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Revista Brasileira de Educação do Campo

ARTIGO

Interfaces entre escolas do campo e movimentos sociais no


Brasil

Ramofly Bicalho Santos1


1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ, Departamento de Educação do Campo, Movimentos
Sociais e Diversidade. Instituto de Educação. Campus Seropédica. BR-465, Km 7, Seropédica, Rio de Janeiro.
Brasil. ramofly@gmail.com.

RESUMO. O presente artigo tem como objetivo central


apresentar reflexões acerca da produção crítica do
conhecimento, atrelada aos princípios da educação do campo e
dos valores contra hegemônicos defendidos pelos movimentos
sociais. Neste trabalho, realizamos uma sucinta abordagem,
indicando os principais problemas enfrentados no fechamento
das escolas do campo. Desenvolvemos uma pesquisa
bibliográfica e documental, utilizando fontes de investigação,
legislações, portarias, decretos e referenciais teóricos produzidos
sobre tal temática no Brasil. Concluímos que a produção
coletiva do saber, em parceria com educandos, educadores,
comunidades e movimentos sociais de luta pela terra, pode
dialogar com histórias, memórias, identidades, desejos, valores e
reconhecimento, fortalecendo os debates em torno da educação
do campo, na estreita relação com as universidades públicas,
escolas, secretarias municipais e estaduais de educação.
Constatamos que tal articulação é um dos principais desafios a
ser enfrentado pelos sujeitos, individuais e coletivos. A escola,
nesse sentido, pode proporcionar reflexões que eduque e
contribua para apontar caminhos de uma realidade mais humana
para as diversas populações camponesas.

Palavras-chave: Escolas do campo, Movimentos Sociais,


Educação do Campo.

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Interfaces field schools and social movements in Brazil

ABSTRACT. This article has as main objective to present


reflections on the critical production of knowledge, linked to the
principles of the field of education and values against
hegemonic defended by social movements. We carried out a
succinct approach, indicating the main problems facing the
closure of schools in the field. Developed a bibliographical and
documentary research, using sources of research, laws,
ordinances, decrees and theoretical frameworks produced on this
theme in Brazil. We conclude that the collective production of
knowledge, in partnership with students, educators, communities
and social movements struggling for land, can dialogue with
stories, memories, identities, desires, values and recognition,
strengthening the debates around the field education, close
relationship with public universities, schools, municipal and
state education. We note that this joint is one of the main
challenges to be faced by the subjects, individual and collective.
The school, in this sense, can provide reflections that educates
and helps to point out ways of a more human reality for many
rural populations.

Keywords: Schools Field, Social Movements, Education Field.

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Escuelas de campo y interfaces movimientos sociales en


Brasil

RESUMEN. Este artículo tiene como principal objetivo


presentar reflexiones sobre la producción crítica de
conocimiento, vinculada a los principios de la esfera de la
educación y los valores contra hegemónica defendidos por los
movimientos sociales. Hemos llevado a cabo una aproximación
sucinta, con indicación de los principales problemas que
enfrenta el cierre de escuelas en el campo. Desarrollado una
investigación bibliográfica y documental, el uso de fuentes de
investigación, leyes, ordenanzas, decretos y marcos teóricos
producidos sobre este tema en Brasil. Llegamos a la conclusión
de que la producción colectiva de conocimiento, en asociación
con los estudiantes, educadores, comunidades y movimientos
sociales que luchan por la tierra, puede dialogar con historias,
memorias, identidades, deseos, valores y el reconocimiento, el
fortalecimiento de los debates en torno al campo de la
educación, estrecha relación con las universidades públicas, las
escuelas, la educación municipal y estatal. Observamos que esta
articulación es uno de los principales retos que hay que afrontar
por los sujetos, individuales y colectivos. La escuela, en este
sentido, puede proporcionar reflexiones que educa y ayuda a
señalar las formas de una realidad más humana para muchas
poblaciones rurales.

Palabras clave: Campo de Escuelas, Movimientos Sociales,


Campo de la Educación.

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Introdução processos de ensino-aprendizagens nas


