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ARTIGO ARTICLE
Interrompendo rotas, higienizando pessoas: técnicas sanitárias
e seres humanos na ação de guardas e visitadoras sanitárias
Abstract The main interest of this article lies in Resumo O interesse maior deste artigo é com-
understanding the connections between manag- preender as conexões entre o manejo das tecnolo-
ing sanitation technologies and managing people gias sanitárias e o manejo das pessoas, por meio
by means of so-called health education interven- das chamadas ações educativas vinculadas aos ob-
tions towards the same purpose and aim. It ana- jetivos orientadores das técnicas implantadas. Com
lyzes the training of two categories of profession- este objetivo, analiso a conformação de dois pro-
als who were of crucial importance for the actions fissionais centrais à atuação do Serviço Especial
of the Special Service of Health (1942-1960) and de Saúde (1942-1960) e que parecem expressar
whose existence as such seems to express the in- em sua própria existência o vínculo indissolúvel
dissoluble link between the concepts technique and entre concepções técnicas e concepções de ser hu-
human being: sanitation guards and sanitation mano: o guarda sanitário e a visitadora sanitá-
educators. By investigating the instruction man- ria. Por meio dos manuais e programas de cursos
uals and course programs, this study aims at grasp- utilizados na formação desses profissionais, busco
ing the values and ideas about the health/disease compreender valores e concepções sobre o proces-
process and the relationship between the human so saúde/doença e as relações entre ser humano e
being and the environment valid at that time, as ambiente vigentes à época, bem como acerca do
well as at understanding the functions of the san- próprio exercício das funções de guardas e educa-
itation guards and educators. doras sanitárias.
Key words Sanitation, Sanitarian, Health edu- Palavras-chave Sanitarismo, Sanitarista, Edu-
cation, Hygiene, Sesp, Manual cação em saúde, Higiene, Sesp, Manual
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Departamento de
Antropologia, Instituto de
Ciências
Sociais,Universidade de
Brasília. Campus
Universitário Darcy
Ribeiro, Instituto Central
de Ciências, Asa Norte.
70910-900 Brasília DF.
carla@unb.br
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Teixeira, C. C.
fotos, tabelas classificatórias), o que muito nos ção de doenças” e neste sentido a atuação do guar-
fala sobre o exercício desta função e sobre as per- da sanitário viria a ser apresentada como funda-
cepções de mundo que estavam em jogo. mental. A seguir, então, traz a antítese deste cená-
A estrutura deste manual segue a própria es- rio substanciada na fotografia intitulada “O sím-
trutura do curso de formação, explicitada no re- bolo da má saúde” (Figura 1), com o seguinte
latório de encerramento do curso enviado ao texto explicativo: O Barrigudo é um sinal de má
Instituto de Assuntos Interamericanos (IAIA) e saúde. Esta condição é um resultado da infestação
ao Ministério de Educação e Saúde do Brasil, de vermes, de infecção com malária, e de má nutri-
contendo além do próprio manual, fotos, orça- ção. Todas as pessoas na Amazônia devem conhe-
mentos e outros anexos e assinados pelo Supe- cer o Barrigudo como símbolo da má saúde. Todas
rintendente do Sesp e pelo representante do IAIA as mães das crianças Barrigudas devem procurar
no Brasil. Compunha-se de aulas teóricas e prá- as instruções do Sesp6.
ticas em todos os itens, listados a seguir: Primei- Embora mencione a malária, a ênfase dada
ra Parte – “Saúde e saneamento”; “Doenças na formação desta turma de guardas sanitários
transmissíveis”; “Destino dos dejetos”; “A prote- (Figura 2) foram os parasitos intestinais e com
ção dos locais de abastecimento de água”; “Inqu- eles as ações de controle do destino das fezes:
érito para saneamento domiciliar”; “O sistema “Como podemos evitar todo caso de moléstias
de classificação”; “Os deveres do guarda sanitá- intestinais? [...] Afastar completamente cada par-
rio ao voltar ao seu centro de saúde”; “Relatórios tícula de fezes de cada pessoa, para que nunca
dos guardas sanitários”; “Preparação dos cro- chegue a ter contato com outro indivíduo” 6.
