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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

GISELE PEREIRA AGUIAR

JUSNATURALISMO E DIREITO NATURAL - DUAS VISÕES: JOSÉ PEDRO


GALVÃO DE SOUZA E PAULO FERREIRA DA CUNHA.

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo

2022
GISELE PEREIRA AGUIAR

JUSNATURALISMO E DIREITO NATURAL - DUAS VISÕES: JOSÉ PEDRO


GALVÃO DE SOUZA E PAULO FERREIRA DA CUNHA.

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Filosofia do Direito sob a
Orientação do Professor Livre-docente
Claudio De Cicco.

São Paulo

2022
GISELE PEREIRA AGUIAR

JUSNATURALISMO E DIREITO NATURAL - DUAS VISÕES: JOSÉ PEDRO


GALVÃO DE SOUZA E PAULO FERREIRA DA CUNHA.

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo como Exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Filosofia do Direito sob a
Orientação do Professor Livre-docente
Claudio De Cicco.

Aprovada em: __/__/____

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________

Professor LD. Claudio De Cicco – PUC-SP

_____________________________________________________________

Professora Interna

_____________________________________________________________

Professor Externo
RESUMO

Trata-se, nesta dissertação, de estudarmos alguns elementos do Direito


Natural no pensamento de dois doutrinadores: do brasileiro José Pedro Galvão de
Sousa e do português Paulo Ferreira da Cunha, a fim de traçarmos aproximações ou
distanciamentos entres suas ideias. Para tanto, faremos um breve referencial teórico
acerca do tema, e em seguida uma analise de alguns textos de cada um dos
jusfilósofos acima citados, para então cotejar seus pensamentos confluentes e
dissonantes e com isso ofertar nossas conclusões.

Palavras Chaves: Direito Natural, Jusnaturalismo, Justiça, Jusracionalismo e


Jushumanismo.
ABSTRACT

In this work, we study some elements of Natural Law in the thoughts of two scholars:
the Brazilian José Pedro Galvão de Sousa and the Portuguese Paulo Ferreira da
Cunha, in order to draw approximations or distances between their works. Therefore,
we will make a brief theoretical framework on the subject, and then an analysis of
some texts from each of the aforementioned philosophers, to then compare their
confluent and dissonant thoughts and thus offer our conclusions.

Key Words: Natural Law, Jusnaturalism, Justice, Jusracionalism and Jushumanism.


Dedico este trabalho ao meu pai Wilson
Aguiar (in memoriam), homem simples que na
transcendência mostrou seu amor imanente.
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Fundação São Paulo
(FUNDASP) pela Bolsa dissidio concedida a esta discente.
Agradecimentos

A gratidão é um sentimento que temos a ofertar o que existe de


melhor em nós, reconhecer que sentimos algo pelo que fizeram por nós.

Na minha família, aos meus pais, Senhor Wilson e Senhora


Marlucia, a gratidão pela geração e educação; ao Alvaro a gratidão pelo amor; aos
meus irmãos a alegria da partilha.

Na cátedra o primeiro mestre, e mestre de muitos de nós,


Claudio De Cicco, que todos os dias pontualmente ensinou e radiou mais que seu
saber, mas seu amor com a docência que se revela nos olhares. Aos demais
docentes, cumprimento todos na pessoa do ilustre Dr. Miguel Hovarth, que em seu
crédito Didática no Ensino Superior, mostrou-me que meu orientador é o melhor
exemplo que tenho a seguir.

Nos bancos escolares do mestrado a gratidão aos amigos e


amigas que partilharam angustias e alegrias: Felipe Labruna, Julio Comparini, Marco
Aurélio Lima Barreto, Natasha Lacerda de Campos, Rafael Magdaleno Tubone, Vitor
Nery e Yara Alves Gomes.
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois
passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o
horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para
que eu não deixe de caminhar.”

(Eduardo Galeano)
Sumário

Introdução ............................................................................................................... 11

Capítulo I – Considerações sobre o Direito Natural e o Jusnaturalismo ................. 14

1.1. O DIREITO NATURAL E O JUSNATURALISMO .......................................... 14


1.2. O JUSNATURALISMO NA HISTÓRIA ........................................................ 18
1.2.1. O Jusnaturalismo e a Antiguidade ....................................................... 18
1.2.2. O Jusnaturalismo e a Idade Média ...................................................... 30
1.2.3 O Jusnaturalismo e a Modernidade – Em especial Hugo Grócio ......... 39

Capítulo II – O Direito Natural na concepção de José Pedro Galvão de Sousa ..... 60

2.1. O positivismo jurídico e o direito natural ....................................................... 61

2.2. O Direito Natural em sua Fundamentação Transcendente e em sua


Realização Histórica no Direito Positivo .............................................................. 69

Capítulo III – O Direito Natural na concepção de Paulo Ferreira da Cunha ............ 85

3.1. Notas sobre Paulo Ferreira da Cunha e sua perspectiva culturalista do Direito
Natural ...................................................................................................................85

3.2. Considerações a respeito do pensamento Jusnaturalista de Paulo Ferreira da


Cunha . ................................................................................................................. 89

Capítulo IV – Algumas aproximações e distanciamentos do pensamento de José


Pedro Galvão de Sousa e de Paulo Ferreira da Cunha ......................................... 111

Conclusão.............................................................................................................. 121

Referências ........................................................................................................... 125

10
Introdução

Trata-se, nesta dissertação, de estudarmos alguns elementos do Direito


Natural no pensamento de dois doutrinadores: do brasileiro José Pedro Galvão de
Sousa e do português Paulo Ferreira da Cunha, a fim de traçarmos aproximações ou
distanciamentos entres suas ideias.

A investigação se justifica em três aspectos, na seleção do tema Direito


Natural e na escolha dos autores a serem estudados.

O primeiro aspecto, que diz respeito à seleção do tema Direito Natural,


pensamos ser de suma importância, principalmente nos tempos atuais, em que
diversos cursos de Direito, em especial no Brasil, estimulam, de modo incisivo, o
desenvolvimento de técnicos da matéria jurídica e cada vez menos os encoraja a
formarem-se juristas críticos. É a necessidade de compreendermos o Direito, não
apenas como a letra fria da lei, que torna essencial estudar o Direito Natural. Assim,
entendemos ser essa investigação muito significativa para que a capacidade
reflexiva seja cada vez mais despertada nos estudiosos e atuantes do Direito.

O segundo aspecto não diverge do primeiro, uma vez que o positivismo


jurídico busca separar do direito qualquer outra questão que não seja normativa, e
quando valoriza outras questões, ainda assim, prescinde da dimensão do justo, do
bom e especialmente da sabedoria, dando voz apenas a argumentos técnicos,
mecânicos que aqui chamaremos de ciência moderna. Esta sabedoria, nos dias de
hoje pode e deve ser entendida como ancestralidade, ou seja, os mais novos devem
se curvar aos mais velhos, e não penas na dimensão etária, mas do saber ancestral
que naturalmente é acessado por aqueles que tem maturidade.

