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Judith Butler, The Force of Nonviolence – An Ethico-Political Bind [Título original em Inglês], Verso, 2020.

A força da não-violência – um vínculo ético-político

Introdução, páginas 11 a 26

Postscript: Repensando a Vulnerabilidade, a Violência e as Resistências, páginas 127 a 139

Tradução em Português por M. Emilia Barbosa, ebarbosa@mst.edu

Introdução

A defesa da não-violência encontra respostas céticas de todo o espectro político. Há aqueles de


esquerda que afirmam que a violência por si só tem o poder de efetuar transformações sociais e
econômicas radicais, e outros que afirmam, mais modestamente, que a violência deve continuar sendo
uma das táticas à nossa disposição para provocar essa mudança. Pode-se expor argumentos a favor da
não-violência ou, alternativamente, o instrumental ou uso estratégico da violência, mas esses
argumentos só podem ser conduzidos em público se houver um acordo geral sobre o que constitui
violência e não-violência. Um grande desafio enfrentado por aqueles a favor da não-violência é que
“violência” e “não-violência” são termos controversos. Por exemplo, algumas pessoas chamam os atos
de fala discriminatórios de “violência”, enquanto outros afirmam que a linguagem, exceto no caso de
ameaças explícitas, não pode ser "violenta." Ainda outros defendem visões restritivas de violência,
entendendo o “golpe” ou “ataque” como seu momento físico definidor; outros insistem que a
economia e estruturas legais são “violentas”, que agem sobre os corpos, mesmo que nem sempre
assumam a forma de violência física. De fato, a figura do golpe organizou tacitamente alguns dos
principais debates sobre violência, sugerindo que a violência é algo que acontece entre duas partes em
um acalorado enfrentamento. Sem pôr em causa a violência do golpe ou ataque físico, podemos insistir,
no entanto, que as estruturas ou sistemas sociais, incluindo o racismo, são violentos. De fato, às vezes o
golpe físico na cabeça ou no corpo é uma expressão de violência sistêmica, ponto em que é preciso ser
capaz de entender a relação do ato com a estrutura, ou sistema. Para entender a violência estrutural ou
sistêmica, é preciso ir além de relatos positivos que limitam a nossa compreensão de como a violência
funciona. E é preciso encontrar fundamentações mais abrangentes do que aquelas que dependem de
duas figuras, uma golpeando e a outra sendo golpeada. É claro que qualquer justifica cão da violência
que não pode explicar a greve, o golpe, o ato de violência sexual (incluindo estupro), ou que não
entende como a violência pode funcionar na díade íntima ou no encontro cara-a-cara, falha descritiva e
analiticamente, no seu intento de esclarecer o que é violência – isto é, do que estamos falando quando
debatemos sobre violência e não-violência1.
Parece que deveria ser fácil simplesmente se opôr à violência e permitir que tal declaração
possa resumir a posição de alguém sobre o assunto. Mas nos debates públicos, vemos que a “violência”
é hábil, a sua semântica poder ser apropriada e essa chamada deve ser contestada. Estados e
instituições, às vezes, chamam de “violentas” qualquer número de expressões de dissidência política ou
de oposição ao Estado ou à autoridade da instituição em questão. Manifestações, acampamentos,
assembléias, boicotes e greves estão todos sujeitos a serem chamados de “violentos” mesmo quando
não procuram recorrer à luta física, ou às formas de violência sistêmica ou estrutural previamente
mencionadas2. Quando estados ou instituições fazem isso, eles procuram renomear práticas não
violentas como violentas, conduzindo uma guerra política, por assim dizer, ao nível semântico. Se uma
manifestação em apoio à liberdade de expressão, uma demonstração que exerce essa mesma liberdade,
é chamada de “violenta”, isso só pode ser porque o poder que abusa da linguagem dessa forma procura
assegurar o seu próprio monopólio da violência através da difamação da oposição, justificando o uso de
polícia, exército ou forças de segurança contra aqueles que procuram exercer e defender a liberdade
dessa forma. A estudiosa de estudos americanos Chandan Reddy argumentou que a forma assumida
pela modernidade liberal nos Estados Unidos, postula o Estado como garantia de uma liberdade da
violência que depende fundamentalmente do desencadeamento da violência contra as minorias raciais,
e contra todos os povos caracterizados como irracionais e fora do âmbito nacional da norma3. O Estado,
na sua opinião, está fundado na violência racial e continua a infligi-la contra as minorias de forma
sistemática. Assim, a violência racial é entendida como servindo à autodefesa do Estado. Quantas vezes
nos Estados Unidos e em outros lugares, há negros e pardos na rua ou em suas casas que são chamados
ou considerados “violentos” pela polícia que os prendem ou os matam a tiros, mesmo quando estão
desarmados, mesmo quando estão andando ou fugindo, quando eles estão tentando fazer uma
reclamação, ou simplesmente dormindo?4 É curioso e espantoso ver como funciona a defesa da

1
Ver “The Political Scope of Non-Violence,” in Thomas Merton, ed., Gandhi: On NonViolence, New York: New
Directions, 1965, 65–78.
2
Para um panorâmica de ações não-violentas, ver Gene Sharp, How Nonviolent Struggle Works, Boston: The Albert
Einstein Institution, 2013.
3
Chandan Reddy, Freedom with Violence: Race, Sexuality, and the US State, Durham, NC: Duke University Press,
2011.
4
Para estatísticas sobre os homícidios “justificados” de AfroAmericanos, ver “Black Lives Matter: Race, Policing,
and Protest,” Wellesley Research Guides, www.libguides.wellesley.edu/blacklivesmatter/statistics.
violência nessas condições, pois o alvo deve ser considerado uma ameaça, um contentor de violência
simulada ou real, para que a ação policial letal apareça como legítima defesa. Se a pessoa não estava
fazendo nada comprovadamente violento, então talvez simplesmente a pessoa esteja a ser
representada como violenta, como um tipo violento de pessoa, ou como pura expressão de violência
incarnada nessa pessoa e por ela. Esta última alegação, manifesta racismo mais frequentemente do que
não.
O que começa, então, como um argumento aparentemente moral sobre se se deve ser a favor
ou contra a violência, rapidamente se transforma num debate sobre como a violência é definida e quem
é chamado de “violento” – e para quais propósitos. Quando um grupo se reúne para se opôr à censura
ou à falta de liberdades democráticas, e o grupo é chamado de “turba”, ou é entendido como uma
ameaça caótica ou destrutiva à ordem social, então o grupo é ao mesmo tempo nomeado e
representado como sendo potencialmente ou realmente violento, momento em que o Estado pode
emitir uma justificativa para defender a sociedade contra esta ameaça violenta. Quando o que se segue
é prisão, ferimento ou morte, a violência na cena emerge como Violência. Podemos nomear a violência
estatal como “violenta” mesmo que tenha sido usada através do seu próprio poder de nomear e
representar o poder dissidente de algum grupo de pessoas como “violentas”. Da mesma forma, uma
manifestação pacífica como aquela ocorrida no Parque Gezi em Istambul em 20135, ou uma carta
pedindo paz como a assinada por muitos estudiosos turcos em 20166, podem ser efetivamente
representativas e representadas como um ato “violento” somente se o Estado tiver a sua própria mídia
ou exercer controle suficiente sobre a mídia. Baixo tais condições, o exercício do direito de reunião é
chamado de manifestação de “terrorismo” que, por sua vez, vai contra a censura do Estado, os golpes e
o lançamento de gazes nocivos pela polícia, a rescisão do contrato de trabalho, a detenção por tempo
indeterminado, prisão e exílio.
Por mais que se facilite a identificação da violência de forma clara e consensual, isso se mostra
impossível de fazer numa situação política em que o poder de atribuir violência à sua própria oposição,
torna-se um instrumento para aumentar o poder do Estado, desacreditar os objetivos da oposição, ou
mesmo justificar a sua radical privação de direitos, prisão e assassinato. Em tais momentos, a atribuição
destas designações deve ser contestada baixo a alegação de que são falsaa e injustas. Mas como isso
pode ser feito numa esfera pública onde a confusão semântica foi semeada sobre o que é e o que não é