quis e dos relatórios de campo que são necessá- Como produzir este afastamento radical, ou
rios para preparar o mapa de saneamento da seja, como cortar as vias de transmissão dessas
cidade”; e Segunda Parte – “Intensificação do sa- doenças, como impedir esta perigosa mistura é a
neamento domiciliar”; “Saneamento escolar”. pergunta a ser respondida ao longo das dezenas
A complexidade das informações disponíveis de páginas do manual. Em meio a explicações de
no manual sugere, por vezes, que este seria o ciclos de contaminação e croquis para diferenci-
manual do instrutor e não do próprio guarda ados tipos de sentinas, com especificações preci-
sanitário. Seja como for, o manual contém infor- sas e fotos, o texto vai pouco a pouco nos intro-
mações e procedimentos que remetem à função duzindo num mundo de coisas: as instalações
do guarda sanitário como criador de novas con- sanitárias domésticas; ao mesmo tempo em que
dições materiais de existência e como controla- deixa entrever que a proposta de separação ab-
dor do seu uso nos termos considerados ade- soluta entre fezes e pessoas insere-se numa visão
quados. Uma ação criadora e controladora que de mundo que não pode ser compreendida nos
repousa em pressupostos, embora compartilha- limites do argumento técnico e epidemiológico,
dos na formação das visitadoras, como será abor- pois parece repousar numa concepção que tem
dado adiante, que guardam certas especificida- no ser humano o elemento primordial a ser sa-
des diante dos mecanismos de sua atualização. neado, a fonte maior de poluição a ser controla-
Logo nas primeiras páginas, encontramos a da. Uma vez fora do corpo, as fezes devem ser
definição de saneamento vigente à época, bem totalmente apartadas de todos os indivíduos
como seu valor social maior. Após dar exemplos (dos que as produziram e de outrem) e para tan-
de diminuição de mortes e adoecimentos devido to há que gerar condições materiais propícias,
ao saneamento, em diferentes lugares do mun- mas, principalmente, há que transformar os
do, afirma: A população sadia, depois que foram comportamentos humanos.
tomadas as medidas de saneamento, dedica-se me- Assim, lemos ao final de cada explicação dos
lhor ao trabalho, adquirindo assim felicidade e ri- diferentes parasitos intestinais sua profilaxia, ou
queza. [...] O objetivo do saneamento é pois cortar seja, as medidas preventivas a serem adotadas
certas rotas de propagação de doenças e assegurar- para evitar essas doenças, enfatizando que as
se de que elas ficarão definitivamente cortadas6. pessoas devem lavar as mãos e não dispor suas
A saúde neste momento era signo e condição fezes no chão. E, ao término das instruções de
de desenvolvimento (uma categoria que come- construção dos diferentes equipamentos sanitá-
çava a se impor no cenário internacional) indivi- rios, encontramos o papel do guarda sanitário
dual e coletiva, pois de uma população saudável nesta profilaxia consubstanciado em sua função
e, portanto, em condições de laborar adviria uma de inspetoria. Não cabia ao guarda apenas cons-
nação próspera. Ao saneamento, pressuposto truir os equipamentos ou orientar os morado-
necessário, caberia cortar as “rotas de propaga- res que os usariam, sua vigilância deveria ser per-
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precisa ser explicada pelo fato social e não mais a guardas que tratam particularmente das instala-
eficácia da ação mágica, sem base biomédica, dis- ções, a atenção das visitadoras será dirigida às pes-
cutida por Mauss e os antropólogos de então. A soas. No assunto da lavagem das mãos e educação
eficácia técnica revelou-se nas linhas do manual das mães e das crianças, incumbe às visitadoras6.
