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BREVES LINHAS SOBRE

O CORPO E A ARQUITETURA

Maria Angélica da Silva


Doutora em História (UFF/ Architectural Association School),
Pós-Doutoramento pela Universidade de Évora.
Professora da Universidade Federal de Alagoas.

Anna Victória Wanderley Silva de Azevedo


Mestre em Arquitetura (Universidade Politécnica da Catalunha).

Resumo
O gesto de incorporar-se e o de abrigar-se guardam significados
aproximados. Por um lado, arquitetura é extensão do corpo, pele ou
casca que intermedia nossa relação com o mundo. Por outro, o
corpo é, como arquitetura, morada de almas e de sonhos. Este artigo
busca pensar, de forma sintética, uma trajetória da expressão do

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corpo como motivação para a produção da arquitetura. Identifica 3
situações específicas: a métrica, que balizou o projeto arquitetônico
após o Renascimento, a do corpo-imagem, que avança na medida

vivência
em que as ferramentas das linguagens multimídias estimulam um
processo de desmaterialização da arquitetura e a do corpo
sensorial, como um retorno da arquitetura e da experiência do corpo
à materialidade subestimada.
Palavras chaves: arquitetura, corpo, métrica, sensações

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Abstract
The acts of embodiment and shelter have close meanings.
Architecture is an extension of the human body. It can be considered
a skin that works as an interface between us and the world. On the
other hand, the body, like architecture, is house of souls and
dreams. This work intends to outline, briefly, a history of the body as
source of inspiration for architecture production. It identifies three
situations: first, the body as source of measures; second, the body
as image – which advances as multimidia tools prompt a process of
dematerialization of architecture –; and third, the context of the
sensorial body, which marks a return of architecture and the corporal
experience to the understimated materiality.
Key words: architecutre, body, measure, sensations

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106 Figura 1

Mire e veja. O corpo por todo os ângulos, parece domado pela arquitetura.
Ali o corpo flexiona-se. Acolá, curva-se. Senta. Gira. Entra por aquela porta.
A arquitetura pode ser entendida como uma pele grossa do corpo. A idéia do
abrigo, da proteção, do construir a barreira contra a natureza e proporcionar o
respiradouro para a civilização qualificaram desde sempre a arquitetura e o urbanismo.
Este artigo busca pensar, de forma sintética, uma trajetória da expressão
do corpo como motivação para a produção da arquitetura.

O corpo métrico
Se se busca origens para a construção da figura profissional do arquiteto,
o Renascimento apresenta-se como o contexto em que se realiza a separação
entre o canteiro e o projeto. Define-se, neste momento, qual é o atributo do
arquiteto, ou seja, de quem se responsabiliza pela concepção da obra edificada. No
Renascimento, o corpo é referência não funcionalista, mas projetual, no sentido de
que os pressupostos da edificação buscam o ser entendido, principalmente, na sua
dimensão cósmica, filosófica e religiosa. Esta dimensão é acessada a partir da
leitura “geométrica”, lembrando a famosa figura humana retratada por Da Vinci,
emoldurada pelo quadrado e pelo círculo.

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Figura 2. Homem vitruviano de Leonardo da Vinci.

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Figura 3. Thomas Jefferson. Rotunda, Elevação sul, 1818. 107

