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GABRIELLE UMBELINO DO CARMO

O novo é realmente inovador?


Revoluções políticas e comunicativas como influenciadoras
da educação moderna: ameaças subjetivas e coletivas.

Trabalho realizado na disciplina


A Constituição da Subjetividade
Prof. Douglas Emiliano Batista

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Faculdade de Educação
2022
2
1. INTRODUÇÃO

As revoluções da Escola Progressiva (1920) e do Dispositivo escolar Talk Show (1960) foram
tentativas de ruptura com o que eram os padrões pedagógico e audiovisual das épocas que as
antecederam. Essas espécies de propostas radicais tendem comumente a sustentar um discurso
extremista – o que talvez seja indispensável na luta pela descontinuidade, visto que as potências
dominantes articulam-se em prol da manutenção de seu poder, fazendo com que a conciliação não
seja um meio viável para a implementação de um novo fundamento. Porém, após promovido um
abalo sistêmico advindo da revolução, faria-se necessário um ajuste nas práticas, pois “[...] Em um
novo movimento existe sempre o perigo de que, ao revidar os fins e métodos do que se quer
substituir, possa-se desenvolver seus princípios de um modo negativo. Então toma como guia para a
prática o que revida, em lugar de fazê-lo do desenvolvimento construtivo de sua própria filosofia.”
[DEWEY, 1971. p. 302] Ou seja, a defesa de uma nova ideologia não deveria apenas ser guiada
pelo que ela se opõe e tornar-se diretamente antagônica a isso, mas fundamentalmente ser
direcionada pelo que acredita e construir a partir disso; caso contrário, ao se pautar pelo negativo,
toda vez que seu oponente for 8, ela sempre será 80, privando-se, então, da oportunidade de ser
qualquer outro número. Esse perigo, sinalizado por John Dewey, pode explicar o porquê da Escola
Nova não ser inteiramente um movimento benéfico na esfera subjetiva e social, apesar de aparentar
pelo seu cunho humanista.

Essa escolha de atuar com base no negativo atrasa o rompimento com o que já está estabelecido.
Portanto, as revoluções mencionadas não proporcionaram modificações reais à lógica, apesar de
terem alterado as práticas, isto é, por mais que seus métodos pedagógicos tenham mudado o foco
em relação ao antigo, a ideologia modernista sobre a função da escola permaneceu sendo a mesma:
fabricar um tipo de sujeito. Desse modo, o que anteriormente funcionava para a docilização dos
corpos [FOUCAULT, 1984], passou à redução das cabeças [DUFOUR, 2005]; ambos os processos
trabalhando como ferramentas de uma maquinaria escolar [VARELA & ALVAREZ-URIA, 1992]
aliada e alinhada a um plano sociopolítico. No entanto, mesmo com a existência de um projeto que
vise prescrever a finalidade da educação, o cumprimento dele jamais aconteceu de forma
progressiva e linear, como uma mera ação em cadeia que não considera, e nem é afetada, pelas
complexidades das relações. Pelo contrário, o processo de ensino-aprendizagem lida com impasses
subjetivos e transferenciais – como a impossibilidade e a psicologização educacional –, pois tem
como sujeitos seres humanos. Sujeitos esses que, mais do que doadores e receptores componentes
de uma educação bancária [FREIRE, 1968], são agentes transgressores que são atravessados, ou
não, pelas dinâmicas nas quais estão inseridos.

Isto posto, o seguinte ensaio terá como balizador os assuntos previamente citados – as revoluções de
1920 e 1960 e seus impasses psicanalíticos –, para evidenciar o perigo que há nas ditas "novas"
teorias educacionais, que sempre se propõem a apenas mudar as regras do jogo sem mudar de fato o
jogo, fazendo com que haja uma movimentação político-educacional entre três faces de poder,
sendo eles: soberano, militar e omisso. Para tanto, a estrutura do texto será composta pela
apresentação desses três poderes e de como cada um contribui para a formação de um revezamento
3
entre eles, a fim de revelar que a história se repete e que o "novo", mesmo com suas contribuições,
não é tão inovador quanto aparenta.

