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LITERATURA

COMPARADA

Francieli Borges
Gabriela Semensato Ferreira
Karina Regedor Gercke
B732l Borges, Francieli.
Literatura comparada / Francieli Borges, Gabriela
Semensato Ferreira, Karina Regedor Gercke. – Porto
Alegre : SAGAH, 2017.
222 p. : il. ; 22,5 cm.

ISBN 978-85-9502-040-5

1. Literatura comparada. I. Ferreira, Gabriela


Semensato. II. Gercke, Karina Regedor. III. Título.

CDU 82.091

Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094

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A Literatura Comparada
e a intertextualidade
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Identificar a intertextualidade nas obras literárias.


„„ Definir os tipos de intertextualidade presentes no discurso.
„„ Analisar as diferenças estruturais da intertextualidade.

Introdução
Você já percebeu que, ao ler um texto, muitas vezes você se lembra de
outro? Mesmo que o outro texto não esteja ali, existe algum elemento que
faz com que você se lembre de outra obra, de outra referência. Essa é a
magia da intertextualidade: todo texto literário é uma rede de conexões
infinitas. Neste texto, você vai conhecer a intertextualidade e suas
sutilezas, reconhecer os tipos de intertextualidade presentes nos textos
e, por fim, identificar como elas se diferenciam de maneira estrutural.

Intertextualidade e suas sutilezas


A importância da intertextualidade para a Literatura Comparada se encontra
no fato de o intertexto ser inerente à obra. A intertextualidade, enquanto
concessão de um texto a partir de outro já existente, se revela imprescindível
como procedimento para a verificação das relações dialógicas entre textos.
Ela é, por isso, a mais marcante propriedade da produção literária.
A intertextualidade pode ter funções diferentes, que dependem muito dos
textos e dos contextos em que ela é inserida. O seu reconhecimento está ligado
ao “conhecimento do mundo”, e esse conhecimento deve ser compartilhado,
ou seja, ser comum ao produtor e ao receptor do texto.
Ela é a interpretação do mundo e só pode ser interpretada pelo leitor, que
tem uma bagagem de conhecimentos e percepções incomparáveis, produzidos

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e adquiridos por meio da sua atuação nesse mundo, por meio de suas experiên-
cias pessoais. A sua bagagem cultural, o seu background e as suas condições
cognitivas são únicas. Portanto, a maneira como o discurso do outro integra o
discurso desse leitor é única, não se repete e, por isso, a externalização desse
discurso é única também.

Julia Kristeva, filósofa búlgara-francesa, seguindo os passos de Bakhtin,


desenvolveu o contexto de intertextualidade afirmando que todo texto é uma
retomada de outros textos. Assim, pode dizer respeito simplesmente à vincu-
lação de um gênero, à repetição de uma ideia ou um ideal presente em uma
obra, ou mesmo à reescrita explícita de um determinado texto.
A intertextualidade engloba em sua definição a noção de um “diálogo”
entre textos. Nele, um autor emprega a fala de outro, ou repete uma fala de si
mesmo presente em outro texto, retomando sua própria obra e reescrevendo-a,
nos casos denominados de intratextualidade.

Mikhail Bakhtin foi quem primeiro sistematizou o estudo da intertextualidade, apesar


de não ter gerado esse termo. Seus estudos antecedem em quase 50 anos as orientações
da linguística moderna; o seu método antecipa os pressupostos da análise do discurso
e da semiótica, além dos estudos na área da sociolinguística.

Não existe um só texto literário que não seja intertexto, que não esteja em
conexão com outros textos. A partir do momento em que a crítica literária
toma consciência desse processo, tem a oportunidade de encarar de outro
modo a Literatura Comparada. Você pode notar que o antigo debate teórico
em torno das influências, fontes e empréstimos pode ser retomado, mas
agora com um novo vigor.
Mantendo-se fiel à lição de Bakhtin, Julia Kristeva não perde de vista o fato
de que a criação literária, como releitura de textos anteriores, também é um
processo que não ignora a dimensão contextual. Ou seja, quando reaproveita

