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ESCOLAS TEOLÓGICAS NA IGREJA ANTIGA

A Escola de Alexandria e seu Método

A Escola de Alexandria se destacava como uma escola de estudos


clássicos e filosóficos, que a caracterizavam como um centro de atividades
culturais. Alexandria era, depois de Roma, a segunda cidade em
importância, tanto no que se refere à população, como à economia. Mas,
sobretudo, a cidade se sobressaía como centro cultural e intelectual da
antigüidade, em razão de sua grande biblioteca, a maior do mundo.
Os cristãos de Alexandria estavam, pois, familiarizados com esse
ambiente intelectual, que exerceu uma grande influência no processo de
pregação e exposição do Evangelho, o qual, normalmente, era relacionado
com certos conceitos filosóficos.
Um dos aspectos que caracterizam o método alexandrino de
interpretação das Escrituras é a alegoria. Contudo, os teólogos de
Alexandria não inventaram o método alegórico, pois ele já existia desde
vários séculos. Um exemplo disso é a interpretação alegórica dos livros
homéricos (Ilíada e Odisséia), que para Platão tinham certo caráter divino,
sendo os aspectos humanos dos deuses apenas uma aparência e não uma
realidade substantiva. O judeu Filo se apropriou desse método alegórico,
por sua utilidade para o entendimento de textos com problemas teológicos.
Dentre os representantes da chamada Escola Alexandrina, destacam-
se Clemente de Alexandria (150-215) e seu aluno Orígines (185-253). Por
influência da Filosofia grega, Clemente passou a usar a interpretação
alegórica para descobrir o sentido oculto das passagens bíblicas e para
harmonizar os dois Testamentos. Para ele, por trás do significado literal do
texto havia um significado mais profundo, um sentido óbvio e claro, que
era o sentido real dado pela inspiração divina.
Orígines foi considerado o maior intelectual de sua época, tendo se
dedicado a produzir a “Hexapla”, na qual ele copilou quatro versões gregas
do texto bíblico, uma das quais a Septuaginta (LXX). Essa iniciativa muito
provavelmente foi fruto de ele estar consciente de que havia algumas
diferenças entre a LXX e o texto em hebraico. Contudo, esses problemas de
tradução da LXX não afetaram a concepção de Orígines de que ela era um
livro inspirado.
Orígines deu respeitabilidade ao método alegórico de Filo. Sua obra
mais importante foi “De Principiis”, consistindo de 4 livros, o último dos
quais versando sobre interpretação bíblica. Orígines também considerou a
proposta subjetiva do autor. Ele, e a maioria dos intérpretes que o seguiram
na Idade Antiga e no Período Medieval, tendiam a depreciar os aspectos
humanos do texto bíblico – e, por conseguinte, históricos – por causa de
seu entendimento sobre o caráter divino das Escrituras.
Apesar de ser conhecedor da Filosofia grega, não deixou que ela o
influenciasse de modo a comprometer sua concepção teológica. Para ele, o
ponto principal era o conhecimento das Sagradas Escrituras, a partir do
qual desenvolveu seu próprio método alegórico de interpretação.
Orígines não incentivou a alegoria pura e simplesmente, mas tratou
de explicar a Bíblia, de modo coerente com a cultura em que vivia. Sob a
influência grega racional, ele entendeu que havia uma aparente contradição
na ordem da criação, com a inversão da criação da luz, antes da criação do
sol. Essa passagem difícil de interpretar teria que ser alegorizada. A
alegorização somente poderia ser feita por uns poucos credenciados.
Orígines considerou que o sentido literal da Bíblia tem valor para os
cristãos mais simples. Contudo, para os crentes mais maduros é dada a
oportunidade de ver aspectos além do literal, o sentido alegórico. Dizia que
“somente o amadurecimento cristão nos torna capazes de transcendermos a
literalidade”. Mas, isso não queria dizer que o sentido literal não fosse
importante; muito pelo contrário. Em sua obra “De Principiis”, afirma:
“mesmo que a ênfase repouse sobre o sentido alegórico, o intérprete deve
sempre procurar o sentido histórico do texto”. Assim, a hermenêutica de
Origines não era radical, havendo momentos em que ele ostensivamente
defendia o aspecto literal da Escritura, como foi o caso de várias de suas
argumentações contra Celso, atenuando a importância do método alegórico
e afirmando ser a Bíblia superior aos mitos pagãos pelo fato de que seu
conteúdo pode ser explicado de modo literal.
De uma maneira geral, as seguintes razões levaram Orígines a optar
também pelo método alegórico: 1) o método alegórico conduz a Cristo; 2)
se interpretarmos todo o NT de modo literal, veremos que a Bíblia está
cheia de Blasfêmias e heresias; 3) no NT, os Apóstolos estabeleciam a
legitimidade do método alegórico; 4) parte do propósito de Deus em dar-
nos Sua revelação era esconder a verdade, da mesma forma que a revelou
por decretos; e 5) é por meio da interpretação alegórica que podemos
distinguir os cristãos espirituais dos que não são, pois os verdadeiros
cristãos manifestam sua sabedoria através do entendimento do texto
alegórico.
As considerações acima nos conduzem a destacar as seguintes
características, que, de certa forma, resumem os aspectos mais marcantes
do método alexandrino:
1) Há uma tendência a diminuir o valor histórico;
2) Ênfase no valor filosófico, pois a interpretação alegórica de
Orígines se desenvolveu a partir de certos conceitos filosóficos gregos;
3) É arbitrário, sem coerência lógica; e
4) É elitista. Somente umas poucas pessoas teriam a habilidade ou
capacidade para interpretar as Escrituras alegoricamente.
Para finalizar, é importante notar que, em desenvolvimentos
posteriores, muitas vezes o termo alegórico não incluiu todos os aspectos
acima relacionados.