escolas do campo vinculadas aos
Nossa intenção com este artigo é movimentos sociais, em especial, o MST –
apresentar algumas posições acerca da Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
educação do campo, numa estreita relação Terra, na busca por direitos humanos e
com os movimentos sociais. Compreender respeito às diferenças sociais, culturais e
ainda os debates que incorporam processos religiosas. Uma das nossas preocupações
de ensino-aprendizagens nas escolas do foi conhecer os princípios políticos e
campo, ora de maneira muito superficial e pedagógicos da educação do campo, suas
contraditória, utilizando as categorias: bandeiras de lutas e projetos
educação rural, educação no campo e emancipadores, considerando os seguintes
ensino tradicional. Em outras ocasiões, desafios: formação política dos sujeitos,
mais articuladas às seguintes políticas trabalho coletivo, valorização das histórias
públicas: Diretrizes Operacionais por uma de vida, consciência social, educação
Educação do Campoi, PROCAMPO – popular e saberes históricos de educadores,
Programa de Apoio à Formação Superior educandos e lideranças dos movimentos
em Licenciatura em Educação do Campoii, sociaisv. (Gohn, 2002).
Decreto Presidencial nº 7.352iii e o A educação do campo na sua
PRONACAMPO – Programa Nacional de estratégica relação com os movimentos
Educação do Campoiv. Nesse sentido, sociais pode contribuir no fortalecimento
nosso objetivo é compreender as escolas das escolas, reconstruindo passados,
do campo atreladas aos fatores culturais, memórias, identidades e histórias de vida
políticos e sociais que influenciam as de educadores e educandos. Estes sujeitos
diferentes etapas e processos históricos de poderão se envolver com as questões
produção dos saberes. Entendemos que a político-pedagógicas apresentadas pelos
formação docente e as transformações movimentos sociais, numa construção
atuais da educação do campo, podem ser coletiva que considere as inúmeras
vistas como possibilidades de expressão da possibilidades do fazer democrático e
gestão democrática e emancipatória. crítico. Segundo (Bogo, 2000, p. 31): “a
Este texto é parte das reflexões e transformação da sociedade se assemelha à
pesquisas realizadas, nos últimos anos, construção de um prédio, não basta ter uma
acerca das possíveis relações entre os planta bem feita na mão, é preciso que lá

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nas minas haja operários extraindo predominantemente, nas escolas


cimento, outros transportando, outros municipais do campo no Rio de Janeiro.
cavando e transportando areia (...)”. Nossa preocupação com a realidade não foi
Nesta investigação utilizamos, quantificá-la, visto que exploramos um
predominantemente, a pesquisa universo de significações, conhecimentos,
bibliográfica e documental, considerando o identidades, memórias, experiências e
universo das crenças, valores, atitudes, histórias de vida bem diversificadas,
motivações e histórias dos sujeitos, contribuindo para formação de novos
individuais e coletivos, presente nas sujeitos sociais, numa perspectiva popular
escolas. Ela permitiu explorar a e histórica. Acreditamos nessa dimensão
diversidade de materiais bibliográficos educativa e no fazer pedagógico que tais
vinculados ao MST, em especial, o sujeitos realizam através da organização
Caderno de Educação n 8 – Princípios da coletiva. Importante ressaltar que a
Educação no MST, além de legislaçõesvi, observação foi uma das técnicas utilizadas,
decretos e portarias que tratam das em especial, por se tratar de estudos na
políticas públicas de educação do campo área de ciências humanas e sociais.
no Brasil, formação docente, projetos Embora seja uma técnica relativamente
político-pedagógicos emancipadores, espontânea, a observação exige
agricultura familiar, orgânica e considerável sistematização de método,
agroecológica. As minhas atividades na que a potencializa.
Coordenação e Docência da Licenciatura
Escolas do campo e movimentos sociais
em Educação do Campovii e do Programa
Escola Ativaviii, ambos na UFRRJ – Partimos do princípio que a mística,
Universidade Federal Rural do Rio de a luta pela liberdade, a utopia, a
Janeiro, permitiu uma inserção social mais solidariedade e os trabalhos coletivos são
profunda na realidade, explorando a valores essenciais na consolidação das
diversidade de espaços, documentos e escolas do campo atreladas aos
referências bibliográficas vinculadas aos movimentos sociais. Soma-se ainda, a luta
movimentos sociais. por reforma agrária, por projetos políticos
Com tal metodologia, aprofundamos pedagógicos emancipadores que
a compreensão da realidade, respeitando as contribuam na formação de educadores e
experiências pessoais e sociais dos educandos, a defesa se uma alimentação
indivíduos e seus coletivos, saudável, considerando a agricultura

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familiar, orgânica e agroecológica. Nessa pelo reconhecimento das identidades


conjuntura, é essencial o envolvimento das vinculadas a terra. Reafirmamos que as
secretarias estaduais e municipais no místicas, os sonhos, as poesias e lutas
debate sobre os princípios da educação do revigoram os sujeitos, individuais e
campo. Devem considerar na organização coletivos, da educação do campo. Tais
curricular, por exemplo, as emoções valores elevam o entusiasmo e contribuem
presentes nas cantorias, nas músicas, no enfrentamento dos fracassos e
poesias, literaturas e histórias de vida dos desajustes de um país com altíssima
sujeitos camponeses. Importante ainda concentração de renda e terra. No processo
articular as diversas atividades acadêmicas de consolidação das lutas por
e profissionais realizadas por educadores e emancipação, cultura e diversidade, é
educandos nas escolas do campo. Para os essencial a estreita articulação entre
movimentos sociais, as místicas e escolas do campo, movimentos sociais e
encenações, os abraços, bonés e bandeiras mística. (Souza, 2010, 2011; Vendramini,
podem colaborar com as noções de 2009, 2000).
cidadania e consciência emancipadora, Nesta conjuntura, são incentivadas as
através de atos públicos e ocupações dos relações entre os domínios teóricos,
latifúndios improdutivos. (Benjamin & práticos, intelectuais e da cultura popular.
Caldart, 2000; Antunes & Martins, 2012; Vive-se a esperança, a dignidade e os
Caldart, 2010). valores de um mundo melhor para
Com os princípios da educação do crianças, jovens, adultos, homens e
campo são apresentadas as possibilidades mulheres, independente, entre outros
de lutas e construção de uma sociedade aspectos, de credo religioso, faixa etária,
mais justa, solidária e cidadã. Que valorize etnia e gênero. Busca-se a emancipação
os sonhos e as utopias dos trabalhadores dos indivíduos, valorização do trabalho
camponeses e seus movimentos sociais, coletivo e fortalecimento da sociedade civil
numa defesa constante por educação organizada. (Stédile, 1999, p. 130) afirma
emancipadora. Tais princípios alimentam a que: “os exemplos de sacrifícios são
esperança de lideranças e militantes enormes. As famílias permanecem tanto
quilombolas, indígenas, caiçaras, tempo acampadas porque têm a mística e
acampados e assentados da reforma os princípios organizativos, não é só
agrária. Mobiliza homens e mulheres no porque a terra é necessária”.
enfrentamento das dificuldades e na luta