2. TRÊS PODERES

Há quem faça suas apostas na Educação para ser a principal agente de mudanças estruturais na
realidade coletiva, acreditando que ela possui tamanha competência para modificar a presente
configuração social sozinha. Esse modelo ótico talvez seja o grande motivo da perduração da atual
ideologia dominante, visto que ele representa exatamente os equívocos paradoxais simultâneos de
personificação e abstração de algo material. Esses equívocos também tem se estendido, por
exemplo, à concepção de Estado e de Mercado que, por vezes, são considerados entidades
metafísicas independentes. Tal perspectiva tem impedido que seus adeptos percebam as mãos e as
cordas que movimentam esses fantoches. Por isso, ao enxergar a Educação – com E maiúsculo –,
como sendo um indivíduo abstrato, esquece-se que ela é composta por pessoas reais pertencentes a
diferentes classes, com distintos interesses e níveis de poder, que exercem a prática social do
ensino. Assim, a Educação se divide em "educações", cada qual com suas diferentes concepções e
finalidades.

Por esse motivo, as teorias e práticas educacionais não deveriam ser passíveis de análises que as
isolassem de seus contextos, pois, por mais que sofram alterações estéticas e discursivas, ainda
permanecem sendo um instrumento para manter o poder nas mãos de quem já o possui.
Consequentemente, os detentores de capital1 e os despossuídos vivem uma relação conflituosa
estruturalmente neurótica2, na qual os capitalistas que estão no processo secundário, por já terem
recalcado o "restante" da população, permanecem reformulando suas identidades e seus discursos a
cada crise que estoura. Esses constantes abalos ocorrem pelas questões latentes que assolam as
classes minoritárias, as quais têm o desejo de que suas necessidades sejam vistas e assimiladas pela
consciência pública. Por isso, as crises são cíclicas e a resistência configura-se na manutenção
política, a qual vale-se de três poderes que fazem uso da disciplina como uma ferramenta
fundamental para a concretude de seus ideais: o soberano, que manda impondo a disciplina; o
militar, que comanda através da disciplina; e o omisso, que demanda disciplina. Por este motivo, a
disciplina é uma medida valiosa, pois tais poderes se tornam sistemas que passam a dirigir inúmeros
âmbitos: sociais, econômicos, políticos, linguísticos, urbanísticos, artísticos, educacionais, entre
outros mais.

PODER SOBERANO

A fase soberana atua de forma direta e explícita: o rei manda e os súditos obedecem. Portanto, ser
disciplinado nesse campo seria responder estritamente às ordens e vontades do supremo. Esse poder
soberano tem paralelos à crise do feudalismo, que permitiu o surgimento do absolutismo na Europa

1
Pela perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu, o qual equipara o capital e o poder, podendo ele ser econômico, social e cultural.
2
Teoria psicanalítica desenvolvida por Sigmund Freud.
4
do século XVI. Tal sistema político foi principalmente caracterizado pela monopolização do poder
por parte do governante, o qual não tinha suas atitudes cerceadas e nem podia ser alvo de
contestações, ou seja, suas palavras eram consideradas leis e seu povo lhe devia respeito e
obediência. Essa centralização política contava com os apoios religioso e econômico como base de
sustentação, por isso, "o rei como representante de Deus para a nação" era uma crença
constantemente reforçada pelos reformadores católicos, estes tinham uma grande participação no
que seria o sistema educacional daquela época. Assim,

sobretudo a partir do cisma, ao mesmo tempo em que utilizam todos os


meios a seu alcance para ocupar postos de influência ao lado dos monarcas
(fazendo valer seus saberes na corte, erigindo-se em conselheiros e
confessores reais), porão especial empenho em constituir-se como
preceptores e mestres de príncipes (...). Procurarão igualmente educar aos
novos delfins das classes distinguidas em colégios e instituições fundadas
para eles (...). Os filhos dos pobres serão por sua vez objeto de "paternal
proteção", exercida através de instituições caritativas e beneficentes onde
serão recolhidos e doutrinados, (...) a fim de que possam se converter em
modelares pastores de almas. [VARELA & ALVAREZ-URIA, 1992, p. 2]

Essa estratégia era uma espécie de relacionamento triangular político-econômico-religioso que


favorecia todos os envolvidos, pois eram ministrados diferentes saberes com diferentes finalidades
para cada um dos grupos: enquanto o ensino nobre e burguês visava moldar bons governantes e
pensadores, o ensino popular desejava formar tão somente cristãos e súditos obedientes. Assim, a
Igreja manteve sua parcela política por terem influência sobre a monarquia, a nobreza, a burguesia e
sobre o povo através das distintas educações oferecidas por ela. Esse aspecto religioso é importante
de ser pontuado, porque o poder soberano, nas vezes em que tem aparecido na história, mesmo que
em formas análogas, costuma ser pintado como um poder legitimado e concedido por Deus ao seu
escolhido, quando na verdade é sustentado por questões materiais mais complexas.