Quanto ao terceiro aspecto, a seleção de José Pedro Galvão de Sousa e de


Paulo Ferreira da Cunha, a autora desta dissertação considera que tanto o primeiro,
como o segundo guardam forte relação com a construção do pensamento jurídico
Brasileiro, aquele por ter sido docente em nossa PUC-SP e este por ter grandes
relações com instituições brasileiras e por revelar profunda preocupação com nosso
país, inclusive sendo professor visitante e emérito de algumas instituições de ensino
superior, inclusive.

11
Com relação ao conteúdo da presente dissertação, apresentaremos algumas
considerações acerca da doutrina do Direito Natural e do Jusnaturalismo no Capitulo
I. Em seguida, exporemos algumas considerações com relação à doutrina do Direito
Natural, tanto de José Pedro Galvão de Sousa, Capítulo II, como de Paulo Ferreira
da Cunha, Capítulo III, para ao final verificarmos, em seus ensinamentos, quais
elementos são possíveis de aferição como convergentes ou divergentes, Capítulo
IV.

A condução metodológica da investigação se estruturará a partir da pesquisa


bibliográfica dos principais escritos dos autores e, com isso, serão aferidas suas
principais ideais no que tange o Direito Natural.

Dessa forma, e a fim de uma melhor compreensão dos temas a serem


desenvolvidos, elaboramos um conciso referencial teórico no capítulo I,
desenvolvemos o trabalho nos capítulos II, III e IV, e a consequente conclusão no
último capítulo.

O primeiro capítulo consiste em uma breve exposição de considerações a


respeito do Direito Natural e do Jusnaturalismo, dentre eles, suas principais
características, se o Direito Natural pode ser positivado, se há conflito entre Direito
Natural e Direito Positivo, entre outros.

O segundo capítulo faz uma apresentação acerca do pensamento


Jusnaturalista de José Pedro Galvão de Sousa, em sua principal obra sobre o tema:
Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito. Tal autor, como veremos, possui
uma concepção teológica, fundada na Lei Eterna, do Direito Natural.

O terceiro capítulo busca, a partir de alguns textos selecionados de Paulo


Ferreira da Cunha, oferecer os principais elementos de sua teoria Jusnaturalista,
que considera o Direito Natural um tema imprescindível para o Direito e que julga ser
necessário verificá-lo em uma perspectiva clássica, prescindindo de uma análise
jusracionalista moderna. Além disso, veremos como integrar o Jusnaturalismo ao
Jushumanismo, bem como sua postura de repulsa ao positivismo jurídico puro.

No quarto capítulo faremos um cotejo das principais ideias dos dois autores
supramencionados, relacionado às suas concepções de Direito Natural, com suas
similitudes e discordâncias em relação a este assunto. Tendo-se em vista que tanto

12
para José Pedro Galvão de Sousa como para Paulo Ferreira da Cunha o Direito
Natural é indispensável em qualquer construção de pensamento jurídico.

Ao final, retomaremos das principais ideias objetivando resgatar tudo que foi
aqui investigado.

13
Capítulo I – Considerações sobre o Direito Natural e o
Jusnaturalismo

1.1. O DIREITO NATURAL E O JUSNATURALISMO

Toda a tradição, ensina Jacques Leclerq,1 costuma reduzir o Direito Natural à


Moral ou confunde-se com o Jusnaturalismo, geralmente por não refletir o assunto
com a importância que lhe é devida. O desleixo com que o assunto é tratado conduz
a afirmações perfeitamente claras de uma espécie de senso comum. Paulo Ferreira
da Cunha adverte que o Direito Natural não pode ser entendido de maneira rigorosa
como uma filosofia de vida; para ele, o Direito Natural não é moral, nem religião,
nem ética, nem mesmo uma teoria filosófica ou jurídica apenas. O autor afirma que o
Direito Natural não é em si uma teoria, mas sim uma realidade,2 e, se fosse uma
teoria, seria o conjunto de teorias jusfilosóficas.

De maneira sintética, o termo Jusnaturalismo pode ser definido como a


corrente que admite um “direito natural” (ius naturale), ou a existência de uma norma
de conduta intersubjetiva, que se abriga em um sistema formado pelas normas do
Direito Positivo, fixadas pelo Estado. Tal sistema é universal e imutável, devendo
prevalecer ao Direito Positivo no caso de conflito. A doutrina denominada
Positivismo Jurídico, segundo a qual o Direito é somente aquele determinado pelo
Estado, sem se considerar qualquer menção a valores éticos, é, em si, antiética.

Em resumo, o Jusnaturalismo é a teoria que tem como base o Direito Natural,


sistema que leva em conta as relações entre sujeitos e objetos, e defende a lei
natural em primeiro lugar. É, portanto, a teoria do ser do Direito Natural. Nas
palavras de Paulo Ferreira da Cunha:

A conclusão correcta e inevitável depois do que ficou


aduzido é a de que o Direito Natural se distingue do jusnaturalismo
porque uma coisa é ser e outra coisa é a teoria do ser. O Direito

1
LECLERCQ, Jacques. Do direito Natural à Sociologia. Coleção Doutrinas e Problemas. São Paulo:
Duas Cidades, 1987, p.105.
2
CUNHA, Paulo Ferreira da Direito natural e jusnaturalismo: teste a alguns conceitos difusos. In O
direito, Loures, a.133 n.2, Abr.-Jun.2001, p.303 e ss.
14
Natural é a coisa, uma coisa difícil de reconhecer, sem dúvida, mas é
o ser, e o jusnaturalismo, os diferentes jusnaturalismos, são
3
teorizações a propósito dessa entidade.

Ensina Eduardo Vera-Cruz Pinto que o Direito Natural não é a letra da lei,
mas está ligado ao justo e ao espírito dos princípios universais:

Logo, no Direito Natural não há letra da lei, mas espírito dos


princípios universais vinculantes e interrogáveis cuja efectividade é
assegurada por uma hermenêutica comprometida com o conceito
referido de justiça. O Direito Natural pode ser então o Direito Justo.
Por isso concluímos que não há filosofia do Direito, como filosofia do
4
justo, sem direito natural.

Para os jusnaturalistas, o Direito Natural deve prevalecer, mesmo na rara


ocorrência de conflito entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Norberto Bobbio
corrobora com esse preceito:

O estado civil nasce não para anular o direito natural, mas


para possibilitar seu exercício através da coação. O direito estatal e o
direito natural não estão numa relação de antítese, mas de
integração. O que muda na passagem não é a substância, mas a
forma; não é, portanto, o conteúdo da regra, mas o modo de fazê-la
5
valer.

No mesmo sentido Paulo Ferreira da Cunha:

Não sabemos exatamente porquê, é todos os anos lectivos


muito significativo, apesar de todas as distinções e precauções, o
número de estudantes que afirmam nas suas provas escritas e orais
que o Direito Natural é o verdadeiro Direito, o Direito verdadeiramente
puro, justo, etc., e que o direito positivo não passa de um direito
corrupto, injusto, impuro, incapaz de resolver os problemas, etc.
Enganam-se. O Direito Natural não se opõe ao positivo. Ou, pelo
menos não se lhe opõe dessa maneira.
O Direito é uma realidade una. Nele, porém, devem
identificar-se duas componentes, indissociáveis: direito positivo e
6
Direito Natural.