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As músicas e cantorias utilizadas por educandos, trabalhadores do campo e da


agricultores familiares, educadores e cidade. (Molina, 2014; Souza, 2012).
educandos nas escolas do campo, são Outro aspecto extremamente
extremamente significativas na valorização relevante no diálogo com as escolas são as
e reconhecimento dos espaços de ensino- licenciaturas em educação do campo,
aprendizagens. Serve como renovação dos oferecidas por várias universidades
sonhos, utopias, ideais e valores da públicas brasileiras. Nesses espaços,
dignidade humana. Reconhecer as presenciamos inúmeros debates, conflitos
realidades camponesas, suas festas, de ideias e reconstrução de valores.
confraternizações, piadas, memórias, Mecanismos que fazem emergir sonhos e
enfrentamentos com autoridades policiais e esperanças de educadores, educandos,
marchas na luta pela terra, são atitudes movimentos sociais e trabalhadores rurais,
valorizadas pelos sujeitos da reforma num projeto coerente com a realidade de
agrária e pela educação do campo, numa vida desses sujeitos. É estratégica a
perspectiva emancipadora, em diálogo com valorização de tais escolas como espaços
as místicas, lembranças dos antigos de construção da cidadania plena, contrária
companheiros e renovação das forças nos às ações reprodutivistas e produtoras das
momentos de incertezas. desigualdades sociais, diretamente
Tais valores podem contribuir para envolvida com as lutas por inclusão social,
enfrentar, entre outras questões, o defesa dos direitos humanos, soberania
latifúndio improdutivo, a miséria no alimentar, agricultura familiar,
campo, a utilização dos agrotóxicos, as agroecológica e orgânica. Deve ainda
sementes transgênicas e o irresponsável combater e denunciar a utilização dos
fechamento das escolas do campo no agrotóxicos, transgênicos, assassinatos de
Brasil. Mostram ainda, o desrespeito lideranças, criminalização dos movimentos
acerca da desvalorização dos saberes e sociais e a histórica presença dos
histórias de vida dos sujeitos. Nessa latifúndios improdutivos. Uma escola do
conjuntura de opressão, os movimentos campo que busque a igualdade e o direito a
sociais intensificam a formação política terra. Que saiba lidar, entre outras
com suas lideranças, contribuindo na questões, com as diferenças de gênero,
consolidação de espaços emancipadores étnica, social e de geração, num projeto
com intensa atuação de educadores, político pedagógico que contribua para
emancipação de educadores e educandos,

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valorizando a produção escrita e oral. presentes nas escolas do campo.


(Caldart; Stédile & Daros, 2015; Caldart; Entendemos que as histórias de vida de
Pereira; Alentejano & Frigotto, 2012). educadores e educandos poderão contribuir
Nos processos de formação e para ressignificar as relações sociais, a
experiências educativas reais, os construção coletiva e emancipadora do
movimentos sociais lutam por escolas que conhecimento, como espaços alternativos
protagonizem histórias, individuais e de produção crítica dos saberes.
coletivas, problematizando-as. A luta por Historicamente, a escola do meio
uma educação do campo passa pelo rural, atrelada ao tradicionalismo, não
enfrentamento das várias cercas impostas reconheceu o potencial de educadores e
pela escola tradicional, com seus projetos educandos, suas histórias de vida, valores e
autoritários e deslocados da realidade sonhos. Diversas oportunidades foram
camponesa. Essas cercas quando perdidas na construção dessa identidade do
derrubadas simbolizam respeito, campo. (Honneth, 2003) sinaliza que o
organização e valorização dos movimentos desrespeito à identidade pode acarretar
sociais. Faz a sociedade refletir acerca das maus-tratos práticos. Esse desrespeito
dificuldades encontradas em nosso país, retira do ser humano todas as
em especial, a miséria, o latifúndio e o possibilidades da livre disposição sobre o
analfabetismo. Esses são espaços de seu corpo. Representa a espécie mais
aprendizagens coletivas, construção elementar de rebaixamento pessoal e pode
política e luta pelo reconhecimento provocar a baixa-estima dos sujeitos,
identitário. (Honneth, 2003). afetando, inclusive, as diversas atividades
Importante ressaltar a contribuição coletivas. Nessa conjuntura, os valores e os
das diretrizes nacionais por uma educação saberes da terra se distanciam da realidade
do campo, marco nos debates sobre as de vida de educadores e educandos, dos
políticas públicas em educação do campo, livros didáticos, dos conteúdos históricos e
defendidas pelos diversos movimentos das metodologias. Com a intensificação
sociais na formação política e pedagógica das contradições internas, o
de pescadores, ribeirinhos, quilombolas, reconhecimento identitário é recusado.
acampados e assentados da reforma (Honneth, 2003) destaca que o processo de
agrária, caiçaras, entre outros sujeitos construção e fortalecimento da identidade
históricos e sociais envolvidos com a luta pessoal e coletiva dos sujeitos passa,
pela terra, as memórias e identidades