PODER MILITAR

O período absolutista perdurou por quase três séculos, tendo seu fim sido causado pelo Iluminismo,
um movimento político-intelectual que serviu de base ideológica para a Revolução Francesa,
levante esse que foi curiosamente apoiado pelo que se configurou como a classe burguesa
capitalista no futuro. Com essa ascensão e a crise da monarquia, percebeu-se que era demandada a
sustentação de um exército forte para que o Estado, de certa forma, pudesse se manter inabalável e
fosse capaz de defender os interesses burgueses. Assim, justamente o poder que garantia a
estabilidade do primeiro passou a ser o segundo. Não por acaso, a fase militar recorre
primeiramente a uma maneira direta e explícita e, então, passa a ser indireta e internalizada: o
general é mandado por um objetivo final, então comanda seu exército até que seus soldados tenham
internalizado os treinamentos militares a ponto de não precisarem de instruções acerca da maneira
como deve agir em campo de batalha. Assim, ser disciplinado neste campo seria responder
5
diretamente ao comandante enquanto segue indiretamente um objetivo e, após isso, responder
diretamente a si mesmo enquanto segue indiretamente ao comandante e ao objetivo.

A disciplina está também nesse tipo de educação militar e massificada que utiliza seus métodos
como ferramenta para internalizar regras e filosofias sem levar em conta a subjetividade de seus
membros. Talvez seja por esse motivo que a disciplina é alvo de inúmeras críticas por um lado
enquanto é bastante defendida por outro, visto que ela viabiliza tanto a desumanização quanto a
civilização, isto é, por meio da disciplina é possível adestrar, mas também educar; e ao mesmo
tempo que medidas disciplinares são capazes de proporcionar aprendizado e crescimento a quem se
submete a elas, também desempenham um papel que assegura os interesses daqueles que as
aplicam. E é a partir da experiência rígida e traumática com esse poder que as questões latentes
passam a causar uma nova inquietação, trazendo consigo uma demanda por autonomia. Assim, o
segundo estágio do segundo poder (o autogoverno) passa a ser a base do terceiro poder.

PODER OMISSO

A fase omissa utiliza uma forma indireta e implícita: o senhor vê-se pressionado a libertar os
escravizados, então os deixa "livres" para serem o que quiserem ser, para experimentar a realidade à
sua maneira, porém não se dá ao trabalho de assegurar sua subsistência e nem de integrá-los à nova
realidade, ou seja, o senhorio lhes abre a porta do abandono. Dessa forma, os recém libertos passam
a ter que acessar seus direitos por meio da conquista e jamais pela concessão, assim o que parecia o
lado de fora de uma prisão é somente o pátio de outra. Essa potência governa os indivíduos de uma
certa distância através da configuração da realidade, e se desresponsabiliza quanto às necessidades
de quem uma vez foi oprimido, nomeando essa postura de "liberdade". Isto posto, ser disciplinado
neste campo seria o sinônimo de esforçar-se, capacitar-se e melhorar suas próprias habilidades a fim
de conquistar através do "mérito" o que deveria ser seu por direito.

Essa fase é representada historicamente pela crise da modernidade, que é caracterizada pela diluição
do que se tinha como sólido por meio da relatividade advinda desse período, que foi de encontro às
tantas tradições antes estabelecidas. Tal movimento, em direção às luzes, constituiu seus elementos
centrais fundamentados no pensamento iluminista, os quais são enumerados, pelo psicoterapeuta
brasileiro Bruno Carrasco3, como sendo:

● Valorização da subjetividade, reconhecimento da autonomia do


sujeito, tolerância religiosa e ética laica;
● Valorização da ciência como a principal forma de conhecimento,
validada pelo desenvolvimento da tecnologia, deixando de lado as
crendices e superstições, entendendo o saber enquanto poder,
associando a ciência com a técnica;
● Início do conceito de Estado representativo, sustentando as
concepções de cidadania e participação, se opondo ao poder

3
https://www.ex-isto.com/2020/03/seculo-xx-crise-paradigmas.html - Acesso em 30 de novembro de 2022.
6
absolutista dos reis, valorizando os anseios de democracia, liberdade
e igualdade;
● Necessidade de um estatuto de direitos fundado em leis, ao invés do
uso arbitrário do poder;
● Liberação da economia de mercado, defendendo o liberalismo.

