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Semanário | “Há tantas pessoas com fome no mundo como havia em 1800” (expresso.

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MUNDO-COMO-HAVIA- em-1800

TERRA

Joel E. Cohen Biólogo matemático, professor na Universidade de Rockefeller

Há tantas pessoas com fome no mundo


como havia em 1800”
Joel E. Cohen doutorou-se em Matemática Aplicada em Harvard

RAQUEL ALBUQUERQUE 11-11-2022

J oel E. Cohen é biólogo matemático e professor nas Universidades de Rockefeller e

Columbia, em Nova Iorque. Tem 78 anos e é uma referência mundial da demografia. O livro que
escreveu em 1995 sobre quantas pessoas o planeta aguenta continua a ser hoje citado pelas Nações
Unidas. Em entrevista ao Expresso, explica que o mundo hoje produz cereais suficientes para
alimentar 14 mil milhões de pessoas, mais do que as que existem. Ainda assim, continua a haver
fome.
Nunca houve tantas pessoas no planeta e a população ainda vai crescer. É preocupante
ou é um feito extraordinário?
Hoje vivem na Terra oito vezes mais pessoas do que há 200 anos, quando eram mil milhões. A
esperança de vida duplicou e a percentagem de pessoas com fome crónica passou de quase 100%
para 10%. É um enorme avanço. Mas hoje ainda há entre 800 milhões e mil milhões de pessoas a
passar fome. São tantas quanto em 1800. Portanto, saber se estamos a progredir depende da medida
que usamos. Por um lado, temos de estar maravilhados com o que o mundo alcançou, mas, por
outro, bastante insatisfeitos por não estarmos a usar o que aprendemos.

Sabemos já quantas pessoas o planeta aguenta?


É muito difícil saber porque depende de escolhas humanas e de limitações naturais. As escolhas
estão relacionadas com a organização das economias, interação com o ambiente, gestão das
populações e valores como a paz ou o respeito pela dignidade humana. Para avaliar a capacidade de
carga do planeta temos também de reconhecer que a Terra é uma esfera finita. É preciso saber
interagir com as espécies com as quais partilhamos o planeta porque há custos muito altos se não o
soubermos fazer. A covid e a gripe de 1918 são exemplos.

Mas há como saber se o planeta tem recursos para 10 mil milhões de pessoas?
Deixe-me dar um exemplo. O mundo colheu 2,8 mil milhões de toneladas de cereais em 2021/22.
Para se alimentar durante um ano, cada pessoa precisa entre 200 e 250 quilos de cereais como trigo,
arroz, milho e aveia. Ou seja, o que foi colhido no ano passado chegava para alimentar entre 11 e 14
mil milhões de pessoas. Somos 8 mil milhões. Como é que se explica então que haja fome? A resposta
é esta: as escolhas são feitas dependendo do dinheiro. Só 43% dos cereais vão para alimentação
humana, porque 36% são para animais, que é a carne destinada a quem tem dinheiro para a
comprar, e 21% vão para as máquinas. Em nome do mercado, ignoramos a dignidade humana,
permitindo que 800 milhões de pessoas sofram de fome crónica e que 150 milhões de crianças com
menos de cinco anos não cresçam como deviam. São 22% das crianças do mundo. A falta de calorias
faz com que os seus cérebros não se desenvolvam e muitas não chegam sequer a ir à escola porque
não conseguem aprender. Deixar crianças passar fome é desperdiçar a capacidade produtiva da
próxima geração. É perder um quinto do talento humano e impedir que sejam seres humanos
capazes no futuro. Na África subsariana, a produção alimentar não está a acompanhar o aumento da
população. E, ainda assim, a China continua a extrair de África tudo o que pode e o mundo ocidental
olha noutra direção.

O que está a dizer é que a fome continua a ser um problema estrutural, mesmo que já
não se fale tanto no assunto.
Exatamente. As alterações climáticas são um problema muito importante, mas não são o único. Se
visitarmos os países mais pobres vemos com os nossos olhos as vidas a serem desperdiçadas tal e
qual como se fossem sacos de plástico deitados ao lixo.

A tecnologia ajuda a aumentar a capacidade do planeta?


Os avanços tecnológicos deram-nos uma capacidade fantástica de fazer mais com menos. Mas os
benefícios desses avanços na produtividade não têm sido partilhados com os trabalhadores. E, ao
mesmo tempo, vemos a capacidade do planeta diminuir em consequência da brutal utilização de
combustíveis fósseis. Temos centenas de milhões de pessoas a viver à beira da água por causa da
subida do nível do mar, assistimos ao declínio dos polinizadores, ao aumento do plástico nos oceanos
e à perda de florestas que deixam de absorver o dióxido de carbono da atmosfera. Estamos a fazer
várias coisas destrutivas.

Há mesmo o risco de o planeta deixar de conseguir sustentar a população daqui a 40


ou 50 anos?
Sim, e não é daqui a 40 ou 50 anos. É agora. Há zonas de conflito que representam um risco sério,
como se houver uma guerra nuclear na Ucrânia ou a tensão no mar do Sul da China, no estreito entre
a Coreia do Sul e o Japão, além da Síria, Somália ou Etiópia. Tivemos a pandemia de covid e haverá
mais pandemias. Se as pessoas levassem a sério estas preocupações, estariam a agir de maneira
diferente. Mas não o estão a fazer. É como se conduzíssemos um carro a 100 km/h e fechássemos os
olhos. Não é a melhor maneira de nos mantermos vivos.

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