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Universidade de Brasília - Faculdade de Direito

Disciplina: Pesquisa Jurídica

Docente: José Geraldo de Sousa Jr.

Discente: Alessandra Oliveira Barbosa

Turma: B

Resenha do livro:

LYRA FILHO, Roberto. “Pesquisa em que Direito?”. Brasília: Editora Nair Ltda, 1984.

O texto de Roberto Lyra Filho, “Pesquisa em que Direito?”, originalmente escrito para
o Seminário sobre Pesquisa em Direito da PUC-Rio, traz à tona uma importante questão
pouco discutida no cenário jurídico: a visão errônea do conceito de Direito. Este equívoco,
cada vez mais frequente nos dias atuais, “toma a norma pelo Direito e a sanção pela norma”
(LYRA, 1984, p. 13), ou seja, apoia toda a práxis jurídica no chamado Direito positivo, ou
mais precisamente o Direito normatizado. Assim, o autor aborda como o campo do Direito é
complexo e vasto, e não deve ser condicionado ao esgotamento de leis.

A obra, escrita em trinta e oito páginas, está organizada em tópicos e subtópicos.


Inicialmente, o autor apresenta os fatores que motivam a necessidade de verdadeiramente
conhecer a concepção de Direito, daí apoia-se a grandes autores da história - como Marx e
Hegel - para desenvolver suas teorias e argumentos, pois “um pigmeu trepado às costas de
gigantes, vê mais do que estes” (LYRA, 1984, p. 9).

Imbuído da necessidade de discutir o Direito em si, Lyra inicia o debate no tópico 1


apresentando a metáfora do monarca nu, que diz que ao ser presentado com uma suposta
vestimenta que só poderia ser vista por aqueles que fossem inteligentes, saiu às ruas nu até
que uma criança o avistou e gritou: “O rei está nu!”. Lyra afirma que só poderia tomar o papel
do garoto da metáfora, uma vez que necessita questionar “os paramentos da competência
científica ou do poder social [...] tão ilusórios” (LYRA, 1984, p. 5). Dessa forma, concretiza o
papel do filósofo, como aquele que “continua indagando sobre o que não é diretamente
investigado” (LYRA, 1984, p. 6), ora o tema principal do seminário é a discussão a cerca da
pesquisa em Direito, entretanto, como discutir a pesquisa sem entender o fundamento do
Direito do qual se fala?
Atrelado a isso, faz duras críticas ao dogmatismo no Direito, posto que ciência alguma
está livre de questionamentos e problematizações. Vê-se, com clareza, a necessidade de
cooperação entre filósofos e sociólogos, para que estes não permitam uma filosofia acanhada
e obtida através de meios ilícitos ou uma produção de ideias “anêmica e pretensiosa” (LYRA,
1984, p. 7). Desse modo, a visão de um Direito alicerçado em normas estatais desconsidera e
impede a descoberta de “um verdadeiro e próprio Direito dos espoliados e oprimidos”
(LYRA, 1984, p. 6), visto que rejeita o que Ehrlich intitula de “direito social”.

A partir do tópico 2, o autor introduz na discussão a Nova Escola Jurídica Brasileira -


intitulada de NAIR - fundada por ele e fundamentada numa “preocupação com a dignidade
jurídica da Política” (LYRA, 1984, p. 8). Ao contrário do que fazem outros autores, Lyra
apresenta cinco proposições do que não é a NAIR, a saber: um sistema de dogmas; uma
revolução copernicana; um partido político ou clube jacobino; um conjunto de intelectuais
narcisistas; e um grupo de gabinete. A rejeição ao dogmatismo deve-se ao fato de não
oferecerem catecismo, mas antes de tudo uma proposta. Uma proposta apoiada em grande
parte no idealismo alemão - Kant e Hegel -, na filosofia e ciência marxianas e nas modernas
correntes da sociologia crítica e da hermenêutica material. É uma escola baseada no
socialismo democrático, que é “talvez, a opção mais polêmica do [...] repertório” (LYRA,
1984, p. 11).

Com o tópico 3, inicia-se uma visão mais aprofundada da distinção entre Direito e
norma. O autor elenca cinco proposições combatidas pela NAIR, que são comuns ao
positivismo. São elas: tomar a norma pelo Direito; definir a norma pela sanção; reconhecer
apenas ao Estado o poder de sancionar e normar; abaixar-se ante ao “fetichismo do chamado
direito positivo” (LYRA, 1984, p. 12); e transformar o direito em um conjunto de restrições.
Segundo ele, a confusão feita entre as concepções de Direito e norma assemelha-se a
equivocar-se entre a embalagem e o produto.

Esta inversão dá-se, ainda, pelo pensamento jurídico tradicional que insiste em “dar
como Direito único o chamado ‘direito positivo’” (LYRA, 1984, p. 14), descartando as
normas jurídicas supra-estatais. Destarte, o Direito, que ao invés de obter sua concepção na
liberdade, define-se agora como restrição pura e simples a esta.

