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Universidade Federal do Acre

LETRAMENTO: CONCEITOS E (RE)SIGNIFICAÇÕES

Paulo de Alencar Souza

A obra Compreensão e Definição de Letramento1, escrita por Brian V. Street,


professor emérito de idiomas no King’s College London e professor visitante na Faculdade
de Educação da Universidade da Pensilvânia, reflete em muitos aspectos os debates
internacionais que giram em torno da definição e da compreensão do conceito de letramento.
O trabalho do professor Street tem como principal objetivo mapear as principais vertentes
deste debate e identificar as linhas sensíveis de investigação como subsídio teórico para o
Relatório de Monitoramento Global Educação Para Todos2 (EFA) desenvolvido pela
UNESCO.

Paralelo a isso, no entanto, o autor logo esclarece que o objetivo de sua pesquisa não
se limita apenas em oferecer uma síntese das principais vertentes teóricas que discutem o
significado de letramento, mas também, colocar em evidência as mudanças significativas às
quais estas foram submetidas ao longo dos anos. O texto de Street estrutura-se em torno de
três seções, sendo respectivamente: Termos de Referência, ‘Significados de Letramento’ em
diferentes tradições e Letramento e Aprendizagem.

Inicialmente o primeiro eixo é utilizado pelo autor para situar seus leitores,
apresentando os argumentos que fundamentam e justificam os objetivos de seu trabalho
considerando o que os estudos mais recentes desenvolvidos em torno do letramento tem
revelado, como por exemplo, que o termo vem constantemente sofrendo ressignificações,
principalmente devido às transformações sociais que ocorreram nos últimos anos.

1
​Originalmente​
, Understanding and Definig Literacy
2
​Education for All Global Monitoring Report
Nessa perspectiva, a professora Márcia Regina Terra, doutora em Linguística
Aplicada pela Unicamp, salienta: desde que as investigações sobre letramento se constituíram
como um campo de estudos, é possível observar que, ao mesmo tempo em que os debates e
discussões em torno do conceito de letramento se intensificam, pode-se firmar,
paralelamente, a inexistência ou impossibilidade de se estabelecer certa harmonia em relação
ao conceito. Para ela, o “letramento parece ter hoje em dia tantas definições quantas são as
pessoas que tentam definir a expressão” (TERRA, 2013, p.31).

Ao introduzir o segundo eixo, o professor Street argumenta que o significado de


letramento como objeto de investigação e ação é altamente contestado e que, para
compreender o termo e suas diferentes aplicações é necessário penetrar no que ele define
como sendo ​espaços contestados.​ Nesse texto, ele sugere quatro grandes áreas de
investigação que permitem o início de uma compreensão mais sistemática em relação às
diferentes abordagens sobre letramento, nomeadas por ele como: Letramento e
Aprendizagem; Abordagens Cognitivas de Letramento; Abordagens Práticas Sociais e
Letramento como Texto.

Ao discutir a respeito do Letramento e Aprendizagem o professor afirma que para


muitos o uso do termo ‘letramento’ evoca questões relacionadas ao processo de alfabetização,
ou seja, como as crianças aprendem a ler e a escrever. O mesmo pode ser observado na
referência dos programas de alfabetização para adultos, um interesse quase que limitado à
superação do analfabetismo pelo ensino da grafia e da leitura. No entanto, uma vez que o
olhar se dirige para outras questões e para outras tradições investigativas torna-se evidente
que o foco em “letramento e leitura” acaba marginalizando outros significados.

Em seu trabalho, intitulado Letramento & Letramentos: uma perspectiva


sócio-cultural dos usos da escrita, Torres (2013), com base nos estudos de Barton (1994),
argumenta que a chave para novas percepções acerca do letramento se encontra no
estabelecimento de uma efetiva relação entre escrita e leitura em suas práticas e contextos
sociais. A autora pontua ainda que se faz necessário reconhecer, fundamentalmente, entre
outros aspectos, a existência de múltiplos “letramentos”, utilizados para designar fenômenos
que intrinsecamente estão envolvidos nas diferentes práticas da escrita e da leitura.
Para Street, as recentes pesquisas realizadas no meio acadêmico têm ampliado o
espaço para o debate e para a construção de novas concepções, porque na medida em que os
trabalhos de novos autores começam a ser lidos, novas percepções sobre letramento começam
a surgir, sugerindo, por exemplo, que os programas de letramento podem melhorar
significativamente, concentrando suas práticas de aprendizagem nas dinâmicas da vida
cotidiana e não apenas nos mecanismos formais utilizados pela escola regular.

Street segue o texto argumentando que muitas teorias sobre letramento e


aprendizagem repousam em suposições mais profundas sobre a cognição, particularmente
sobre as consequências cognitivas da aprendizagem ou aquisição de letramento. Até
recentemente a suposição mais aceita fundamentava-se na existência de uma grande divisão -
utilizada para distinguir ‘primitivo/moderno’ ou ‘desenvolvido/subdesenvolvido’, para
‘letrados’ e ‘não-letrados’ - considerando o processo de alfabetização fundamental para o
funcionamento da sociedade.

O autor, logo em seguida, apresenta algumas pesquisas antropológicas que buscaram


identificar as consequências cognitivas da alfabetização em ambientes da ‘vida real’ e que
evidenciaram a inexistência de ligações causais diretas estabelecidas entre alfabetização e
desenvolvimento cultural, isto é, não há nenhuma evidência de que a escrita promove o
desenvolvimento de habilidades mentais superiores. Entretanto, a rejeição da ‘tese de
letramento’, de acordo com Street, não pressupõe necessariamente o abandono ou a redução
dos programas de alfabetização, mas a reflexão acerca das justificativas utilizadas para a
condução desses trabalhos.

