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ARTIGO ARTICLE
Interrompendo rotas, higienizando pessoas: técnicas sanitárias
e seres humanos na ação de guardas e visitadoras sanitárias

Interrupting routes, hygienizing people: sanitary techniques


and human beings in the actions of sanitary guards and educators

Carla Costa Teixeira 1

Abstract The main interest of this article lies in Resumo O interesse maior deste artigo é com-
understanding the connections between manag- preender as conexões entre o manejo das tecnolo-
ing sanitation technologies and managing people gias sanitárias e o manejo das pessoas, por meio
by means of so-called health education interven- das chamadas ações educativas vinculadas aos ob-
tions towards the same purpose and aim. It ana- jetivos orientadores das técnicas implantadas. Com
lyzes the training of two categories of profession- este objetivo, analiso a conformação de dois pro-
als who were of crucial importance for the actions fissionais centrais à atuação do Serviço Especial
of the Special Service of Health (1942-1960) and de Saúde (1942-1960) e que parecem expressar
whose existence as such seems to express the in- em sua própria existência o vínculo indissolúvel
dissoluble link between the concepts technique and entre concepções técnicas e concepções de ser hu-
human being: sanitation guards and sanitation mano: o guarda sanitário e a visitadora sanitá-
educators. By investigating the instruction man- ria. Por meio dos manuais e programas de cursos
uals and course programs, this study aims at grasp- utilizados na formação desses profissionais, busco
ing the values and ideas about the health/disease compreender valores e concepções sobre o proces-
process and the relationship between the human so saúde/doença e as relações entre ser humano e
being and the environment valid at that time, as ambiente vigentes à época, bem como acerca do
well as at understanding the functions of the san- próprio exercício das funções de guardas e educa-
itation guards and educators. doras sanitárias.
Key words Sanitation, Sanitarian, Health edu- Palavras-chave Sanitarismo, Sanitarista, Edu-
cation, Hygiene, Sesp, Manual cação em saúde, Higiene, Sesp, Manual

1
Departamento de
Antropologia, Instituto de
Ciências
Sociais,Universidade de
Brasília. Campus
Universitário Darcy
Ribeiro, Instituto Central
de Ciências, Asa Norte.
70910-900 Brasília DF.
carla@unb.br
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Teixeira, C. C.