O caput do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira determina a todos os


brasileiros e residentes no país o direito inviolável à vida. Trata-se de um exemplo de
direito natural positivado, visto que qualquer jusnaturalista o reconheceria como

3
Idem, p.315.
4
VERA-CRUZ, Eduardo. Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito. Lisboa: Principia, 2010, p.140.
5
BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 2000,
p. 192.
6
CUNHA, Paulo Ferreira da op. Cit. p. 305.
15
íntegro. A existência futura de um dispositivo que se posicionasse contra essa lei
natural, a imposição de tal norma positiva poderia ser refutada pelo seu caráter
contrapositivo em relação a uma norma natural.

Muitas palavras têm como característica a polissemia, que é a qualidade de


multiplicidade de sentidos, conforme o contexto do que é dito. A forma escrita da
palavra não é capaz de agregar todos esses significados e, por isso mesmo,
geralmente é mais restrita ao público em comparação à forma oral.

Daí, positivar parte do Direito Natural não significa aprisioná-lo na letra da lei,
mas, significa sim, reconhecer em parte o justo, e oferecer elementos para que o
intérprete possa, verificando um determinado direito positivado, carregar parte do
Direito Natural, dar voz à pluralidade desse Direito. Não se pode, portanto, reduzir o
Direito Natural ao texto legal. Nas palavras de Eduardo Vera-Cruz Pinto:

[...] sua redução (o direito natural) a normas escritas


(necessariamente com fórmulas escritas unívocas) implicaria a
imposição de absolutos morais por via judiciário-legal (com
consequente desresponsabilização dos destinatários de tais normas
impostas sem discutir, avaliar, interpretar) e a negação da pluralidade
interpretativa ou da possibilidade hermenêutica na sua aplicação,
estes princípios (O Direito Natural) são necessariamente não-escritos
(ágraphos nomos), permitindo na sua vinculação uma adaptação
valorativa (não-factual ou normativa) que possibilita distinguir o justo
7
do injusto na sua universalidade.

Mário Miranda Filho, historiando a origem das expressões, assevera que tanto
“Lei Natural” quanto “Direito Natural” proviriam da filosofia clássica grega,
identificando a primeira nos diálogos Timeu (83e) e Górgias (483e) de Platão. Já
quanto ao Direito Natural, ‘Physei Dikaion’, o autor menciona que a maior obra que
Platão dedicou ao estudo da questão da justiça foi “A República”. Também em
Aristóteles, na Ética à Nicômaco (v. 7, 1134b) se encontraria referência ao Direito
Natural, ‘Physei Dikaion’. Segundo ele, de Platão tais conceitos emigram para Roma
encontrando acolhida inicialmente no 3º livro da República de Cícero, e na obra
deste autor, por sua vez, Santo Agostinho encontraria o conceito de Lei Natural, tal
como o expressa na obra De Libero Arbítrio e Contra Fausto. 8

7
VERA-CRUZ, Eduardo. Op. Cit. p.140.
8
MIRANDA FILHO, Mário. A tradição filosófica dos direitos humanos e da tolerância. Revista
Interdisciplinar de Direitos Humanos – RIDH. Bauru, v. 1, p. 22, dez, 2013.
16
O Jusnaturalismo é diametralmente oposto ao Positivismo Jurídico, escola
cuja doutrina, de caráter monista, reconhece uma única modalidade de Direito,
classificada de Direito Positivo. Não há, portanto, possibilidade de conflito entre os
conceitos de Direito Natural e Direito Positivo.

Há, no mínimo, quatro definições fundamentais de Jusnaturalismo, que


apareceram ao longo da história da filosofia política. São as seguintes:

1. lei estritamente “natural”, que acompanha os seres animados desde o seu


nascimento, segundo o entendimento dos instintos;

2. lei criada por uma força divina, que a revelou à humanidade;

3. lei baseada na razão, e, por isso, intrínseca ao homem que se identifica


como racional;

4. lei que tem por principal objetivo a garantia de uma vida digna à pessoa
humana.

Tais variantes se convergem em um ponto comum: o Direito Natural não só


é anterior como é eticamente superior ao conjunto de leis impostas pelo Estado. O
primeiro, portanto, delimita um limite intransponível ao poder exercido pelo segundo.

As definições de Jusnaturalismo e Direito Natural são, portanto, de natureza


análoga, de algum modo semelhantes, e coincidem em diversos pontos ao longo da
História.

A seguir, serão feitas breves considerações sobre o Jusnaturalismo em


determinadas épocas da história da humanidade. Neste sentido, John Gilissen9 está
correto em afirmar, com relação às mudanças efetuadas pelos código franceses
depois da Revolução Francesa, que “os códigos atuais não rompem com o passado;
antes, constituem uma síntese das grandes correntes da história do direito da
Europa Ocidental durante vinte séculos”.

9
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2003, p. 16.
17
1.2. O JUSNATURALISMO NA HISTÓRIA

1.2.1. O Jusnaturalismo e a Antiguidade

As primeiras manifestações históricas do Jusnaturalismo aconteceram ainda


na Grécia Antiga. A doutrina aparece na obra de Platão e, de forma incidental,
também na de Aristóteles. Mas sua elaboração principal foi feita pelos estoicos. Para
esses filósofos, só uma lei universal racional e imanente seria capaz de governar a
natureza.

A ideia de uma justiça natural, ditada pelo cosmos, que não separa a natureza
da justiça e do direito, já era disseminada antes do século VI a.C, na Grécia.
Homero, ao debater a necessidade dos homens, Hesíodo, que discorreu sobre o
trabalho, Sólon, o filósofo da igualdade, Sófocles, que defendeu a lei natural,
Heródoto, adepto da eficácia da norma, e Eurípides, que se aprofundou no conceito
de legalidade, são exemplos de pensadores gregos que se esforçaram para exprimir
noções de justiça.

Sófocles, em sua obra Antígona, apresenta a noção de ‘justo por natureza”, e


a contrapõe à de ‘justo por lei’. Na peça, a personagem que dá nome à obra vê seu
irmão Polinice ameaçar a cidade de Tebas e, por isso, expressa o desejo de cremá-
lo. No entanto, Creonte, o tirano, havia criado uma lei que impossibilitava a
realização de tal desejo, pois tirava o direito de um funeral a quem desobedecesse
às regras da cidade. Tal imposição era considerada uma ofensa para o morto e um
castigo para sua família, pois, segundo as crenças da época, a ausência de um
funeral impedia uma transição adequada do mundo dos vivos para o mundo dos
mortos. Raivosa, e ciente de que às leis naturais não podem se sobrepor as leis do
Estado, Antígona desobedece a Creonte e realiza o funeral de Polinice. O tirano não
cede e, por fim, prende Antígona e a condena à morte. Neste trecho da obra, é
possível observar a reflexão da personagem a respeito das normas impostas por
Creonte:

Nem Zeus, nem a justiça, irmã dos Deuses, o promulgou.


Não creio que teu édito derrogue as leis não escritas e imutáveis dos
Deuses, pois não passa de simples mortal. Não é de hoje, nem de
ontem, que elas existem; são de todos os tempos e ninguém, em

18
verdade, dirá quando começaram. Deveria eu, assim, por temor de
10
tuas ordens, expor-me a merecer o castigo dos deuses?