De modo gradativo, todos esses pontos passaram a compor a ideologia de diversas áreas, incluindo
também a educação, podendo ser facilmente identificados no movimento emergente naquela época:
o escolanovismo. Portanto, essa Revolução Pedagógica, de 1920, não é um acontecimento isolado,
mas mostra claramente ter suas bases no pensamento moderno ao valorizar uma espécie de
“alunocentrismo”; com a criação de suas escolas laboratórios, teorias educacionais psicológicas e
técnicas de ensino, na tentativa de tornar a educação uma ciência racional; ao crer na educação
como um meio de formar cidadãos civilizados e críticos; com a criação de leis e diretrizes que
regulamentam a educação; e ao aderir políticas que colaboram e fortalecem o mercado neoliberal.

Apesar dessas características, a Escola Progressista trouxe consigo a quebra de ideais cristalizados
no imaginário coletivo como, por exemplo, sua insistência em posicionar a criança num lugar de
sujeito que tem seus próprios interesses e merece respeito, porém que ainda não é um adulto e nem
deve ser tratado como tal, ou o ressaltamento do interesse como direcionador do aprendizado. No
entanto, seus métodos, por vezes, assemelham-se a uma prática abolicionista omissa: a Escola Nova
acredita estar libertando os escravizados pela Escola Tradicional para o mundo da experiência, mas
para isso ela se omite de sua responsabilidade mediadora entre a criança e a realidade.

3. TRÊS IMPASSES

O questionamento e a queda do rígido regime poderia ter alavancado o potencial educativo, pois um
abalo sistêmico traz grandes oportunidades, como bem pontua Hannah Arendt, ao dizer que

Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas
ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna
um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com
preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva
da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à
reflexão. [ARENDT, 1972, p. 223]

Contudo, a decisão escolanovista de centralizar a criança resultou na marginalização do professor e


implicou em impasses sociais, subjetivos e transferenciais, estando entre eles a quantidade
importância dada ao interesse, à experiência e à autoridade – que passam a servir como norteadores
do exercício professoral. Por mais que esses três elementos não possam ser considerados
completamente nocivos, há questões prejudiciais relevantes a serem pontuadas, ainda mais quanto à
pretensão escolanovista de ser um movimento ideal para ultrapassar as desigualdades, promover a
democracia e permitir mais mobilidade e justiça social.
7
INTERESSE

Uma das características principais do escolanovismo é ter como ponto de partida o interesse da
criança. Isso até possibilita e facilita a relação ensino-aprendizagem em certa instância, seguramente
por recorrer ao desejo – essa pulsão latente que impõe a busca pelo prazer e incita a vontade de
fazer algo. Porém, uma vez que configuram-se como tópicos que atravessam o campo social, os
seguintes questionamentos são pertinentes: O que é interessante? E de onde ele vem?
Primeiramente, nenhum ser, objeto ou área do conhecimento é intrinsecamente interessante ou
desinteressante, essas qualidades passam a existir somente a partir do olhar do indivíduo, e é
exatamente por isso que qualquer ser, objeto ou área do conhecimento tem o potencial de ir ao
encontro do interesse individual dependendo da forma com que se apresenta. Ao desconsiderar tal
fato, a pedagogia escolanovista parece acreditar que o interesse é algo inato, ou seja, que a criança
teria uma predisposição para algo porque isso já estaria dentro dela naturalmente; ou apenas via
contato, isto é, que a criança se interessaria, ou não, por algo apenas tendo um contato direito com o
objeto em questão. Isso nos traz de volta à segunda pergunta: de onde vem o interesse?

As crianças adentram a escola com conhecimentos prévios, adquiridos através da vivência nos
coletivos nos quais já estavam antes inseridas – sejam estes a família, a comunidade religiosa, os
amigos, os vizinhos do bairro, ou a antiga escola. Essas realidades nem sempre dão conta de
apresentar uma grande variedade de elementos a elas, por isso, centralizar o ensino-aprendizagem
nos objetos de desejo seria uma injustiça social, ao desconsiderar que a herança cultural não é a
mesma para todos. Tudo isso torna-se ainda mais agravante quando o professor, que passa a cumprir
apenas o papel de observador, não pode interferir diretamente na experiência individual do aluno
com seu objeto de desejo. Isto porque a maneira com que um bom educador aborda determinado
assunto e conduz sua aula influencia na disposição que o aluno tem para aprender. Assim, fica
evidente que o papel de transmissor cultural e histórico do professor e da escola não é levado em
conta. Pois como poderia uma criança ter interesse na leitura sem nunca ter visto um livro? Ou
como poderia uma criança ter interesse na leitura apenas por ter visto um livro? Não pode-se
esperar que o interesse pela leitura, por exemplo, advenha de uma espécie de instinto natural, sem
considerar as influências sociais. Como manter a esperança de que o propósito de oferecer uma
educação benéfica à sociedade seja atingido ao focar exclusivamente os holofotes educacionais nos
desejos individuais? Esse e outros questionamentos não visam demonizar o interesse em si, mas
mostrar que este pode ser bem aproveitado se não for tido apenas como um fim individual.