Introdução guardam, no entanto, certa singularidade por


serem voltados para a formação dos formado-
O interesse deste artigo é compreender as cone- res de hábitos, permitindo simultaneamente apre-
xões entre o manejo das tecnologias sanitárias e ender a corporalidade que se pretende engendrar
o manejo das pessoas, por meio das chamadas socialmente, bem como a produção dos própri-
ações educativas vinculadas aos objetivos orien- os mediadores por esta responsáveis. Desta for-
tadores das técnicas implantadas. Insere-se na ma, revela-se a complexidade da construção de
pesquisa em curso sobre a Fundação Nacional uma burocracia que se encontra em meio ao pro-
de Saúde (Funasa), órgão do Ministério da Saú- cesso de fabricação de seus próprios agentes nem
de, criada em 1991, visto ser esta a instituição todos comprometidos com os valores e normas
encarregada da gestão das ações de saneamento, que lhe orientam, especificamente, no que tange
tanto no que se refere às obras e instalações quan- a internalizar (territorial e subjetivamente) tec-
to às iniciativas de educação em saúde, nos mu- nologias sanitárias na articulação entre meio fí-
nicípios de até 50 mil habitantes – o que corres- sico e corpos humanos.
ponde a 90,6% do total de municípios brasileiros
– e nos territórios etnicamente diferenciados.
Contudo, tem como objeto de análise documen- Falando um pouco sobre o Sesp
tos oriundos da extinta Fundação Serviço Espe-
cial de Saúde (Fundação Sesp), fundação que jun- Criado em 1942, o Sesp foi responsável até 1960
to com a Superintendência de Combate à Malá- – ano em foi transformado em fundação - pelo
ria (Sucam) deu origem à Funasa, reconhecendo cuidado continuado da saúde em termos clíni-
sua contribuição à configuração de valores e prá- cos e preventivos em vastas regiões do interior;
ticas ainda hoje vigentes na chamada educação diferente da Sucam, que atuava especificamente
em saúde. nas campanhas contra a malária. Embora se in-
Desta perspectiva, analisa a conformação de sira nos acordos Brasil e Estados Unidos para a
dois profissionais centrais à atuação do Serviço produção de matéria-prima no contexto da Se-
Especial de Saúde Pública – transformado em gunda Guerra Mundial, o Sesp – concebido como
Fundação Sesp em 1960 - e que parecem expres- uma agência bilateral provisória, restrita ao pe-
sar em sua própria existência o vínculo indisso- ríodo da Segunda Guerra Mundial, a ser manti-
lúvel entre concepções técnicas e concepções de da com recursos de ambos os países - desenvol-
ser humano: o guarda sanitário e a visitadora veu ações de saúde a partir de uma perspectiva
sanitária – profissionais de cuja existência en- que tinha na idéia de comunidade e de educação
contrei referências até os anos setenta (nos rela- sanitária o seu eixo – orientado que fora pelas
tórios anuais da Fundação Sesp) e que deixaram experiências de centros de saúde do início do sé-
marcas profundas nas ações educativas atuais. culo XX nos Estados Unidos 2, 3. Ainda, ao se in-
Trata-se de investigar os manuais e programas tegrar ao projeto nacional da Era Vargas, o Sesp
de cursos utilizados na formação desses profis- adquiriu feições particulares, transcendeu seus
sionais, buscando compreender, por meio de sua objetivos estratégicos iniciais e ampliou sua área
estrutura interna e orientações prático-normati- de atuação para outras regiões.
vas, os valores e concepções sobre o processo Em que pesem as transformações sofridas ao
saúde/doença e as relações entre ser humano e longo de sua existência, sendo seu objeto original
ambiente vigentes à época, bem como acerca do o suprimento de matérias-primas e o abrigo de
próprio exercício das funções de guardas e edu- bases militares dos Estados Unidos em território
cadoras sanitárias. brasileiro, ao Sesp cabia a função de implantar
Assim, a escrita deste trabalho tem inspira- condições sanitárias que assegurassem a saúde
ção direta em Elias1, não apenas na sua conside- das tropas americanas, especialmente nas bases
ração da história dos costumes por meio da pes- aéreas no Nordeste, e também dos trabalhadores
quisa de manuais de instrução a jovens no perío- brasileiros envolvidos na produção de borracha,
do que abrange da Idade Média ao século XVIII, ferro, mica e quartzo. A partir destas prioridades,
mas principalmente no compartilhamento de sua foram definidos os programas que estruturavam
compreensão sobre a interdependência entre a a atuação do Sesp, dentre os quais se destacaram
estruturação do Estado (instituições, mecanis- o “Programa do Vale Amazônico” e o “Programa
mos e políticas de governo) e as práticas corpo- do Vale do Rio Doce”. Em ambos o foco foi: (i) a
rais cotidianas dos indivíduos que se encontram malária, combatida inicialmente por ampla dis-
sob sua autoridade. Os manuais que considero tribuição emergencial de medicamento (atebrina)
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associada a intervenções ambientais (drenagem, comparable to public health nurses, health educa-
aterramento e limpeza dos focos de mosquitos); tion, of a sort, has been dispensed only by male
e (ii) os parasitos intestinais. No caso dos parasi- guardas, whose main function is to stress safe wa-
tos intestinais, seu combate foi desde o início vin- ter supply and sanitary privies. SESP will train
culado a estratégias de longo prazo por meio da young women to do home visiting work in the
constituição de uma rede permanente de unida- health education program5.
des sanitárias – a qual o combate à malária não Assim, sob o argumento inicial da falta de
demorou a vir a se integrar - responsáveis por educação sanitária, da necessidade de manuten-
atendimento médico e por ações de esgotamento ção dos equipamentos e da carência de enfermei-
sanitário e de tratamento da água. Como bem ras, a função de guardas e visitadoras foi intro-
analisou Campos4, por tal estrutura sanitária, o duzida no âmbito do Sesp. Contudo, como o
Estado brasileiro, em que pese a eficácia relativa próprio relatório sugere, a instituição das visita-
de suas ações em termos epidemiológicos, am- doras parece ter sido criada também para sanar
pliou sua capilaridade de forma considerável, fa- dificuldades decorrentes do fato de exclusivamen-
zendo-se presente no dia-a-dia de amplos con- te homens estarem realizando as visitas domici-
tingentes de brasileiros e internalizando territori- liares. Em um mundo onde este domínio é mar-
almente a burocracia de governo. cadamente feminino, a divisão sexual do traba-
Já nos primeiros anos de sua existência, o Sesp lho se desdobrou na própria política de forma-
criou uma Divisão de Educação Sanitária (1944) ção de pessoal do Sesp em educação sanitária:
responsável tanto pelo treinamento de educado- mulheres passaram a ser selecionadas para fazer
res em saúde (profissionais da saúde, engenhei- o curso de formação de visitadoras e homens, o
ros e auxiliares) quanto pela ação nas localida- de guarda sanitário. Tal divisão veio a enfatizar a
des: nas habitações, espaços comuns, associa- visão tecnicista do trabalho dos guardas, uma
ções e escolas. Neste processo, assumiram desta- vez que a educação para hábitos civilizados pare-
que os guardas sanitários e as visitadoras sanitá- cia ter se tornado competência das visitadoras.
rias por seu contato direto e permanente com a Mais do que uma separação entre elementos téc-
denominada “comunidade”. Estes eram arregi- nico e humano, no entanto, o que os manuais
mentados entre os moradores, a partir de um sugerem é a necessária dependência entre dois
conjunto de pré-requisitos que envolviam desde tipos de eficácia, material e simbólica, combina-
escolaridade até atributos de personalidade e dos distintamente nas duas funções. Assim, ten-
hábitos de higiene. O argumento que sustentava do essas iniciativas estado dentre as primeiras
a necessidade destes profissionais era fortemente experiências desse tipo no Sesp, e por ter encon-
calcado numa avaliação de carência e não em sua trado documentos completos sobre elas, toma-
positividade - embora esta estivesse presente, rei como foco deste trabalho o “Manual para
permanecia residual. Em abril de 1944, na descri- Guarda Sanitário” e o “Manual de Curso para
ção do projeto da escola de treinamento de guar- Visitadoras” desenvolvidos para a Amazônia e
das sanitários do “Programa Vale do Amazo- atualizados especificamente em Itacoatiara –
nas” em Itacoatiara, enviada para o Instituto de embora tenha consultado, para efeito compara-
Assuntos Interamericanos, podemos ler a seguin- tivo, outros relatórios sobre cursos de visitado-
te definição do problema em que se baseava o ras e guardas sanitários.
projeto: Due a lack of educational in environmen-
tal sanitation there is a great need for sanitary
guardas to go from house to house making home Manual para Guarda Sanitário
visits and informing the people about home sani-
tation. With a little help from someone trained in O curso de formação de guarda sanitário come-
a few specific matters considerable good can be ac- çou com a duração de pouco mais de um mês (1º
complished with a small expenditure. Furthermo- de maio a 10 de junho de 1944, Itacoatiara/AM),
re these guardas are necessary in order to help mas chegou com o passar do tempo a atingir seis
maintain the privy installations which SESP is meses. Tal duração parece dever-se ao fato de a
constructing5. realidade local ter se revelado mais demandante e
Neste mesmo ano, no mês de outubro, foi requerer maior abrangência na formação do guar-
enviado o projeto para o curso de formação das da sanitário. A leitura do manual que deveria ori-
visitadoras sanitárias, para o mesmo programa entar a atuação deste guarda impressiona não só
e na mesma localidade, nos seguintes termos: pelo tamanho (totalizava 162 páginas), mas prin-
Outside of Belém there is no public health personal cipalmente por sua riqueza de detalhes (croquis,
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Teixeira, C. C.

