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O CORPO E A ARQUITETURA
Resumo
O gesto de incorporar-se e o de abrigar-se guardam significados
aproximados. Por um lado, arquitetura é extensão do corpo, pele ou
casca que intermedia nossa relação com o mundo. Por outro, o
corpo é, como arquitetura, morada de almas e de sonhos. Este artigo
busca pensar, de forma sintética, uma trajetória da expressão do
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corpo como motivação para a produção da arquitetura. Identifica 3
situações específicas: a métrica, que balizou o projeto arquitetônico
após o Renascimento, a do corpo-imagem, que avança na medida
vivência
em que as ferramentas das linguagens multimídias estimulam um
processo de desmaterialização da arquitetura e a do corpo
sensorial, como um retorno da arquitetura e da experiência do corpo
à materialidade subestimada.
Palavras chaves: arquitetura, corpo, métrica, sensações
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Abstract
The acts of embodiment and shelter have close meanings.
Architecture is an extension of the human body. It can be considered
a skin that works as an interface between us and the world. On the
other hand, the body, like architecture, is house of souls and
dreams. This work intends to outline, briefly, a history of the body as
source of inspiration for architecture production. It identifies three
situations: first, the body as source of measures; second, the body
as image – which advances as multimidia tools prompt a process of
dematerialization of architecture –; and third, the context of the
sensorial body, which marks a return of architecture and the corporal
experience to the understimated materiality.
Key words: architecutre, body, measure, sensations
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106 Figura 1
Mire e veja. O corpo por todo os ângulos, parece domado pela arquitetura.
Ali o corpo flexiona-se. Acolá, curva-se. Senta. Gira. Entra por aquela porta.
A arquitetura pode ser entendida como uma pele grossa do corpo. A idéia do
abrigo, da proteção, do construir a barreira contra a natureza e proporcionar o
respiradouro para a civilização qualificaram desde sempre a arquitetura e o urbanismo.
Este artigo busca pensar, de forma sintética, uma trajetória da expressão
do corpo como motivação para a produção da arquitetura.
O corpo métrico
Se se busca origens para a construção da figura profissional do arquiteto,
o Renascimento apresenta-se como o contexto em que se realiza a separação
entre o canteiro e o projeto. Define-se, neste momento, qual é o atributo do
arquiteto, ou seja, de quem se responsabiliza pela concepção da obra edificada. No
Renascimento, o corpo é referência não funcionalista, mas projetual, no sentido de
que os pressupostos da edificação buscam o ser entendido, principalmente, na sua
dimensão cósmica, filosófica e religiosa. Esta dimensão é acessada a partir da
leitura “geométrica”, lembrando a famosa figura humana retratada por Da Vinci,
emoldurada pelo quadrado e pelo círculo.
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Figura 2. Homem vitruviano de Leonardo da Vinci.
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Porém, o marco desta visão do corpo geometrizado tem origem mais antiga,
pois, como se sabe, é em Vitrúvio, autor do único tratado de arquitetura da Antiguidade
Clássica Romana que chegou aos nossos dias, que se inspiram Alberti e todas as
gerações que lhe seguiram na escrita dos tratados, ou seja, as grandes referências
literárias para a produção de arquitetura durante vários séculos. Especialmente se
consultamos o Livro III de Vitrúvio, que trata do estatuto do artista na Antiguidade, este
vai apresentar, como condição para produzir a composição dos templos, a
necessidade de se realizar medidas que guardem proporção com o corpo humano.
É a partir deste corpo descrito em medidas1 (Vitrúvio, 2006, p.109) que
prossegue a justificativa das dimensões dos edifícios sagrados, exatamente estes
que se colocavam para o autor como obras eternas. Dentro da conhecida construção
de relações entre o macrocosmo e o microcosmo, o templo torna-se relativizado às
dimensões e aparência do corpo humano e vice versa. Suas partes e membros são
usadas como ponto de partida para o estabelecimento de uma rede de relações
proporcionais, a partir da qual é gerada a estrutura fundamental da arquitetura
clássica: a coluna e o entablamento. E dela surgem as tipologias dos templos.
“Portanto se a natureza compôs o corpo do homem, de modo a
que os membros correspondam proporcionalmente à figura global,
parece que foi por causa disso que os Antigos estabeleceram que
também nos acabamentos das obras houvesse uma perfeita
execução de medida na correspondência de cada um dos
membros com o aspecto geral da estrutura.”(Vitrúvio, 2006, p.110)
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Figura 5. Anatole de Baudot. Saint-Jean-de-Montmartre
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São as medidas que garantirão, por longo tempo, a estruturação da
disciplina denominada Ergonomia, que gera, por sua vez, o dimensionamento do
mobiliário, dos equipamentos; a seguir dos cômodos e como em uma última capa,
o objeto arquitetônico e urbanístico finalizado: casa, escola, edifício de escritórios,
a fábrica, a cidade. Para os que adotam a nova disciplina, o corpo funciona quando
acolhido no receptáculo correto, constrange-se e sofre quando suas medidas não
são respeitadas.