Quase como um “primeiro ensaio de uma história natural da evolução


humana” - nas palavras de Werner Jaeger – Sófocles retrata a sociedade grega, e
por meio de uma ironia trágica descreve o embate entre dois “direitos”: “na
encenação Antígona é agrilhoada assim que o coro termina de entoar um “hino à
grandeza do Homem, criador de todas as artes, dominador das poderosas forças da
natureza por meio da força do espírito, e que chegou à concepção da força do
direito, fundamento da estrutura do Estado, como ao maior de todos os bens”11.

Foram também os sofistas que, pela primeira vez, expressaram as ideias do


Direito Natural. Para eles, o fato de o homem não ter capacidade de alcançar a
verdade é condição para que tampouco as instituições político-jurídicas da Grécia
Antiga o tenham. Daí a impossibilidade de o Estado praticar a justiça de forma plena.

Para Sócrates, no entanto, é de se contestar a característica vulnerável das


leis, defendida pelos sofistas. Isso porque essa teoria torna impossíveis as
definições de ética e do bem. O filósofo se posiciona de maneira contrária,
encarando a virtude como o vínculo final entre a sociedade e o indivíduo. A justiça
proviria justamente dessa virtude, independentemente da interpretação do homem.

Discípulo de Sócrates, Platão desenvolveu a Teoria das Ideias. Segundo a


tese, que tem sua base no idealismo platônico, o mundo das ideias emite a sombra
exata e permanente da verdade, que se reflete no mundo sensível. A harmonia dos
três fragmentos da alma – epitimia, thimós e logos – é expressa diretamente na
justiça ideal, que também aparece em virtudes como a sabedoria, a coragem e a
temperança, ditas particulares.

Tal dinâmica aparece em A República, em que Platão descreve uma


sociedade que só pode ser considerada justa quando todos os seus membros
honram seus papéis: os artesãos devem ter temperança; aos guardas, se exige
coragem; os sábios só o são com sabedoria. Nas palavras de Thomas Plange:

10
SÓFOCLES. Édipo Rei. Antígona. Trad. Jean Melville da versão inglesa de Sir Richard Jebbs. São
Paulo: Martin Claret, 2005, p. 186.
11
JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2013, p. 328.
19
“A República ensina sobre política mediante o exame da
natureza da justiça, que parece ser o objetivo da vida política, e
mostrando ao mesmo tempo que a plena realização da justiça é
impossível na política. Dessa forma, A República circunscreve e, no
mesmo passo, define as limitações de política. Assim, a discussão
central de A República não é o prelúdio essencial, mas apenas o
prelúdio, a um estudo sobre o que pode ser alcançado através da
1213
ação política nas melhores circunstâncias.”

A grande problemática que surge em A Republica é com relação a


coercibilidade das leis, pois estas não podem existir sem ter o elemento da
coercibilidade. Nas lições de Alvaro de Azevedo Gonzaga:

“Algo que salta aos olhos com a solução platônica pelo mito
de Er é a ausência de coercibilidade no sentido de retorquir
imediatamente o ato injusto praticado, ou seja, que necessariamente
exista uma organização para a punição do corpo daquele que é
injusto. Afinal, o mito de Er exige para a abstenção do ato injusto a
crença nas divindades e, ainda, a espera pela punição post-mortem.
14
Nenhuma delas serve de garantia para o ato justo em vida.”

A ideia de Platão de haver a necessidade de normas coercíveis para que as


leis do Estado se configurem como justiça aparece em outra obra, As leis. Isso não
significa que Platão tenha abandonado suas ideias iniciais, mas sim incrementado
ainda mais suas teses e trazido o elemento de coercibilidade a baila de forma mais
estruturada.

“Entendemos, por isto, que A República e As Leis não


abordam o mesmo objeto, mas temas diferentes da filosofia política.
A República busca pensar, especulativamente, no plano inteligível,
as relações de Justiça e a natureza da cidade, criando limites, mas
não leis para sua existência, já As Leis, em complemento,
respondem a isso, dando forma a melhor ordem possível no plano
15
sensível.”

12
Tradução de: “The Republic teaches about politics by examining the nature of justice, which
appears to be the goal of political life, and by showing that the full realization of justice is impossible in
politics. In this way the Republic circumscribes and defines the limitations of politics. Thus the central
discussion in the Republic is the essential prelude, but only the prelude, to a study of what can be
achieved through political action in the best circumstances”.
13
PANGLE, Thomas. “Interpretative essay”, in The Laws of Plato. Chicago: The University of Chicago
Press, 1988, p. 377. Apud GONZAGA, Alvaro de Azevedo. O Erro de Kelsen: O prisionero da caverna
platônica. Forense Universitária, 2020, p. 23 e 24.
14
GONZAGA, Alvaro de Azevedo. O Erro de Kelsen: O prisionero da caverna platônica. Forense
Universitária, Rio de Janeiro 2020, p. 23.
15
Idem, p. 23.
20
E segue dizendo:

Em As Leis, Platão oferece um regime baseado no direito


constitucional cuja função é tentar substituir, na medida do possível, o
melhor regime, aquele de A República. Como o próprio nome da
obra indica, propõe-se que, no lugar do filósofo, coloque-se um
16
ordenamento jurídico.

Para maiores aprofundamentos sobre esse rebaixamento teórico de A


República para As Leis vale compulsar Tese de doutoramento do mesmo autor
citado acima: “O Direito Natural de Platão na República e sua positivação nas Leis”

Com isso, concluímos, por todo o exposto nesse capítulo,


que essa busca da inteligência divina que se manifesta na natureza, e
que deve ser copiada por aqueles que detêm a razão como parte
mais forte da alma a fim de se organizar uma cidade justa,
certamente está ligada à ideia do direito Natural que pode ser
17
positivado por sábios.

Tal citação fará muito sentido para compreendermos o imanente e o


transcendente, trabalhado por José Pedro Galvão de Souza que veremos mais a
frente.

O conceito de justiça de forma subordinada à ordem da natureza também


aparece na obra de Aristóteles. Ao argumentar a impossibilidade de a matéria
(exceto por abstração) dissociar-se da forma, o filósofo entra em discordância com o
idealismo platônico de seu mestre, Platão. Para Aristóteles, a necessidade de vida
em sociedade e busca do bem comum, que é nata ao homem como animal político,
impede que a justiça se dissocie da estrutura da pólis. Por conta disso, seria
essencial a existência de uma lei, alinhada aos parâmetros fundamentais da justiça,
para nortear a vida em sociedade. Inserida no dia a dia pela força do hábito, por
meio da repetição de ações de determinada índole, a justiça é vista, no pensamento
aristotélico, como uma virtude 18.