fotos, tabelas classificatórias), o que muito nos ção de doenças” e neste sentido a atuação do guar-
fala sobre o exercício desta função e sobre as per- da sanitário viria a ser apresentada como funda-
cepções de mundo que estavam em jogo. mental. A seguir, então, traz a antítese deste cená-
A estrutura deste manual segue a própria es- rio substanciada na fotografia intitulada “O sím-
trutura do curso de formação, explicitada no re- bolo da má saúde” (Figura 1), com o seguinte
latório de encerramento do curso enviado ao texto explicativo: O Barrigudo é um sinal de má
Instituto de Assuntos Interamericanos (IAIA) e saúde. Esta condição é um resultado da infestação
ao Ministério de Educação e Saúde do Brasil, de vermes, de infecção com malária, e de má nutri-
contendo além do próprio manual, fotos, orça- ção. Todas as pessoas na Amazônia devem conhe-
mentos e outros anexos e assinados pelo Supe- cer o Barrigudo como símbolo da má saúde. Todas
rintendente do Sesp e pelo representante do IAIA as mães das crianças Barrigudas devem procurar
no Brasil. Compunha-se de aulas teóricas e prá- as instruções do Sesp6.
ticas em todos os itens, listados a seguir: Primei- Embora mencione a malária, a ênfase dada
ra Parte – “Saúde e saneamento”; “Doenças na formação desta turma de guardas sanitários
transmissíveis”; “Destino dos dejetos”; “A prote- (Figura 2) foram os parasitos intestinais e com
ção dos locais de abastecimento de água”; “Inqu- eles as ações de controle do destino das fezes:
érito para saneamento domiciliar”; “O sistema “Como podemos evitar todo caso de moléstias
de classificação”; “Os deveres do guarda sanitá- intestinais? [...] Afastar completamente cada par-
rio ao voltar ao seu centro de saúde”; “Relatórios tícula de fezes de cada pessoa, para que nunca
dos guardas sanitários”; “Preparação dos cro- chegue a ter contato com outro indivíduo” 6.
quis e dos relatórios de campo que são necessá- Como produzir este afastamento radical, ou
rios para preparar o mapa de saneamento da seja, como cortar as vias de transmissão dessas
cidade”; e Segunda Parte – “Intensificação do sa- doenças, como impedir esta perigosa mistura é a
neamento domiciliar”; “Saneamento escolar”. pergunta a ser respondida ao longo das dezenas
A complexidade das informações disponíveis de páginas do manual. Em meio a explicações de
no manual sugere, por vezes, que este seria o ciclos de contaminação e croquis para diferenci-
manual do instrutor e não do próprio guarda ados tipos de sentinas, com especificações preci-
sanitário. Seja como for, o manual contém infor- sas e fotos, o texto vai pouco a pouco nos intro-
mações e procedimentos que remetem à função duzindo num mundo de coisas: as instalações
do guarda sanitário como criador de novas con- sanitárias domésticas; ao mesmo tempo em que
dições materiais de existência e como controla- deixa entrever que a proposta de separação ab-
dor do seu uso nos termos considerados ade- soluta entre fezes e pessoas insere-se numa visão
quados. Uma ação criadora e controladora que de mundo que não pode ser compreendida nos
repousa em pressupostos, embora compartilha- limites do argumento técnico e epidemiológico,
dos na formação das visitadoras, como será abor- pois parece repousar numa concepção que tem
dado adiante, que guardam certas especificida- no ser humano o elemento primordial a ser sa-
des diante dos mecanismos de sua atualização. neado, a fonte maior de poluição a ser controla-
Logo nas primeiras páginas, encontramos a da. Uma vez fora do corpo, as fezes devem ser
definição de saneamento vigente à época, bem totalmente apartadas de todos os indivíduos
como seu valor social maior. Após dar exemplos (dos que as produziram e de outrem) e para tan-
de diminuição de mortes e adoecimentos devido to há que gerar condições materiais propícias,
ao saneamento, em diferentes lugares do mun- mas, principalmente, há que transformar os
do, afirma: A população sadia, depois que foram comportamentos humanos.
tomadas as medidas de saneamento, dedica-se me- Assim, lemos ao final de cada explicação dos
lhor ao trabalho, adquirindo assim felicidade e ri- diferentes parasitos intestinais sua profilaxia, ou
queza. [...] O objetivo do saneamento é pois cortar seja, as medidas preventivas a serem adotadas
certas rotas de propagação de doenças e assegurar- para evitar essas doenças, enfatizando que as
se de que elas ficarão definitivamente cortadas6. pessoas devem lavar as mãos e não dispor suas
A saúde neste momento era signo e condição fezes no chão. E, ao término das instruções de
de desenvolvimento (uma categoria que come- construção dos diferentes equipamentos sanitá-
çava a se impor no cenário internacional) indivi- rios, encontramos o papel do guarda sanitário
dual e coletiva, pois de uma população saudável nesta profilaxia consubstanciado em sua função
e, portanto, em condições de laborar adviria uma de inspetoria. Não cabia ao guarda apenas cons-
nação próspera. Ao saneamento, pressuposto truir os equipamentos ou orientar os morado-
necessário, caberia cortar as “rotas de propaga- res que os usariam, sua vigilância deveria ser per-
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para fazer uma limpeza inicial dentro e fora da
sentina, lavando o piso, recolhendo qualquer pe-
daço pequeno de madeira, palha ou pedra que te-
nha sido deixado pelos construtores etc. No dia
seguinte, o inspetor deve voltar para anotar se a
família fez a limpeza inicial, marcando “sim” ou
“não” conforme o caso e dando instruções de con-
servação da sentina de acordo com as regras escla-
recidas no Manual do Guarda Sanitário6.
Se, numa primeira leitura do manual, a cons-
trução da infra-estrutura sanitária material pa-
rece ser a missão maior do guarda, um olhar
cuidadoso logra perceber que seus desdobramen-
tos rotineiros são cruciais. Daí o volume de pági-
nas no manual dedicadas a detalhar o modo de
fazer mapas e relatórios, preencher inquéritos,
definir critérios para normatizar e homogenei-
zar a classificação de cada elemento como em
“boa”, “regular” ou “má” condição. A necessida-
de de controlar “o uso e a conservação da senti-
na”, ou de qualquer outro equipamento domés-
Figura 1. O símbolo da má saúde. tico, e de garantir condições consideradas ade-
quadas de higiene do domicílio e suas imedia-
ções é o que gera a necessidade de esquadrinhar a
comunidade minuciosamente. Caso contrário, o
mapeamento local se daria apenas no diagnósti-
co preliminar da realidade para o planejamento
das intervenções materiais a serem desenvolvi-
das; mas não é o que se verifica ao longo das
páginas do manual, pois as visitas de inspeção
devem ser periódicas e registradas minuciosa-
mente nos termos do manual. A ordenação do
meio físico revela-se aqui intrinsecamente subor-
dinada ao domínio meticuloso e continuado da
ação humana. Não é possível interromper as
Figura 2. Turma de guardas sanitários; 1944.
Fonte: Casa de Oswaldo Cruz, Acervo Fundação Sesp 1. rotas de transmissão das moléstias intestinais
Manual para Guarda Sanitário. apenas saneando materialmente o meio através
de instalações sanitárias, principalmente se con-
siderarmos a simplicidade destas instalações.
É como se neste processo a indagação sobre
eficácia que norteou inicialmente os estudos an-
tropológicos no final do século XIX e início do
XX se invertesse. Se para Marcel Mauss7 o que
manente na utilização e manutenção de sentinas, havia de ser explicado era a perda da vitalidade e
pias, caixas d’água, bem como na ordenação dos a morte por indução social, isto é, o fato das
quintais e na erradicação da “imundície”. Pode- pessoas morrerem em contextos de feitiçaria ou
mos vislumbrar a tensão e o conflito que seme- quebra de tabu sem a materialização de proces-
lhante inspeção comportava quando nos depa- sos de doença condizentes na concepção biomé-
ramos com a seguinte orientação ao guarda, sob dica, aqui o que parece se colocar é a necessidade
o subtítulo “Família” no manual: Neste ponto, a de explicar por que apesar da transformação das
sentina torna-se um problema entre o inspetor ou condições materiais exteriores, requeridas à não
o guarda sanitário e a família. As obrigações do propagação das doenças, as pessoas continua-
chefe de construção estão terminadas. Na mesma vam adoecendo e morrendo. Agora são os limi-
ocasião em que o inspetor anota estar completa a tes da eficácia da ação técnica, orientada epide-
construção, deve conversar com a família e pedir miologicamente, no controle das doenças que
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Teixeira, C. C.