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Porém, o marco desta visão do corpo geometrizado tem origem mais antiga,
pois, como se sabe, é em Vitrúvio, autor do único tratado de arquitetura da Antiguidade
Clássica Romana que chegou aos nossos dias, que se inspiram Alberti e todas as
gerações que lhe seguiram na escrita dos tratados, ou seja, as grandes referências
literárias para a produção de arquitetura durante vários séculos. Especialmente se
consultamos o Livro III de Vitrúvio, que trata do estatuto do artista na Antiguidade, este
vai apresentar, como condição para produzir a composição dos templos, a
necessidade de se realizar medidas que guardem proporção com o corpo humano.
É a partir deste corpo descrito em medidas1 (Vitrúvio, 2006, p.109) que
prossegue a justificativa das dimensões dos edifícios sagrados, exatamente estes
que se colocavam para o autor como obras eternas. Dentro da conhecida construção
de relações entre o macrocosmo e o microcosmo, o templo torna-se relativizado às
dimensões e aparência do corpo humano e vice versa. Suas partes e membros são
usadas como ponto de partida para o estabelecimento de uma rede de relações
proporcionais, a partir da qual é gerada a estrutura fundamental da arquitetura
clássica: a coluna e o entablamento. E dela surgem as tipologias dos templos.
“Portanto se a natureza compôs o corpo do homem, de modo a
que os membros correspondam proporcionalmente à figura global,
parece que foi por causa disso que os Antigos estabeleceram que
também nos acabamentos das obras houvesse uma perfeita
execução de medida na correspondência de cada um dos
membros com o aspecto geral da estrutura.”(Vitrúvio, 2006, p.110)
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Figura 4. Andreas Vesalius. De Humani Corporis Fabrica


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Figura 5. Anatole de Baudot. Saint-Jean-de-Montmartre

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É a Vitrúvio que devemos também a idéia de um número perfeito,


novamente concebido a partir da percepção do corpo humano, de suas medidas.
Portanto, no berço bibliográfico onde nasce a profissão do arquiteto, estão
celebradas as relações entre corpo e geometria. E estas são a garantia da beleza
na arquitetura.
“Portanto, se parece verdade que o número foi criado a partir
das articulações do corpo humano, havendo uma relação de
medida com base num determinado módulo, entre os
membros tomados singularmente e o aspecto geral do corpo,
é lógico que devemos admirar aqueles que não só planearam
os templos dos deuses imortais como ordenaram os membros
das obras, de tal modo que, através de proporções e de
comensurabilidades, as suas distribuições resultassem
convenientemente, fosse em separado, fosse em conjunto.”
(Vitrúvio, 2006, p.111-112)

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São as medidas que garantirão, por longo tempo, a estruturação da
disciplina denominada Ergonomia, que gera, por sua vez, o dimensionamento do
mobiliário, dos equipamentos; a seguir dos cômodos e como em uma última capa,
o objeto arquitetônico e urbanístico finalizado: casa, escola, edifício de escritórios,
a fábrica, a cidade. Para os que adotam a nova disciplina, o corpo funciona quando
acolhido no receptáculo correto, constrange-se e sofre quando suas medidas não
são respeitadas.
Por outro lado, a dicotomia entre mundo abstrato e o mundo concreto,
questão dominante na cultura ocidental, é incorporada pelos artistas do
Renascimento: a noção de que existe uma distinção de naturezas e uma hierarquia
entre matéria e espírito. O corpo é habitado por um espírito. Esta visão se opõe ao
entendimento pagão de comunhão com o mundo material e de reconhecimento do
divino em meio à natureza e no ciclo dos objetos.
O Movimento Moderno, através de sua ênfase na razão, acaba por
retomar tradição dicotômica similar, agora não tão polarizada entre matéria e
espírito, mas, entre matéria e razão. Os processos dirigidos à síntese arquitetônica
e à economia de meios tendem a considerar a matéria como uma totalidade cheia
de idiossincrasias que o pensamento racional deve ser capaz de superar e
esclarecer, conferindo-lhe uma ordem mais objetiva. Associadas a ideais de pureza
e unidade de esquemas formais idealizados, amparadas pelos processos
industriais, algumas vanguardas tenderam a inclinar a balança no sentido de
privilegiar a experiência formal da arquitetura. Inscrito nesta tradição, Adolf Loos
associou o ornamento, mais próximo da experiência táctil e sensorial da
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arquitetura, à degeneração. É instrutivo observar que o artesanato e o gesto


personalizado, que se associa aos ornamentos, devolve-nos o tempo, o elo com a
vivência

experiência do presente, mas também a dimensão da própria mortalidade e a


experiência visceral, “décor” da arquitetura. Evocam a fragilidade do conjunto,
abrem margem para as divergências, para as desvirtuações, que como o nome diz,
nos afastam do caminho da virtude.