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necessariamente, pela luta por libertos e construir comunidades


bonitas, com outras relações sociais,
reconhecimento. baseadas na amizade, na
Nas diretrizes nacionais por uma solidariedade. Enfim, comunidades
desenvolvidas, no sentido pleno da
educação do campo, os conceitos de palavra.
identidade, histórias de vida e memória
Na educação do campo, a
são essenciais. (Caldart, 2004) afirma a
formação integral dos sujeitos deve
necessidade de assumir o conceito de
considerar os aspectos político-
identidade com orgulho, enfrentando os
pedagógicos, na sua estreita relação com as
desafios presentes. A educação como
atividades coletivas desempenhadas nas
prática da liberdade (Freire, 1983) pode
lavouras, na criação dos animais, nas
contribuir na formação de sujeitos que
marchas e escolas do campo. Não se
respeitem tais valores e os diversos
constrói, absolutamente nada de autônomo
aspectos, históricos e culturais, que dele
e emancipador, se os sujeitos, individuais e
fazem parte. A educação do campo, e nela,
coletivos, estão distantes das questões
a educação libertadora, os debates acerca
identitárias e históricas que tocam o fazer
da reforma agrária e a formação política
pedagógico. A organização coletiva de
de educadores, educandos e lideranças dos
educadores e educandos é estratégica na
movimentos sociais, defende, entre outros
superação dos desafios.
aspectos, as inúmeras possibilidades de
Importante salientar nossa
transformação nas relações de poder, na
preocupação com as diversas
valorização da produção agroecológica e
possibilidades de envolvimento geradas
orgânica, além de denunciar a utilização
pelo coletivo. Este não é libertador,
de agrotóxicos, pesticidas e vermicidas. O
quando as atitudes tomadas passam pelo
educador/a do campo deve se apropriar
receio de ser diferente e contrária a
desses debates, respeitando, por exemplo,
maioria do grupo. Assim, nesse processo
as diferentes posturas acerca das relações
de organização e envolvimento coletivo,
de gênero, em ambientes solidários,
(Abramovay, 1985, p. 57) argumenta que:
essenciais na construção de uma sociedade
“os acampados, ao se organizarem
mais justa para todos. Para (Stédile, 1999,
coletivamente, deixam de ser apenas os
p. 107)
objetos do processo de reforma agrária e
tornam-se sujeitos, eles passam do plano
Não estamos somente preocupados
com a conquista de um pedaço de receptivo para o ativo”. Nesse sentido, a
terra, mas com a formação integral de
toda nossa base social. Queremos ser luta por educação do campo, incorpora a

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ocupação, enquanto estratégia utilizada do campo. São maneiras diferenciadas de


pelos movimentos sociais. Luta popular de resistir coletivamente, valorizando suas
resistência coletiva, em defesa dos ideais histórias de vida e envolvendo os sujeitos
de aprendizagens e emancipação política. em projetos político-pedagógicos
O coletivo, nessa conjuntura, pode ser emancipadores.
libertador, desde que a valorização das A educação do campo, nessa
escolas e a formação crítica de educadores perspectiva, surge como atividade coletiva
e educandos, sejam acompanhadas de e de ação que envolve expectativas,
resistências múltiplas. compromissos e mostra a realidade de
Compreendemos que as ocupações injustiças contra o homem e a mulher do
dos latifúndios improdutivos, os debates campo. Estes sujeitos desafiam o estado,
travados pelos movimentos sociais com as representante legítimo dos interesses da
secretarias municipais e estaduais de burguesia. As marchas, coletivamente
educação e as universidades públicas, organizadas, podem servir como
fortalecem as ações da educação do ferramentas de formação e pressão
campo. Os acampamentos, nessa política, com atos públicos, envolvendo
conjuntura, são espaços de luta pelo educadores, educandos, crianças e idosos
reconhecimento. Nele, presenciamos na divulgação da luta pela terra e
diferentes formas de resistir ao intenso educação. Visitam-se igrejas, sindicatos,
calor, o frio exagerado, as diversas escolas e associações de moradores. As
doenças, a fome, a miséria, a falta de água palestras, vídeos e caminhadas atuam na
corrente e potável e longos períodos com divulgação dos valores e princípios dos
pouquíssima iluminação, sob a lona preta. movimentos sociais. Impossível à escola
Dificuldades presentes, inclusive, nas do campo não dialogar com tais
diversas escolas do campo multisseriadas. experiências. Ela pode contribuir com
Por outro lado, (Abramovay, 1985) afirma educadores, educandos, acampados,
que acampar consiste em tomar a ofensiva assentados e demais integrantes dos
da luta. Demonstra que os agricultores são movimentos sociais no adeus à inocência.
capazes de transformarem-se em agentes A poesia de Pedro Tierra: somos a
da construção de sua própria identidade perigosa memória das lutas, no livro de
política. Essas experiências ressaltam a (Fernandes, 1999, p. 153), afirma:
organização dos camponeses na luta pela
terra e dos educadores na luta por escolas Quando um homem, uma mulher, um
grupo de homens e mulheres,