Há duas subdivisões possíveis para a justiça política: a natural e a legal. A


primeira corresponde a uma forma de justiça direta e definitiva, não alterável por
força do homem. Já o justo natural é aquele ditado na legislação, com possibilidade

16
Idem, p. 23.
17
GONZAGA, Alvaro de Azevedo. O Direito Natural de Platão na República e sua positivação nas
Leis. Tese de Doutorado, PUC-SP, 2010, p. 163.
18
Vide Ética a Nicômacos (1097 a-b).
21
de alteração no espaço e tempo – ou seja, a lei positiva. A constante observação do
justo natural, com a preocupação permanente de inferir equidade à vida em
sociedade, permite que a lei positiva seja corrigida de tempos em tempos. Tal
conceito aparece no Livro II da Retórica de Aristóteles, Capítulo 1: “se a lei escrita
dispõe contra nós, devemos apelar para a lei universal e insistir em sua maior
equidade e justiça”.19

No Livro V de Ética a Nicômaco, Capítulo VII, vemos de forma clara a


diferença entre os conceitos de Direito Positivo e Direito Natural:

Da justiça civil uma parte é de origem natural, outra se


funda na lei. Natural é aquela justiça que mantém em toda parte o
mesmo efeito e não depende do fato de que pareça boa a alguém ou
não; fundada na lei é aquela, ao contrário, de que não importa se
suas origens são estas ou aquelas, mas sim como é, uma vez
20
sancionada.

Aristóteles difere o Direito Positivo do Direito Natural por meio de dois


principais critérios: i) o Direito Positivo é eficaz apenas para os membros da
comunidade que aquela legislação atinge, enquanto a eficácia do Direito Natural é
válida de maneira universal; ii) o Direito Positivo requer simples e unicamente o
cumprimento da lei, sem levar em conta a variedade de condutas possíveis,
enquanto o Direito Natural não impõe nenhuma forma de juízo de valor, já que sua
existência é anterior à conduta.

Com a fusão da cultura grega com a cultura macedônica, surge o período


Helenístico, no qual florescem algumas escolas filosóficas que atravessam todo esse
período até o Império Romano.21 Serão designados dois grandes sistemas
filosóficos predominantes: o Epicurismo e o Estoicismo,22 23 sendo possível verificar
elementos do Direito Natural apenas nesta última escola.

19
Apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
2006, p. 16.
20
Apud Idem, p. 16.
21
As escolas helenísticas são designadas pelo Helenismo, que, segundo os historiadores, vai desde
a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C., ao fim da República Romana em 31 a.C., com a
ascensão de Augusto como Imperador.
22
É característica do período Helenístico a língua grega como koinè, ou seja, como dialeto oficial em
todo território conquistado por Alexandre, bem como da cultura grega – é sabido que, por meio de
Alexandre, discípulo de Aristóteles, a Grécia deveria cumprir um papel civilizatório de todo mundo
conhecido. Alexandria torna-se uma importante capital cultural da Antiguidade, até mesmo quando
Roma ascende ao supremo poder político, econômico e jurídico.
22
Segundo o Epicurismo, o homem muitas vezes é capaz de construir sua
própria felicidade. Essa escola ensina que o homem, por ser inteligente, consegue
facilmente penetrar na realidade e compreendê-la, bastando-se, pois, a si próprio
para chegar à felicidade e à paz. Como apenas a autonomia e a independência do
mundo exterior condicionam a felicidade, tal estado de plenitude não é dependente
de riquezas, do poder, das divindades ou das conquistas.

Epicuro pretendia que os homens não fizessem os deuses à sua imagem e


semelhança e nem que fossem tomados como governantes e juízes dos homens.
Sabe-se que eles existem e que são seres felizes, logo, não têm motivos para criar,
governar, desejar que os homens prestem-lhes cultos e nem que se perturbem com
as ações humanas, inclusive para castigá-los. Isso quer dizer que o Epicurismo retira
o antropomorfismo da imagem dos deuses, libera os homens da superstição.24

Dissipando, assim, os terrores do ânimo, a filosofia de Epicuro é uma


terapêutica da alma, só tem valor se nos libera do sofrimento: o prazer é ausência de
dor, moderação dos afetos e disposição do ânimo para manter-se nos limites postos
pela natureza. 25

O conhecimento para Epicuro não pode reduzir-se ao sem palavra, ao sem


memória, à sensação. É necessária, portanto, a prolépsis, a prenoção, ou seja, uma
imagem mental formada pela repetição de sensações semelhantes, retidas na alma
sem a intervenção do raciocínio, antecipando o reconhecimento das coisas quando
são manifestadas pela sensação.

No campo das afecções (páthe), o prazer e a dor, diferem-se das demais


sensações, pois sua passividade é inseparável da atividade. Como diz Diógenes de

23
O Ceticismo por alguns também é considerada como um corrente.
24
Um dos seguidores e admiradores de Epicuro, Lucrécio eleva-o à divindade, como ele ensina no
livro V do De rerum Natura: “De fato, foi um Deus aquele que primeiro descobriu a regra de vida que
agora se chama sabedoria; aquele que pela arte de pensamento, libertando nossa vida de tão
grandes tempestades e de tão profundas trevas, soube assentá-la num lugar tão tranquilo e de luz
tão clara. [...] É caminhando nas suas pegadas que vou buscando e expondo por palavras as razões
das coisas”.
25
LAÉRCIO, Diógenes de. Vida de los Filosofos Ilustres. Coleção Clássicos de Grecia Y Roma. Livro
X. Madrid: Alianza Editorial, 2007. Ensina que Epicuro propõe como cânones da verdade a sensação,
a prénoção e afecção. A sensação, aísthesis, são critérios verdadeiros, com validade objetiva, para
julgar. Em suas Máximas Fundamentais, Epicuro ensina que a sem a sensação, não se pode julgar
nada, nem as sensações falsas – é o que guia a busca pelo agradável e a fuga pelo desagradável. A
sensação é sem palavra, é álogos, nada diz, apenas percebe ou sente, é pontual e instantânea,
passiva e receptiva.
23
Laércio,26 o prazer é conforme à natureza, a dor, é contrária a ela. Com o auxílio
dessas afecções, pode-se distinguir entre o que se deve buscar e o que se deve
evitar.

No que diz respeito à ética, o Epicurismo convida o homem a conhecer o


mundo por meio das sensações, e fazer uso de suas experiências para construir
conhecimento. Essas experiências se tornam a matéria-prima essencial para que o
homem passe a distinguir de forma natural o bom do mau, o prazeroso do doloroso,
o natural daquilo que não é natural.,

O Epicurismo é uma moral de conduta individual que força o sábio a se


desinteressar da vida política, pois não é na agitação da cidade e nem no isolamento
total que se atinge a vida livre e feliz, mas sim no convívio com o grupo de amigos
ocupados com manter a tranquilidade da alma, em conservar a serenidade, sem
perder tempo com investigações metafísicas. Não se envolvendo com honrarias,
distribuições de bens, enfim, com a vida pública, não há uma filosofia jurídica em um
sentido estrito do suum cuique tribuere, tampouco há um Direito Natural a ser
vislumbrado.27

Com isso, a justiça não deve ser buscada por ela mesma, mas de maneira a
não causar sofrimento. O direito será a técnica para obter o prazer, proibindo atos
prejudiciais e permitindo os úteis.

Disto posto, deduz-se que a busca prudente da felicidade, com o objetivo de


perceber e encontrar a ataraxia (o estado de ausência completa de perturbações na
mente, mesmo frente aos prazeres, às paixões e às dores), seja o grande foco do
Epicurismo. Assim, a justiça nada mais é do que uma ferramenta para o encontro
desse estado de serenidade e bem-estar pessoal.