A Escola de Antioquia e Seu Método


No século III, depois da morte de Orígines, a história da
Interpretação tomou um novo rumo, mais como uma reação a algumas
opiniões teológicas do mestre alexandrino, em especial sobre alguns
aspectos concernentes à divindade de Jesus. Havia temor entre os
antioquianos de que o método de Orígines poria em perigo certos aspectos
históricos dos textos bíblicos.
Um dos mais destacados exegetas desta escola foi Teodoro de
Mopsuéstia, que se opôs à interpretação alexandrina devido ao que
considerava falta de atenção quanto aos aspectos históricos e quanto ao
contexto, querendo, neste último caso, se referir à arbitrariedade dos
alexandrinos. Para Teodoro, não havia coerência no modo pelo qual o
método conduzia a interpretação das profecias. Neste aspecto, sua
concepção era a de que a interpretação deveria observar o contexto
histórico, para que se possa entender como o processo hermenêutico se
aplica ao texto.
Ainda sobre o entendimento das Profecias do Velho
Testamento, Teodoro usa palavras-chave, como “verdade”, “sombra” e
“realidade”, para definir tensões, que, de certa forma poderiam até
configurar um tipo de maniqueismo. Assim, na visão de Teodoro, a
verdade, que é Cristo, se contrasta com sombra. A mesma linha de
pensamento é usada para a interpretação dos sacrifícios no AT. Para ele, o
cumprimento absoluto dos sacrifícios se dá na pessoa de Cristo. Não há um
duplo cumprimento, mas o que existe é uma sombra do que virá. Uma das
grandes contribuições de Teodoro à Ciência Hermenêutica foi sua inclusão,
clara e explícita, da significação metafórica como parte do entendimento
literal.
Os antioquianos, portanto, não desconsideraram o caráter metafórico
de muitas passagens bíblicas. Ademais, isso é comprovado por sua
insistência quanto à existência de um significado oculto maior, ou
espiritual, com relação às Profecias do Velho Testamento (significado
Messiânico).
A Escola de Antioquia usou o termo Theoria para descrever sua
posição quanto ao uso de metáforas. Para Orígines, tal interpretação nada
mais era que uma forma de alegorização; mas, para os antioquianos, essa
era a maneira correta de identificar os traços distintivos, considerando o
fator histórico, que separam as abordagens de Paulo e de Orígines ao tema.
Teodoro entendia que Paulo estava usando “Tipologia” 1 em Gálatas 4.21-
31, ou seja, estava não só afirmando a historicidade da narrativa, mas
também revelando um significado mais profundo, que estaria embutido na
narrativa. Este significado não aparece de modo óbvio, contudo, ele está
bem amarrado ao entendimento literal do texto. Dessa forma, o método
desenvolvido em Antioquia pressupõe existência de revelações, que não se
mostram diretamente no texto, mas “debaixo” dele.
Uma outra importante figura da Escola de Antioquia foi João
Crisóstomo, o maior pregador de sua época. Crisóstomo viveu na última
parte do século IV, ou seja, mais de três séculos distante do grego falado
por Paulo.
Ocorreram mudanças temporais no processo lingüístico, em especial
às que se referem ao vocabulário e, ainda, na evolução do idioma grego,
que acarretaram diferenças importantes entre o Koiné (língua popular) e a
chamada linguagem ática, que tentava preservar o grego clássico de Platão.