5
Ver “Gezi Park Protests 2013: Overview,” University of Pennsylvania Libraries Guides,
www.guides.library.upenn.edu/Gezi_Park.
6
Ver “Academics for Peace,” Frontline Defenders official website, www.frontlinedefenders.org.
violento? Ficamos com uma confusa série de opiniões sobre violência e não-violência e forçados a
admitir um relativismo generalizado? Ou podemos estabelecer uma maneira de distinguir entre uma
atribuição tática de violência que falsifica e inverte a sua direção, e aquelas formas de violência, muitas
vezes estruturais e sistêmicas, que muitas vezes iludem a nomeação direta e apreensão?
Se alguém quiser argumentar a favor da não-violência, será necessário compreender e avaliar as
formas como a violência é representada e atribuída num campo de poder discursivo, social e estatal; as
inversões que são executadas taticamente; e o caráter fantasmático da própria atribuição. Além disso,
teremos que fazer uma crítica dos esquemas pelos quais a violência do Estado se justifica, e a relação
desses esquemas justificativos com o esforço de manter o monopólio da violência. Esse monopólio
depende de uma prática de nomenclatura, que muitas vezes dissimula a violência como coerção legal ou
externaliza a sua própria violência no seu alvo, redescobrindo-o como a violência do Outro.
Argumentar a favor ou contra a não-violência requer que estabeleçamos a diferença entre
violência e não-violência, se pudermos. Mas não há uma maneira rápida de chegar a uma distinção
semântica estável entre os dois quando esta distinção é tantas vezes explorada para ocultar e promover
objetivos e práticas violentas. Em outras palavras, não podemos viabilizar o fenômeno em si sem passar
pelos esquemas conceituais que dispõem o uso do termo em várias direções, e sem uma análise de
como essas disposições funcionam. Se os acusados de praticar violência enquanto não envolvidos em
atos violentos, procuram contestar o estatuto de acusação como injustificável, eles terão que
demonstrar como a denúncia de violência é usada contra eles – não apenas “o que diz”, mas “o que está
fazendo com o que é dito”. Dentro de qual episteme ela reúne credibilidade? Em outras palavras, por
que é que, às vezes, se acredita e, mais importante, o que pode ser feito para expôr e derrotar o caráter
efetivo do ato de fala – o seu efeito de plausibilidade?
Para iniciar este caminho, temos que aceitar que essa “violência” e “não-violência” são usadas
de forma variável e perversa, sem acreditar uma forma de niilismo impregnada pela crença de que a
violência e a não-violência são o que se quer que aqueles no poder decidam e o que eles dizem que
deve ser. Parte da tarefa deste livro é aceitar a dificuldade de encontrar e garantir a definição de
violência quando esta está sujeita a definições instrumentais que servem interesses políticos e, às vezes,
a própria violência de Estado. A meu ver, essa dificuldade não implica um relativismo caótico que
minaria a tarefa do pensamento crítico com o fim de expôr um uso instrumental dessa distinção que é
falso e prejudicial. Tanto a violência quanto a não-violência chegam aos campos de debate da moral e da
análise política já interpretadas, trabalhadas aravés dos seus usos. Não há como evitar a exigência de
interpretar tanto a violência quanto a não-violência, e avaliar a distinção entre elas, se esperamos opôr--
nos à violência de Estado e refletir cuidadosamente sobre a justificação da violência tática por parte da
esquerda. À medida que entramos na filosofia moral, aqui nos encontramos a nós mesmos nas
contracorrentes onde a filosofia moral e política se encontram, com consequências tanto para a forma
como acabamos por fazer política, como para que emerja o mundo que procuramos ajudar a criar.
Um dos argumentos mais populares da esquerda para defender o uso tático da violência,
começa com a afirmação de que muitas pessoas já vivem na forçosamente no campo da mesma. Porque
a violência já está acontecendo, o argumento prossegue, não há uma escolha real sobre entrar ou não
na violência por meio da ação de alguém: já estamos dentro do campo da violência. De acordo com esta
visão, a distância que a deliberação moral toma sobre a questão de agir ou não de forma violenta, é um
privilégio e um luxo, traindo algo sobre o poder da sua própria localização. Nesta visão, a consideração
da ação violenta não é uma escolha, uma vez que já é – e, a contragosto, - dentro do campo de força da
violência. Porque a violência está acontecendo a tempo inteiro (e está acontecendo regularmente
contra as minorias), como forma de resistência é apenas uma forma de contra-violência 7. À parte a
reivindicação tradicional da esquerda sobre a necessidade de uma “luta violenta” para propósitos
revolucionários, existem outras estratégias justificatórias mais específicas de trabalho: a violência está
acontecendo contra nós, então estamos justificados para agir contra aqueles que (a) iniciaram a
violência e (b) a dirigiram contra nós. Fazemos isso em nome das nossas próprias vidas e do nosso
direito de sobreviver no mundo.
Quanto à afirmação de que a resistência à violência é contra-violência, podemos ainda colocar
um conjunto de questões: Mesmo que a violência esteja circulando a toda a hora e nos encontremos
num campo de força de violência, queremos ter uma palavra sobre se a violência deve ou não continuar
a circular? Se circular a toda a hora, é, portanto inevitável que circule? O que significaria contestar a
inevitabilidade da sua circulação? O argumento pode ser: “Outros fazem isso, e nós também devemos”;
ou então: “Outros fazem isso contra nós, então devemos fazê-lo contra eles, em nome da
autopreservação”. Estas são cada uma muito diferentes, mas reivindicações importantes. A primeira
mantém um princípio de reciprocidade, sugerindo que quaisquer que sejam as ações do Outro, estou
autorizado a agir também. Esta linha de argumentação, no entanto, evita a questão de se saber se o que
o Outro faz é justificável. A segunda reivindicação liga a violência com a autodefesa e autopreservação,
um debate que retomaremos nos próximos capítulos. Por agora, porém, perguntemo-nos: Quem é esse

7
Para uma discussão da resistência, incluindo as suas formulações paradóxicas, ver Howard Caygill, On Resistance:
A Philosophy of Defiance, New York: Bloomsbury, 2013.
“eu” defendido em nome da autodefesa?8 Como esse eu é delineado de outros eus, da história, da terra
ou de outras relações definidoras? Aquele a quem a violência é feita também não faz parte, em certo
sentido, do “eu” que se defende através de um ato de violência? Há um sentido em que a violência feita
a Outro é ao mesmo tempo uma violência feita a si mesmo, mas somente se a relação entre eles, os
definir de maneira marcadamente fundamental.
Esta última proposição indica uma preocupação central deste livro. Pois se aquele que pratica a
não-violência está relacionado com aquele contra quem a violência é contemplada, então parece haver
uma relação social prévia entre ambas partes; ambos são parte um do outro, ou um eu está implicado
em outro eu. A não-violência seria, então, uma forma de reconhecer essa relação social, por muito
pesada que seja, e de afirmar as aspirações normativas que decorrem dessa relação social anterior.
Assim, uma ética da não-violência não pode ser baseada no individualismo, e deve conduzir a uma
crítica ao individualismo como base da ética e da política que dele decorrem. Uma ética e uma política
da não-violência teriam que dar conta disso; de como os eus estão implicados na vida uns dos outros,
ligados por um conjunto de relações que podem ser tão destrutivas quanto sustentadoras. Estas
relações que unem e definem os comportamentos, se estendem para além do encontro humano
diádico, visto que a não-violência pertence não apenas às relações humanas, mas a todos os seres vivos
e relações interconstitutivas.
Para lançar esta investigação sobre as relações sociais, no entanto, teríamos que saber que tipo
de vínculo social potencial ou real existe entre ambos sujeitos num encontro violento. Se o eu é
constituído pelas suas relações com os outros, então parte do que significa preservar ou negar um eu, é
preservar ou negar os laços sociais alargados que definem o eu e o seu mundo. Acima de tudo e contra a
ideia de que o eu será obrigado a agir violentamente em nome da sua autopreservação individual, esta
investigação supõe que a não-violência requer uma crítica da ética egológica, bem como do legado
político do individualismo, a fim de expandir a ideia da individualidade como um campo carregado de
relacionalidade social. Essa relacionalidade é, obviamente, definida em parte pela negatividade, isto é,
pelo conflito, raiva e agressão. O potencial destrutivo das relações humanas não nega toda
relacionalidade, e ditas perspectivas relacionais não podem evitar a persistência desse potencial ou
destruição real dos laços sociais. Como resultado, a relacionalidade não é por si só uma coisa boa, um
sinal de conexão, uma norma ética a ser colocada sobre e contra a destruição: antes, a relacionalidade é
um campo irritante e ambivalente em que a questão da obrigação ética deve ser trabalhada à luz de um

8
Elsa Dorlin, Se défendre: Une philosophie de la violence, Paris: La Découverte, 2017.
potencial destrutivo persistente e constitutivo. Seja o que for que “fazer a coisa certa” seja, depende de
passar pela divisão ou luta que condiciona essa decisão ética desde o início. Essa tarefa nunca é
exclusivamente reflexiva, isto é, dependente apenas da minha relação comigo mesmo. Na verdade,
quando o mundo se apresenta como um campo de força de violência, a tarefa da não-violência é
encontrar maneiras de viver e agir nesse mundo de tal forma que a violência é controlada ou
amenizada, ou a sua direção mudada, precisamente nos momentos em que parece saturar esse mundo
e não oferecer saída. O corpo pode ser o vetor dessa virada, mas também o discurso, as práticas
coletivas, as infra-estruturas e as instituições. Em resposta à objeção de que uma posição a favor da
não-violência é simplesmente irrealista, este argumento sustenta que a não-violência requer uma crítica
do que conta como realidade, e afirma o poder e a necessidade do contra-realismo em tempos como os
que agora vivemos. Talvez a não-violência exija um certo afastamento da realidade tal como é
atualmente constituída, abrindo a possibilidade de pertencer a um novo imaginário político.
Muitas pessoas de esquerda, argumentam que acreditam na não-violência, mas abrem uma
exceção para a legítima defesa. Para entender a sua afirmação, precisaríamos saber quem é o “eu” – os
seus limites e fronteiras territoriais, os seus laços. Se o eu que defendo sou eu, os meus familiares, ou
outros que pertencem à minha comunidade, nação ou religião, ou ainda aqueles que compartilham um
idioma comigo, então sou um comunitário no armário que, ao que parece, preservará a vida daqueles
que são como eu, mas certamente não aqueles que são diferentes de mim. Além disso, eu
aparentemente vivo num mundo em que esse “eu” é reconhecível como um eu. Uma vez que vemos
que certos eus são considerados dignos de defesa, enquanto outros não são, não há um problema de
desigualdade que decorre da justificação da violência ao serviço da legítima defesa? Não se pode
explicar essa forma de desigualdade, que confere medidas de pesar a grupos em todo o espectro global,
sem levar em conta os esquemas raciais que fazem estas distinções tão grotescas entre quais vidas são
valiosas (e, potencialmente, passíveis de luto, se perdidas) e aquelas que não são.
Dado que a autodefesa é muitas vezes considerada como a exceção justificável às normas que
orientam uma prática não-violenta, temos que considerar tanto (a) quem conta como tal eu e (b) quão
abrangente é o “eu” de autodefesa (novamente, inclui a família, comunidade, religião, nação, terra
tradicional, práticas consuetudinárias?). Para as vidas não consideradas passíveis de luto e pesar
(aquelas tratadas como se não pudessem ser perdidas nem lamentadas), habitando já no que Frantz
Fanon chamou de “a zona do não-ser”, a afirmação de uma vida que importa, como vemos no
movimento Black Lives Matter, pode romper este esquema. Estas Vidas importam no sentido de que
assumem forma física dentro da esfera da aparência; estas vidas importam porque devem ser avaliadas
igualmente. E ainda, a alegação de legítima defesa por parte daqueles que exercem o poder, é muitas
vezes uma defesa do poder, das suas prerrogativas e das desigualdades que pressupõem e produzem. O
“eu” que é defendido em tais casos, é aquele que se identifica com outros que pertencem à
branquitude, a uma nação específica, a uma parte numa disputa de fronteira; e, assim, os termos da
autodefesa aumentam os propósitos da guerra. Esse “eu” pode funcionar como uma espécie de regime,
incluindo como parte do seu eu, de forma geral, todos aqueles que se assemelham à cor, classe e
privilégio de alguém, expulsando assim do regime do sujeito/eu, todos aqueles marcados pela diferença
dentro dessa economia. Embora pensemos em autodefesa como uma resposta a um golpe iniciado
desde fora, o eu privilegiado não requer tal instigação para traçar os seus limites e policiar as suas
exclusões. “Qualquer ameaça possível”—quer seja uma ameaça imaginada, ou qualquer fantasma de
ameaça - é suficiente para desencadear a sua resposta de violência auto-intitulada. Como salientou a
filósofa Elsa Dorlin, apenas alguns eus são considerados como tendo direito à autodefesa9. Quais são
mais propensos a serem descontados e demitidos? Quem, em outras palavras, carrega um eu que é
considerado defensável, uma existência que pode aparecer dentro dos quadros legais de poder como
uma vida digna, que vale a pena defender, que não vale a pena perder?
Um dos argumentos mais fortes para o uso da violência por parte da esquerda, é queé
tacitamente necessária para derrotar a violência estrutural ou sistêmica, ou desmantelar um regime
violento, como o apartheid, a ditadura ou totalitarismo10. Isso pode estar certo, e eu não contesto isso.
Mas para que este argumento possa funcionar, precisaríamos saber o que distingue a violência do
regime da violência que procura derrubá-la. É sempre possível fazer essa distinção? Às vezes é
necessário sofrer o fato de que a distinção entre uma violência e a outra pode resultar num colapso? Em
outras palavras, a violência se importa com essa distinção, ou para que importam algumas das nossas
tipologias? O uso da violência reduplica a violência e em direções que nem sempre podem ser contidas
de antemão?
Às vezes, o argumento a favor da violência é que ela é apenas um meio para alcançar outro
objetivo. Então, a pergunta é esta: a violência pode permanecer um mero instrumento ou meio para
derrubar a violência – as suas estruturas, o seu regime – sem se tornar um fim em si mesmo? A defesa