Como diz Epicuro, não é possível viver feliz sem ser prudente, honesto e
justo, nem ser prudente, honesto e justo sem ser feliz. Assim, não existiria também
um Direito Natural caracterizado como justo ou não justo. Em vez disso, as leis, em
contradição com o Racionalismo estoico, não seriam mais do que consensos entre
os membros de uma sociedade.

26
Ibidem, p.96
27
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 522.
24
Após averiguar que o Direito Natural não reside nem no Ceticismo nem no
Epicurismo, é preciso estudar o Estoicismo para verificar os elementos
jusnaturalistas dessa escola.

A definição de “Natureza Inteligente” (“Logos” = “Fogo Inteligente”), que


origina tudo racionalmente, era o centro do pensamento estoico, fundado por Zenon
de Citio (350-250 a.C).

A escola do Pórtico foi fundada, segundo Jacques Brunschwig,28 cinco ou seis


anos depois da escola Epicurista, portanto, desde cedo no cenário helenístico, havia
um debate muito acirrado entre ambas, chegando ao ponto de serem consideradas
opostas sob muitos aspectos, como veremos a seguir.

À medida que os epicuristas foram vilipendiados, os estoicos foram exaltados.


É comum que o adjetivo estoico seja qualificativo de alguém firme em seus
princípios, resignada no sofrimento ou nas diversas provações da vida. O homem
firme em seus propósitos, indiferente ao prazer, à dor, à morte, às honrarias e às
glórias, tornou-se o arquétipo do sábio: o homem conduzido pela razão, harmônico
em relação aos acontecimentos naturais.

A doutrina estoica, apesar de muito pouco ter restado do chamado Estoicismo


antigo, retomava a definição de Filosofia proposta por Pitágoras, como amor à
sabedoria. A sabedoria é a ciência das coisas divinas e humanas, e a filosofia é a
arte que lhe é apropriada, o exercício da virtude, a busca da reta razão. A reta razão
é o conjunto das noções impressas na alma, conhecimentos seguros e infalíveis
(episteme) e a perfeição desse conjunto constitui a areté, a excelência.

A areté estoica divide-se em três partes: a física, a lógica e a ética, que


constituem as três partes da filosofia.

Comum a todos os estoicos, é que a ética é a alma do sistema, e a lógica é


parte ou lugar da filosofia, na verdade, a sua teoria do conhecimento, claro
contraponto a Aristóteles, que recusava a categoria de saber ou conhecimento, e
sim de instrumento. Há uma tentativa de restaurar o ideal pré-socrático de que o
sábio tudo sabe, mas como o conhecimento de diversas áreas já era extremamente
complexo, essa pretensão enciclopédica não se concretizou. Cabe dizer que

28
BRUNSCHWIG, Jacques. Estudos e Exercícios de Filosofia Grega. São Paulo: Loyola, 2009.
25
propunham a identidade de natureza e Deus, criando assim uma teologia natural.
Diógenes de Laércio, sobre os estoicos29, escreve:

Deus é um vivente imortal, racional, perfeito, inteligente,


feliz, ignorando todo mal, fazendo reinar sua providência sobre o
mundo e sobre tudo que aí se encontra. Não tem forma humana. É o
arquiteto e pai de todas as coisas. À parte da divindade que penetra
toda coisa dão comumente diferentes nomes, segundo seus
diferentes efeitos. Eles o chamam Dia porque é aquilo pelo que tudo
é feito.

Assim, o destino, a natureza e, portanto, Deus, coordenando e conectando à


natureza com perfeição, bem como todos os seres, leva o homem à ideia de
Providência, que se exprime na harmonia de todas as coisas.

Essa sabedoria transparece nos fatos naturais como, por exemplo, o instinto
de conservação natural dos homens, a busca do útil, a fuga do nocivo e o interesse
da comunidade acima do interesse individual. Na perspectiva da Providência, porém,
não há mal na natureza: este encontra-se no homem insensato, que se insurge
contra a lei divina natural e se recusa a viver em conformidade com esta natureza. O
mal é a sem-razão, a desmedida, a loucura humana.

Portanto, o Direito Natural é o mesmo que a lei da razão, na concepção do


Estoicismo. Por enxergarem a razão como uma força de caráter universal, os
estoicos utilizavam-na como mote para o Direito e a Justiça. Segundo essa filosofia,
há um Direito Natural comum, criado a partir da razão, que tem alcance universal e
um conjunto de princípios impostos a todos os homens.

Assim, a definição estoica jusnaturalista traz de volta à tona o sentido de


logos. Cada um dos homens leva consigo a razão universal, ou seja, um Direito
Natural de validade irrestrita que tem sua base na razão e está na direção contrária
à do Direito posto.

A contrario sensu, convém mencionar a existência de estudiosos que


acreditam que não há lugar para o Direito Natural no Estoicismo, como é o caso de
Michel Villey30 que acredita haver uma confusão entre as expressões díkaion katá
pshýsin, jus naturae, jus naturale, lex naturalis, que estão em Cícero e em

29
EPICURO. Carta a Menequeu. In MORAES, João Quartim. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo:
Editora Moderna, 1998, p. 147.
30
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 472
26
Aristóteles, fazendo crer que se tratam todas da mesma noção. O Estoicismo ignora
a noção de direito e de uma natureza que lhe pudesse servir de fonte – a natureza
seria apenas aquela força que ora contém o mundo, ora aquela que os faz crescer
na terra.31

Nas obras dos estoicos, ainda que se encontrem as palavras, o sentido é


diverso, é mais amplo e volta-se para a moral privada. Evidente pelas obras e, antes
disso, pela história, pois com as conquistas de Alexandre e a transformação
Imperial, desaparece praticamente a atuação pública que se notava nas pólis
gregas, substituídas por um comando inquestionável do Imperador, clara relação
hierárquica. Segundo o mesmo estudioso, Zenão, Cleanto e Crisipo chegam a negar
a atual política, e opõe ao império a Kosmopólis, onde o sábio vive para si ou para o
universo, mas mal dirige o olhar para as instituições estatais – o que implica relegar
o Direito, que é, por certo, função pública. Portanto, falando de justiça estoica, não
se fala de justiça jurídica.

Já no mundo romano, no Estoicismo médio (Posidônio, Panécio, Cícero), a


moral passiva é substituída por uma moral mais ativa e dinâmica, das condutas
preferíveis, dos deveres, inclusive os de Estado, enfim, dependendo do setor onde
se desenvolvessem as atividades do homem. Há grande mistura com o
aristotelismo, principalmente no eclético Cícero. Cícero define justiça como a virtude
que atribui a cada um aquilo de que ele é digno, tendo em conta as necessidades
comuns.32

Então, sob esta perspectiva, é possível vislumbrar o Direito, desde que se


afaste da perspectiva estoica e passe à aristotélica. Em suas obras de moral, Cícero
voltará fielmente ao Estoicismo.