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um conceito de um texto escrito em outra época, o novo autor está trazendo


o elemento tomado para dialogar com o momento histórico atual.
Kristeva também aborda a questão da intersubjetividade referindo-se à
relação entre autor e leitor (ou emissor e receptor, enunciador e enunciatário,
destinador e destinatário, codificador e decodificador, etc.). Para ela, essa
relação faz parte de um eixo horizontal, ao qual se junta um vertical (intertex-
tualidade), referente à relação entre um texto e os demais (intertextos), sejam
eles contemporâneos ou anteriores àquele que dialoga com eles.
A intertextualidade da leitura desorganiza a linearidade, problematiza
qualquer origem ou destino que a “explique”. Isso, entretanto, também proble-
matiza o status do intertexto (texto que se relaciona com o texto lido): se ele é
agregado ao texto, se passa, também, a constituí-lo, a separação entre texto e
intertexto é precária, bem como a própria noção de intertextualidade. Mas é
isso, justamente, o que dá maior dinamismo à intertextualidade, oferecendo
possibilidades como, por exemplo, lidar com essa precariedade criticamente,
integrando-a ao próprio jogo da leitura.
Isso explica a defesa da imprecisão do intertexto e, consequentemente,
da própria intertextualidade. Por essa ótica, ainda que seja importante para
o texto, a intertextualidade não deve ser supervalorizada. Caso o seja, ela se
torna supérflua, excessiva, nociva.
Não determinar a intertextualidade é tentar controlá-la, mantê-la longe
dos olhos de quem lê. Sua ocorrência moderada é benéfica porque, em tese,
possibilita a significância e o texto; mas, se em excesso, o texto se vira contra
si mesmo, coloca a significância em xeque por meio de hierarquias e de arbi-
trariedades da própria intertextualidade. Então, se rompe a indeterminação
e se traz o texto para o campo das contradições e dos conflitos (semióticos,
políticos, etc.), o qual, afinal, é o campo da leitura.
Se, por um lado, a noção de intertextualidade revitalizou a Literatura
Comparada, por outro trouxe um grande desafio: a sua permanente redefinição
como prática de leitura. Essa redefinição remete constantemente a outros
textos, anteriores ou simultâneos, os quais estão presentes naqueles em que,
circunstancialmente, o leitor busca produzir sentido.
Contemporaneamente, todo estudo comparatista convoca, necessariamente,
a noção de intertextualidade, mesmo que isso fique implícito a tal ponto
que você se esqueça de se interrogar sobre o real sentido dessa categoria na
atualidade.

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Tipos de apropriação nos textos literários


Você deve imaginar que o diálogo entre os textos não é um processo tranquilo
nem pacífico. Sendo os textos um espaço em que se inserem dialeticamente
estruturas textuais e extratextuais, eles são um local de conflito da linguagem.
A ocorrência intertextual acontece de diversas maneiras. As formas mais
explícitas são pela epígrafe, que se constitui de uma escrita introdutória a
outra; pela citação, que diz respeito à transcrição explícita de um trecho de
outro autor; pela alusão, que denota uma leve menção a um elemento de um
texto ou ao próprio texto, e pela referência, marcada pela presença de algum
elemento de um outro texto que leva o leitor a relacioná-los. No entanto, as
práticas intertextuais explícitas mais significativas estão presentes na paródia,
na paráfrase e no pastiche.
Há, a todo o momento, um encontro de discursos que se valem um do outro
para se construírem, o que, apesar disso, não compromete a singularidade e
a particularidade. Afinal, ao se utilizar de algum elemento de uma obra de
outro autor, o escritor não perde sua credibilidade. Muito pelo contrário, ele
pode dar um novo sentido, uma nova visão inesperada àquele elemento em
sua obra, que a faz singular, original.
As discussões acerca da cópia, da influência e da originalidade são bastante
antigas e acompanham a evolução da escrita e, consequentemente, da literatura.
A discussão sobre o direito autoral também é inerente à intertextualidade.

O desejo de originalidade é o pai de todos os empréstimos, de todas as imitações.