precisa ser explicada pelo fato social e não mais a guardas que tratam particularmente das instala-
eficácia da ação mágica, sem base biomédica, dis- ções, a atenção das visitadoras será dirigida às pes-
cutida por Mauss e os antropólogos de então. A soas. No assunto da lavagem das mãos e educação
eficácia técnica revelou-se nas linhas do manual das mães e das crianças, incumbe às visitadoras6.
intrinsecamente dependente da eficácia social, A divisão de trabalho entre visitadoras e guar-
uma dependência que, por sua vez, foi traduzida das sugere o limite da intervenção masculina no
em intervenções sanitárias educativas de nature- mundo doméstico, mas ao mesmo tempo pre-
za autoritária com o intuito de combater a igno- serva a separação entre controle do meio e con-
rância, produzir uma “consciência sanitária” e trole de seres humanos, das coisas e das pessoas,
melhorar as condições de saúde. mantendo implícitas suas imbricações e, por tal
Assim, o modo de vida decomposto em tra- ficção, operando como reforço da eficácia mate-
ços comportamentais a serem modificados tor- rial postulada pela razão técnica na interrupção
nou-se o objeto privilegiado das ações de sanea- de rotas de transmissão de doenças. O sujeito
mento. As orientações técnicas e de conduta se humano não é abordado em separado no ma-
fundem e se confirmam mutuamente sob a égide nual, surge como um fio quase invisível nos dife-
da saúde e da verdade e objetividade irredutíveis rentes tópicos como se delimitando o campo de
que parece comportar. Desta forma, via a ação ação desses funcionários, os guardas sanitários,
dos guardas sanitários e da estrutura de centros guardiões de uma política de saúde que, naquele
de saúde do Sesp, estava sendo engendrado, em momento, tinha nas intervenções nos domicílios
nome da necessidade de contenção das fezes e da e seus arredores seu principal campo de atuação.
poluição por ela gerada, um dispositivo de poder O interesse pela água presente, com menor des-
(no sentido foucaultiano) que objetivava explici- taque do que as sentinas, no manejo das águas já
tamente construir novas pessoas, pessoas higie- usadas, na orientação para dispor de artefatos
nizadas, por meio de um aparato de estado roti- para lavagem das mãos e nas pequenas interven-
neiramente presente e vigilante em sua existência ções de engenharia para fornecimento de água
cotidiana coletiva (nos espaços compartilhados) não poluída (em instruções dadas para constru-
e individual (nos seus corpos). ção de poços: distância das fontes de contamina-
A fabricação social e material do hábito de ção, formas de contaminação, técnicas de cons-
lavar as mãos adquiriu, neste contexto, relevân- trução e proteção da fonte, manejo humano, etc.)
cia no exercício da educação sanitária. Conside- ganhará proeminência nas práticas corporais
rando-se que a construção adequada das senti- higiênicas: assunto por excelência da formação
nas não era considerada suficiente caso as pesso- das visitadoras sanitárias.
as não as usassem higienicamente, havia que dis-
ciplinar não apenas o seu manejo e manutenção,
mas também os cuidados corporais após seu uso. O Manual de Curso de Visitadoras Sanitárias
Observamos, então, o desdobramento deste pres-
suposto em considerações sobre meios de conta- A leitura deste manual, bem como do relatório
minação e em prescrições técnicas necessárias no qual se insere, nos permite mapear a abran-
para tornar disponíveis “aparelhos para lavagem gência e o foco da atuação das visitadoras, bem
de mãos” adequados: Pelas mãos sujas se trans- como vislumbrar uma dimensão prática que a
mitem várias doenças intestinais. [...] Para redu- estrutura do Manual para Guarda Sanitário man-
zir a disseminação destas doenças, será preciso en- tinha velada: a necessária e tensa disciplina, não
tão estabelecer o hábito de lavar as mãos. Esta re- apenas dos habitantes locais, mas também des-
gra deverá ser aplicada a todas as pessoas, especial- ses profissionais sanitaristas que afinal eram re-
mente às crianças. É óbvio que tal hábito somente crutados na própria localidade ou na região.
poderá ser estabelecido se houver instalações satis- O curso de formação das visitadoras sanitá-
fatórias e em número suficiente, nas localidades rias desde seu início fora estruturado para ter a
que forem trabalhadas (grifo meu)6. duração de seis meses, dividido em uma parte
Tal anterioridade da instalação material pa- teórica e outra prática, implicando, tal qual no
rece posta somente para qualificar o contexto de dos guardas sanitários, um período de internato
sua já assumida insuficiência e eficácia relativa na localidade onde o curso era ministrado, no
no estabelecimento do hábito de lavar as mãos, caso em foco, Itacoatiara/AM, durante o qual re-
visto que é no tema da lavagem das mãos que cebiam uma pequena bolsa para sua manuten-
pela primeira vez surge referência às visitadoras ção. O conteúdo do curso, com adaptações e ên-
sanitárias: Em contraste com as incumbências dos fases locais, contemplava os seguintes tópicos:
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“Higiene pessoal”; “Centro de Saúde”; “Nutrição”; territorializada nos diferentes distritos sanitári-