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milhares de homens e mulheres e brigadas exercem papéis extremamente


crianças naquelas horas de sombra
indefiníveis, quando já não relevantes no enfrentamento dessas
distinguirmos se ainda é noite, se já é dificuldades, criando-se estratégias para
madrugada, concentram toda a força
dos excluídos em suas mãos, toda a lidar com as dúvidas e inquietações dos
força desse primitivo impulso de
justiça que nos alimenta o coração, sujeitos, em torno dos seus projetos de vida
toda a força do sonho em suas mãos, e sociedade. Tais questões são geralmente
toda força de sua classe em suas
mãos, o alicate morde o fio e o arame trabalhadas na organização das místicas,
estala como a corda de um violino e a
das marchas, nos encontros estaduais e
cerca vem abaixo: eles dão adeus à
inocência. nacionais e em reuniões nas escolas do
campo.
Nessa intensa e estreita relação entre Nessa conjuntura, é essencial o
as ocupações de terras organizadas pelos envolvimento crítico de educadores,
movimentos sociais e os diversos saberes e educandos, gestão das escolas, secretarias
fazeres da escola compreendemos que os municipais e estaduais de educação, além
gestos, os sonhos, as identidades, as da intensa participação dos movimentos
memórias, as narrativas e os sentimentos sociais. As tomadas de decisões devem,
ocupam espaços fundamentais na necessariamente, zelar pela ética e
construção e consolidação de projetos transparência. As escolas do campo não
político-pedagógicos emancipadores. (De podem desconsiderar a realidade dos
Rossi, 2004; Veiga, 2004). Esses espaços sujeitos, individuais e coletivos.
alternativos de produção dos saberes da Dependendo do grau de organização,
terra devem considerar os anseios das conscientização e coerência acerca dos
escolas do campo, e nela, os educadores, valores defendidos por tais atores, a
educandos, movimentos sociais e demais implementação dos princípios da educação
integrantes da comunidade. Compreender o do campo, enquanto política pública, pode
cotidiano da escola é sempre uma opção conviver com avanços ou retrocessos.
política de bastante coragem histórica. Os coletivos de educação do campo
Requer preparação, disciplina, maturidade, representados pelos movimentos sociais,
dedicação, esperança, utopia e organização pelas universidades e licenciaturas em
no enfrentamento das seguintes educação do campo, vem denunciando o
adversidades: fome, pobreza, medos, desrespeito de algumas secretarias
insegurança e desgaste emocional. Os municipais e estaduais de educação, no
movimentos sociais através de suas deslocamento dos professores para as
lideranças, coletivos, coordenações e

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escolas do campo. Essa é uma maneira de com as diretrizes e metas estabelecidas no


punir o educador, gerando preconceitos, Plano Nacional de Educação. Para os
desavenças e desrespeito aos saberes e as efeitos deste Decreto, entende-se por: I –
identidades dos sujeitos camponeses. O populações do campo: agricultores
PRONERA – Programa Nacional de familiares, extrativistas, pescadores
Educação na Reforma, as Diretrizes artesanais, ribeirinhos, assentados e
Operacionais por uma Educação do acampados da reforma agrária,
Campo, o PROCAMPO – Programa de trabalhadores assalariados rurais,
Apoio à Formação Superior em quilombolas, caiçaras, povos da floresta,
Licenciatura em Educação do Campo, o caboclos e outros que produzam suas
Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de condições materiais de existência, a partir
2010 e o PRONACAMPO – Programa do trabalho no meio rural. II – escola do
Nacional de Educação do Campo, podem campo: aquela situada em área rural,
ser encarados como políticas públicas de conforme definida pelo Instituto Brasileiro
formação política e identitária dos sujeitos de Geografia e Estatística – IBGE ou
que rompem com essa lógica punitiva dos aquela situada em área urbana, desde que
educadores/as. Entendemos que os debates atenda, predominantemente, populações do
em torno da educação do campo campo.
potencializam as experiências, lutas e Serão consideradas do campo as
resistências dos movimentos sociais na luta turmas anexas vinculadas às escolas com
por mais escolas do campo, livros sede em área urbana, devendo elaborar seu
didáticos, formação de educadores, projeto político pedagógico, na forma
merenda escolar, bibliotecas, estradas estabelecida pelo Conselho Nacional de
transitáveis, laboratórios e quadras Educação. Reiteramos que a educação do
poliesportivas. (Hage, 2011). campo concretizar-se-á mediante a oferta
O Decreto nº 7352/10, vinculado ao de formação inicial e continuada de
PRONERA, afirma em seu artigo 1º, que a profissionais da educação, garantia de
política de educação do campo, destina-se condições de infraestrutura e transporte
à ampliação e qualificação da oferta de escolar, bem como, materiais e livros
educação básica e superior às populações didáticos, equipamentos, laboratórios,
do campo e será desenvolvida pela União, bibliotecas, áreas de lazer e desporto,
em regime de colaboração com Estados, adequados ao projeto político pedagógico
Distrito Federal e Municípios, de acordo e, em conformidade, com a realidade local