9
Ibid.
10
Ver Friedrich Engels, Anti-Dühring, Moscow: Progress Publishers, 1947; Étienne Balibar, “Reflections on Gewalt,”
Historical Materialism 17:1, 2009; Yves Winter, “Debating Violence on the Desert Island: Engels, Dühring and
Robinson Crusoe,” Contemporary Political Theory 13:4, 2014; Nick Hewlett, “Marx, Engels, and the Ethics of
Violence in Revolt,” The European Legacy: Toward New Paradigms 17:7, 2012, e Blood and Progress: Violence in
Pursuit of Emancipation, Edinburgh: Edinburgh University Press, 2016.
instrumentalista da violência depende crucialmente de ser capaz de mostrar que a violência pode ser
restringida ao estatuto de ferramenta, de meio, sem se tornar um fim em si. O uso desta ferramenta
para realizar tais propósitos pressupõe que a ferramenta seja guiada por uma clara intenção e
permanece assim sendo guiada ao largo do curso de ação. Isto também depende de saber quando o
curso de uma ação violenta chegará ao fim. O que acontece se a violência sair de controle, se for usada
para fins para os quais nunca foi destinada, excedendo e desafiando as suas regras e intenções? E se a
violência for precisamente o tipo de fenômeno que fica constantemente “fora de controle”? Por último,
o uso da violência como meio para atingir um objetivo legitimiza, implícita ou efetivamente, o uso de
violência de forma mais ampla, trazendo assim mais violência para o mundo? Isto não leva à
possibilidade de uma situação em que outros com intenções contrárias dependem dessa legitimação
revitalizada para realizar as suas próprias intenções, como perseguir objetivos destrutivos que são
contrários aos fins limitados pelo seu uso instrumental - objetivos que não podem ser governados por
qualquer intenção clara, ou podem revelar-se destrutivos, desfocados e não intencionais?11
Podemos ver que, desde o início de qualquer discussão sobre violência e não-violência, estamos
sujeitos a outro conjunto de questões. Primeiro, o facto de que a “violência” é usada estrategicamente
para descrever situações que são interpretadas sugere, muito distintamente, que a violência é sempre
interpretada. Esta tese não significa que a violência nada mais é do que uma interpretação, onde dita
interpretação é concebida como um modo subjetivo e arbitrário de designação. Em vez disso, a violência
é interpretada no sentido de que surge dentro de estruturas que, às vezes, são incomensuráveis ou
conflituantes e, então, parece diferente - ou não se revela completamente - dependendo de como é
trabalhada apartir das formulações teóricas em questão. Estabilizar uma definição de violência depende
menos de uma enumeração das suas instâncias, do que de uma conceitualização que pode levar em
conta assuas oscilações dentro de determinados quadros políticos. Com efeito, a construção de um
novo quadro incumbido com tal propósito é um dos objetivos deste projeto.
Em segundo lugar, a não-violência é muitas vezes entendida como uma posição moral, uma
questão de consciência individual ou das razões dadas para a escolha de um indivíduo de não se
envolver de forma violenta. Pode ser, no entanto, que outras razões mais persuasivas para a prática da
não-violência, impliquem diretamente uma crítica do individualismo e exijam que repensemos os laços
sociais que nos constituem como seres vivos. Não se trata simplesmente de um indivíduo revogar a sua
consciência ou princípios profundamente arraigados em agir com violência, mas que certos “laços”

11
Para uma visão contrária, ver Scott Crow, Ed., Setting Sights: Histories and Reflections on Community Armed Self-
Defense, Oakland: PM Press, 2018.
necessários para a vida social, isto é, a vida de uma criatura social, são ameaçados pela violência. Da
mesma forma, o argumento que justifica a violência com base na autodefesa, parece conhecer de
antemão quem é esse “eu”, quem tem o direito de ter um, e quais são os seus limites. Se o “eu” é
concebido como relacional, no entanto, os defensores da autodefesa devem dar uma boa explicação do
que limita esse eu. Se um eu está vitalmente conectado a um conjunto de outros e não pode ser
concebido sem eles, então quando e onde começa e termina esse eu singular? O argumento contra a
violência, então, não implica apenas uma crítica do individualismo, mas uma elaboração de aqueles
laços ou relações sociais que requerem a não violência. A não violência como a questão da moralidade
individual dá, assim, lugar a uma filosofia social de vida e vínculos sustentáveis.
Além disso, a explicação dos vínculos sociais necessários deve ser pensada em relação às formas
socialmente desiguais que os “eus” que valem a pena defender são articulados dentro de um campo
político12. A descrição dos laços sociais sem os quais a vida está em perigo, ocorre ao nível de uma
ontologia social, a ser entendida mais como um imaginário social do que como uma metafísica do social.
Em outras palavras, podemos afirmar de maneira geral que a interdependência social caracteriza a vida,
e então passa a explicar a violência como um ataque a essa interdependência, um ataque a pessoas,
sim; mas talvez, maioritariamente, fundamentalmente, é um ataque aos “títulos”. E, no entanto, a
interdependência, embora dêr conta dos diferenciais de independência e dependência, implica
igualdade: cada um é dependente, ou formado e sustentado em relações de dependência e sendo
dependente. Do que cada um depende, e o que depende de cada um é variável, pois não se trata
apenas de outras vidas, mas outras criaturas sensoriais, ambientes e infraestruturas: nós dependemos
delas, e elas dependem de nós, por sua vez, para sustentar um mundo vivível. Referir-se à igualdade em
tal contexto não é falar de uma igualdade entre todas as pessoas, se por “pessoa” entendemos um
indivíduo singular e distinto, alcançando esta definição por oposição a determinados limites ou
fronteiras. Singularidade e distinção existem, assim como ditas fronteiras, mas elas constituem
características de seres que são definidos e sustentados em virtude da sua inter-relacionalidade. Sem
esse sentido abrangente do inter-relacional, nós tomamos o limite corporal como o fim e não o limiar da
pessoa, o local de passagem e porosidade, a evidência de uma abertura para aalteridade que define o
próprio corpo. O limiar do corpo, o corpo como limiar, mina a ideia do corpo como unidade. Assim, esta
igualdade não pode ser reduzida a um cálculo que conceda a cada pessoa abstrata o mesmo valor, uma
vez que a igualdade das pessoas deve agora ser pensada precisamente em termos de interdependência