“Higiene escolar”; “Ética”; “Higiene pré-natal, in- os, que destacamos nas orientações do Manual
fantil e pré-escolar”; “Treinamento e supervisão do Guarda Sanitário, fora ampliada aqui para a
das práticas higiênicas das “curiosas””; “Doenças disciplina minuciosa das próprias visitadoras. A
contagiosas (práticas em técnicas isoladas)”; “Saú- explicitação deste desdobramento no caso espe-
de comunitária”; “Curso de Laboratório”; “Pri- cífico das visitadoras sugere as dificuldades de
meiros socorros”; “Saneamento ambiental”. recrutamento destas profissionais na própria
Semelhante grade temática já nos permite ver localidade. Assim, muitas não chegavam a con-
que a atuação das visitadoras incluía, além das cluir o curso. No relatório do curso realizado em
visitas às casas e escolas, o trabalho de auxiliar Itacoatiara, em 19468, a enfermeira responsável
nos postos e centros de saúde, bem como a disci- registrou que ,das vinte candidatas que começa-
plina das parteiras locais. Os professores eram ram a formação, apenas treze a concluíram. Ra-
predominantemente enfermeiras com a colabo- zões alegadas? “Incapacidade intelectual” (uma),
ração de alguns médicos, incluindo por vezes vi- “indisciplina e incapacidade intelectual” (duas),
sitadoras experientes – diferente dos guardas que, “problemas de saúde” (duas) e “mudança da fa-
embora respondessem ao médico do distrito sa- mília para outra localidade” (uma). Mas, princi-
nitário, eram instruídos por inspetores sanitári- palmente, esta ênfase disciplinar parece expres-
os formados principalmente por engenheiros. A sar a ação exemplar que deveriam ter aquelas
seleção privilegiava mulheres jovens (entre 16 e que mais atuavam na conversão das interações
28 anos), solteiras e viúvas (casadas somente com cotidianas da população. A ordenação moral e
o consentimento do marido), das quais se exigia higiênica dessas funcionárias deveria ser corpo-
o primário completo, além de outros atributos e rificada em hábitos, condutas e aparência, não
habilidades de ordem pessoal – como pode se apenas em palavras. As visitadoras deveriam per-
avaliar nas cinqüenta perguntas do questionário sonificar em si certo espírito do sanitarismo e,
que deveriam responder e nos requisitos básicos por tal processo, como se fossem ícones, comu-
exigidos à candidata (exame físico, exames de nicá-lo imediatamente.
português e de matemática e um enxoval míni- Neste sentido, a exigência do uso do uniforme
mo composto de peças de roupa, itens de higiene estabelecido na região (Figura 3) e do distintivo
pessoal, um guarda-chuva, um relógio de pon- do Sesp era complementada pela obrigatoriedade
teiro e uma caneta tinteiro). de vários outros elementos, alguns dotados de
Questões de ordem moral, de conhecimentos função instrumental na prática do serviço presta-
ligados aos preceitos sanitários, de adesão a cren- do pela visitadora, outros contendo em si a fina-
dices ou “ignorância” (como eram chamadas as lidade última da expressividade de valores, uma
concepções e práticas populares desautorizadas expressividade que implicava a fusão entre o cor-
pela medicina vigente) e a práticas higiênicas se po do indivíduo e o uniforme que o vestia. Assim,
sucedem no questionário de admissão sem qual- ao final da enumeração dos itens materiais que
quer solução de continuidade. Assim, se a primei- compunham o uniforme da visitadora sanitária,
ra pergunta do questionário consiste em “Se já nos deparamos com preceitos de cuidados cor-
teve experiência com enfermagem, qual o aspecto porais muito específicos, vinculados tanto ao re-
que mais lhe agradou?”; a pergunta número 6 cato feminino quanto à limpeza pessoal:
aborda questões claramente morais: “Acha que Uniforme de Visitadora Sanitária
há ocasiões em que a mentira é justificável?”; a de [...] 9º - Não usar excesso de pintura, nem jóias
número 7 indaga se a candidata “Gosta de limpar (anéis, brincos, pulseiras, cordões, etc.), será en-
e arrumar a casa?”; a de número 9 se “Já ouviu tretanto permitido o uso discreto de rouge e baton
falar de micróbios que causam doenças?”; a de natural;
número 10 complementa-a com “Acredita que 10º - Conservar as unhas curtas e, se fizer uso
existem?”; enquanto que da pergunta 25 em dian- de esmalte, este deverá ser natural8.
te temos uma dezena de questões sobre se lava as Tal documento sugere que o uniforme signi-
mãos, toma banho, quantas vezes e por que, se ficava mais do que uma identificação funcional
há inconveniente em cuspir no chão, etc., finali- exterior, constituía um artefato corporal de du-
zando com indagações sobre frutas do tipo “Acha pla orientação. Tratava-se de um artifício mate-
que é verdadeiro o ditado que diz: ‘Fruta pela rial e simbólico cuja finalidade era conformar
manhã ouro; de tarde, prata; de noite, mata?’”. (no duplo sentido da palavra: moldar e acomo-
A pretensão de totalização e englobamento dar) a subjetividade dos sujeitos da ação (as visi-
de cada um dos moradores pela ação sanitarista tadoras) e dos sujeitos objetos de sua ação (os
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Teixeira, C. C.