Em Roma, Cícero fez uma releitura do Estoicismo, com a justificativa de que a


natureza e a razão são, na verdade, uma só coisa, permanente e fora do tempo. De
31
Apud LAÉRCIO, Diógenes de. Vida de los Filosofos Ilustres. Coleção Clássicos de Grécia Y Roma..
Livro X. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 63.
32
A esse respeito, cf. De Legibus, I,8, 24 e seguintes: “Quando, com efeito, discute-se sobre a
natureza em geral, costuma-se afirmar, com razão, que depois de passados longos séculos [...]
chegou por fim o momento propício para lançar a semente do gênero humano que, espalhada pela
terra, recebeu o presente divino da alma [...] A alma vem de Deus [...] que parentesco pode ser mais
próximo e mais bem estabelecido? Segue-se daí que a natureza nos fez justos para que todos
venham em auxílio uns dos outros e nos liguemos ao outro [...] Disso conclui-se que a natureza é
fonte do direito”. Apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª
tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 477.
27
acordo com sua obra De Officis, o indivíduo deve obedecer, sem violações, à sua
natureza racional, que se manifesta por meio de uma lei universal:

[...] há de fato uma verdadeira lei denominada reta razão,


que é conforme a natureza, aplica-se a todos os homens, é imutável e
eterna. Ela não prescreve uma norma em Roma, outra em Atenas,
nem uma regra hoje e outra diferente amanhã. Essa lei eterna e
33
imutável abrange todos os povos e todos os tempos.

Os jusfilósofos acreditam que o Direito não deve se fundar no arbítrio, pois


tem suas bases na natureza; os homens, assim, já nascem destinados à justiça. O
Direito nasce das tendências do homem, pois este traz em si a razão que o faz
reunir-se com seus semelhantes, e somente daí ele nascerá. Cícero inova ao
apesentar o conceito de naturalis ratio, que justifica uma conexão essencial entre a
razão e a natureza, prenunciando aquilo que seria conhecido como Direito Natural
racionalista, contrário à antiga fundamentação metafísica dos tempos pré-socráticos.
34
Michel Villey citando o seguinte texto de Cícero, da obra De Officis, I, 7, 20
e seguintes, compartilha das conclusões que seguem, dentre as quais, a mais
relevante a nosso ver de que o direito da sociedade humana, assim como a justiça
têm por ofício primeiro estreitar a associação dos homens entre si. Em melhores
palavras:

O primeiro ofício da justiça é não prejudicar ninguém se se


for provocado por uma injustiça, e o segundo, fazer uso dos bens
comuns como se deve usar desses bens, e dos bens provados como
próprios [...]; que cada um conserve a parte dos bens que lhe coube
[...]; se um outro quiser essa parte para ele, estará violando o direito
da sociedade humana”. “Mas, como segundo os estoicos, tudo o que
é produzido sobre a terra é produzido para uso dos homens, e como
os homens nasceram para os homens, a fim de poderem se ajudar
uns aos outros, devemos [...] com nossa fortuna e com nosso
trabalho, estreitar a associação dos homens entre si”. “Ora, o
fundamento da justiça é a boa fé, ou seja, a fidelidade exata à palavra
dada e aos compromissos assumidos...

Desta forma, a justiça volta-se para a moral privada, e o fim dela não é mais a
ordem harmoniosa da pólis. Disso, ele conclui que não é mais da natureza exterior
que procede o Direito, mas sim da natureza do homem, de sua razão, e, assim, o

33
CÍCERO. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 1978, p. 224.
34
CÍCERO, De Officiis, I, 7, 20 e seguintes, apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento
Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 489 e ss.
28
Direito, ou o justo, estará nas leis dispostas pelo espírito humano – no fim, em um
positivismo jurídico.

Justiniano previu o jus gentium e o jus civile; o primeiro está para o Direito
Nacional, assim como o segundo está para o Direito Positivo. O jus gentium é
ilimitado, e guiado pela naturalis ratio; já o jus civile está limitado a certa
comunidade, de acordo com suas instituições representativas. Universal e
permanente, o Direito Natural tem o poder de traçar um limite entre o bom e o mau
(bonum et aequum); por outro lado, o Direito Positivo, restrito a determinado tempo e
espaço, separa o útil economicamente daquilo que não tem utilidade.

É interessante notar que o Direito romano é assim complexo e refinado. A


filosofia estóica, apesar da confusão que propõe a obra de Cícero, não ocupa lugar
essencial nele, mas o Direito romano toma para si a verdadeira função da justiça, e,
por conseguinte o jurista reconhece e garante a cada um o que lhe corresponde:
suum cuique tribuere. Visa à equidade, a boa proporção e não confunde o justo com
o honesto, ou seja, não confunde o público com o privado.

Conforme Michel Villey, no século XVI, os humanistas que já não queriam


mais ouvir falar de estoicismo se juntaram aos romanistas modernos para definir um
falso Direito romano, que tinha uma base racional, incontestável e matemática. No
verdadeiro Direito romano não são tão enfatizadas as noções de contrato, de
propriedade. É tanto mais aristotélico, como observado nas Institutas de Gaio35 –
não se deduz suas regras de soluções dadas de antemão, ditadas por algum sábio
legislador, mas faz uso de um número mínimo de leis, usando, como ensina Max
Kaser,36 de um método tanto mais casuístico do que o Positivismo dedutivo. Busca
em cada sentença o que a natureza das coisas impõe e não o simplesmente
estabelecido – mais as vias da dialética aristotélica.

Claro, não há que se ignorar a influência estoica no Direito romano e no


Direito moderno: o triunfo dos direitos subjetivos, da propriedade, dos contratos, do
legalismo – quanto mais legal, mais empobrecido o Direito Natural.

35
GAIO, Digesto, I, 1, 9
36
KASER, Max. Método dos Jurisconsultos Romanos. In Romanitas, 1962, p. 107 e seguintes,
tradução não disponível em português, apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico
Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 502.
29
1.2.2. O Jusnaturalismo e a Idade Média

A Idade Média é o período compreendido entre a queda do Império Romano


do Ocidente (476) e a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453). É comum se
conferir uma conotação pejorativa à Idade Média, alguns a chamam de “Idade das
Trevas” ou de “Grande Noite dos dez Séculos”. Não raro, professores, mestres e
doutores no Brasil excluem o período de seus projetos de aula, abandonando
autores e obras, como se estes não pudessem em nada contribuir. Certo é que
muitas das raízes do pensamento moderno encontram-se na Idade Média – inclusive
muitas das categorias jurídicas hoje existentes se originaram naquele período
histórico.37 Imagina-se, diferentemente que, por ser este um período que durou
aproximadamente um milênio, do século V ao XIV, não se pode elaborar um juízo
totalmente negativo ou positivo a seu respeito.

É possível apontar importantes conquistas de caráter material que foram


alcançadas na Idade Média, tais como o livro-texto, as universidades, as capitulares
de Carlos Magno, a disposição separada das palavras em um texto (o que
possibilitava ler sem utilizar-se da voz), os documentos públicos, entre outras
grandes “novidades”, que só reforçam quão descabidos são os inúmeros
preconceitos que se revelam contra esse período fecundo da história do
pensamento jurídico, político e filosófico.

Não resta dúvida que na Idade Média verifica-se uma doutrina do Direito
Natural que se identificava com a lei revelada por Deus a Moisés, bem como com o
Evangelho. Foi obra, sobretudo, de Graciano (século XII) e de seus comentadores.