12
Dorlin, Se défendre, 41–64.
social. Assim, embora seja verdade que cada pessoa deve ser tratada igualmente, a igualdade de
tratamento não é possível fora de um aorganização da vida na qual os recursos materiais, distribuição
de alimentos, moradia, trabalho e infraestrutura busquem alcançar condições iguais de habitabilidade. A
referência a tais condições iguais de habitabilidade é, portanto, essencial para a determinação de
“igualdade” em qualquer sentido substantivo do termo.
Além disso, quando perguntamos de quem são as vidas que valem a pena defender, ou seja,
elegíveis para legítima defesa, a questão só faz sentido se reconhecermos formas generalizadas de
desigualdade que estabelecem algumas vidas como desproporcionalmente mais habitáveis e passíveis
de luto e pesar do que outras. Estas vidas estabelecem essa desigualdade dentro de um quadro
particular, mas essa desigualdade é histórica e contestada por estruturas concorrentes, o qual não diz
nada sobre o valor intrínseco de cada vida. Além disso, à medida que pensamos sobre o que prevalece e
o que é diferencial na forma como as populações são valorizadas e desvalorizadas, protegidas e
abandonadas, nos deparamos com formas de poder que estabelecem o valor desigual de vidas
estabelecendo o seu luto e pesar desiguais. E aqui não pretendo tratar de “populações” como um dado
sociológico, uma vez que são, até certo ponto, produzidas por sua exposição comum a lesões e
destruição, ou maneiras diferenciadas de serem consideradas passíveis de luto e pesar (e dignas de
serem mantidas) e imperdoáveis (já perdidas e, portanto, facéis de destruir ou expôr a forças
destrutivas).
A discussão dos laços sociais e a demografia dos lutos pode parecer não estar relacionada à
discussão inicial dos argumentos usados para justificar a violência ou para defender a não-violência. O
ponto, porém, é que todos esses argumentos pressupõem ideias sobre o que conta como violência, já
que a violência é sempre interpretada dentro do quadro dessa discussão. Estes argumentos pressupõem
como bem vistos o individualismo e a relação social, a interdependência, a demografia e a igualdade. Se
perguntarmos o que a violência destrói, ou que fundamentos temos para nomear e opor-nos à violência
em nome da não-violência, então temos que situar as práticas violentas (assim como as instituições,
estruturas e sistemas) à luz das condições de vida que as mesmas destroem. Sem uma compreensão das
condições de vida e habitabilidade, e a sua relativa diferença, não podemos saber nem o que a violência
destrói nem porque devemos nos importar com isso.
Terceiro, como Walter Benjamin deixou claro no seu ensaio de 1920, “Crítica da Violência”, uma
lógica instrumentalista tem governado as formas predominantes através das quais a violência tem sido
justificada13. Uma das primeiras questões que ele coloca neste ensaio complexo é: Porque esta estrutura
instrumentalista foi aceite como necessária para pensar a violência? Em vez de perguntar que fins a
violência pode alcançar, porque não voltar a questão para si mesma e perguntar: O que justifica o
quadro instrumentalista para debater a justificabilidade da violência, um quadro, em outras palavras,
que se baseia na distinção meios/fins? De facto, o argumento de Benjamin se mostra um pouco
diferente: se pensarmos na violência apenas no quadro da sua possível justificação ou falta de
justificação, esse enquadramento não determina antecipadamente o fenômeno da violência? A análise
de Benjamin não só nos alerta para os caminhos que o arcabouço instrumentalista determina deste
fenômeno, mas leva à seguinte questão: A violência e não-violência devem ser pensadas para além do
quadro instrumentalista, e que novas possibilidades para o pensamento da crítica ética e política
resultam dessa abertura?
O texto de Benjamin desperta ansiedade em muitos leitores justamente porque eles não
querem suspender a questão do que justifica e não justifica a violência. O medo, ao que parece, é que se
colocarmos a questão da justificação à parte, então toda violência será justificada. Essa conclusão,
porém, ao devolver o problema ao esquema da justificação, não compreende que o seu potencial se
abre ao questionar esta lógica instrumentalista. Embora Benjamin não forneça os tipos de respostas
necessárias para uma reflexão como essa, o seu questionamento sobre o arcabouço de meios/fins, nos
permite considerar o debate fora dos termos da technē. Para aqueles que afirmam que a violência é
apenas uma tática ou ferramenta provisória, um desafio para defender a sua posição toma esta forma:
se as ferramentas podem usar os seus usuários, e a violência é uma ferramenta, então não se segue que
a violência pode fazer uso do seu usuário? A violência como uma ferramenta já está operando no
mundo antes que alguém a use: facto que, por si só, não justifica nem desconsidera o uso da
ferramenta. O que parece mais importante, porém, é que a ferramenta já faz parte de uma prática,
pressupondo um mundo propício ao seu uso; que o uso da ferramenta cria ou reconstrói um tipo
específico de mundo, ativando um legado sedimentado deste uso14. Quando qualquer um de nós
comete atos de violência, estamos, por meio desses atos, a construir um mundo mais violento. O que
pode parecer à primeira vista ser apenas um instrumento, uma technē, a ser descartada quando
atingido o seu objetivo, é já, fundamentelmente, uma práxis: um meio que se antepõe a um fim no
momento em que se realiza, isto é, onde o meio pressupõe e encena o fim no curso da sua realização.

13
Walter Benjamin, “Critique of Violence,” in Marcus Bullock and Michael Jennings, Eds., Walter Benjamin:
Selected Writings, Volume 1: 1913–1926, Cambridge, MA: Harvard University Press, 2004; Walter Benjamin, Zur
Kritik der Gewalt und Andera Aufsätze, Frankfurt: Edition Suhrkamp, 1965.
14
Ver o meu ensaio: “Protest, Violent, Nonviolent,” Public Books, October 13, 2017, www.publicbooks.org.
Este é um processo que não pode ser apreendido dentro do quadro instrumentalista. Além dos esforços
assíduos para restringir o uso da violência como meio ao invés de um fim, a atualização da violência
como um meio pode inadvertidamente tornar-se o seu próprio fim, produzindo nova violência,
produzindo violência novamente, reiterando a justificação e legitimando mais violência. A violência não
se esgota na realização de um fim justo; em vez disso, ela se renova em direções que excedem tanto a
intenção deliberada quanto os seus esquemas instrumentais. Em outras palavras, ao agir como se o uso
da violência pudesse ser um meio para atingir um fim não violento, imagina-se que a prática da violência
não coloca no ato a violência como o seu próprio fim. A técnica é minada pela práxis, e o uso da
violência só torna o mundo num lugar mais violento, trazendo mais violência para o mundo. A leitura
que Jacques Derrida faz de Benjamin, concentra-se no modo como a justiça excede a lei15. Mas poderia a
violência divina abrir a possibilidade de técnicas de governabilidade que ultrapassam a lei, despertando,
portanto, um debate interpretativo sobre o que se qualifica como justificativo e como a estrutura de
justificação determina parcialmente o que chamamos de “violência”? Vamos considerar esta questão no
Capítulo 3, “A Ética e a Política da Não Violência”.
No decorrer deste trabalho, espero desafiar algumas presunções sobre a não-violência. Em
primeiro lugar, a não-violência tem agora de ser entendida menos como uma posição moral adotada por
indivíduos em relação a um campo de ação possível, e mais como uma prática social e política
empreendida em concerto, culminando numa forma de resistência às formas sistêmicas de destruição,
juntamente com um compromisso com a construção do mundo que honre a interdependência global do
tipo que incorpora ideais de economia, liberdade e igualdade social e política. Em segundo lugar, a não
violência não emerge necessariamente de uma parte pacífica ou calma da alma. Muitas vezes é uma
expressão de raiva, indignação e agressão16. Embora algumas pessoas confundam agressão com
violência, é central para o argumento deste livro colocar em primeiro plano o facto de que formas não-

15
Jacques Derrida, “Force of Law: The ‘Mystical Foundation of Authority’,” in Acts of Religion, Ed. Gil Anidjar, New
York: Routledge, 2010.
16
Ver a defesa da não-violência de Mahatma Gandhi no Movimento Satyagraha antes da Comissão para o
Inquérito das Desordens [The Disorders Inquiry Committee] em 1920, dois anos antes do seu emprisionamento:
“Satyagraha difere da resistência passiva como o Pólo Norte do Pólo Sul. Esta foi concebida como uma arma dos
fracos e não exclui o uso da força física ou da violência com o objetivo de atingir o objetivo, enquanto a primeira
foi concebida como uma arma dos mais fortes e exclui o uso da violência em qualquer forma ou feitio”, in
Mahatma Gandhi, Selected Political Writings, Ed. Dennis Dalton, Hackett Publishing, 1996, 6. Ver também Martin
Luther King, Jr., “Stride Toward Freedom” onde a não-violência é descrita como um “método”, “uma arma” e um
modo de “resistência” que depende de uma fé duradoura no futuro. Influenciado por Gandhi, King também se
inspirou em “Desobediência Civil”, de Thoreau.” Ver também Leela Fernandes, “Beyond Retribution: The
Transformative Possibilities of Nonviolence” in Transforming Feminist Practice, San Francisco, CA: Aunt Lute Press,
2003.
violentas de resistência podem e devem ser perseguidas agressivamente. Uma prática de não-violência
agressiva não é, portanto, uma contradição em termos. Mahatma Gandhi insistiu que satyagraha, ou
“força da alma”, o seu nome para uma prática e política de não-violência, é uma força não-violenta que
consiste ao mesmo tempo numa “insistência na verdade … [que] arma o devoto com poder
incomparável.” Para entender essa força ou poder, não pode haver uma simples redução da força física.
Ao mesmo tempo, a “força da alma” assume uma forma incarnada. A prática de “fazer-se de morto”
anterior ao poder político que assuma, por um lado, uma postura passiva e, por outro, seja pensada
como pertencendo à tradição de resistência passiva; ao mesmo tempo, é uma forma deliberada de
expôr o corpo ao poder da polícia, de entrar no campo da violência, e de exercer uma forma inflexível e
corporificada de agência política. Exige sofrimento, sim, mas com o propósito de transformar tanto a si
mesmo e a realidade social. Terceiro, a não-violência é um ideal que nem sempre pode ser plenamente
honrado na prática. Na medida em que aqueles que praticam resistência não-violenta colocam o seu
corpo no caminho de um poder externo, eles têm contato físico, apresentando uma força contra outra
força no processo. A não-violência não implica a ausência de força ou de agressão. É, como foi no
passado, uma estilização ética da corporeidade, repleta de gestos e modos de não-ação, de maneiras de
se tornar um obstáculo, de usar a solidez do corpo e o seu campo de objetos quinéticos para bloquear
ou inviabilizar um novo exercício de violência. Quando, por exemplo, os corpos formam uma barreira
humana, podemos perguntar se eles estão bloqueando a força ou se engajando na mesma17. Aqui,
novamente, estamos obrigados a pensar cuidadosamente sobre a direção da força, e a procurar uma
distinção entre força corporal e violência. Às vezes, pode parecer que a obstrução é violência – afinal de
contas, falamos sobre violência como obstrução—então, uma questão que será importante considerar,
é se os actos corporais de resistência envolvem uma atenção plena ao ponto de inflexão, o local onde a
força de resistência pode se tornar o ato ou a prática violenta que leva a cometer uma nova injustiça. A
possibilidade desse tipo de ambiguidade não nos deve dissuadir do valor deste tipo de prática. Quarto,
não há prática de não-violência que não negoceie princípios éticos e ambiguidades políticas, o que
significa que a “não-violência” não é uma princípio, mas o nome de uma luta contínua.
Se a não-violência parece uma posição “fraca”, devemos perguntar: como conta como força?
Quantas vezes vemos que a força é equiparada ao exercício de violência ou à indicação de uma vontade
de usar violência? Se há uma força na não-violência que emerge dessa suposta “fraqueza”, pode estar