intrinsecamente dependente da eficácia social, A divisão de trabalho entre visitadoras e guar-
uma dependência que, por sua vez, foi traduzida das sugere o limite da intervenção masculina no
em intervenções sanitárias educativas de nature- mundo doméstico, mas ao mesmo tempo pre-
za autoritária com o intuito de combater a igno- serva a separação entre controle do meio e con-
rância, produzir uma “consciência sanitária” e trole de seres humanos, das coisas e das pessoas,
melhorar as condições de saúde. mantendo implícitas suas imbricações e, por tal
Assim, o modo de vida decomposto em tra- ficção, operando como reforço da eficácia mate-
ços comportamentais a serem modificados tor- rial postulada pela razão técnica na interrupção
nou-se o objeto privilegiado das ações de sanea- de rotas de transmissão de doenças. O sujeito
mento. As orientações técnicas e de conduta se humano não é abordado em separado no ma-
fundem e se confirmam mutuamente sob a égide nual, surge como um fio quase invisível nos dife-
da saúde e da verdade e objetividade irredutíveis rentes tópicos como se delimitando o campo de
que parece comportar. Desta forma, via a ação ação desses funcionários, os guardas sanitários,
dos guardas sanitários e da estrutura de centros guardiões de uma política de saúde que, naquele
de saúde do Sesp, estava sendo engendrado, em momento, tinha nas intervenções nos domicílios
nome da necessidade de contenção das fezes e da e seus arredores seu principal campo de atuação.
poluição por ela gerada, um dispositivo de poder O interesse pela água presente, com menor des-
(no sentido foucaultiano) que objetivava explici- taque do que as sentinas, no manejo das águas já
tamente construir novas pessoas, pessoas higie- usadas, na orientação para dispor de artefatos
nizadas, por meio de um aparato de estado roti- para lavagem das mãos e nas pequenas interven-
neiramente presente e vigilante em sua existência ções de engenharia para fornecimento de água
cotidiana coletiva (nos espaços compartilhados) não poluída (em instruções dadas para constru-
e individual (nos seus corpos). ção de poços: distância das fontes de contamina-
A fabricação social e material do hábito de ção, formas de contaminação, técnicas de cons-
lavar as mãos adquiriu, neste contexto, relevân- trução e proteção da fonte, manejo humano, etc.)
cia no exercício da educação sanitária. Conside- ganhará proeminência nas práticas corporais
rando-se que a construção adequada das senti- higiênicas: assunto por excelência da formação
nas não era considerada suficiente caso as pesso- das visitadoras sanitárias.
as não as usassem higienicamente, havia que dis-
ciplinar não apenas o seu manejo e manutenção,
mas também os cuidados corporais após seu uso. O Manual de Curso de Visitadoras Sanitárias
Observamos, então, o desdobramento deste pres-
suposto em considerações sobre meios de conta- A leitura deste manual, bem como do relatório
minação e em prescrições técnicas necessárias no qual se insere, nos permite mapear a abran-
para tornar disponíveis “aparelhos para lavagem gência e o foco da atuação das visitadoras, bem
de mãos” adequados: Pelas mãos sujas se trans- como vislumbrar uma dimensão prática que a
mitem várias doenças intestinais. [...] Para redu- estrutura do Manual para Guarda Sanitário man-
zir a disseminação destas doenças, será preciso en- tinha velada: a necessária e tensa disciplina, não
tão estabelecer o hábito de lavar as mãos. Esta re- apenas dos habitantes locais, mas também des-
gra deverá ser aplicada a todas as pessoas, especial- ses profissionais sanitaristas que afinal eram re-
mente às crianças. É óbvio que tal hábito somente crutados na própria localidade ou na região.