EXPERIÊNCIA

Ainda utilizando o exemplo anterior, não pode-se esperar que o interesse pela leitura, pelo cálculo
ou pela música, por exemplo, advenha de uma espécie de instinto natural, visto que são usos de
sistemas construídos a partir de convenções humanas, como a linguagem, a matemática e a teoria
musical. Porém isso é ignorado pelo tal ideal revolucionário de aprendizagem dos anos 1920. Tratar
a realidade como se ela fosse natural e apenas precisasse ser percebida pelo instinto ou pelos
8
sentidos da criança é certamente uma atitude de ingênua, que tem seu fundamento em equívocos
ainda maiores ao crer que a experiência é sinônimo de contato e que os signos que nos rodeiam
carregam consigo seus próprios significados. Essa visão anula o fato de que não temos acesso ao
real e que tudo que fazemos é etiquetar e simbolizar o que está à nossa volta para criar a realidade e
dar margem à comunicação.

O primeiro equívoco pode ser ainda mais clarificado pelo escritor e professor espanhol Jorge
Larrosa, doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, que conceitua a experiência como
"[...] o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece,
ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos
acontece." [LARROSA, 2002, p. 21] A partir dessa definição é incorreto afirmar que a experiência
acontece apenas por meio da convivência com algo que está acontecendo, sem que haja um
movimento recíproco por parte do sujeito, reciprocidade essa que não necessariamente é o interesse,
mas a participação daquela atividade através de transgressão subjetiva, ou seja, a significação
pessoal que o indivíduo dá ao evento. Assim, essa ligação entre sujeito-acontecimento não se daria
como o contato de duas superfícies, mas a mistura de dois elementos.

A experiência e o aprendizado por meio da transgressão subjetiva assemelharia-se à ingestão (que


transforma o alimento através da mastigação) juntamente à digestão (que converte o alimento em
substâncias passíveis de absorção pelo organismo), e não a um enorme aspirador que suga para si os
objetos que encontra à sua frente e carrega-os consigo sem modificá-los – como se os alunos
levassem as informações consigo assim como carregam seus materiais dentro de uma mochila. Já o
segundo equívoco provém de uma visão semelhante à de Ferdinand de Saussure, um linguista suíço
que defendia a estrutura do signo como eterna, homogênea e impenetrável pela influência exterior,
diferentemente do psicanalista Jacques Lacan, que acreditava no signo como algo que se transforma
ao longo do tempo, que não é imutável e nem carrega consigo seu significado, mas se modifica em
relação ao seu contexto. Essa visão à la Saussure é prejudicial ao processo de ensino-aprendizagem,
pois pressupõe que a criança vá extrair um significado específico de uma situação, atividade ou
objeto simplesmente por interagir com estes sem alguma intermediação.

AUTORIDADE

A importância da autoridade foi se modificando conforme as novas gerações iam questionando a


imposição e a intenção das mais antigas. Essas crises contribuíram para a ocorrência de mudanças
nas configurações políticas, as quais foram fortemente influenciadas pelas revoluções
comunicativas que transcorreram da era oral para a escrita e da era escrita para a imagética. Não por
acaso, essas formas têm características correspondentes aos três poderes. Assim como a oralidade
remete ao poder soberano com sua arbitrariedade e sua potência oratória persuasiva e dominante; a
escrita é uma alusão ao militar com suas rígidas regras gramaticais e ortográficas, mas tão ambígua
quanto a ponto de produzir poesia, sem contar que assim como o poder militar foi utilizado para
manter o controle político, a escrita foi o que passou a assegurar a legitimidade dos decretos do rei,
9
da doutrina religiosa e de contratos; e por fim, o poder omisso é ilustrado pela era imagética ilustra,
que não se propõe a moldar o modo como os corpos precisam agir, mas reduz as cabeças através do
seu discurso audiovisual4.