17
Ver Başak Ertür, “Barricades: Resources and Residues of Resistance,” in Judith Butler, Zeynep Gambetti, and
Leticia Sabsay, Eds., Vulnerability in Resistance, Durham, NC: Duke University Press, 2016, 97–121; ver também
Banu Bargu, “The Silent Exception: Hunger Striking and Lip-Sewing,” Law, Culture, and the Humanities, May 2017.
relacionada ao poder dos fracos, os quais incluem o poder social e político para estabelecer a existência
para aqueles que foram conceitualmente anulados, para alcançar a possibilidade de lutoe pesar e
valorar todos aqueles que vêm sido expulsados como dispensavéis, e insistir na possibilidade tanto de
julgamento e justiça nos termos da mídia contemporânea e das políticas públicas que oferecem um
vocabulário desconcertante e, às vezes, bastante tático para nomear e mal nomear a violência.
O facto que os esforços políticos de dissidência e crítica são frequentemente rotulados como
“violentos” pelas próprias autoridades estatais que se sentem ameaçadas por esses esforços, não é
motivo para se desesperar com o uso da linguagem. Isto significa apenas que temos que expandir e
refinar o vocabulário político para pensar sobre a violência e a resistência à violência, levando em conta
como este vocabulário é distorcido e usado para proteger autoridades violentas contra as críticas e a
oposição. Quando a crítica da violência colonial contínua é considerada violenta (Palestina), quando uma
petição de paz é reformulada como um acto de guerra (Turquia), quando as lutas para a igualdade e a
liberdade são interpretadas como ameaças violentas à segurança do Estado (Black Lives Matter), ou
quando “gênero” é retratado como um arsenal nuclear dirigido contra a família (ideologia anti-gênero),
então estamos operando no meio de formas de fantasmagoria politicamente consequentes. Ao expôr o
ardil e a estratégia destas posições, temos que estar em posição de rastrear as formas através das quais
a violência é reproduzida ao nível de uma lógica defensiva imbuída de paranóia e ódio.
A não-violência é menos uma falha de ação do que uma afirmação física das reivindicações de
vida, uma afirmação viva, uma reivindicação que é feita pela fala, gesto, e ação, por meio de redes,
acampamentos e assembleias; todas estas formas procuram reformular os vivos como dignos de valor,
como potencialmente passíveis de luto e pesar, precisamente baixo as condições em que eles são
apagados da nossa vista ou lançados em formas irreversíveis de precariedade. Quando as pessoas
precarizadas expõem a sua vida e estatuto face àqueles poderes que ameaçam as suas próprias vidas,
eles engajam uma forma de persistência que tem o potencial de derrotar um dos objetivos orientadores
do poder violento - ou seja, para lançar aquelas pessoas nas margens como dispensáveis, para empurrá-
las além das margens para a zona do não-ser, para usar a frase de Fanon. Quando os movimentos não
violentos trabalham dentro dos ideais de posições radicais como o igualitarismo, a sua reivindicação é
igual a uma vida vivível e lamentável que serve como um ideal social orientador, fundamental para uma
ética e uma política de não-violência que vai além do legado do individualismo. Estes movimentos
abrem uma nova consideração da liberdade social como definida em parte pela nossa interdependência.
Um imaginário igualitário é necessário para que tal luta aconteça – aquela que conta com o potencial de
destruição em cada vínculo vivo. A violência contra o Outro é, nesse sentido, violência contra si mesmo,
algo que fica claro quando reconhecemos que a violência agride a interdependência viva que é, ou
deveria ser, o nosso mundo social.

Postscript: Repensando a Vulnerabilidade, a Violência e as Resistências

Estamos vivendo numa época de inúmeras atrocidades e morte sem sentido, com certeza e,
assim, uma das maiores questões éticas e políticas passa a ser: Quais são os modos de representação
que estão à nossa disposição para apreender essa violência? Alguns diriam que as autoridades globais e
regionais têm de identificar grupos vulneráveis e oferecer-lhes proteção. E embora eu não esteja em
oposição à proliferação de “documentos de vulnerabilidade” que permitiriam que mais migrantes
cruzassem as nossas fronteiras, pergunto-me se essa formação do discurso e do poder chega ao cerne
do problema. Já é bem conhecida a crítica de que o discurso dos “grupos vulneráveis” reproduz o poder
paternalista e dá autoridade às agências reguladoras com interesses e constrangimentos próprios. Ao
mesmo tempo, estou atenta ao facto que muitos defensores da vulnerabilidade têm procurado abordar
esta questão no seu trabalho empírico e teórico18.
O que parece claro é que, por mais importante que seja reavaliar a vulnerabilidade e dar lugar
ao cuidado, nem a vulnerabilidade nem o cuidado podem servir de base de uma política. Eu,
certamente, gostaria de ser uma pessoa melhor e me esforçar para tornar-me nisso, em parte, por
reconhecer minha aparentemente profunda e recorrente falibilidade. Mas nenhum de nós deve
procurar ser santo, se o que isso significa é que acumulamos toda a bondade para nós mesmos,
expulsando os defeitos ou a dimensão destrutiva da psique humana, colocando-a nos atores de fora,
aqueles que seguem vivendo na região do “não eu”, com quem nos desidentificamos. Se, por exemplo,
entendemos uma ética ou política de “cuidado” como um processo contínuo e não uma disposição
humana conflitante que pode e deve dar origem a uma estrutura para o feminismo, então entramos
numa realidade bifurcada na qual a nossa própria agressão é editada fora da imagem ou projetada em
outras. Da mesma forma, seria fácil e eficiente se pudéssemos estabelecer a vulnerabilidade como base
para uma nova política; mas considerando-a como condição, esta não pode existir isolada de outros
termos, nem ser o tipo de fenômeno que pode servir de fundamento. Alguém está vulnerável, por

18
Ver o websítio de Martha Fineman apresentando a pesquisa da sua equipa de investigação na Emory University:
“Vulnerability and the Human Condition,” Emory University official website, www.web.gs.emory.edu/vulnerability.
exemplo, sem insistirmos numa condição vulnerável? Além disso, se pensarmos sobre aqueles que, na
sua condição de vulnerabilidade, resistem a essa mesma condição, como entendemos essa dualidade?
A tarefa, eu sugeriria, não é se organizar como criaturas vulneráveis ou criar uma classe de
pessoas que se identificam principalmente com a vulnerabilidade. Dentro deste retrato de pessoas e
comunidades que estão sujeitas à violência de formas sistemáticas, fazemos-lhes justiça, respeitamos a
dignidade da sua luta, se os resumirmos como “os vulneráveis”? Dentro do contexto dos direitos
humanos, a categoria de “populações vulneráveis” inclui todas aquelas pessoas que necessitam de
proteção e cuidados. Naturalmente, é crucial trazer a público e conscientizar a situação acerca daqueles
que carecem de requisitos humanos básicos, como alimentação e abrigo, mas também aqueles cuja
liberdade de mobilidade e direitos de cidadania legal lhes é negada, se não criminalizada. Com efeito,
cada vez mais, um grande número de refugiados foram abandonados por tantos estados-nação e
formações estatais transnacionais, incluindo, é claro, a União Europeia. E o Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados estima que há cerca de 10 milhões de apátridas agora vivendo no
mundo19. Estes relatórios também falam tanto das vítimas do feminicídio na América Latina (quase
3.000 por ano, com taxas especialmente altas em Honduras, Guatemala, Brasil, Argentina, Venezuela e
El Salvador), e o termo “feminicídio” inclui todos os indivíduos que são brutalizados ou mortos em
virtude de serem feminizados, incluindo um grande número de mulheres trans também 20. Ao mesmo
tempo, o Movimento Ni Una Menos mobilizou mais de um milhão de mulheres em toda a América
Latina (e também em Espanha e Itália) que protestaram contra a violência machista na rua. Organizando
mulheres e comunidades trans, e travestis também, Ni Una Menos entrou nas escolas, igrejas e
sindicatos para se conectar com mulheres de classes econômicas distintas e diferentes comunidades
regionais em oposição ao assassinato de mulheres e pessoas trans, mas também contra a persistência
da discriminação, assalto e desigualdade sistêmicas.
Muitas vezes, as mortes por feminicídio são relatadas como histórias sensacionalistas, após um
choque momentâneo. E então acontece de novo. Há horror, com certeza, mas nem sempre está ligado a
uma análise e uma mobilização que focalize a raiva coletiva. O caráter sistêmico desta a violência, é
apagado quando se diz que os homens que cometem tais crimes, sofrem transtornos de personalidade