Todo autor exposto a uma influência faz escolhas diante dessa influência, e a origi-
nalidade tem sua marca nessas escolhas. O autor pode ser influenciado por algumas
qualidades de uma obra, e essa influência imprime uma maior originalidade em sua
produção. Os escritores do século XVI, sem disporem do termo, já tinham certa noção
do que era a originalidade literária. A originalidade que percebemos em uma obra
literária vem da capacidade de criação do autor ao escolher o assunto, usar recursos
diversos e alterar as influências específicas que agiram sobre ele.

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Tipos de intertextualidade
Epígrafe: constitui uma escrita introdutória. A epígrafe é um pré-texto que
resume o pensamento do autor. É uma citação que ocorre na abertura de um
livro ou texto.
Citação: é uma transcrição do texto alheio, marcada por aspas e geralmente
com o nome do autor. Verifica-se também que há citação quando um determi-
nado autor retoma um trecho de obra alheia, incorporando-o explicitamente
ao seu. Esse expediente se evidencia, no texto escrito, pelo uso de marcadores
como as aspas. A citação pode ser direta ou indireta. Ela é direta quando a
cópia é feita de forma integral, idêntica ao texto de origem, e indireta quando
é feita a paráfrase do texto original, ou seja, quando o trecho é reescrito
com outras palavras, mas mantendo seu sentido. Pode-se dizer que é uma
espécie de tradução dentro da própria língua. A alusão é uma forma indireta,
incompleta ou subentendida de citação: a referência ao autor ou texto alheio
é feita sutilmente.
Paráfrase: o autor recria, com seus próprios recursos, um texto já existente,
relembrando a mensagem original ao interlocutor. Na paráfrase as palavras
originais são alteradas, mas a ideia do texto é confirmada pelo novo texto, e
a alusão ao original ocorre para atualizar ou reafirmar os sentidos do texto
citado. É o mesmo que dizer com outras palavras o que já foi dito. É uma espécie
de interpretação de um texto com palavras próprias, mantido o pensamento
original; ou, ainda, uma intertextualidade que assinala uma semelhança entre
o texto original e o derivado, levando em conta que a diferença, se houver,
não é substancial, mas constitui uma “adaptação” do original.
Paródia: É uma forma de apropriação que, em lugar de endossar o modelo
retomado, rompe com ele, sutil e abertamente, ela muitas vezes perverte o
texto anterior, visando a crítica de forma irônica. A paródia é uma forma de
contestar ou ridicularizar outros textos, há uma ruptura com as ideologias
impostas e por isso é objeto de interesse para os estudiosos da língua e das
artes. Ocorre, aqui, um choque de interpretação. A voz do texto original é
retomada para transformar seu sentido, o que leva o leitor a uma reflexão
crítica de suas verdades incontestadas anteriormente. Com esse processo, há
uma indagação sobre as verdades estabelecidas e uma busca pela verdade real,
concebida por meio do raciocínio e da crítica. Tradicionalmente, a paródia
é definida como um escrito que imita uma obra literária, de forma crítica. É
um texto que subverte a mensagem do texto que o inspirou.

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É possível perceber que a paráfrase se posiciona ao lado da ideologia dominante,


é uma continuidade. A paródia caminha para o lado das diferenças. A paráfrase se
direciona à condensação, às semelhanças. Desse modo, a paródia se apresenta como
um efeito centrífugo, descentralizador. Já a paráfrase se manifesta como um efeito
centrípeto, centralizador, uma vez que retoma o processo de construção do texto
apropriado, mantendo a sua ideologia, os seus efeitos de sentido. Próxima da paráfrase,
numa primeira leitura, estaria a tradução. Antes de a intertextualidade ser aceita
como conceito crítico, o tradutor era considerado mero transcodificador de línguas.
Recentemente, a atividade de tradução ganhou novos contornos, sendo também
vista como uma forma intertextual, quase como seu sinônimo.