Esse último processo exalta a forma em detrimento do conteúdo, assim como o terceiro poder faz
em relação à responsabilidade com aqueles que pretendeu libertar. O poder omisso, do qual a Escola
Nova faz parte, segue uma linha similar ao enaltecer uma aparente liberdade enquanto produz
orfandade e impasses transferenciais. Apesar das contribuições que os estudos sobre a psique
proporcionaram para uma melhor compreensão da mente humana, suas práticas não deveriam
ultrapassar a linha clínica a ponto de fazer da educação uma extensão sua, pois culminaria por
inviabilizá-la. Isso porque o ato de educar consiste em preservar a transferência5 para exercer a
autoridade que ela lhe confere em relação ao aluno. Todavia, por conta da psicologização
educacional, a relação aluno-professor passou a ser vista como objeto-observador, por esse motivo a
intervenção professoral já não é benquista, pois passa a ser interpretada erroneamente como uma
prática de cunho autoritário, esquecendo-se dos benefícios da autoridade e da disciplina.

Essa última é aplicada em todos os poderes de maneiras diferentes, ou seja, a disciplina


caracteriza-se como uma ferramenta que não é essencialmente boa ou ruim – mas ganha qualidade a
partir da forma que é usada, e é a falta de compreensão disso que baseia o impasse transferencial.
Ele ocorre principalmente com o escanteio do professor diante da psicologização educacional, pois,
na área psicanalítica, o profissional oculta-se no objetivo de dar espaço para a emergência das
questões recalcadas de seu paciente a fim de analisar as raízes de seus pensamentos e
comportamentos. Ele sustenta a dúvida e a incerteza para que o paciente precise decidir por si
próprio, ou seja, este renuncia o poder de sugestão (advindo da transferência) que possui sobre o
outro, pois não pretende dizer o que é certo ou errado, dado que isso seria, em certa escala,
repressão e traria o recalque novamente.

4. VÍTIMA DA FOME INSACIÁVEL

Reforçando a ideia de que o novo não é realmente inovador, há o fato de que, além de não
romperem com a ideologia política de sua época, as concepções educacionais modernas também
não foram capazes de o fazer em relação ao sistema econômico – as quais são instâncias
estruturantes em relação à realidade. Apesar disso, houveram ganhos? Decerto houveram, dentre
eles está a luta pela democratização do ensino que enfrentou a resistência (composta por aqueles
que tinham o direito educacional assegurado) que tentava manter essa demanda social recalcada por
meio da afirmação de que a expansão do acesso educacional traria o rebaixamento qualitativo do
ensino6. Entretanto, da mesma forma que medidas paliativas não sanam uma doença, as medidas

4
Esses dois últimos processos são muito bem elaborados por Dany-Robert Dufour em sua obra A arte de reduzir as cabeças,
principalmente a partir do capítulo 2.
5
Sinteticamente, a transferência trata-se de colocar alguém na posição do eu ideal que estamos em constante busca por nos tornar.
6
Conforme ilustra o Anexo A, tal afirmação é excelentemente contra-argumentada pelo filósofo brasileiro José Mario Pires Azanha,
em seu texto “Democratização do ensino: vicissitudes da ideia no ensino paulista”, principalmente nas páginas 48 e 49. In: Cadernos
de História e Filosofia da Educação.
10
reformistas servem para trazer uma espécie de alívio, que é bem recebido pelos que estão sofrendo,
visto que é uma conquista e proporciona o abrandamento da dor em alguma instância. Mesmo
obtendo tal alcance, o problema antigo persistiu, pois “O capitalismo de hoje de fato não recusa o
direito à escola; o que ele recusa é mudar a função social da escola.” [LETTIERI, 1996, p. 202].
Assim, a escola moderna se torna vítima da fome capitalista insaciável, que consome tudo e todos,
ao ser inviabilizada por esse sistema, enquanto também é transformada em mercadoria e em uma
ferramenta aliada aos propósitos dele.