19
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados [United Nations High Commissioner for Refugees],
Statelessness around the World, UNHCR official website, www.unhcr.org.
20
“Countries with the Highest Number of Murders of Trans and Gender-Diverse People in Latin America from
January to September 2018,” Trans Murder Monitoring, November 2018,
www.statista.com/statistics/944650/number-trans-murders-latin-america-country. Ver também Chase Strangio,
“Deadly Violence against Transgender People Is on the Rise. The Government Isn’t Helping,” ACLU, August 21,
2018, www.aclu.org.
ou condições patológicas singulares. O mesmo apagamento acontece quando uma morte é considerada
“trágica”, como se as forças conflituantes no universo levassem a essa conclusão desastrosa. Na Costa
Rica, a socióloga Montserrat Sagot, argumentou que a violência contra as mulheres não só traz à tona a
desigualdade sistêmica entre homens e mulheres em toda a sociedade, mas manifesta formas de terror
que fazem parte do legado de poder ditatorial e violência militar21. A impunidade com que estes
assassinatos brutais são tratados, prolonga legados violentos onde a dominação, o terror, a
vulnerabilidade social e o extermínio foram cometidos regularmente. Na sua opinião, não será suficiente
explicar assassinatos como estes através do recurso a características individuais, patologia, ou mesmo a
agressão masculina. Em vez disso, estes actos de matar, devem ser entendidos em termos da
reprodução de uma estrutura social. Sagot afirma, ainda, que estas atrocidades têm de ser descritas
como uma forma extrema de terrorismo sexista22.
Para Sagot, matar é a forma mais extrema de dominação, e outras formulações, incluindo
discriminação, assédio e agressão, devem ser entendidas como num continuum com o feminicídio. Isto
não é um argumento casual, mas toda a forma de dominação sinaliza esta conclusão letal como
potencial. A violência sexual traz consigo a ameaça de morte e, muitas vezes, cumpre essa promessa.
O Feminicídio funciona, em parte, estabelecendo um clima de medo no qual qualquer mulher,
incluindo as mulheres trans, pode ser morta. E esse medo é potenciado entre mulheres de cor e queers
de cor, especialmente no Brasil. Aquelas que siguem vivas veem-se a si mesmas como ainda vivas,
vivendo apesar desta ameaça ambiental, e resistem e respiram dentro de uma atmosfera de dano
potencial. As mulheres que vivem em tal clima sofrem algum grau de terror pela prevalência e
impunidade desta prática de assassinato. Elas são induzidas a subordinar-se aos homens para evitar esse
destino, o que significa que a sua experiência de desigualdade e subordinação já vem vinculada ao seu
estatuto como “matável”. “Subordinar-me ou morrer” pode parecer como um imperativo hiperbólico,
mas é a mensagem que muitas mulheres conhecem como sendo dirigida a elas. Este poder de
aterrorizar é muitas vezes apoiado e fortalecido por sistemas policiais e judiciais que se recusam a
processar estes crimes, que não reconhecem o caráter criminoso desta ação. Às vezes, a violência é
infligida reiteradamente contra mulheres que se atrevem a fazer uma tentativa de queixa legal,
acabando por punir aquela manifestação de coragem e persistência.

21
Montserrat Sagot, “A rota crítica da violência intrafamiliar em países latino-americanos,” in Stela Nazareth
Meneghel, Ed., Rotas críticas: mulheres enfrentando a violência, São Leopoldo: Editoria Usinos, 2007, 23–50.
22
Ver também Julia Estela Monárrez Fragoso, “Serial Sexual Femicide in Ciudad Juárez: 1993– 2001,” Debate
Femenista 13:25, 2002.
O assassinato é o acto obviamente violento neste cenário, mas não se reproduziria com tanta
velocidade e intensidade se não fosse por aqueles que descartam o crime, culpam a vítima ou
patologizam o assassino no espírito de uma exoneração. De facto, a impunidade é muitas vezes
incorporada à estrutura legal (que é uma das razões pelas quais as autoridades locais resistem à
intervenção da Corte Interamericana de Direitos Humanos), o que significa que a recusa em receber a
queixa formal, as ameaças contra aquelas que fazem a queixa e a falha em reconhecer o crime, todos
estes fatores em conjunto perpetuam essa violência e dão licença ao assassinato. Neste caso, temos que
localizar a violência no acto, mas também na crença sustentada da dominação social das mulheres - e
das pessoas feminizadas . A violência ocorre na série de recusas legais e falhas em reconhecê-la como
tal: nenhuma queixa significa que não há nenhum crime, logo nõ é necessária nenhuma punição e
nenhuma reparação.
Se o feminicídio é entendido como produtor de terror sexual, então estas lutas feministas e
trans não estão apenas potencialmente unidas (como deveriam estar), mas ligadas às lutas das pessoas
queer, de todos aqueles que lutam contra a homofobia, e das pessoas de cor que são
desproporcionalmente alvo de violência ou abandono. Se o terror sexual está relacionado não apenas à
dominação, mas também ao extermínio, então a violência sexual constitui um local denso para
situarmos histórias de opressão, bem como de lutas de resistência. Por mais terrível que cada uma
destas perdas individuais certamente é, todas pertencem a uma estrutura social que considerou as
mulheres imperdoáveis. O acto de violência (re)establece a estrutura social, e a estrutura social
ultrapassa cada um dos atos de violência através dos quais se manifesta e se reproduz. São perdas que
não devem acontecer, que nunca mais deveriam acontecer: Ni Una Menos.
O meu exemplo não faz justiça à especificidade histórica destes actos de violência, mas talvez
introduza um conjunto de questões que podem ser úteis enquanto procuramos entender assassinato
após assassinato como algo diferente de actos isolados e terríveis. A exigência ética e epistemológica de
criar uma imagem global que dê conta desta realidade teria que incluir os assassinatos que ocorrem nas
prisões e ruas dos EUA, que são da responsabilidade da polícia, quem, muitas vezes, dita a lei no local
onde acontecem. A adoção populista de novos autoritarismos pela extrema-direita, novas lógicas de
segurança e novos poderes para as forças de segurança, polícia e militares (e a particular fusão de todos
os três que parece cada vez mais monitoriar o nosso espaço público), supõe que tais instituições letais
são necessárias para “proteger” o “povo” da violência; e, no entanto, tais justificações apenas ampliam
os poderes da polícia e sujeitam os indivíduos marginalizados a estratégias carcerárias cada vez mais
intensas de contenção e restrição.
Existe, então, uma forma de nomear e contrariar estas formas de necropolítica cujos são toda
uma classe de vítimas que nega às mulheres, queers, pessoas trans e pessoas de cor (mais geralmente)
as suas redes, a sua teoria e análise, as suas solidariedades e o seu poder de produzir uma oposição
efetiva? A polícia procura “proteger” as pessoas contra a violência e ampliar os seus poderes carcerários
em nome desta proteção. Estamos involuntariamente fazendo algo semelhante quando falamos sobre
“populações vulneráveis”, e a tarefa passa a ser aliviá-las de tal vulnerabilidade? Essa tarefa é realizada
por uma organização ou agência que visa proporcionar-lhes esse alívio. Alívio da precariedade é bom,
mas faz isso traz consigo uma abordagem que agarre e se oponha às formas estruturais de violência e à
economia que predispõe das populações e as coloca numa precariedade inabitável? Porque é que “nós”
não deixamos de lado a opção paternalista, por assim dizer, para nos juntarmos a estas redes de
solidariedade, opondo-nos a tais formas de dominação social e violência, com aqueles que são ao
mesmo tempo vulneráveis e estão em luta? Uma vez que os ditos vulneráveis” se constituem como tal,
entende-se que ainda mantêm e exercem o seu próprio poder? Ou todo o poder desaparece na situação
do vulnerável, ressurgindo como potência do cuidado paternalista agora obrigado a intervir?
E se a situação dos considerados vulneráveis for, de facto, uma constelação de vulnerabilidade,
raiva, persistência e resistência que emerge nestas mesmas condições históricas? Seria igualmente
imprudente extrair vulnerabilidade desta constelação; de facto, a vulnerabilidade atravessa e condiciona
as relações sociais, e sem essa percepção ficamos sem a oportunidade de construir o tipo de igualdade
substantiva que se deseja. A vulnerabilidade não deve ser identificada exclusivamente como
passividade; faz sentido apenas à luz de um conjunto incarnado de relações sociais, incluindo práticas de
resistência. Uma visão da vulnerabilidade como parte da sociedade, das nossas relações e ações pode
nos ajudar a entender como e que formas de resistência emergem. Embora a dominação nem sempre
seja seguida pela resistência, se as nossas estruturas de poder não conseguem entender como a
vulnerabilidade e a resistência podem funcionar em conjunto, corremos o risco de ser incapazes de
identificar aqueles locais de resistência que são abertos pela vulnerabilidade.
Dito isto, fica claro que o caráter organizado da privação e da morte que tem vindo a ocorrer ao
longo das extensas fronteiras da Europa é enorme, e que a resistência dos migrantes e seus aliados é
crucial, mesmo quando apenas episódica. Aproximadamente 5.400 pessoas morreram tentando
atravessar o Mediterrâneo em 2017–18, e estas cifras incluem o grande número do povo Curdo que
procura emigrar através do mar23. A Rede Síria para os Direitos Humanos relata que no oitavo
aniversário da revolta em março de 2019, o número de mortos civis atingiu 221.161 24. Há muitos
exemplos sobre os quais poderíamos discorrer, além do feminicídio, ao levantar a questão de como
chegamos a nomear e entender a organização de populações levadas à desapropriação e morte; estes
exemplos incluiriam o tratamento brutal de sírios e curdos acumulados na fronteira com a Turquia, e o
racismo anti-muçulmano na Europa e nos Estados Unidos, bem como a sua convergência com o racismo
anti-migrante e anti-negro que cria a noção de povos descartáveis - aqueles que são considerados à
beira da morte ou já mortos.
Ao mesmo tempo, aqueles que perderam o suporte de infraestrutura desenvolveram redes,
comunicaram horários e procuraram compreender e usar as leis marítimas internacionais no
Mediterrâneo a seu favor para atravessar fronteiras - traçar uma rota e conectar-se com comunidades
que podem fornecer apoio de um tipo ou de outro, como ocupando hotéis desocupados com
anarquistas acomodados. Aquelas pessoas acumuladas ao longo das fronteiras da Europa não são
precisamente o que o filósofo e político Giorgio Agamben referiu como “vida nua” – ou seja, não se
reconhece o seu sofrimento ao privá-las de toda capacidade. Em vez disso, estas pessoas estão, na sua
maioria, numa situação terrível: improvisando formas de sociabilidade, usando telefones celulares,
tramando e agindo quando possível, desenhando mapas, aprendendo línguas, embora em muitos casos
estas atividades nem sempre são possíveis. Mesmo que a agência lhes seja bloqueada a cada passo,
ainda lhes restam formas de resistir a esse mesmo bloqueio, formas de entrar no campo de força da
violência para impedir a sua continuação. Quando estas pessoas exigem documentos, movimentação,
entrada, não estão precisamente a superar a sua vulnerabilidade - elas estão demonstrando isso, e
demonstrando a sua situação por isso. O que acontece não é a transformação milagrosa ou heróica da
vulnerabilidade em força, mas a articulação da exigência que apenas uma vida estruturada pode
persistir como vida. Às vezes, a demanda é feita com o corpo, por forma a aparecer num lugar onde
estas pessoas estão expostas ao poder da polícia e elas se recusam a se mudar. A imagem do celular do
peticionário torna o caso virtual em vida real, e mostra como a vida depende desta sua circulação