familiares, em especial mães e crianças), a ser Se o foco explícito do guarda era separar fe-
obtida por meio da produção de um continente zes de pessoas por meio da produção da materia-
para um conteúdo, ou seja, de uma visualidade lidade necessária, o da visitadora era efetuar esta
higiênica (asséptica e femininamente adequada), separação por meio da produção de pessoas dis-
num processo de mútua determinação. Infeliz- ciplinadas ao uso destes recursos. À prática de
mente, não localizei nenhuma foto das alunas do lavar as mãos somam-se muitas outras práticas
curso de visitadora sanitária da Amazônia. Con- higiênicas e de cuidados corporais vinculadas a
tudo, inseri uma foto de formatura, também nos certa concepção de funcionalidade do organis-
anos 1940, do “Programa do Vale do Rio Doce” mo humano. Dentre os tópicos de higiene pes-
para que o leitor possa ter uma aproximação soal do curso de formação de visitadoras, en-
visual desta profissional (Figura 4). contramos, além de (1) “higiene e saúde - defini-
Claramente o uniforme do guarda sanitário ção e signos de boa saúde” e (2) “hábitos de higi-
continha em si expressividade, mas certamente ene - como são formados”: (3) “células – unida-
de outra natureza, a do exercício da autoridade, de estrutural do corpo humano”; (4) “desenvol-
já explicitada no próprio nome da função. Não vimento do corpo humano”; (5) “pele – estrutu-
tenho como aferir a dimensão corporal da disci- ra e função”; (6) “ossos, músculos e postura”;
plina necessária a esta expressividade, pois nos (7) “mãos e unhas – cuidado necessário”; (8) “pés
documentos levantados sobre as orientações vi- e sapatos – higiene necessária”; (9) “olhos – es-
gentes na formação do guarda não encontrei trutura e função e cuidado necessário” (o mesmo
qualquer referência a cuidados corporais pres- se repetindo para ouvidos e cabelos); (12) “siste-
critos. Se havia, e deveria haver, não deveriam ser ma digestivo – boca e dentes”; (13) “estômago e
tão constitutivos de sua função, mais identifica- intestino”; (14) “hábitos higiênicos de elimina-
da que era explicitamente com o saneamento ção”; e assim sucessivamente para diferentes ór-
material do ambiente e não da pessoa. gãos e sistemas, finalizando com “menstruação”,
“dormir e descansar”, “recreação – higiene men-
tal”, “roupas – higiene” e “hábitos de higiene ne-
cessários para diferentes idades”. Infelizmente,
não há um detalhamento de cada um dos tópi-
cos, mas sua enunciação permite acompanhar a