Primeiramente, a nova educação não conseguiu ascender e se firmar como o modelo escolar padrão,
pois seus métodos demandam uma carga temporária e financeira que não traz o retorno desejado.
No entanto, estes mesmos métodos não foram descartados, mas tornaram-se um produto a ser
comercializado como uma opção alternativa, frente ao ensino tradicional, para aqueles que podem
pagar por ela. E apesar de não ter ascendido significativamente à esfera pública, os princípios
escolanovistas têm sido aproveitados pelo poder omisso neoliberalista. No cenário brasileiro, por
exemplo, pode-se identificar essa questão na imposição do Novo Ensino Médio, que de inovador
não tem nada, a não ser esteticamente. Projeto esse que tem sido vendido desde o início como
promotor da liberdade individual, do protagonismo estudantil, do poder de escolha e do
desenvolvimento de habilidades com finalidade trabalhista, entre outros. Essa ideia foi justamente
reforçada pelos meios de comunicação e pelas produções audiovisuais, das quais podemos tirar
como exemplo as propagandas de anúncio do Novo Ensino Médio produzidas por órgãos públicos
seguindo a influência das diversas séries populares de TV que tinham como plano de fundo seu
High-School (Ensino Médio) norte-americano, que vendiam de forma gloriosa, e implícita, a
liberdade que o aluno estadunidense tinha em poder escolher sua grade atrelada ao imaginário das
aulas extracurriculares, de grandes armários individuais nos corredores da escola e as histórias
afetivas que se passava nesses ambientes7.

Esse fator, aliado ao desenvolvimento de habilidades pessoais, endossa a proposta do novo projeto,
pois promovem que a evolução individual é o melhor caminho para alcançar a vitória na luta em
que a sociedade se encontra de todos contra todos – na qual, em teoria, sobrevive o mais apto. No
momento em que o poder omisso começa a demandar disciplina dos indivíduos, muitos deles
acreditam que sua subsistência depende apenas de si próprio e busca soluções individuais para
problemas coletivos. Por isso, tal darwinismo social está fortemente atrelado ao individualismo, que
aos poucos vai normalizando os direitos pararem de ser assegurados e passarem a ser oferecidos
como serviços privados. Ainda nessa mesma lógica, a nova educação tecnicista é facilmente aceita
por aqueles que acreditam que a serventia dela está em preparar seus alunos para que tenham mais
chances no mercado de trabalho, o que reitera que "O papel da educação na ideologia capitalista
atual, expressado pelo conceito de empregabilidade, é produzir um “cidadão mínimo” carente de
capacidades cívicas." [FRIGOTTO, 2002]

7
Segue vídeos a título de exemplo https://youtu.be/Chkc_Ut9Tlc & https://youtu.be/DFfRjP_hyzM – Acesso em 30 de novembro de
2022.
11
E, considerando que a capacidade cívica consiste na aptidão do cidadão de tornar-se ativo quanto às
decisões no âmbito social, é possível compreender a motivação por trás da teoria do capital
humano. A produção do "cidadão mínimo" é realmente o objetivo da escola capitalista, pois quando
o conhecimento passa a ser direcionado à melhoria das habilidades pessoais, visando o aumento da
produtividade e servindo também como moeda de troca para promoções trabalhistas, a
competitividade é fomentada. A partir dessa realidade, a luta que poderia ser da classe acaba por
culminar na luta entre a classe, pois as minorias, ao enxergarem a oportunidade de ascensão social e
financeira através do saber no campo tecnicista, direcionarão seu conhecimento para a produção em
detrimento da discussão de ideias e projetos.

5. CONCLUSÃO

O texto desenvolvido pretendeu demonstrar que nem sempre o dito novo é realmente inovador, mas
um produto de seu contexto, ainda mais quando assimilado pelo sistema econômico capitalista, que
faz com que o tal novo passe a ser uma ferramenta para a própria manutenção dele. Além disso,
vale reforçar que a proposta inovadora, do que propõe o novo, diz respeito apenas à estética e não a
uma mudança significativa em suas bases. O fator de operar a partir da mesma lógica facilita o
trabalho da potência estabelecida: subverter os discursos negativos a ela. Dito isso, é necessário
pontuar que, por mais que as conexões apontadas entre os poderes, os impasses e as revoluções
pareçam, de certa forma, linear, não há como adotar um caráter determinista e um olhar
retrospectivo ao analisar a história humana, como se o desenrolar de tais eventos fosse nítido e
previsível. Porém, isso não significa que não haja alguma maneira de analisar para que direção os
fatos ocorridos têm apontado. Logo, faz-se preciso manter em mente a necessidade de um estudo
ainda mais aprofundado para que seja possível identificar outros pontos de contradição e, talvez, até
mapear as transições entre os poderes – para que sejam encontrados elementos que evidencie qual é
seu movimento, seja ele cíclico, pendular, aleatório ou outro qualquer –, pois enquanto a oposição
se colocar apenas contra os sintomas, as causas permanecerão transmutando-se como um vírus que
não pretende ser exterminado.
12

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, H. A crise na educação. In: Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. B. de Almeida. São
Paulo: Perspectiva, 1972.