Por outro lado, a dicotomia entre mundo abstrato e o mundo concreto,
questão dominante na cultura ocidental, é incorporada pelos artistas do
Renascimento: a noção de que existe uma distinção de naturezas e uma hierarquia
entre matéria e espírito. O corpo é habitado por um espírito. Esta visão se opõe ao
entendimento pagão de comunhão com o mundo material e de reconhecimento do
divino em meio à natureza e no ciclo dos objetos.
O Movimento Moderno, através de sua ênfase na razão, acaba por
retomar tradição dicotômica similar, agora não tão polarizada entre matéria e
espírito, mas, entre matéria e razão. Os processos dirigidos à síntese arquitetônica
e à economia de meios tendem a considerar a matéria como uma totalidade cheia
de idiossincrasias que o pensamento racional deve ser capaz de superar e
esclarecer, conferindo-lhe uma ordem mais objetiva. Associadas a ideais de pureza
e unidade de esquemas formais idealizados, amparadas pelos processos
industriais, algumas vanguardas tenderam a inclinar a balança no sentido de
privilegiar a experiência formal da arquitetura. Inscrito nesta tradição, Adolf Loos
associou o ornamento, mais próximo da experiência táctil e sensorial da
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Figura 7. The great Lady. Leonardo da Vinci
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O automóvel deslizante, a fábrica produtiva, os transatlânticos e o avião,
todos eles compromissados com a medida-padrão, reativam, entre os modernos, a
necessidade da medida exata. Claro está que o discurso corbusiano avança por outros
caminhos, mas a medida é recuperada e a ergonomia instala-se como fundamental
para o design do mundo moderno. A casa aparenta-se à tenda e deve ser portátil. Não é
preciso mais a proteção severa da natureza. O homem itinerante, universal,
cosmopolita, faz, da casa natal, objeto múltiplo, reversível, substituível, efêmero.
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O corpo imagem
Hoje, um outro movimento, da outra extremidade do arco que toca em uma
de suas pontas o Renascimento, desmancha o papel do corpo físico na arquitetura.
Pela porta contemporânea, o mundo dos muros sólidos de Vitrúvio, o corpo
rígido, higienizado, treinado nos esportes e na guerra atenua-se como imagem. Não
são os músculos expostos na figura de Da Vinci que emblematizam o corpo ideal,
embora as academias aflorem em cada esquina da cidade contemporânea, e a
saúde e a longevidade se coloquem como meta universal. O corpo que referencia a
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arquitetura cada vez mais perde substância e a imagem que tudo pode e tudo
transforma, surge como a possibilidade mais concreta do corpo como emblema.
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A dimensão medida do corpo perdeu a hegemonia no discurso
arquitetônico. Quase se pode dizer que a arquitetura se desampara do corpo. Mira-
se para muito além do corpo rígido, do corpo ditado pela organização dos ossos e
músculos, que ao modo da pedra e da argamassa eram responsáveis pela razão
de ser dos corpos dos edifícios. O corpo belo está fixado através da imagem. Se a
criatividade de Corbusier, graças às conquistas de Einstein, foi capaz de conceber
cidades de milhões de habitantes independentes da história e da geografia,
através do poder dos pixels o mundo é totalmente recriado nas telas sem
substância. Materialidade e imaterialidade guardam fronteiras confusas. A
arquitetura contemporânea é gerada ciente de que deverá circular pela rede
mundial de computadores e, portanto, deve adequar-se a ela.
Melhor dizendo, o espaço virtual, ampliado pela internet e pelos sistemas
de informação, redimensiona a noção de materialidade. Projetos de arquitetura
assistidos por programas de imagens nos fazem pensar que as ferramentas
virtuais e as memórias são materiais da arquitetura, tanto quanto tijolos, a ponto de
lembrar-nos das palavras, em que o arquiteto renascentista, mediante os tratados,
se amparava para realizar sua produção. O computador permite a criação de
realidades com menos constrangimentos, em que transitam corpos menos densos
– imagens, perfis, programas, personagens – e desenvolvem edifícios que
guardam uma materialidade ambígua. Por meio de programas de manipulação de
imagens, revelam-se espaços em que a luz atravessa paredes e o usuário é capaz
de compartilhar visões de pássaro, muito além do que a perspecitva renascentista
poderia alcançar.
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atemporais e o poder do desígnio humano de vencer a natureza. Seus efeitos,
porém, que acompanham a velocidade da experiência e servem a um público
sedento de novos prazeres, tendem a lhe conferir um caráter volátil e frágil.
Atrelada ao momento presente, a arquitetura projetada para envolver e seduzir
corpos ávidos por estímulos parece superar as construções destinadas a
atravessar gerações.