110 Figura 6. Capela Rosslyn. Grã-Bretanha

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Figura 7. The great Lady. Leonardo da Vinci

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Neste bojo, até mesmo a mímesis do corpo medido atravessou os 111


séculos e foi acolhida nas searas do modernismo, como se verifica em passagem
escrita na mais famosa obra publicada de Le Corbusier, “Por uma Arquitetura”, no
padrão de um brado, próprio da linguagem dos manifestos:
“O homem primitivo parou sua carreta; decide que aqui será
seu chão. Escolhe uma clareira, derruba as árvores mais
próximas, aplana o terreno em torno; abre o caminho que o
ligará ao rio ou àqueles de sua tribo que ele acabou de deixar;
enterra os piquetes que sustentarão sua tenda. (...) Os
homens da tribo decidiram abrigar seu deus. Eles o dispõem
em um lugar de um espaço corretamente preparado; colocam-
no ao abrigo sob uma cabana sólida e enterram os piquetes da
cabana, em quadrado, em hexágono, em octógono. (...)
Vejam, no livro do arqueólogo, o gráfico desta cabana, o
gráfico deste santuário: é a planta de uma casa, é a planta de
um templo. É o mesmo espírito que reencontramos na casa de
Pompéia. É o próprio espírito do Templo de Luxor.
(...) Notem que essas plantas são regidas por uma matemática
primária. Há medidas. Para construir bem, para bem repartir
os esforços, para a solidez e a utilidade da obra, as medidas
condicionam o todo. O construtor tomou como medida o que
lhe era mais fácil, o mais constante, o instrumento que podia
perder menos: seu passo, seu pé, seu cotovelo, seu dedo.(...)
Medindo, ele estabeleceu a ordem.” [grifo do autor do livro]
(Corbusier, 1981, p.43)

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O automóvel deslizante, a fábrica produtiva, os transatlânticos e o avião,
todos eles compromissados com a medida-padrão, reativam, entre os modernos, a
necessidade da medida exata. Claro está que o discurso corbusiano avança por outros
caminhos, mas a medida é recuperada e a ergonomia instala-se como fundamental
para o design do mundo moderno. A casa aparenta-se à tenda e deve ser portátil. Não é
preciso mais a proteção severa da natureza. O homem itinerante, universal,
cosmopolita, faz, da casa natal, objeto múltiplo, reversível, substituível, efêmero.

Figura 8. O Modulor. Le Corbusier


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De Vitrúvio à Corbusier, a medida é a chave para a construção do corpo


ideal. Só se pode construir o sistema geométrico que privilegia o equilíbrio, a
proporção, a simetria gerados pelo corpo, se existe um corpo-padrão. Um corpo
cujas partes nobres se identificam pela estrutura óssea e pelos músculos. Que
pouco tem de matéria mole. Um corpo que celebra uma cultura universal, que é
rígido, que não sofre, não adoece. O corpo tomado no que se considera sua
exuberância plena.

O corpo imagem
Hoje, um outro movimento, da outra extremidade do arco que toca em uma
de suas pontas o Renascimento, desmancha o papel do corpo físico na arquitetura.
Pela porta contemporânea, o mundo dos muros sólidos de Vitrúvio, o corpo
rígido, higienizado, treinado nos esportes e na guerra atenua-se como imagem. Não
são os músculos expostos na figura de Da Vinci que emblematizam o corpo ideal,
embora as academias aflorem em cada esquina da cidade contemporânea, e a
saúde e a longevidade se coloquem como meta universal. O corpo que referencia a

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arquitetura cada vez mais perde substância e a imagem que tudo pode e tudo
transforma, surge como a possibilidade mais concreta do corpo como emblema.

Figura 9. Dana e Karla Karlwas. Party Dress.

Corpos com olhos, os homens contemporâneos rebaixam o papel dos


paradigmas canônicos, das relações matemáticas e das proporções geradas pelo
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mundo de Vitrúvio. Na verdade, não as abandona, mas são elas que não mais
oferecem o apaziguamento das dúvidas, o berço onde se pode dormir o sono
calmo. São as próprias obras e a escassez de concretude do mundo real que não
mais confirmam o discurso exato dos tratados. Resta ao arquiteto seguir a sua 113
própria angústia como guia na produção do fazer artístico.