Figura 3. Uniforme da visitadora sanitária Figura 4. Formanda da turma de visitadoras de


(Itacoatiara/AM). Colatina (MG).
Fonte: Casa de Oswaldo Cruz, Acervo Fundação Sesp 1. Manual Fonte: Casa de Oswaldo Cruz, Acervo Fundação Sesp 1.
do Curso de Visitadoras Sanitárias. Relatório “Programa Vale do Rio Doce”.
973

Ciência & Saúde Coletiva, 13(3):965-974, 2008


envergadura da noção de higiene, abrangendo preceitos higiênicos e não apenas ver e ouvir falar
corpo e mente, função e estrutura do organis- sobre eles. No caso das curiosas, o treinamento
mo, espaço e tempo dos indivíduos, bem como o implicava, por exemplo, que em cada etapa do
deslocamento da ênfase na materialidade das parto trabalhada no planejamento das aulas fos-
coisas para a materialidade das pessoas. Afinal, se praticada a lavagem das mãos. Provavelmente
as pessoas a serem trabalhadas pelas visitadoras a lavagem das mãos e outras práticas de higiene
não são consideradas, pelo menos não é aborda- fossem também praticadas nos domicílios, mas
do na descrição do curso, como portadoras de infelizmente o material trabalhado não permite
razão ou sensibilidade, reduzidas que foram a avançar muito nesta direção.
potenciais veículos de microorganismos patoló-
gicos; nem tampouco em sua especificidade soci-
ocultural, sendo pressupostas como generica- Considerações finais
mente desprovidas de educação sanitária e de
condições de vida e saúde. A única diferenciação Nisso parecia consistir a educação sanitária de
relevante parece ter sido a de gênero, pois o foco então: informação, adestramento, inspeção e
de atuação das visitadoras era a mulher-mãe. coerção. Estamos longe da retórica de resgate do
Por tal procedimento, vemos as pessoas se- conhecimento tradicional, do respeito à diversi-
rem acionadas diretamente através de seus cor- dade e da educação via sensibilização e mobiliza-
pos, por meio de imposição de informações e de ção vigente hoje, mas não tão longe das ações
condutas. Embora o uso da coerção seja explici- praticadas, pois a finalidade de mudar compor-
tamente negado, aparece nos procedimentos a tamentos e práticas corporais com vistas a ade-
serem adotados caso os sujeitos objetos da ação quá-los a preceitos higiênicos permanece. Neste
não se comportem como prescrito. Pude obser- sentido, pudemos ler na página eletrônica da
var este jogo entre o dito e o não dito na leitura Funasa 10, no ano de 2004, o seguinte texto sob o
da atuação das visitadoras junto às “curiosas”. título maior “Funasa notícias – Onde o trabalho
Após reconhecer a influência destas parteiras, o da Funasa faz a diferença”:
manual postula que se deve procurar ganhar sua Mudança de hábito – uma difícil tarefa
“cooperação voluntária”, rejeitando o uso “da Pela manhã, bem cedo, antes do sol esquentar,
força e da coerção” para a formação das classes vários habitantes de Bita se dirigiam a um mesmo
de treinamento. Contudo, o desenvolvimento de local: um pequeno riacho chamado Poxinaçu, que
procedimentos de controle e de punição às curi- banha o povoado. É preciso disposição para andar
osas que não seguissem as orientações sanitárias até três quilômetros em busca da água e voltar com
no parto parece ter sido autorizado pela convic- cacimbas pesadas na cabeça, até três vezes por dia.
ção de que: The only effective means of combating Essa era a rotina da comunidade que ia ao Poxina-
the ignorance which is responsible for many of the çu para buscar água, tomar banho, lavar roupa,
conditions which produce the high infant and beber água, nadar.
maternal morbidity and mortality is the acquisi- Com a água tratada dentro de casa e sanitários
tion of knowledge and practices of the fundamen- adequados, essa rotina foi quebrada. Mas há os que
tals of hygiene and sanitation9. ainda resistem, não gostam de mudanças. Prefe-
Havia um controle feito através da obriga- rem a água fresquinha (não tratada) das fontes ou
toriedade das curiosas retornarem ao posto ou o “ventinho” das bananeiras. [...]
centro de saúde após cada parto para repor os Sensibilizar a comunidade e mudar os hábitos
suprimentos da maleta que recebiam no treina- é a tarefa diária dos educadores da Funasa que, por
mento. Aquelas que não o fizessem teriam o uso meio de visitas domiciliares, atividades pedagógi-
da maleta suspenso até completarem satisfatori- cas, oficinas, eventos, peças de teatro e cartilhas,
amente um outro período de treino, cabendo ao buscam, aos poucos, introduzir os novos costumes.
médico, por recomendação da visitadora, a pa- Em atuação conjunta com a realização das obras,
lavra final nesta punição. A urgência de traduzir educadores realizam um trabalho de informação,
informação em prática não podia esperar, havia conscientização e mobilização das comunidades.
que combater a ignorância e modificar rotinas Os mediadores mudaram. Não temos mais
rapidamente sob a certeza de que vidas estariam guardas e visitadoras sanitárias, outros atores
sendo poupadas. As pessoas tinham que ser “trei- políticos assumiram esta posição: educadores em
nadas”, este é o termo usado, segundo os funda- saúde (não mais sanitários), agentes comunitári-
mentos da higiene e do sanitarismo. Este treina- os de saúde, agentes indígenas de saúde e de sane-
mento implicava necessariamente praticar os amento. No processo político sanitário iniciado
974
Teixeira, C. C.