DEWEY, J. A educação tradicional frente à educação progressiva. In: A história da educação através dos
textos, Maria da Glória de Rosa. São Paulo: Ed. Cultrix, 1971.

DUFOUR, D-R. A arte de reduzir cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Trad.
Sandra Regina. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1984.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FRIGOTTO, G. Capítulo 3. In: Capitalismo, Trabalho e Educação. Campinas. Eds. Lombardi, J. C.,
Saviani, D. & Sanfelice, J. L., 2002. SP: Autores Associados.

LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Trad. de João Wanderley Geraldi.
Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada por
Leituras SME, em julho de 2001.

LETTIERI, A. A fábrica e a escola: crítica da divisão do trabalho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

VARELA, J. & ALVAREZ-URIA, F. A maquinaria escolar. Ed. 1992.


13
ANEXO A: ARGUMENTAÇÃO FAVORÁVEL
À DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO

AZANHA, J. M. P. Democratização do ensino: vicissitudes da ideia no ensino paulista. In:


Cadernos de História e Filosofia da Educação: homenagem a José Mario Pires Azanha. vol. V,
n. 7, p. 48-49, 2002.

Embora a pregação da democratização do ensino seja antiga e constante no pensamento brasileiro,


sempre que ocorreu uma maciça extensão das oportunidades educativas os educadores sentiram-se
chocados no seu zelo pedagógico. E a argumentação que extravasa esse sentimento,
invariavelmente, invoca o rebaixamento da qualidade do ensino como um preço inadmissível à
ampliação de vagas. O argumento até parece razoável quando examinado de um ponto de vista
pedagógico e com abstração de situações históricas específicas. No entanto, ele repousa sobre dois
equívocos que têm uma mesma matriz: a ilegitimidade da perspectiva pedagógica para o exame do
assunto. Esta ilegitimidade se revela, em primeiro lugar, ao se considerar que a extensão das
oportunidades educativas é apenas um aspecto do processo pedagógico de democratização do
ensino. Se assim fosse, é claro que a ênfase nesse aspecto, em detrimento de outros, seria uma
providência parcial e teria um efeito deteriorante sobre o sistema escolar. O equívoco dessa ideia
reside em desconhecer que a extensão de oportunidades é, sobretudo, uma medida política e não
uma simples questão técnico-pedagógica. A ampliação de oportunidades decorre de uma intenção
política e é nesses termos que deve ser examinada Aliás, não poderia ser de outra maneira, pois
qualquer que seja o significado que se atribua, atualmente, ao termo "democracia", não se poderia
limitar a sua aplicação a uma parcela da sociedade como na Antiga Grécia, onde a vida democrática
era privilégio de alguns. Não se democratiza o ensino, reservando-o para uns poucos sob pretextos
pedagógicos. A democratização da educação é irrealizável intramuros, na cidadela pedagógica; ela é
um processo exterior à escola, que toma a educação como uma variável social e não como simples
variável pedagógica.

O outro equívoco a que nos referimos é mais grave, porque é mais sutil. Consiste em supor que o
ajuizamento acerca da qualidade do ensino seja feito a partir de considerações exclusivamente
pedagógicas, como se o alegado rebaixamento pudesse ser aferido numa perspectiva meramente
técnica. Contudo, essa suposição é ilusória e apenas disfarça interesses de uma classe sob uma
perspectiva técnico-pedagógica. Esta [...] apenas obscurece o significado político dos argumentos
em jogo. Para constatar isso, é suficiente assinalar que qualidade do ensino não é algo que se defina
em termos abstratos e absolutos. Sendo assim, a queda dessa qualidade é relativa a um nível cultural
anterior. Mas, que nível? Não, evidentemente, o da grande maioria até então desatendida. Para esta,
até mesmo a "escola aligeirada", de que falava Sampaio Dória, representa um acréscimo, uma
elevação. É óbvio, pois, que, o rebaixamento da qualidade do ensino, decorrente da sua ampliação,
somente ocorre por referência a uma classe social privilegiada, porque "nesta esfera, como em
outras, os móveis egoístas de alguns setores da população (as classes conservadoras e uma parcela
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das classes médias) tendem a prevalecer sobre as necessidades essenciais da sociedade brasileira"
(Fernandes, 1974: 110)8. E é nesse esforço para continuar a prevalecer que se lamenta a queda de
qualidade de ensino, mistificando, consciente ou inconscientemente, uma questão política em
termos pedagógicos.

8
FERNANDES, Florestan. A democratização do ensino. In: Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus/EDUSP, 1966.

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