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e diversidade das populações do campo. fortalecida nos embates, na participação,


(Oliveira, 2015, p. 50). nas experiências e cooperação. Através das
Importante ainda citar a Resolução nº lutas políticas, essenciais para educadores,
04 de Julho de 2010. Ela reforça a relação educandos e movimentos sociais, rompe-se
político-cultural entre movimentos sociais com o tradicional isolamento e
do campo e organicidade pedagógica. A individualismo imposto pela sociedade
aludida base legal recomenda que o neoliberal. Nessa conjuntura, os espaços de
processo de escolarização tenha a seguinte reconhecimento e resistência são criados e
orientação: a identidade da escola do recriados, com participação efetiva dos
campo é definida pela vinculação com as sujeitos. (Caldart, 2012, p. 261) apresenta
questões inerentes à sua realidade, com um conjunto de questões no processo em
propostas pedagógicas que contemplem curso da educação do campo:
sua diversidade em todos os aspectos
sociais, culturais, políticos, econômicos, de Como defender a educação dos
camponeses sem confrontar a lógica
gênero, geração e etnia. As formas de da agricultura capitalista que prevê
sua eliminação social e mesmo
organização e metodologias pertinentes à
física? Como pensar em políticas de
realidade do campo devem ser acolhidas, educação no campo ao mesmo tempo
em que se projeta um campo com
em especial, a pedagogia da terra, quando cada vez menos gente? Como admitir
se busca desenvolver trabalhos como sujeitos propositores de
políticas públicas, movimentos
fundamentados no princípio da sociais criminalizados pelo mesmo
Estado que deve instituir essas
sustentabilidade, para assegurar a políticas?
preservação das futuras gerações.
A educação do campo para
(Oliveira, 2015, p. 48).
(Caldart, 2012, p. 262) está além da
Entendemos que a educação do
educação escolar: “uma política de
campo pode contribuir na elevação da
educação do campo nunca será somente de
autoestima, da autonomia e na formação
educação em si mesma e nem de educação
crítica do ser humano. Tais atitudes não
escolar, embora se organize em torno
estão desvinculadas da capacidade de
dela.” (Campos, 2015, p. 88) apresenta os
mobilização dos acampados, assentados,
seguintes questionamentos: como
ribeirinhos, quilombolas, pescadores,
experiências de educação não escolar
caiçaras, entre outros sujeitos, individuais e
(experiências produzidas pelos
coletivos. A educação do campo é uma
movimentos sociais) podem ser
conquista dos movimentos sociais,
circunscritas/restritas ao espaço escolar? O

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que se perde na transformação da escola sociais. Frente os fracassos impostos, numa


comunitária, construída na luta coletiva, conjuntura altamente conservadora e
em escola do Estado? Que saberes e autoritária, homens e mulheres enfrentam,
práticas da comunidade são expulsos? com criticidade, resistências e entusiasmos,
Como educação não escolar, por que o as dificuldades e desajustes da sociedade
movimento social organiza suas lutas “em brasileira. Num estreito diálogo com as
torno da escola”, em torno de demandas místicas, poesias, sonhos e utopias, lutam e
por políticas públicas? O que se perde e se vivem a vida, com dignidade. (Stédile in
ganha com isso? Bogo, 2002, p. 08), afirma que:
As atuais experiências de luta por
educação do campo exigem a consolidação No MST, a poesia é mais do que uma
simples arte. É a forma de animar os
das escolas do campo, e nela, a ciranda passos na busca da terra que se
infantil, o ensino fundamental do 1º ao 9º distanciou dos corpos de quem
precisa dela para marcar o tempo de
ano, a alfabetização e educação de jovens e sua existência. (...) esta pedagogia de
dizer com versos está enraizada na
adultos, além de educadores/as formados existência de poetas e poetizas que
nas licenciaturas em educação do campo. nos antecederam e vivem em seus
versos, emendados nos versos de
Nesse contexto é fundamental ressignificar nossos jovens e crianças que, sob as
lonas pretas, não deixam de sonhar
olhares, lugares, trajetórias, protagonismos, com a liberdade. A política sem
histórias, memórias e identidades poesia perde a consciência das
mudanças que deve alcançar.
camponesas, em prol das políticas públicas Perdendo a consciência, perde os
sentimentos. Sem sentimentos o
de educação do campo, na sua estreita
homem vira pedra; elas não falam de
relação com os movimentos sociais. Para si, apenas fazem a terra suportar seu
peso.
(Caldart, 2000, p. 04): “Cada sem-terra que
entra no MST entra também num mundo já Sonhar, lutar, amar e respeitar são
produzido de símbolos, gestos, exemplos valores constantemente defendidos pelos
humanos, valores, que a cada ação ele vai movimentos sociais do campo. Na luta por
aprendendo a significar e ressignificar”. reconhecimento identitário (Honneth,
Tais comportamentos contribuem 2003), a valorização dos sujeitos é
para enaltecer as relações de solidariedade permeada por confiança, emoções,
entre os sujeitos, alicerçadas nas histórias carências, esperanças e utopias, poesias,
de vida, sonhos e utopias. A luta por artes, versos e liberdade de pensamento. O
educação do campo alimenta a esperança reconhecimento da realidade pode renovar
de educadores, educandos e movimentos sonhos, ideais de coletividade e valores da