Figura 10. Herzog & De Meuron. Loja Prada, Tóquio.

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A dimensão medida do corpo perdeu a hegemonia no discurso
arquitetônico. Quase se pode dizer que a arquitetura se desampara do corpo. Mira-
se para muito além do corpo rígido, do corpo ditado pela organização dos ossos e
músculos, que ao modo da pedra e da argamassa eram responsáveis pela razão
de ser dos corpos dos edifícios. O corpo belo está fixado através da imagem. Se a
criatividade de Corbusier, graças às conquistas de Einstein, foi capaz de conceber
cidades de milhões de habitantes independentes da história e da geografia,
através do poder dos pixels o mundo é totalmente recriado nas telas sem
substância. Materialidade e imaterialidade guardam fronteiras confusas. A
arquitetura contemporânea é gerada ciente de que deverá circular pela rede
mundial de computadores e, portanto, deve adequar-se a ela.
Melhor dizendo, o espaço virtual, ampliado pela internet e pelos sistemas
de informação, redimensiona a noção de materialidade. Projetos de arquitetura
assistidos por programas de imagens nos fazem pensar que as ferramentas
virtuais e as memórias são materiais da arquitetura, tanto quanto tijolos, a ponto de
lembrar-nos das palavras, em que o arquiteto renascentista, mediante os tratados,
se amparava para realizar sua produção. O computador permite a criação de
realidades com menos constrangimentos, em que transitam corpos menos densos
– imagens, perfis, programas, personagens – e desenvolvem edifícios que
guardam uma materialidade ambígua. Por meio de programas de manipulação de
imagens, revelam-se espaços em que a luz atravessa paredes e o usuário é capaz
de compartilhar visões de pássaro, muito além do que a perspecitva renascentista
poderia alcançar.
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“O paradigma eletrônico impõe um formidável desafio à


arquitetura, já que define a realidade em termos de meios de
comunicação e simulação, privilegia a aparência à existência e
vivência

o que se pode ver ao que é. Mas não se trata mais daquele


visível que se conhecia antes, mas de uma visão que não mais
interpreta. Os meios de comunicação e reprodução
introduzem ambiguidades fundamentais no como e no que se
vê. A arquitetura resistiu a esse desafio porque, desde que o
espaço arquitetônico do início do século XV importou e
assimilou a perspectiva, ela sempre foi dominada pela
114 mecânica da visão. Assim, a arquitetura pressupõe que o
sentido da vista é uma faculdade superior e, de certa forma
natural, em seus processos, nunca um fator a ser
problematizado. É justamente esse conceito tradicional da
visão que o paradigma eletrônico põe em cheque”. (Eisenman.
“Visões que se desdobram: a arquitetura na era da mídia
eletrônica”. In: Nesbitt, 2006, p.601.)

Por um lado, esta arquitetura pode ser considerada expressão daquele


longamente alimentado desejo de voar, de transcender as restrições da gravidade
ou de se desintegrar e se reintegrar como hologramas. Neste sentido, a técnica
teria alcançado o seu ápice. Uma sociedade habituada a contrapor corpo e espírito,
a sonhar com vôos, a reconhecer suas maiores qualidades no universo intelectual
e na alma, suplantaria os limites materiais. Por outro, esta produção, não raro, é
criticada por se tornar refém do impacto visual, com a mesma avidez com que
cultiva corpos e consome produtos cosméticos, tendo em mente mais os efeitos
externos do que os internos, proporcionados por suas loções. Os recursos
tecnológicos permitem que esta arquitetura, tal qual as imagens de corpos
propagadas pela mídia, constitua-se, antes de tudo, imagem sedutora. No
invólucro mais imediato do corpo ou na interface do abrigo, parece perseguir-se a
impressão do que se é extraordinário – capaz de brilhar e de não envelhecer.
Neste sentido, não parece difícil reconhecer esta arquitetura como
desdobramento do ideal abstrato, refinado pelos modernos, de manifestar valores

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atemporais e o poder do desígnio humano de vencer a natureza. Seus efeitos,
porém, que acompanham a velocidade da experiência e servem a um público
sedento de novos prazeres, tendem a lhe conferir um caráter volátil e frágil.
Atrelada ao momento presente, a arquitetura projetada para envolver e seduzir
corpos ávidos por estímulos parece superar as construções destinadas a
atravessar gerações.