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Figura 12. Pele humana vista do microscópio
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Esta arquitetura imaterial, produzida nos hypertextos, reapresenta-nos,
como contraste, a ênfase na experiência sensorial, a busca da pele como o órgão
mais profundo do homem (Serres, 2001). A ponto de se indagar, se retomando a
atenção dada à experiência dos sentidos, não poderia esta outra arquitetura ser
capaz de contribuir para ampliar a consciência do que somos. A ênfase em uma
arquitetura táctil poderia fazer-nos comungar com a natureza ao redor. Natureza
esta que volta a ser lembrada nos discursos sobre a ecologia e na retomada da
consciência de uma mãe- terra. Dissolveria limites entre o invólucro e o meio, nos
convidaria a descobrir percepções esquecidas, relembrar memórias latentes no
corpo. Seríamos enfim, repelidos no caminho reverso, em direção à materialidade
subestimada. Estas janelas no próprio corpo nos permitiriam olhar para dentro, em
busca de respostas sobre a vida.
“Recuo ante a dificuldade erguendo um palácio de abstrações.
Hesito ante o obstáculo como tantos têm medo do outro e de
sua pele. Como tantos têm medo de seus sentidos e reduzem
a nada, à tábua rasa do inimaginável, a suntuosa cauda de
pavão virtual e dobrada da degustação. O empirismo mergulha
na sarapintura que exige muita paciência e um intenso poder
de abstração. O que esperar, desde que se deram o fato do
nascimento e do reconhecimento de si?
A alma e o corpo não se separam, mas se misturam,
inextrincavelmente, mesmo, na pele. Assim, dois corpos
misturados não formam um sujeito separado de um objeto.”
(Serres, 2001, p.21)
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Figura 13. Folding Architecture
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camadas cada vez mais finas, anulando a idéia de um interior do corpo enquanto
enigma. Rincões do homem contemporâneo são objeto de escrutínio por meio de
scanners potentes e, à desmaterialização, segue-se a inexistência de obstáculos a
se interporem à visão.
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Retornando ao mundo dos sentidos após alcançar os limites da matéria intangível,
corpo e arquitetura, habitante e obra, podem voltar a guardar um os segredos do
outro, que só se fazem revelar pelo convívio silencioso, privilégio dos que se
compreendem pacientemente. Esta lição tectônica sobre o sentir pode ser
instrutiva para o homem contemporâneo, quando se coloca crítico ao consumo e
à sede sem freios para o espetáculo.
Figura 16
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Os ciclos dos materiais apresentam sinais de sub-naturezas da
arquitetura, fruto de processos inerentes à matéria que se expõe ao tempo e aos
movimentos do mundo: fungos, ervas-daninhas, ferrugem, poeira, gases que
descolam revestimentos, pombos, insetos e, em particular, rastros de humanidade.
(GISSEN, 2009:17). Por outro lado, no que diz respeito ao corpo humano, contra
este desgaste, contra o caminho certo da doença e da morte, os arautos dos novos
tempos anunciam a entrada em cena do homem pós-orgânico ou pós-humano2.
Um upgrade do corpo permitirá, dentro deste ponto de vista, a suplantação dos
nossos limites temporais, já que os limites espaciais já se encontram
razoavelmente liquefeitos pelas amplas possibilidades trazidas pela tecnociência.
Porém, mesmo os que escrevem o argumento acerca da importância desta nova
frente, comentam acerca das dificuldades com o corpo.
“No mundo volátil do software, da inteligência artificial e das
comunicações via Internet, a carne parece incomodar. A
materialidade do corpo é um entrave a ser superado para se
poder mergulhar no ciberespaço e vivenciar o catálogo
completo de suas potencialidades. Teimosamente orgânico,
porém, o corpo humano resiste à digitalização, nega-se a se
submeter por completo às modelagens das tecnologias da
virtualidade. (Sibilia, 2003, p.84).
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Figura 17. Peter Zumthor. Museu Diocesano Kolumba.
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NOTAS
1
“Com efeito, a natureza de tal modo compôs o corpo humano que o rosto, desde o queixo até ao alto da testa
e à raiz dos cabelos, corresponde à sua décima parte, e a mão distendida, desde o pulso até à extremidade
do dedo médio, outro tanto; a cabeça, desde o queixo ao cocuruto, `a oitava; da parte superior do peito, na
base da cerviz, até à raiz dos cabelos, à sexta parte, e do meio do peito ao cocuruto da cabeça, à quarta
parte”.Vitruvio prossegue com estas medidas percorrendo todo o rosto e a seguir, descreve as proporções
gerais do corpo. (Vitrúvio, 2006, p.109).
2
“Vale notar, entretanto, que, desde 1995, a expressão pós-humano vem se tornando voz corrente em muitas
publicações como, por exemplo, 'Os corpos pós- humanos' de Halberstam e Livingston (1995) e 'A condição
pós-humana' de Robert Pepperell (1995) . Santaella em Leão (2002, p.198).
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