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dignidade humana. Nessa conjuntura, as terras, nos acampamentos de lona preta,


escolas do campo incorporam, como parte nas marchas intermináveis, no fechamento
dos conteúdos curriculares, as seguintes das escolas do campo, na utilização dos
ferramentas pedagógicas: músicas, agrotóxicos, das sementes transgênicas e a
místicas, festas, confraternizações e criminalização dos movimentos sociais.
piadas. Trabalha-se com memórias, Para (Caldart, 2000, p. 134): “O que
narrativas, contos e lembranças dos manteve estas pessoas em Marcha,
companheiros. Tais aspectos são tomando chuva, fazendo bolhas no pé,
essenciais na renovação das forças e exaurindo sua força física, mesmo sabendo
estímulo nos momentos de incertezas. que ainda não era para sua terra que
Segundo o (MST, 2000, p. 19): caminhavam?”
Compreendemos que a consolidação
A música, o teatro, a dança, a pintura, e expansão das escolas do campo para
poesia, as festas populares – que
celebram os momentos de conquista atender, sobretudo, as demandas de
e vitória, contribuem para escolarização básica e superior, carecem de
desenvolver a criatividade e
habilidade artística e fortalece nossa respeito às leis nacionais e internacionais
identidade histórica e cultural. É
através de momentos de arte e beleza de direitos humanos, sociais e civis pelas
que cultivamos novos sentidos para a instituições públicas. Um exemplo do
caminhada e preservamos nossa
história. descaso com as populações camponesas é a
dura realidade de fechamento das escolas
As escolas do campo na estreita rurais. Entre 2003 e 2013 mais de 31,4%
relação com os sonhos, emoções e respeito dessas escolas foram fechadas, em função
por homens, mulheres, educadores e da nucleação, fenômeno muito presente
educandos, são encaradas como nas secretarias municipais e estaduais de
possibilidades de superação das educação no Brasil. A nucleação significa
dificuldades de formação enfrentadas pelos a junção de duas, três ou mais escolas
movimentos sociais. Dependendo do grau rurais, numa escola do núcleo urbano,
de envolvimento, criticidade e denominada escola-polo. Tais espaços
conscientização dos sujeitos, individuais e possuem um número maior de carteiras
coletivos, os princípios da educação do para atender os estudantes, na jornada de
campo podem gerar alívio, tensão, rodar quilômetros em transportes coletivos
respeito, solidariedade e trabalho coletivo escolares, quase sempre em condições
entre as pessoas. São denunciados os indignasix. A questão é tão grave que, em
obstáculos apresentados nas ocupações de

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28 de março de 2014, a Agência Brasil Aquisição de Alimentos – PAA e


publica matéria sobre a Lei nº 12.960, de Programa Nacional de Alimentação
27 de março de 2014, que dificulta o Escolar – PNAE. (Campos, 2015). Nesta
fechamento das escolas rurais, indígenas e intensa articulação são valorizados projetos
quilombolas. Esta lei altera a LDB/1996 e político-pedagógicos emancipadores que
concede aos Conselhos Municipais de contemplem diversidades, identidades e
Educação, manifestação sobre o assunto.x sujeitos, individuais e coletivos, dos
(Oliveira, 2015, p. 51). campos e das cidades. Para (Honneth,
De todos os aspectos debatidos pelos 2003), é importante perceber os conflitos
movimentos sociais na educação do que se originam das inúmeras experiências
campo, o mais contraditório é a política de de desrespeito e de não-reconhecimento da
fechamento das escolas, por parte dos identidade pessoal e coletiva, na esfera
sistemas estaduais e municipais de ensino, emotiva, social e jurídica.
através da nucleação e oferta de transporte Diante das dificuldades apresentadas,
para deslocamento dos educandos. Esta a luta pela sobrevivência, individual e
política é reiteradamente criticada e coletiva, rompe com as várias cercas do
condenada pelo MEC, pelo Conselho judiciário, policial e midiática. Rompe
Nacional dos Secretários de Educação ainda com a educação rural, tradicional e
(CONSED), pela União Nacional dos conservadora. Essas cercas quando
Dirigentes Municipais de Educação derrubadas simbolizam respeito e
(UNDIME) e pelo Conselho Nacional de valorização dos trabalhadores camponeses.
Educação (CNE), visto que infringe, Faz a sociedade refletir sobre as inúmeras
inclusive, a LDB/1996, contribui para desigualdades no campo brasileiro, a
evasão, repetência e distorção série-idade, interminável miséria, o analfabetismo
além de afastar crianças, jovens e adultos crescente e a defesa da agricultura familiar,
de suas comunidades. (Oliveira, 2015, p. orgânica e agroecológica. Nessa
55). conjuntura, (Caldart, 2004) defende uma
Cabe aqui informar que as políticas pedagogia do oprimido que se articule,
de educação do campo se articulam, entre nacionalmente, com a educação do campo,
outros, com o Programa Nacional de com os trabalhadores rurais e seus
Agricultura Familiar – PRONAF, Política movimentos sociais. Uma educação
Nacional de Agroecologia e Produção emancipadora, histórica e identitária, que
Orgânica – PNAPO, Programa de

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valorize as lutas sociais e a formação A construção crítica e coerente do saber


política de educadores e educandos. não é neutra.