Figura 11. Informing architecture

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Figura 12. Pele humana vista do microscópio

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Esta arquitetura imaterial, produzida nos hypertextos, reapresenta-nos,
como contraste, a ênfase na experiência sensorial, a busca da pele como o órgão
mais profundo do homem (Serres, 2001). A ponto de se indagar, se retomando a
atenção dada à experiência dos sentidos, não poderia esta outra arquitetura ser
capaz de contribuir para ampliar a consciência do que somos. A ênfase em uma
arquitetura táctil poderia fazer-nos comungar com a natureza ao redor. Natureza
esta que volta a ser lembrada nos discursos sobre a ecologia e na retomada da
consciência de uma mãe- terra. Dissolveria limites entre o invólucro e o meio, nos
convidaria a descobrir percepções esquecidas, relembrar memórias latentes no
corpo. Seríamos enfim, repelidos no caminho reverso, em direção à materialidade
subestimada. Estas janelas no próprio corpo nos permitiriam olhar para dentro, em
busca de respostas sobre a vida.
“Recuo ante a dificuldade erguendo um palácio de abstrações.
Hesito ante o obstáculo como tantos têm medo do outro e de
sua pele. Como tantos têm medo de seus sentidos e reduzem
a nada, à tábua rasa do inimaginável, a suntuosa cauda de
pavão virtual e dobrada da degustação. O empirismo mergulha
na sarapintura que exige muita paciência e um intenso poder
de abstração. O que esperar, desde que se deram o fato do
nascimento e do reconhecimento de si?
A alma e o corpo não se separam, mas se misturam,
inextrincavelmente, mesmo, na pele. Assim, dois corpos
misturados não formam um sujeito separado de um objeto.”
(Serres, 2001, p.21)
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Como em um movimento circular, caberia repensar a idéia de uma


arquitetura indissociada do corpo que sente. Invólucro humano, mesmo quando o
que se pretende atingir com o objeto arquitetônico é o espírito, mesmo quando a
vivência

dimensão fenomenológica parece encontrar-se rebaixada. Volta-se lentamente a


pensar se não é o corpo que dá razão à arquitetura. Insinua-se, ao lado do corpo-
produto, embelezado, sadio, o corpo múltiplo. E, lentamente, recoloca-se o
discurso a favor do corpo que experimenta, que compreende e o reapresenta para
a sociedade, confusa, no jogo complexo e impiedoso das representações.
116 Isso implica, para o corpo, o desafio de aprofundar a consciência da
condição material e mundana. O resgate da sabedoria inata dos nossos sertões
obscuros, das marcas e dos gestos que atravessam gerações. Para a arquitetura,
implica enveredar-se por suas entranhas. Descobrir profundidades vislumbradas
superficialmente pelas experiências fugazes do habitar: sensações de confinamento,
vertigem, nostalgia. Reconhecer velocidades mais lentas, o pulsar da matéria. E
explorar a espessura. No campo do urbano, a “corpografia” surge como uma
resistência, como uma reivindicação do retorno do corpo fenomenológico, sensível e
amoroso às práticas de pensar a cidade (Jeudy & Jacques, 2006). No campo
arquitetônico, como fronteira interna a ser desbravada. Nas ciências do corpo e da
mente, fita-nos o imperativo: conhece a ti mesmo.