Pastiche: junção de outros vários textos. Apresenta elementos próximos e ao


mesmo tempo distantes da paródia, que muitos, equivocadamente, veem como
seu sinônimo. É certo que tanto paródia quanto pastiche envolvem imitação.
Entretanto, o pastiche se associa à imitação de um estilo, ou à apropriação de
um gênero sem, com isso, necessariamente, querer criticá-lo. Contemporanea-
mente, o pastiche pode ser visto como uma espécie de colagem ou montagem,
se tornando uma paródia em série ou colcha de retalhos de vários textos.
Apropriação: a apropriação às vezes é confundida com o plágio (que não
é um procedimento intertextual, mas simplesmente um furto textual). Ela é
um tipo de citação deslocada para um contexto estranho e até impertinente.
Pode ser vista como forma radical da paródia (pois se aproxima mais desta do
que da paráfrase) ou como forma de citação descontextualizada.
Bricolagem: são alguns procedimentos da intertextualidade das artes
plásticas e da música que também aparecem na literatura. Quando o processo
de citação é extremo, ou seja, se um texto é formado a partir de fragmentos
de outros textos, tem-se um caso de bricolagem. A técnica da montagem ou
colagem é uma das formas de apropriação.
Tradução: a tradução é uma adequação de um texto em outra língua, a
língua nativa do país, por exemplo, um livro turco que é traduzido para a
língua portuguesa.
Referência e alusão: na alusão, não se aponta diretamente o fato em ques-
tão. Ele é apenas sugerido por meio de características secundárias e metafóricas.
A intertextualidade, seja a paródia ou a apropriação, por exemplo, mais
que simples expediente lúdico, pode ser entendida como forma de reflexão
crítica sobre a arte. Os autores, em diferentes épocas e estilos, recorreram a

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essa ferramenta para demonstrar maior consciência sobre o fazer artístico. A


intertextualidade está diretamente associada à metalinguagem, pois ambos os
procedimentos são relacionais. Na intertextualidade, um texto absorve outros.
Ambos os procedimentos tornam o leitor mais crítico e reflexivo.

Diferenças estruturais na intertextualidade –


uma questão de heterogeneidade
A partir dos “fios dialógicos vivos” que são os “outros discursos”, os discursos
do outro são colocados no interior do discurso que se tece polifonicamente.
Isso dá origem a um jogo de várias vozes cruzadas cuja presença é mostrada
de diferentes formas: de maneira implícita, por conta da memória do leitor;
ou de maneira explícita.
Essas vozes mostram uma propriedade fundamental da linguagem: a he-
terogeneidade, que pode ser constitutiva ou mostrada. Como heterogeneidade
constitutiva, você pode considerar o “diálogo” que um discurso mantém com
o outro por meio da dialogização interna do discurso (dialogismo baktiniano).
Os textos se constituem a partir de outros textos. Eles são atravessados, ocu-
pados, habitados pelo discurso do outro. Sob as palavras de um discurso, há
outras palavras, outro discurso, outro ponto de vista social.
Já a heterogeneidade mostrada incide sobre as manifestações explícitas,
recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação. Para o
autor, os fenômenos da “heterogeneidade mostrada” vão bem além da noção
tradicional de citação e mesmo daquela, mais linguística, de discurso rela-
tado (direto, indireto, indireto livre). Incluem a pressuposição, a negação, a
parafrasagem, a imitação, entre outros fenômenos.
Os objetos textuais e a direção dos sentidos não se constituem propriamente
na criação do autor. Surgem na apropriação de enunciados externos ao indi-
víduo, criados socialmente, que já existiam antes da enunciação do referido
texto e que existirão após ela. Você pode perceber, então, que a presença do
outro na formação discursiva em estudo confere ao discurso a heterogeneidade
mostrada. Esta pode se apresentar sob diversas formas, inclusive aquela em
que a presença do outro não aparece explicitamente na frase, mas sim de forma
implícita, sugerida, como na imitação de outros discursos.
Foi com a linguista Jaqueline Authier-Revuz (1990, 1998, 2004) que o
conceito de heterogeneidade se desenvolveu e ganhou espaço. A partir da
teoria de interdiscurso proposta pela análise discursiva francesa, e também
da noção de dialogismo e de polifonia desenvolvida por Mikhail Bakhtin,

