes modos de (re)conhecimento poderiam ser explorados no desenho de um tratamento
para estes problemas na sala de aula.

Por último, ressaltar a utilidade prática da tarefa desenvolvida como trabalho de


aula que obriga ao futuro professor a refletir sobre os problemas de uso e os aspectos
teóricos por trás desses fenômenos.

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ANEXO

Texto do pré-teste

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 é um tratado assinado


pelos países lusófonos, cujo objetivo é a criação de uma ortografia unificada
a ser usada por todos os países de língua oficial portuguesa. Este acordo pre-
tende pôr fim à existência de duas normas ortográficas divergentes, uma no
Brasil e outra nos restantes países de língua portuguesa, contribuindo assim
para o aumento do prestígio internacional do português e para a sua expansão
e afirmação. A valorização do critério fonético em detrimento do critério eti-
mológico pretende aproximar a escrita da forma falada das palavras (a su-
pressão gráfica das consoantes mudas é disso exemplo). Em Portugal, este
acordo encontra-se em vigor desde 2009 e os principais órgãos de comunica-
ção social já adotaram a nova grafia, tendo-se determinado a sua aplicação no
sistema educativo a partir do ano letivo de 2011/2012. De 1 de janeiro de
2012 em diante, todos os serviços, organismos e entidades do Governo, bem
como as publicações do Diário da República, terão a sua grafia atualizada.

(Fonte: http://www.portoeditora.pt/acordo-ortografico/sobre)

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