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Figura 13. Folding Architecture

Arquitetura como carne

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Figura 14

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Os tempos renascentistas foram responsáveis por ousadas aventuras


através do interior do corpo, embora estas tenham tido, apenas indiretamente,
repercussão na divulgação do corpo físico ideal. Dos gabinetes de curiosidades,
dos jardins botânicos, passou-se aos anfiteatros de anatomia que proviam espaço
nas universidades para a exploração das partes recônditas do corpo humano.
Contudo, hoje, o sucesso na obtenção de imagens aboliu a noção de interior.
Percorreu-se todo um caminho desde a produção de desenhos onde ossos, feixes
de músculos, eram apresentados em cenários que quase os tornavam vivos, como
na a obra de Vesalius, De Humani Corporis Fabrica, para os recursos atuais, por
meio dos quais os órgãos são de tal forma expostos que se tornam um conjunto de

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camadas cada vez mais finas, anulando a idéia de um interior do corpo enquanto
enigma. Rincões do homem contemporâneo são objeto de escrutínio por meio de
scanners potentes e, à desmaterialização, segue-se a inexistência de obstáculos a
se interporem à visão.

Figura 15. Daniel Libeskind. Museu Nussbaum. Osnabruck.


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Dentro da perspectiva que reconsidera a densidade e o mistério, a


arquitetura pulsa no ritmo de seus materiais. Revela características de carne: troca
matéria com o ambiente - respira, come, excreta. Desgasta-se. Não se reconhece
como algo inerte ou fechado, porque está exposta ao mundo. Contrai-se, relaxa.
Rompe estrias, revela rugosidades, camufladas por forros lisos como maquiagem.
Suporta carga, une partes. Encerra tendões, artérias. Pesa. Detém espessura.
Esconde instäncias obliteradas, que só podem ser vistas mediante o corte e a
destruição. Aparece com todo esplendor em meio à penumbra ou à iluminação que
permita reconhecer nuances sobrepostas. Ao contrário, sob as luzes brancas de
hospital, tem dissipada a beleza característica dos corpos tensionados.
Pedra fria, terra úmida, luz que banha paredes, capas de tinta que se
largam do metal, as superfícies tocadas pelo homem, quando este ainda não se via
separado da matéria, podiam prescindir de linguagem e símbolo para comunicar.

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Retornando ao mundo dos sentidos após alcançar os limites da matéria intangível,
corpo e arquitetura, habitante e obra, podem voltar a guardar um os segredos do
outro, que só se fazem revelar pelo convívio silencioso, privilégio dos que se
compreendem pacientemente. Esta lição tectônica sobre o sentir pode ser
instrutiva para o homem contemporâneo, quando se coloca crítico ao consumo e
à sede sem freios para o espetáculo.

Figura 16

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Mundanos, edifício e corpo sofrem. Exposto às intempéries, a matéria se


metamorfoseia lentamente. Descama. Cria cascas. O corpo não pode evitar a
passagem do tempo, nem os movimentos dos líquidos externos e internos. Cria
calos. É capaz de contorcer-se, se assim exigir a natureza. Arquitetura e corpo
acumulam marcas. Trazem registrados na pele os usos que lhe fizeram e, em suas
estruturas, sinais de cansaço, na batalha contra a gravidade. Não passam,
portanto, impunemente pelo mundo. Ao mesmo tempo, não compartilham também
da condição de não se constituirem meramente produtos da paisagem? Não
bastasse a possibilidade de espalhar pelo mundo resíduos de si mesmos, rastros
da própria passagem, alterando o desenho original dos percursos, arquitetura e
corpo são manifestações de vontades, que anunciam o capricho de seus senhores.
Os arquitetos criam atmosferas. O próprio corpo, o homem tempera com seus
humores, como um pequeno senhor do tempo.