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Authier-Revuz (1990, 1998, 2004) estabeleceu o conceito de heterogeneidade


enunciativa. Assim, possibilitou à análise discursiva uma contribuição teórica-
-metodológica para a análise do outro na discursividade produzida nos textos
literários.
A língua por si e em seu uso real não é considerada apenas como um
conjunto abstrato de signos. Ela tem a propriedade de ser dialógica. O autor
não se refere apenas à interação presencial, ao diálogo face a face. Refere-se
à realidade de que, para construir seu discurso, necessariamente, considera o
discurso de outro autor. Assim, o dialogismo deve ser pensado não em termos
semânticos ou lógicos, mas em termos de pontos de vista de sujeitos sociais
sobre uma realidade dada.
Para Jaqueline Authier-Revuz (1990) o discurso é heterogêneo, pois “[...]
sempre sob as palavras, ‘outras palavras’ são ditas: é a estrutura material
da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia discursiva, se faça
escutar a polifonia não intencional de todo discurso [...]”.
A heterogeneidade é tomada como base – a linguagem é heterogênea em
sua constituição. A heterogeneidade discursiva estuda a relação entre a língua
e o que é considerado como seu “exterior”, procurando entender como se dá a
inscrição do outro no discurso. Desse modo, uma formação discursiva sempre
colocará em jogo mais de um discurso. O texto é heterogêneo; não é possível
definir um dos discursos sem remeter ao outro.

Para o interdiscurso, considere que todo discurso é construído no processo de


incorporação de outros discursos, pré-construídos, produzidos em seu exterior.

Ao fazer uso da heterogeneidade, característica do discurso, o sujeito dá a


ilusão de ser uno, de ser a origem do dizer, de ser homogêneo e despojado de
conflitos. Essa percepção é fundamental para a análise do discurso que tem
na presença do outro uma de suas características fundamentais.
Você pode compreender a heterogeneidade de duas maneiras: a mostrada
(marcada ou não marcada) – sinalizada com marcas características na superfície
linguística – e a constitutiva (não marcada linguisticamente) – sinalizada pelo
dialogismo de Bakhtin.

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Enfim, com base nas noções de intertextualidade, você pode concluir que
a relação entre textos foge a questões de dependência ou dívida, focando no
caráter sociável dos textos literários, na capacidade que têm de interagir uns
com os outros, no diálogo e na complementação entre eles, bem como na
originalidade como produto desse confronto. Quando compreende o fenô-
meno da intertextualidade como inerente ao texto, você tende a abolir alguns
conceitos errôneos de influência e fonte considerados ao longo da história da
Literatura Comparada.
A intertextualidade, então, aniquila a face negativa com que a questão da
influência era tratada, já que os intertextos são elementos de natureza intra-
textual, formadores e constituintes da obra. A própria palavra “intertexto”, de
texere, que significa tecer, conduz a essa ideia de dialogismo. É por meio do
intertexto que se pode tecer, costurar, unir os vários “retalhos da rede” literária.

1. Sobre a intertextualidade, coxas. [...]” CAMPOS, Paulo Mendes.


é possível afirmar: Metamorfose às avessas. In: O amor
a) O texto que faz referência a acaba: crônicas líricas e existenciais.
outra obra é absolutamente São Paulo: Companhia das Letras,
dependente dela. 2013. Você acabou de ler o início
b) Intertextos são quaisquer textos de uma crônica de Paulo Mendes
que possuam a mesma temática. Campos. A qual obra ela faz alusão?
c) O autor só faz referência a a) Dom Casmurro, de
outra obra para criticá-la. Machado de Assis.
d) O autor não dá nenhuma pista b) A Metamorfose, de Franz Kafka.
sobre a qual obra ele se refere, c) Dona Flor e seus Dois
esperando que o leitor adivinhe. Maridos, de Jorge Amado.
e) A intertextualidade tanto pode d) Ensaio sobre a Cegueira,
manter o mesmo sentido da de José Saramago.
obra anterior quanto invertê-lo. e) Letra da música “Monte
2. Leia o texto: “Metamorfose às Castelo”, escrita por Renato
avessas. Ao acordar num oco de pau Russo, líder da banda Legião
uma bela manhã, um inseto viu-se Urbana nos anos de 1980.
transformado em homem. Ainda 3. Texto 1
sem consciência do que acontecera, Tão logo viu José Dias desaparecer
tentou voar a uma árvore florida: no corredor, Bento deixou
os membros desajeitados o esconderijo e correu até a
golpearam ridiculamente o ar, as varanda do fundo. Não quis
mãos estalando de encontro às saber das lágrimas da mãe,