Entretanto, o autor deixa claro o desejo de não nulificar o direito estatal (direito
positivo), mas tão simples de vê-lo “subordinado à dialética do Direito” (LYRA, 1984, p. 15),
isto é, apresentar as normas desencarceradas dos dogmas, prontas a retificações e
questionamentos, ponderando a razão humana em direção ao fato, e não mais o observando e
ignorando-o.

A NAIR, portanto, tem este papel, isto é, renovar a abordagem do Direito, permitindo
que o processo continue, como Lyra mesmo define, contraditório, rico e complexo. Mediante
isso, dentro do tópico 4, o autor reitera o distanciamento da NAIR com as correntes do
positivismo e do jusnaturalismo. Afasta-se daquela, pois como já foi dito, não se identifica
com a normatividade do pensamento positivo, que, segundo Lyra, está totalmente mergulhado
nos interesses das classes dominantes. E muito menos bebe das águas do jusnaturalismo, que
sendo uma teoria de leis imutáveis, universais, invioláveis e atemporais, leva a Justiça dos que
dominam para o mesmo meio “da dominação espoliadora e repressiva” (LYRA, 1984, p. 16).

Por isso, Lyra elenca mais proposições oriundas da NAIR, sendo elas: a) “o Direito é,
antes de tudo, liberdade militante” (LYRA, 1984, p. 16), isto é, o Direito deve ser um
processo e um modelo de liberdade, e não uma ordem social determinada, tampouco norma e
princípio abstrato; b) a Justiça determina-se, novamente, pela liberdade, mas uma liberdade
conscientizada, ou seja, que reflete os direitos daqueles que são dominados e oprimidos; c) o
padrão de legitimidade das normas deve estar pautado no vetor histórico; d) a libertação não
deve estar isenta de limites jurídicos, contudo não deve aceitar tutores que determinem a
liberdade de cada um, pois “a emancipação das classes trabalhadoras não significa uma luta
por privilégios e monopólios de classe e, sim, uma luta por direitos e deveres iguais” (MARX
& ENGELS, p. 322); e a positivação dialética, que segundo Lyra, impede que o Direito seja
atado a uma ordem social e ao “direito positivo”, pois sua concretização dá-se mediante lutas
e direitos reclamados.

O Direito não se constitui, portanto, em “uma ordem natural e fixa, nem uma ordem
social e concreta, nem sequer uma ordem que troca de conteúdo, dentro de parâmetros
conceituais ou substanciais do Estado ou da razão pura” (LYRA, 1984, p. 18). Tal definição,
proposta pelo autor, contrapõe-se a definição da visão positivista, que diz que o Direito
caracteriza-se por um preceito moral de repreensão, ou seja, dotado de leis e normas, conduz a
sociedade baseado em regras com o intuito de punir aqueles que se distanciam de suas
preceituações. Acerca disso, o autor faz cinco sugestões: restituir ao Direito o seu lugar
próprio, a fim de cancelar os ideais positivistas; determinar para ele o objetivo da liberdade,
luta pela justiça histórica, social e concreta; enriquecer os direitos humanos através da
sustentação dos direitos das classes, grupos e povos ascendentes; destacar que “a própria
práxis transformadora do mundo tem limites jurídicos” (LYRA, 1984, p. 19); e por fim,
mostrar que a positivação dialética é um processo necessário, pois é transformativo, superior e
“mais amplo do que qualquer ordem determinada ou conjunto de normas produzido” (MARX,
p. 453).

Estas indicações estão justificadas nas influências sofridas pela NAIR, a saber: a
herança liberal – garantias democráticas e cortadas as aderências burguesas -, a dialética de
Hegel, a ontologia jurídica de Marx, a sociologia crítica marxiana dos anos maduros, a
contribuição da sociologia crítica pós-marxiana e a hermenêutica material. Observa-se,
portanto, o engajamento da NAIR em desconstruir uma concepção de Direito equivocada e
distante da realidade, restaurando o conceito de Direito nascido da história, “no útero da
libertação” (LYRA, 1984, p. 20) e fecundado pelo progresso. Isto, porque quando um povo
reclama seu direito, não se refere à norma propriamente dita, mas tão somente ao conteúdo
jurídico em que está implantada.

Apesar de o poder estatal, segundo Lyra, estar sob o domínio das classes e grupos
dominantes, o parâmetro jurídico parece posicionar-se a favor dos espoliados e oprimidos.
Um exemplo disso, citado pelo autor, é o direito de greve, que não se originou de normas
estatais, mas contra e supra legem (contrário à lei e acima da lei).

“Consciência é conscientização, assim como liberdade é libertação” (LYRA, 1984, p.


22) e é esta conscientização que, segundo Lyra, está presente na História, na “busca e
realização gradual da Justiça concreta e eficaz” (LYRA, 1984, p. 22), juntamente com as
pressões, superações e rupturas. Desse modo, os direitos históricos, caracterizados pelo
revezamento de grupos, classes e povos, são uma evolução dos direitos humanos.