23
Organização Internacional para a Migração [International Organization for Migration], “Mediterranean Migrant
Arrivals Reach 113,145 in 2018; Deaths Reach 2,242,” International Organization for Migration official website,
2018, www.iom.int; “Mediterranean: Deaths by Route,” Missing Migrants Project, www.missingmigrants.iom.int,
acedido 15 de Maio de 2019.
24
Rede Síria para os Direitos Humanos [Syrian Network for Human Rights], “Eight Years Since the Start of the
Popular Uprising in Syria, Terrible Violations Continue,” Syrian Network for Human Rights official website, 2019,
www.sn4hr.org.
virtual. O corpo só pode afirmar: “esta é uma vida” se as condições de afirmação puderem ser
estabelecidas, isto é, por meio da sua enfática e pública demonstração indicial.
Consideremos, por exemplo, o jornal alemão Daily Resistance, publicado em Farsi, Árabe, Turco,
Alemão, Francês e Inglês, o qual contém artigos de refugiados que formularam um conjunto de
reivindicações, incluindo a abolição de todos os campos de refugiados, o fim da política alemã de
Residenzpflicht (que limita a liberdade de movimento de refugiados dentro de fronteiras nacionais
estreitas), a suspensão de todas as deportações e subsídios para os refugiados trabalharem e
estudarem25. Em 2012, vários refugiados na cidade de Würzburg costuraram as suas bocas, protestando
contra o facto de que o governo se recusou a responder-lhes. Esse gesto foi repetido em vários outros
locais, mais recentemente por migrantes iranianos em Calais, França, em março de 2017, antes da
destruição e evacuação dos seus acampamento. A opinião deles, amplamente compartilhada, é que sem
uma resposta política, os refugiados permanecem sem voz, pois uma voz que não é ouvida não é
registrada, e por isso não é uma voz política. Claro, eles não puseram a sua reivindicação desta forma
proposicional. Mas eles salientaram o mesmo ponto através de um gesto legível e visível que silenciava
a sua voz como signo e substância da sua demanda. A imagem dos lábios costurados mostra que a
demanda não pode ser expressa e assim eles fazem a sua própria demanda sem voz. Exibem a sua falta
de voz numa representação visual ouimagem para comentar sobre os limites políticos impostos de
audibilidade. De certa forma, vemos novamente uma forma de política teatral que afirma o seu próprio
poder e, ao mesmo tempo, os limites impostos a esse poder.
Outro exemplo da Turquia, é o “homem de pé” na Praça Taksim, em Junho de 2013, que fez
parte dos movimentos de protesto contra o governo de Erdoğan, inclusivé contra as suas políticas de
privatização e o seu autoritarismo. O homem de pé era um artista performático, Erdem Gündüz, que
obedeceu ao decreto do estado, proferido imediatamente após protestos massivos, proibindo se reunir
falar com outros na assembléia - um decreto de Erdoğan que procurou minar as premissas mais básicas
da democracia: liberdade de movimento, de reunião e de expressão. Então, um homem ficou em pé, e
ficou em pé à distância obrigatória mandada de outra pessoa, que por sua vez ficou à distância
obrigatória de outra mais. Legalmente, eles não constituem uma assembléia, e ninguém estava falando
ou se movendo. O que eles fizeram foi cumprir o decreto na perfeição, centenas deles, enchendo a
praça numa distância adequada um do outro. Assim, eles demonstraram efetivamente a proibição baixo
a qual viviam, submetendo-se a ela ao mesmo tempo em que a exibiram em frente às câmeras, o que

25
Ver o meu artigo” “Vulnerability and Resistance,” Profession, March 2014, www.profession.mla.org.
não pôde ser totalmente banido. Esta manifestação teve, pelo menos, dois significados: a proibição foi
mostrada, incarnada, promulgada corporalmente - a proibição tornou-se um guião - mas a proibição
também foi contestada, contra demonstrada. Essa demonstração foi elaborada em, e pelo campo visual
aberto pelas câmeras de telefones celulares, essas formas de tecnologia que iludiram a interdição da
fala e do movimento. Esta ação, assim, tanto se submeteu como desafiou a mesma interdição, tudo
através da mesma actuaçao. Esta performance mostra a posição ambígua do sujeito, ao mesmo tempo
expondo-se e opondo-se à sua própria subjugação.
Nestes casos, o caráter vivo do subjugado também é elevado ao primeiro plano: Esta não será
uma vida sequestrada na sua subjugação, privada de aparência e discurso na esfera pública; esta será
uma vida viva, o que redobradamente significa que ainda não se extinguiu e que continua a reivindicar e
demandar em nome do seu próprio caráter vivo. Os corpos que dizem: "Eu não vou desaparecer tão
facilmente", ou "O meu desaparecimento vai deixar um traço vibrante a partir do qual a resistência
crescerá”, estão efetivamente a afirmar o seu luto e pesar na esfera pública e midiática. Ao expôr os
seus corpos no contexto da manifestação, eles deixam-nos saber quais corpos correm o risco de
detenção, deportação ou morte. Porque esta actuação encarnada traz à tona essa exposição histórica
específica à violência; assim faz com que a aposta e a demanda se materializem com a sua própria
persistência performativa e corporificada. Notemos que não é o imediatismo do corpo que faz essa
avançar esta demanda, mas antes o corpo como socialmente regulado e abandonado, o corpo como
persistente e resistindo a essa mesma regulamentação, afirmando a sua existência dentro de termos
pré-establecidos26. O corpo age como a sua própria dêixis, apontando para, ou encenando o corpo que
implica a sua situação: este corpo, estes corpos; estes são os corpos expostos à violência, resistindo ao
desaparecimento. Estes corpos ainda existem, o que quer dizer que eles persistem mesmo debaixo das
condições nas quais o seu próprio poder de persistir é sistematicamente questionado.
Essa persistência não é uma questão de individualismo heróico, ou de cavar fundo em recursos
pessoais desconhecidos. O corpo, na sua persistência, não é uma expressão do indivíduo, nem de uma
vontade coletiva. Pois se nós aceitarmos que essa parte do que é um corpo (e isto é, neste momento,
uma alegação) ocorre na esfera da sua dependência de outros corpos – de processos vivos dos quais faz
parte, em redes de apoio para as quais também contribui – então estamos sugerindo que não é
totalmente correto conceber os corpos individuais completamente distintos uns dos outros; e nem seria
correcto também considerá-los totalmente fundidos, sem distinção. Sem concetualizar o significado