Nessa pesquisa, os princípios


Considerações finais
pedagógicos que orientam a educação do
campo, consideram os contextos históricos
A conquista da educação do campo
dos movimentos sociais, suas realidades,
pelos movimentos sociais é um projeto em
diversidade econômica, social e cultural.
disputa pela hegemonia. Inscreve-se como
Obviamente que as escolas do campo não
um dos componentes indispensáveis das
são homogêneas para pescadores,
forças políticas em luta pelo alargamento
ribeirinhos, caiçaras, atingidos por
da democracia na sociedade brasileira. As
barragens, pequenos agricultores,
formas de pressão, negociação,
acampados e assentados da reforma
mecanismos de decisão e permanentes
agrária, aldeias indígenas, territórios
tensões nas relações entre os sujeitos,
quilombolas, entre outros sujeitos / povos
individuais e coletivos, podem contribuir
do campo. Nesses espaços, educadores,
para consolidar a consciência crítica, a
educandos, militantes, crianças, jovens e
autonomia intelectual, a conquista de
adultos aprendem, ensinam e se conhecem.
direitos e a coerência na utilização dos
Educa-se para cidadania e conscientização
saberes da terra. As escolas do campo
dos problemas. As dificuldades podem ser
devem ser conquistadas, dentre outros, por
enfrentadas com perseverança, dedicação,
educadores, educandos, movimentos
lutas, formação continuada de educadores
sociais, agricultores familiares e demais
e políticas públicas efetivas de educação
trabalhadores/as do campo. Nessa
do campo. Quando ação e reflexão são
conjuntura, percebemos avanços e recuos
organizadas com o objetivo de transformar
na implementação dos princípios da
a realidade dos sujeitos camponeses, a
educação do campo, atrelada aos
práxis libertadora é uma possibilidade.
movimentos sociais e à luta pela terra,
Nessas alianças, a educação do campo
além das noções de cidadania, formação
pode ser uma das ferramentas no processo
política, histórias de vida, memórias e
de compreensão das lutas e demandas
identidades. Quero salientar que a relação
educacionais defendidas pelos movimentos
entre as escolas do campo e os movimentos
sociais do campo, em especial, o combate
sociais, a produção do conhecimento e os
ao fechamento de escolas.
dados coletados não são isentas de valores.

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Assim, a história pessoal do autor Benjamin, C., & Caldart, R. S. (2000).


Projeto popular e escolas do campo.
permeou todo o desenvolvimento desse
Brasília, DF: Articulação Nacional por
trabalho. Esperamos, dessa forma, uma Educação Básica do Campo.
estimular a produção de leituras e reflexões
Bezerra, N. L. (1999). Sem Terra aprende
que contemplem a formação de educadores e ensina: estudo sobre as práticas
educativas do Movimento dos
do campo. Nesse processo de construção
Trabalhadores Rurais. Campinas, SP:
histórica prevaleceu o respeito às Autores Associados.
diferenças e a valorização da identidade
Bicalho, R. (2007). Alfabetização no MST:
cultural dos povos camponeses, propondo experiências com jovens e adultos na
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Komedi.
democrática, presente em diversas
. (2008). O projeto político
experiências de educação popular
pedagógico do movimento dos
vinculadas à luta pela terra. Por fim, é trabalhadores rurais sem terra: trajetórias
de educadores e lideranças. Campinas:
importante registrar a defesa de políticas
Editora Komedi.
públicas que contribuam na formação de
Bogo, A. (2000). Reforma Agrária: Por
educadores para as escolas do campo
um Brasil sem latifúndio! 4º Congresso
brasileira. Sugiro aos leitores a Nacional – MST.
continuidade desses estudos, com o
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x
(http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2
014-03/sancionada-lei-que-dificulta-fechamento-
de-escolas-rurais-e-quilombolas, acessada em
2/08/2015).

Recebido em: 28/06/2016


Aprovado em: 21/07/2016
Publicado em: 03/08/2016

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APA:
Santos, R. B. (2016). Interfaces entre escolas do
campo e movimentos sociais no Brasil. Rev. Bras.
Educ. Camp., 1(1), 26-46.

ABNT:
SANTOS, R. B. Interfaces entre escolas do campo e
movimentos sociais no Brasil. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 1, n. 1, p. 26-46, 2016.

Rev. Bras. Educ. Camp. Tocantinópolis v. 1 n. 1 p. 26-46 jan./jun. 2016 ISSN: 2525-4863
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