O tópico 5, menor em extensão que os demais, conclui, baseado nas proposições da


NAIR anteriormente expostas, que o Direito nada mais é do que um “padrão atualizado de
Justiça Social militante” (LYRA, 1984, p. 30), ou seja, ele suscita a necessidade da liberdade,
seja ela de caráter individual, grupal ou nacional.

Por fim, o tópico 6, que pode ser segmentado em três grandes pontos necessários a
discussão: as dificuldades para uma realização correta da pesquisa jurídica; diferenciação
entre o “jurista dogmático e o verdadeiro jurista” (LYRA, 1984, p. 33 e 34); e a necessidade
de união entre sociólogos e juristas.
Para iniciar, o autor reforça o comprometimento da NAIR com a pesquisa jurídica,
entretanto sem esquecer toda a meditação já feita a cerca do Direito do qual se debate. Por
isso, retoma a importância do filósofo, posto que “o sobrevoo filosófico ajuda o pesquisador
de campo a não se perder entre as árvores, desconhecendo o mapa da floresta” (LYRA, 1984,
p. 32), ou seja, são os questionamentos oriundos do pensamento filosófico que permitem uma
visão geral e ampla do tema que se debate. O filósofo é, assim, o garoto que alerta o monarca
de sua nudez e diz o que ninguém tem coragem de dizer.

No primeiro tópico debatido nesta seção, o autor discorre sobre dificuldades que
precisam ser superadas para um estudo e realização efetivos da pesquisa jurídica. Cita o que
ele chama de esclerose institucional, que advém do poder social e reduz “os canais de
funcionamento de universidades e instituições científicas” (LYRA, 1984, p. 32). Além disso,
critica a redução do jurista “a beija-flor de pacotes e o Direito à castração da liberdade”
(LYRA, 1984, p. 32). Isto torna inábil uma visão de investigador “sério, fecundo e eficaz”
(LYRA, 1984, p. 32).

Consoante a isso, Lyra defronta dois tipos de juristas, o jurista “verdadeiro” e o jurista
“dogmático”. Este, segundo ele, declara a abordagem feita de forma crítica como não jurídica,
gerando desprestígio na comunidade em que estão inseridos, pois “enterram o Direito e
desviam a pesquisa para a visão falsa do universo jurídico” (LYRA, 1984, p. 33). Já aquele,
possui um ponto a mais, o de ser cientista social. Para Lyra, a união da sociologia com o
Direito – sociólogos e juristas – é fundamental e extremamente fecunda, visto que impede a
adoção do dogmatismo. Para exemplificar, apresenta alguns exemplos de estudos sociológico-
jurídicos, segundo a visão da NAIR, são eles: “o estudo sobre o silêncio e a inércia sociais”;
“a análise da jurisprudência contra legem”; e “o confronto entre os parâmetros da
Criminologia tradicional”. Para tanto, esta união da ciência social ao Direito deve evitar a
intransigência e a pseudoneutralidade, uma vez que, segundo o autor, ser neutro castra o
Direito, pois se nega a fazer política, quando na verdade o que está fazendo verdadeiramente é
política. Isso gera o que está em discussão neste texto, a troca do Direito pela norma estatal.

Aliado a isso, Liebknecht diz que política é a arte do impossível, sendo este impossível
passível de tornar-se possível, quando nos “conscientizamos para pressionar e conquistar”
(LYRA, 1984, p. 37).

O texto, escrito em 1984, possui uma ideologia totalmente voltada para os princípios
socialistas e de esquerda. O ano de publicação, não arbitrário, caracterizou-se por um
momento em que a população ansiava por mudanças realmente efetivas, tanto que no ano
seguinte chegaria ao fim a Ditadura Militar, que dominou a sociedade brasileira por vinte e
um anos. O ano de 1984 foi um ano que pedia pela redemocratização e anistia, o que inspirou
muitos autores como Lyra, a escrever e a falar sobre tais temas.

Roberto Lyra Filho diplomou-se em Letras (Cambridge, 1942) e em Direito


(Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, 1949), quando já era jornalista e possuía relevante
produção literária, quase toda sob o pseudônimo de Noel Delamare. Escreveu poesia e, com
domínio de línguas, traduziu diversas obras. Foi um pensador da esquerda que, no início de
sua carreira jurídica, se destacou por estudos dogmáticos, campo que foi perdendo
importância em seu pensamento, progressivamente mais ligado ao Humanismo Dialético e à
Filosofia e Sociologia Jurídica, campo em que é um dos expoentes brasileiros do pensamento
jurídico de esquerda.

Referências Bibliográficas

1. E. EHRLICH, Grundlegung der Soziologie des Rechts, München, Dunker & Humblot,
1913.

2. MARX, in K. MARX & ENGELS. Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Ômega, s/d, I,
p.322.

3.WIKIPEDIA. Roberto Lyra Filho. Disponível em:


<https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Roberto_Lyra_Filho>. Acesso em: 16 ago. 2017.

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