26
Ver Lauren Wilcox, Bodies of Violence: Theorizing Embodied Subjects in International Relations, Oxford, UK:
Oxford University Press, 2015.
político do corpo humano no contexto das instituições, práticas e relações em que vive e prospera,
falhamos no melhor caso possível porque o assassinato é inaceitável, o abandono tem que ser
combatido, e a precariedade tem que ser aliviada. Não é apenas que este ou aquele corpo está ligado a
uma rede de relações, mas que a fronteira tanto contém quanto relaciona; o corpo, talvez precisamente
em virtude dos seus limites, se diferencia e se expõe a uma realidade material e social do mundo que
torna a sua própria vida e ação possíveis. Quando as condições de vida infraestruturais estão em perigo,
assim também está a vida, uma vez que a vida requer infraestrutura, não simplesmente como suporte
externo, mas também como um recurso imanente da própria vida. Este é um ponto materialista que
negamos apenas por nossa conta e risco.
A teoria social crítica nem sempre leva em conta a forma como a vida e a morte estão
pressupostas nos modos como pensamos sobre as nossas relações sociais. Pois uma coisa é dizer que a
vida e a morte estão ambas socialmente organizadas, e que podemos descrever as nossas formas sociais
de viver e morrer. É um trabalho importante, com certeza. Mas se não considerarmos o que queremos
dizer com “o social” em tais discussões, podemos deixar de ver como a ameaça de morte e a promessa
de vida são traços constitutivos daquelas relações que chamamos “sociais”. Então, de certa forma, os
nossos hábitos de construtivismo precisam mudar a fim de apreendermos sobre as questões de vida e
morte em questão aqui: as da persistência do corpo, do facto de que sempre há condições para a
persistência. Quando essas condições de persistência corporal não forem mantidas, a persistência é
ameaçada.
Se existe um direito de persistir, não seria aquele que os indivíduos mantêm à custa da sua
condição social. O individualismo não consegue capturar a condição de vulnerabilidade, exposição, até
de dependência, que vai pressuposta pelo próprio direito, e isso corresponde, eu sugeriria, a um órgão
cujas próprias fronteiras são relações sociais tensas e excitáveis. Se um corpo que vacila e cai é
apanhado nas redes de apoio, ou se um corpo em movimento tem o seu caminho pavimentado sem
obstrução, depende de se ter construído todo um mundo para a sua gravidade e mobilidade - e se esse
mesmo mundo pode permanecer uma vez construído. A pele é, desde o início, uma forma de exposição
aos elementos, mas essa exposição sempre assume uma forma social. E o que é feito em relação a essa
exposição já é uma relação socialmente organizada: uma relação com o abrigo, o vestuário adequado,
os serviços de saúde. Se procurarmos descobrir o que é mais essencial sobre o corpo, reduzindo-o a seus
elementos nus ou, mesmo, à sua vida nua, encontramos isso ali mesmo ao nível das suas mais básicas
exigências, o mundo social que já está estruturando a cena. Assim, as questões básicas de mobilidade,
expressão, calor e saúde implicam que o corpo num mundo social onde os caminhos são pavimentados
diferencialmente, esteja aberto ou fechado; e que os modos de vestuário e os tipos de abrigo estejam
mais ou menos disponíveis, acessíveis ou provisórios. O corpo é invariavelmente definido pelas relações
sociais que sustentam a sua persistência, sustento e prosperidade.
A prosperidade que está ligada à vida humana, está ligada à prosperidade de criaturas não
humanas; a vida humana e não humana também estão relacionadas em virtude dos processos vivos que
são, compartilham e exigem, levantando todo o tipo de questões sobre preservação e manutenção que
merecem atenção de estudiosos e intelectuais de todos os campos. O conceito político de
autopreservação, muitas vezes usado na defesa da ação violenta, não considera que a preservação de si
mesmo requer a preservação da terra, e que não estamos “no” ambiente global como seres auto-
subsistentes, mas subsistimos apenas enquanto o planeta existir. O que é verdade para os seres
humanos é verdade para todas as criaturas vivas que requerem solo não tóxico e água limpa para a
continuação da vida27. Se algum de nós quiser sobreviver, florescer, mesmo tentar levar uma boa vida,
será uma vida vivida com outros — uma vida que não é vida sem esses outros. Eu não vou perder este
“eu” por causa de quem eu sou nessas condições; em vez disso, se eu tiver sorte, e o mundo estiver
certo, quem quer que eu seja será constantemente sustentado e transformado pelas minhas conexões
com os outros, as formas de contato pelas quais sou alterado e sustentado.
A relação diádica conta apenas parte da história – a parte que pode ser exemplificada pelo
encontro. Este “eu” requer um “tu” para sobreviver e florescer. No entanto, tanto o “eu” quanto o “tu”
requerem um mundo sustentador. Estas relações sociais podem servir de base para pensar sobre as
obrigações globais de não-violência que temos uns para com os outros: não posso viver sem conviver
com algum conjunto de pessoas, e é invariável que o potencial de destruição reside precisamente nessa
relação necessária. Que um grupo não pode viver sem viver junto com outro grupo, significa que a
própria vida de um já é, em certo sentido, a vida do Outro. E, depois, há o número crescente daqueles
que já não pertencem a uma nação, ou que perderamo o seu enraizamento territorial, viram a sua terra
ser bombardeada ou saqueada; aqueles que foram expulsos de qualquer categoria que, tenuamente, os
manteve dentro dos seus limites, levando a perdas insuportáveis numa nova língua que eles apenas
começaram a falar, sumariamente agrupados como “apátridas”, ou “migrantes” ou “indígenas”.
Os laços que potencialmente nos unem através de zonas de violência geopolítica, podem ser
ignorantes e frágeis, carregados de paternalismo e poder, mas também podem ser fortalecidos por meio
de formas transversais de solidariedade que disputam a primazia e necessidade de violência. Os

27
Donna Haraway, The Companion Species Manifesto, Chicago: Prickly Paradigm, 2003; and When Species Meet,
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007.
sentimentos de solidariedade que persistem são aqueles que aceitam o caráter transversal das nossas
alianças, a perpétua demanda de tradução, bem como os limites epistêmicos que marcam as suas
falhas, incluindo assuas atribuições e apagamentos. Para admitir a vulnerabilidade não como atributo do
sujeito, mas como característica das relações sociais, não podemos implicá-la como uma identidade,
uma categoria, ou um fundamento para a açao política. Em vez disso, a persistência numa condição de
vulnerabilidade, prova ser o seu próprio tipo de força, distinto daquele que defende a força como a
conquista da invulnerabilidade. Essa condição de domínio replica as formas de dominação a serem
combatidas, desvalorizando essas formas de suscetibilidade e contágio que resultam em alianças
solidárias e transformadoras.
Da mesma forma, o preconceito contra a não violência como passiva e inútil, implicitamente
depende de uma divisão de atributos de gênero, através da qual a masculinidade significa atividade e
feminilidade, passividade. Nenhuma transvaloração destes valores derrotará a falsidade deste binário de
oposição. De facto, o poder da não-violência, a sua força, encontra-se nos modos de resistência a uma
forma de violência que regularmente esconde o seu verdadeiro nome. A não-violência expõe o ardil pelo
qual a violência estatal se defende contra negros e pardos, pessoas queer, migrantes, o sem-teto,
dissidentes - como se fossem, juntos, tantas armas de destruição que devem, por “razões de
segurança”, ser detidas, encarceradas ou expulsas. A “força da alma” que Gandhi tinha em mente nunca
foi totalmente separável de uma postura corporificada, um modo de viver no corpo e de persistir,
justamente baixo condições que atacam as próprias condições de persistência. Às vezes, continuar a
existir na vergonha destas relações sociais, é a derrota final do poder violento.
Ligar uma prática de não-violência a uma força ou animus que é distinto da violência destrutiva,
que se manifesta na solidariedade, alianças de resistência e persistência, é refutar a caracterização da
não-violência como uma forma de passividade fraca e inútil. A recusa não é o mesmo que não fazer
nada. O grevista de fome que se recusa a reproduzir o corpo do prisioneiro, acusa os poderes
carcerários que já o estão atacando por medio da sua existência como encarcerado. A greve pode não
parecer uma “ação”, mas afirma a sua forma de retirar ao poder, o trabalho que é essencial para a
continuação de uma forma capitalista de exploração. A desobediência civil pode parecer uma simples
maneira de “escapar”, mas, ao mesmo tempo, torna pública a opinião e o sentimento que o sistema
legal não é justo. Esta desobediência civil requere o exercício de um juízo extrajudicial. Para ultrapassar
os muros que se destinam a manter as pessoas fora, precisamente para exercer uma reivindicação
extralegal de liberdade, que o próprio regime jurídico vigente não consegue prever nos seus próprios
termos. Assim, boicotar um regime que continua a ser um domínio colonial, intensificando a
desapropriação, o deslocamento e a privação de direitos de toda uma população, é afirmar a injustiça
do mesmo regime, e é se recusar a reproduzir a sua criminalidade como normal.
Para que a não-violência escape das lógicas de guerra que distinguem as vidas dignas de
preservação e as vidas consideradas dispensáveis, deve fazer parte de uma política de igualdade. Assim,
uma intervenção na esfera da aparência – a mídia e todas as permutações contemporâneas da esfera
pública – é necessária para tornar cada vida passível de lutoe pesar, isto é, digna do seu próprio viver,
merecedora da sua própria vida. Exigir que toda vida seja passível de luto e pesar, é outra maneira de
dizer que todas as vidas devem ser capazes de persistir na sua vida, sem estarem sujeitas à violência, ao
abandono sistêmico ou à obliteração militar. Para combater o esquema de fantasmagoria letal que
tantas vezes justifica a polícia de violência contra comunidades negras e pardas, a violência militar
contra migrantes e a violência do Estado contra os dissidentes, é necessário um novo imaginário —um
imaginário igualitário que compreende a interdependência das vidas. Irrealista e inútil, sim, mas é
possivelmente uma forma de trazer outra realidade à tona que não se baseie em lógicas instrumentais e
fantasmagoria que reproduzam a violência do Estado. O “irrealismo” de tal imaginário é a sua força. Não
é apenas que em tal mundo, cada vida seria merecedora de ser tratada como igual uma da outra, ou que
cada uma teria um igual direito de viver e florescer - embora certamente ambas as possibilidades devem
ser afirmadas. Um passo adicional é necessário: “cada” é, desde o início, entendida como para outra
vida, social, dependente, mas sem os recursos adequados para conhecer se essa dependência
necessária para a vida é exploração ou amor.
Não precisamos amar-nos uns aos outros para nos engajarmos numa solidariedade significativa.
A emergência de uma faculdade crítica, da própria crítica, está ligada à aclamada e preciosa relação de
solidariedade, onde os nossos “sentimentos” navegam na ambivalência pela qual eles são constituídos.
Nós sempre podemos acabar separados, e é por isso que lutamos para permanecer juntos. Só então
temos uma chance de persistir numa crítica comum: quando a não-violência se torna o nosso desejo
pelo desejo que Outro tem de viver, uma forma de dizer: “Tu és passível de luto e pesar; a tua perda é
intolerável; e eu quero que tu vivas; Eu quero que tu queiras viver, então toma o meu desejo como o teu
desejo, pois o seu já é o meu.” O “eu” não é um “tu”, mas permanece impensável sem ele – como sem
mundo, insustentável. Então, quer estejamos presos na raiva ou no amor - amor raivoso, pacifismo
militante, não-violência agressiva, persistência radical – esperamos viver este vínculo de maneira que
nos permita viver com os vivos, atentos aos mortos, demonstrando persistência em meio à dor e à raiva,
a àrdua e aclamada trajetória de ação coletiva na sombra da fatalidade.

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