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Os ciclos dos materiais apresentam sinais de sub-naturezas da
arquitetura, fruto de processos inerentes à matéria que se expõe ao tempo e aos
movimentos do mundo: fungos, ervas-daninhas, ferrugem, poeira, gases que
descolam revestimentos, pombos, insetos e, em particular, rastros de humanidade.
(GISSEN, 2009:17). Por outro lado, no que diz respeito ao corpo humano, contra
este desgaste, contra o caminho certo da doença e da morte, os arautos dos novos
tempos anunciam a entrada em cena do homem pós-orgânico ou pós-humano2.
Um upgrade do corpo permitirá, dentro deste ponto de vista, a suplantação dos
nossos limites temporais, já que os limites espaciais já se encontram
razoavelmente liquefeitos pelas amplas possibilidades trazidas pela tecnociência.
Porém, mesmo os que escrevem o argumento acerca da importância desta nova
frente, comentam acerca das dificuldades com o corpo.
“No mundo volátil do software, da inteligência artificial e das
comunicações via Internet, a carne parece incomodar. A
materialidade do corpo é um entrave a ser superado para se
poder mergulhar no ciberespaço e vivenciar o catálogo
completo de suas potencialidades. Teimosamente orgânico,
porém, o corpo humano resiste à digitalização, nega-se a se
submeter por completo às modelagens das tecnologias da
virtualidade. (Sibilia, 2003, p.84).

A disputa entre matéria e razão continua, acalentada pelo sucesso do


mundo tecnológico.
Contudo, persiste nesse imaginário o sonho de abandonar o
corpo para adentrar um mundo de sensações digitais. Um
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universo “virtual”, que tem a luz elétrica como matéria-prima e


se propõe a ignorar as limitações que constringem o corpo
vivo. (Sibilia, 2003, p.84).
vivência

Em meio às correntes favoráveis ao homem pós-orgânico, a busca pelas


vísceras é comparável à jornada do saber sobre a própria natureza. Implica, em
parte, o esquecimento de conceitos e o relembrar de uma existência unida à
matéria, que não desaparece, mesmo com a hegemonia da mente. Como Sibilia,
também Serres usa a qualificação de “teimoso” para falar da persistência do mundo
120 experimentado .
O empirismo, contudo, volta teimoso, duvida que o cardápio
equivalha à degustação, que a análise, no rótulo, mate a sede
tanto quanto a bebida, não devora listas e livros entre as
refeições. Não confunde o amor com as palavras do amor.
Filho da guerra e das privações, ele tem fome; filho da pobreza,
ele tem sempre sede. Do que lhe faltou na infância, ninguém
jamais se ressarce. (...) o empirismo vem de longe: da soma
das infâncias dos homens, de todas as carências cujo vazio as
frases não preenchem. (Serres, 2001, p.197)

Em tempos não tão distantes, por meio da medida-padrão e da


idealização arquitetônica, celebrou-se o sonho de que o homem alcançaria a
imortalidade. Por meio da experiência física do presente, porém, ele sabe-se vivo.
E, quando experiência deliberada, se tem como conseqüência, a degenerescência
incorporada ao discurso do arquiteto, tratar-se-ia de uma perda?
Cada vez mais, com os avanços tecnológicos, os extremos da vida se
alongam, na linha que vai do nascimento à morte. Mas às vezes é em um nó, num
cruzamento, no fechamento de um círculo, que a vida atinge seu ápice. De fato,
quantas paisagens no mundo também não se destroem quando completamente
iluminadas?

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Figura 17. Peter Zumthor. Museu Diocesano Kolumba.

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vivência

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NOTAS
1
“Com efeito, a natureza de tal modo compôs o corpo humano que o rosto, desde o queixo até ao alto da testa
e à raiz dos cabelos, corresponde à sua décima parte, e a mão distendida, desde o pulso até à extremidade
do dedo médio, outro tanto; a cabeça, desde o queixo ao cocuruto, `a oitava; da parte superior do peito, na
base da cerviz, até à raiz dos cabelos, à sexta parte, e do meio do peito ao cocuruto da cabeça, à quarta
parte”.Vitruvio prossegue com estas medidas percorrendo todo o rosto e a seguir, descreve as proporções
gerais do corpo. (Vitrúvio, 2006, p.109).
2
“Vale notar, entretanto, que, desde 1995, a expressão pós-humano vem se tornando voz corrente em muitas
publicações como, por exemplo, 'Os corpos pós- humanos' de Halberstam e Livingston (1995) e 'A condição
pós-humana' de Robert Pepperell (1995) . Santaella em Leão (2002, p.198).

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