poderá ser estabelecido se houver instalações satis- O curso de formação das visitadoras sanitá-
fatórias e em número suficiente, nas localidades rias desde seu início fora estruturado para ter a
que forem trabalhadas (grifo meu)6. duração de seis meses, dividido em uma parte
Tal anterioridade da instalação material pa- teórica e outra prática, implicando, tal qual no
rece posta somente para qualificar o contexto de dos guardas sanitários, um período de internato
sua já assumida insuficiência e eficácia relativa na localidade onde o curso era ministrado, no
no estabelecimento do hábito de lavar as mãos, caso em foco, Itacoatiara/AM, durante o qual re-
visto que é no tema da lavagem das mãos que cebiam uma pequena bolsa para sua manuten-
pela primeira vez surge referência às visitadoras ção. O conteúdo do curso, com adaptações e ên-
sanitárias: Em contraste com as incumbências dos fases locais, contemplava os seguintes tópicos:
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familiares, em especial mães e crianças), a ser Se o foco explícito do guarda era separar fe-
obtida por meio da produção de um continente zes de pessoas por meio da produção da materia-
para um conteúdo, ou seja, de uma visualidade lidade necessária, o da visitadora era efetuar esta
higiênica (asséptica e femininamente adequada), separação por meio da produção de pessoas dis-
num processo de mútua determinação. Infeliz- ciplinadas ao uso destes recursos. À prática de
mente, não localizei nenhuma foto das alunas do lavar as mãos somam-se muitas outras práticas
curso de visitadora sanitária da Amazônia. Con- higiênicas e de cuidados corporais vinculadas a
tudo, inseri uma foto de formatura, também nos certa concepção de funcionalidade do organis-
anos 1940, do “Programa do Vale do Rio Doce” mo humano. Dentre os tópicos de higiene pes-
para que o leitor possa ter uma aproximação soal do curso de formação de visitadoras, en-
visual desta profissional (Figura 4). contramos, além de (1) “higiene e saúde - defini-
Claramente o uniforme do guarda sanitário ção e signos de boa saúde” e (2) “hábitos de higi-
continha em si expressividade, mas certamente ene - como são formados”: (3) “células – unida-
de outra natureza, a do exercício da autoridade, de estrutural do corpo humano”; (4) “desenvol-
já explicitada no próprio nome da função. Não vimento do corpo humano”; (5) “pele – estrutu-
tenho como aferir a dimensão corporal da disci- ra e função”; (6) “ossos, músculos e postura”;
plina necessária a esta expressividade, pois nos (7) “mãos e unhas – cuidado necessário”; (8) “pés
documentos levantados sobre as orientações vi- e sapatos – higiene necessária”; (9) “olhos – es-
gentes na formação do guarda não encontrei trutura e função e cuidado necessário” (o mesmo
qualquer referência a cuidados corporais pres- se repetindo para ouvidos e cabelos); (12) “siste-
critos. Se havia, e deveria haver, não deveriam ser ma digestivo – boca e dentes”; (13) “estômago e
tão constitutivos de sua função, mais identifica- intestino”; (14) “hábitos higiênicos de elimina-
da que era explicitamente com o saneamento ção”; e assim sucessivamente para diferentes ór-
material do ambiente e não da pessoa. gãos e sistemas, finalizando com “menstruação”,
“dormir e descansar”, “recreação – higiene men-
tal”, “roupas – higiene” e “hábitos de higiene ne-
cessários para diferentes idades”. Infelizmente,
não há um detalhamento de cada um dos tópi-
cos, mas sua enunciação permite acompanhar a
pelo Sesp, tal reorientação teve início em 1953 com sanitária, diferentemente da biomedicina que tem
a entrada de Arthur Rios para chefiar a seção de sido alvo de inúmeras reflexões por parte de pes-
pesquisa social no âmbito do Setor de Educação quisadores e dos próprios atores. Assim, analisar
Sanitária, dirigido por Nilo Chaves de Brito Bas- os novos manuais e etnografar a formação e as
tos, que já começava a valorizar o esclarecimento práticas dos atuais profissionais de engenharia e
dos profissionais da saúde sobre a dimensão so- de educação em saúde, para avançar na compre-
cial da doença e da necessidade de conhecer as ensão das linhas de continuidade e ruptura com o
concepções comunitárias sobre ela, ficando, as- momento fundador do Sesp aqui considerado,
sim, os sociólogos e os antropólogos responsá- nisto consiste o novo desafio a trilhar; na certeza
veis por fazer esta tradução4. Mas esta é outra de que se toda tecnologia política de saúde e sane-
história, na qual as práticas higiênicas preconiza- amento é um instrumento de dominação rotinei-
das pela saúde pública no combate a microorga- ra, só o é eficazmente na medida em que for tam-
nismos patogênicos no manejo de corpos e espa- bém um agente cultural na produção de subjeti-
ços não mais reconheciam as autoridades do pas- vidades incorporadas e territorialmente interiori-
sado, suas práticas, compromissos e vocações. zadas, ou seja, se for feliz11 em consolidar cone-
Permaneceu, contudo, praticamente inquestioná- xões amplificáveis de afinidade entre escolhas téc-
vel a universalidade da tecnologia da engenharia nicas e orientações interacionais.
Referências