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por conta da promessa que podemos perceber a presença de:


ela fizera dezesseis anos antes, a) Paródia, pois o texto da
quando ele fora concebido. canção rompe com o original,
Texto 2 sutil e abertamente.
Tão depressa vi desaparecer o b) Paráfrase, pois as palavras
agregado José Dias no corredor, originais não são alteradas.
deixei o esconderijo, e corri à c) Citação direta, uma vez que há
varanda do fundo. Não quis saber fragmentos dos textos originais
de lágrimas nem das causas que são aproveitados de modo
que as fazia verter a minha mãe. literal, ainda que tenham sido
A causa era provavelmente os colados pelo compositor.
seus projetos eclesiásticos, e a d) Alusão, pois o fato, o tema
ocasião destes é a que vou dizer, é apontado diretamente.
por ser já então história velha; e) Pastiche, pois trata-se apenas
datava de dezesseis anos. da junção de vários textos
Ao ler os textos, é possível afirmar: existentes com a intenção
a) O texto 1 pertence ao original de de construir uma crítica.
Machado de Assis e o texto 2 à 5. Sobre a intertextualidade:
recriação de Fernando Sabino. a) A intertextualidade, tema
b) O texto 2 faz referência aos estudado pela Linguística
conflitos do próprio narrador. Textual, não é um elemento
c) De modo geral, o texto recriado recorrente na escrita de textos.
por Fernando Sabino busca criar b) Existe apenas um tipo de
uma linguagem rebuscada com intertextualidade: a implícita.
base em Machado de Assis. c) A intertextualidade interfere na
d) O texto 1, ao omitir a condição de construção de sentidos do texto.
agregado de José Dias, não altera d) Podemos dizer que a
o foco narrativo do romance. intertextualidade é apenas
e) O texto 1 é plágio do texto 2. a apropriação literal de um
4. Ao considerarmos a letra da texto para a criação de outro.
música “Monte Castelo”, de Renato e) Julia Kristeva afirma que todo
Russo, líder da banda Legião texto é único, original. Apenas
Urbana, escrita nos anos de 1980, sofrem influências de outros.

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AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo


do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos
Linguísticos, Campinas, n. 19, p. 25-42, jul.-dez. 1990.
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Cam-
pinas: UNICAMP, 1998.

Leituras recomendadas
BARROS, Diana Luz de; FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidades:
em torno de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003.
CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada. 5. ed. São Paulo: Ática, 2010. (Prin-
cípios, v. 58).
CARVALHAL, Tania Franco; COUTINHO, Eduardo de Faria. Literatura comparada: textos
fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
FARACO, Carlos A.; CASTRO, Gilberto; TEZZA, Cristóvão. (Org.). Diálogos com Bakhtin.
Curitiba: UFPR, 2008.
FREITAS, Antonio Carlos R. O desenvolvimento do conceito de intertextualidade.
Icarahy, Niterói, n. 6, 2011. Disponível em: <http://www.revistaicarahy.uff.br/revista/
html/numeros/6/dlingua/ANTONIO_CARLOS.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2016.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto.
São Paulo: Contexto, 2007.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. São Paulo: Pon-
tes, 1989.
SANTANA, Romano Afonso. Paródia, paráfrase e cia. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
SILVA, Marcio Renato P. Leitura, texto, intertextualidade, paródia. Acta Scientiarum.
Human and Social Sciences, Maringá, v. 25, n. 2, p. 211-220, 2003. Disponível em: <http://
periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/download/2172/1354>.
Acesso em: 12 dez. 2016.

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