pelo Sesp, tal reorientação teve início em 1953 com sanitária, diferentemente da biomedicina que tem
a entrada de Arthur Rios para chefiar a seção de sido alvo de inúmeras reflexões por parte de pes-
pesquisa social no âmbito do Setor de Educação quisadores e dos próprios atores. Assim, analisar
Sanitária, dirigido por Nilo Chaves de Brito Bas- os novos manuais e etnografar a formação e as
tos, que já começava a valorizar o esclarecimento práticas dos atuais profissionais de engenharia e
dos profissionais da saúde sobre a dimensão so- de educação em saúde, para avançar na compre-
cial da doença e da necessidade de conhecer as ensão das linhas de continuidade e ruptura com o
concepções comunitárias sobre ela, ficando, as- momento fundador do Sesp aqui considerado,
sim, os sociólogos e os antropólogos responsá- nisto consiste o novo desafio a trilhar; na certeza
veis por fazer esta tradução4. Mas esta é outra de que se toda tecnologia política de saúde e sane-
história, na qual as práticas higiênicas preconiza- amento é um instrumento de dominação rotinei-
das pela saúde pública no combate a microorga- ra, só o é eficazmente na medida em que for tam-
nismos patogênicos no manejo de corpos e espa- bém um agente cultural na produção de subjeti-
ços não mais reconheciam as autoridades do pas- vidades incorporadas e territorialmente interiori-
sado, suas práticas, compromissos e vocações. zadas, ou seja, se for feliz11 em consolidar cone-
Permaneceu, contudo, praticamente inquestioná- xões amplificáveis de afinidade entre escolhas téc-
vel a universalidade da tecnologia da engenharia nicas e orientações interacionais.

Referências

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mes. Volume 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1994.
2. Rosen G. Da Polícia Médica à Medicina Social. Rio de
Janeiro: Graal; 1979.
3. Faria LR. Saúde e Política: A Fundação Rockefeller e
seus parceiros em São Paulo. Rio de Janeiro: Fiocruz;
2007.
4. Campos ALV. Políticas Internacionais de Saúde na Era
Vargas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.
5. Casa de Oswaldo Cruz, Acervo Fundação Sesp 1.
[original datilografado]
6. Casa de Oswaldo Cruz, Acervo Fundação Sesp 1.
Manual para Guarda Sanitário. [original datilogra-
fado]
7. Mauss M. Efeito físico no indivíduo da idéia de morte
sugerida pela coletividade [1926]. Sociologia e Antro-
pologia 1974; 2:185-208.
8. Casa de Oswaldo Cruz, Acervo Fundação Sesp 1.
Relatório do Curso de Visitadora Sanitária. Itacoatia-
ra: SESP; 1946.
9. Casa de Oswaldo Cruz, Acervo Fundação Sesp 1.
Manual do Curso de Visitadoras. [original datilo-
grafado]
10. Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Disponível em:
http://www.funasa.gov.br/Web%20Funasa/not/
not2004/coracao_br_1.htm
11. Austin JL. Quando dizer é fazer: palavras e ações. Porto
Alegre: Editora Artes Médicas; 1990.

Artigo apresentado em 17/12/2007


Aprovado em 08/01/2008
Versão final apresentada em 04/04/2008

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