1
Idéia ou concepção de que certos caracteres ou eventos históricos, de alguma forma,
prefiguram outros correspondentes a eles em períodos posteriores.
Como Crisóstomo usava a linguagem ática, é possível que isso tenha
provocado alguns erros flagrantes de interpretação, conforme hoje
considerados. Um outro aspecto a ressaltar quanto à hermenêutica de
Crisóstomo é o valor especial à intenção do autor de expor o significado
histórico.
Da mesma forma com que tentamos sintetizar o método alexandrino,
os itens abaixo podem nos dar uma idéia aproximada das principais
características do método antioquiano:
1) Valorização do aspecto histórico (abordagem gramático-
histórica);
2) Primazia do sentido literal e restrição à alegoria;
3) Uso da “Theoria” para descobrir o sentido oculto da Escritura;
4) Determinação da intenção do autor;
5) Busca do sentido teológico da narrativa;
6) Não reconhecimento de afluências arbitrárias de Cristo no VT;
7) Tendência à universalidade, ou seja, apesar de haver alguns textos
obscuros, de uma maneira geral, todos podem entender a Escritura,
segundo uma interpretação literal.

Análise Comparativa dos Métodos

É simplista a idéia de que as Escolas de Orígines e Antioquia


representam correntes interpretativas opostas. Na realidade, há um alto grau
de variabilidade entre os próprios antioquianos.
Para exemplificar a dificuldade de comparação, Orígines usava e
defendia uma interpretação literal em um bom número de ocasiões. Para
ele, o significado literal continuava sendo muito importante, enfatizando o
fato de que a maior parte do material narrativo na Escritura é histórico.
Por outro lado, certas características exegéticas, as quais, de alguma
forma, podem assumir uma conotação alegórica, foram conscientemente
adotadas como legítimas pelos exegetas antioquianos. Um exemplo
marcante é o de João Crisóstomo, que, em sua homilia sobre o Evangelho
de João, ao abordar as bodas de Canaã, assim se expressou: “Naquele
tempo, contudo, Jesus transformou a água em vinho e, tanto naquela época,
como hoje, Ele não tem cessado de transformar aqueles que são fracos e
inconstantes. Existem homens que não são diferentes do que a água .......”.2
Um outro exemplo que caracteriza a dificuldade de delimitação de
padrões interpretativos pode ser pinçado do comentário de Teodoro de
Mopsuéstia sobre Gn 27.39 39 (Então, lhe respondeu Isaque, seu pai:
Longe dos lugares férteis da terra será a tua habitação, e sem orvalho que
cai do alto.):

Estas coisas, de acordo com o sentido óbvio e superficial da letra, denotam a


graça que vem do alto e a abundância de bênçãos da terra; mas, de acordo
com uma interpretação mais acurada, nós podemos identificar as expressões
“orvalho que cai do alto” como a Divindade do Senhor Jesus Cristo e “longe
dos lugares férteis da terra” como a humanidade assumida por Ele, por nossa
causa”.3

À vista do exposto, é natural a conclusão que não existem diferenças


absolutas entre os dois métodos, sendo melhor adotarmos a expressão
tendências. Assim, considerando as tendências, as diferenças principais
repousam nas seguintes tensões, representativas, respectivamente, de
Alexandria e Antioquia: Alegoria x literalidade; divindade x historicidade;
arbitrariedade x logicidade; e “eliticidade” x “vulgaridade”.4

2
Minha Tradução a partir do texto em inglês.
3
Minha Tradução a partir do texto em inglês.
4
No sentido de comum, popular.

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