Uma outra perspectiva tem enfatizado a compreensão das práticas de letramento em


seus contextos sociais e culturais. Para o professor Street, as abordagens prático sociais têm
sido influenciadas por uma perspectiva mais etnocêntrica. Muitos trabalhos vinculados a essa
tradição enfocam os significados diários, as práticas e usos do letramento em contextos e
laços culturais específicos. Para caracterizar essas novas abordagens o autor apresenta uma
distinção entre um modelo autônomo e um modelo ideológico de letramento.

O modelo autônomo pressupõe que o letramento em si, de forma autônoma, terá efeito
sobre outras práticas sociais e cognitivas enquanto o modelo ideológico oferece uma visão
culturalmente mais sensível, de modo que as práticas de letramento podem variar de um
contexto para outro. Nesse sentido, o letramento pode ser considerado uma prática social e
não apenas uma habilidade técnica ou neutra, sempre incorporado por elementos
epistemológicos construídos socialmente. Seus significados e suas práticas, portanto, são
ideológicos, sempre enraizados em uma determinada visão de mundo.

Street conclui introduzindo novos conceitos, como multimodalidade e


multiletramentos. O autor menciona que muitos educadores, linguistas e teóricos literários
tendem a olhar para o letramento através dos textos produzidos e consumidos pelos
indivíduos alfabetizados. Contudo, a linguagem deve ser vista apenas como um dos vários
meios através dos quais ocorre a comunicação. O professor, com base em outros autores,
sugere que, como a linguagem, elementos visuais (imagens), gestos e ações têm sido
desenvolvidos através de usos sociais com recursos articulados para a representação.

Os indivíduos fazem suas escolhas a partir dos recursos de representação disponíveis,


dessa forma, as práticas de letramento podem ser compreendidas como um conjunto existente
entre várias outras práticas comunicativas. Street, ao final da discussão, questiona a
relevância dos letramentos desenvolvidos nas escolas e nos programas de alfabetização para
adultos. Estariam eles realmente levando os aprendizes a atender as demandas atuais do
mundo globalizado, com suas novas exigências e sua nova ordem de trabalho?

O professor conclui seu terceiro e último eixo afirmando que todos têm diferentes
necessidades de letramento. A falta de atenção aos conceitos e perspectivas de determinados
programas podem acabar ‘cegando’ seus idealizadores e usuários. É necessário explorar
novas abordagens para os programas de letramento, afinal parece mais provável que as novas
exigências do mercado de trabalho e do modo de vida contemporâneo se (re)direcionem para
a utilização das tecnologias digitais, levando os aprendizes a se mover através de diversos
gêneros e tarefas mais contextualizadas do que a sala de aula tradicional, com suas
tecnologias obsoletas e visões limitadas. Street argumenta que se queremos ter domínio sobre
nossas práticas é preciso inicialmente compreender os pressupostos teóricos nos quais elas se
baseiam e, principalmente, à luz da pesquisa científica, reconhecer suas implicações e
consequências quando promulgadas em diferentes contextos.
A pesquisa desenvolvida pela professora Márcia Regina dialoga veementemente com
algumas das observações realizadas por Street. Ela também considera que não há como
definir o fenômeno do letramento de forma abstrata, por esse motivo, vem sendo
compreendido, apropriadamente, como “um conjunto de práticas sociais” (TORRES, 2013, p.
33). A doutora em Linguística Aplicada destaca ainda que justamente por se constituir um
tema de natureza complexa, sujeito a variações históricas e espaciais, sobretudo por sua
relevância para algumas sociedades, as investigações que permitem ampliar e aprofundar as
diferentes abordagens em torno da compreensão desse fenômeno são mais do que
bem-vindas.

Em suma, o texto de Street aborda uma temática bastante relevante e de suma


importância para a formação de educadores. O autor utiliza várias referências e, ao retomar os
assuntos fundamentais para a compreensão dos conceitos descritos, permite que o leitor tenha
acesso a diversas informações complementares. Entretanto, com uma linguagem quase que
exclusivamente técnica e científica, o autor poderia alcançar mais leitores com a escolha de
uma linguagem simplificada, ampliando o acesso às informações por ele sistematizadas.

Em muitos momentos, o próprio público alvo de sua publicação pode encontrar


dificuldades para se localizar entre os parágrafos extensos e o excesso de citações ao longo do
corpo do texto. Embora essas características aparentemente sejam “irrelevantes” elas acabam
por atribuir à leitura um aspecto denso e cansativo. No entanto, mesmo cometendo alguns
equívocos durante a elaboração do texto, o professor Street faz jus a seu reconhecimento e,
mais uma vez, nos presenteia com uma obra contemporânea capaz de contribuir não apenas
para a sistematização do conhecimento científico, mas acima de tudo, desenvolver em seus
leitores um espírito mais crítico, levando-os a refletir sobre suas práticas e a (re)significar
constantemente suas concepções​.

Referências

STREET, B. V. ​Literacy in theory and practice​. Cambridge University Press, 1984. p. 1-65.

TERRA, Márcia Regina. Letramento & Letramentos: uma perspectiva sócio-cultural dos usos
da escrita. ​DELTA​, São Paulo, v. 9, n.1, p. 29-58, 2013.

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