Michel Villey em comento sobre o Direito Natural na Idade Média, faz uma
distinção entre o período da Alta Idade Média, antes de São Tomás, e o período
posterior afirmando que:

37
GHISALBERTI, Alessandro. As Raízes Medievais do Pensamento Moderno. Trad. Sivar Hoeppner
Ferreira. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2011. 2a Edição. p.
14 e seguintes: Afirma que a Idade Média representa uma continuidade do pensamento moderno.
Considera que a transcendência, necessária para explicar a razão da história e da experiência; e a
imortalidade, como aspiração da natureza humana; são convicções da inteligibilidade do mundo e da
possibilidade do homem elaborar um conhecimento rigoroso, qual seja: a ciência. Tal tema é
fortemente retomado em Marsílio Ficino e Pico della Mirandola no Renascimento, acolhendo a vida
humana, sem temer a morte, com a dignidade que lhe é devida como princípio da eternidade –
paradoxal realização da imortalidade dos mortais.
30
Na Alta Idade Média, a tendência do mundo clerical, único
detentor da cultura, foi de reconhecer como fonte do direito a Torá
bíblica e os Evangelhos: donde a interdição da usura e das guerras
particulares - a força dos juramentos, no direito feudal, e do contrato
consensual, a época da primeira expansão do comércio -, a sagração
dos reis, etc. O imperador e os reis, investidos por Deus do seu
poder, teriam o encargo de executar o direito bíblico,
complementando-o.

E em seguida:

Esta tentativa seria abortada. Ninguém melhor que São


Tomás (1ª Ilae qu. 98 e ss.) denunciou-lhe as fraquezas em suas
questões sobre as ‘leis divinas’. É verdade que toda ordem - inclusive
a ordem jurídica - procede do pensamento divino, da harmonia
introduzida por Deus na sua criação - do Plano pelo qual seriam
ordenadas nossas condutas através da história. Deus onipotente,
infinitamente sábio. O que de melhor poderia ser proposto ao homem
38
senão seguir a lei de Deus?

Seja na Alta ou na Baixa Idade Média, o Jusnaturalismo teológico consolida-


se nessa época da história sob a influência do Cristianismo, que concebe a justiça
humana como transitória e sujeita ao poder temporal, não residindo nela, portanto, a
verdade, mas na lei de Deus, eterna e imutável, de onde provém a harmonia do
universo. Os deveres (dos indivíduos em relação a si mesmos, com terceiros e com
Deus) traduzem a ideia de fazer o bem conforme a lei divina. As leis positivas, por
sua vez, deveriam consistir em desdobramentos dessa verdade máxima, ou seja, da
vontade de Deus.

Disso se ocupou a Patrística. Com tal nome se designa o pensamento


filosófico dos Padres (Pais), fundadores da filosofia e da teologia da Igreja Católica
ou Santos Padres entre os séculos II e VI, com destaque para Santo Agostinho.

Inicialmente, Santo Agostinho trata de dois conceitos de Estado: o conceito


helênico pagão, que corresponde à civitas terrena, e o conceito cristão que
corresponde à civitas caelestis, que é o ideal a ser alcançado, mais próximo a Deus.
A respeito da doutrina geral da lei, difere a lex aeterna, cuja autoria é atribuída a
Deus, da lex naturalis, formulada pelos homens como manifestação da primeira.
Santo Agostinho concorda com Cícero quanto ao conceito de justiça.

38
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 3ª ed. 2019, p. 300.
31
Por sua vez, a Escolástica (método de ensino filosófico que dava grande valor
ao debate entre os alunos sob orientação do professor) situa-se no período da
estabilização da sociedade medieval, nos séculos XII e XIII.

Santo Agostinho39 representa bem o pensamento da Alta Idade Média40


supramencionado, acreditando que a lei eterna é reflexo da vontade de Deus,
conferindo à lei um sentido voluntarista. Segundo Michel Villey:

[...] o caráter das colocações de Santo Agostinho: partindo


da idéia de que a ‘Cidade dos Homens’ está sob a lei do pecado, nela
não se pode pretender a justiça plena, própria da ‘Cidade de Deus’. A
obediência às leis feitas pelo homem não resulta de seu acerto ou
justiça essencial, que sé se encontram na lei feita por Deus, tal como
aparece na natureza, na Lei Mosaica e no Evangelho, a obediência
às leis positivas e humanas resulta da necessidade da boa ordem e
segurança social. E, para Agostinho, não se deve buscar uma
legitimidade absoluta para o poder humano, pois, submetido ao
tempo, ao curso da história, o homem aceita como providencialmente
querido ou permitido por Deus este ou aquele sistema de governo
41
sem discutir.

No presente estudo, a obra que mais desperta interesse para compreensão


do pensamento agostiniano é a Cidade de Deus, que corresponde à tomada de
Roma pelos visigóticos de Alarico em 410.42

O tema recorrente da obra é a comparação entre duas cidades: a que se tem


em frente, a Cidade Terrena, dos Homens – imagem do império Romano; e a
“verdadeira pátria”, a Cidade de Deus, “gloriosa dicta sunt de te, civitas Dei”. A
justiça e os laços que constituem a Cidade dos Homens são frágeis e passageiros, e
não merecem o apego do coração. A Cidade de Deus, por sua vez, tem sua Justiça

39
Aurélio Agostinho viveu na região da atual Argélia, de 354 a 430 e é o mais importante dos Padres
da Igreja, representando o apogeu da Patrística – sua produção é imensa, e não sem certa
arbitrariedade que caracteriza as escolhas pontuadas em tão longo período, voltamo-nos a
possibilidade de uma doutrina do Direito, pois há referencias indiretas e não específicas de uma
doutrina jurídica.
40
Alguns consideram Santo Agostinho como o primeiro pensador medieval, já que sua obra, de
grande originalidade, influencia fortemente os rumos que tomaria o pensamento medieval em seus
primeiros séculos, outros o consideram como um pensador antigo, pela sua própria posição histórica.
Entendemos que Santo Agostinho pode ser visto como um pensador de transição, porque está
temporalmente na Idade Antiga e filosoficamente na Idade Média. Estudou muito e foi professor de
retórica e filosofia.
41
VILLEY, Michel. La Formation de La Pensée Juridique Moderne. Paris: Montchrestien 1975, p. 83-5
apud DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 8 ed.. São
Paulo: Saraiva, 2017, p.130.
42
Santo Agostinho escreveu tal obra para refutar definitivamente a acusação movida pelos políticos
de então, de que a causa principal da decadência do Império Romano do Ocidente teria sido sua
adesão ao Cristianismo, quando Teodósio a tornou religião oficial do Estado.
32
própria, sua leis próprias, e esta cidade está destinada a ser eternamente vitoriosa
sobre a primeira – por esta razão merece todo o apego do coração dos homens.

Com isso surge a pergunta: Santo Agostinho condena o Estado e as


Instituições Políticas, e como explicar isso se o pensador em comento ensina que as
leis profanas não podem ter pretensão de justiça, mas devem ser obedecidas?

A resposta está na justiça.

Para Santo Agostinho a justiça é Deus e nada menos que Deus,43 para ele
toda justiça e todo direito residem na lei eterna de Deus. Verifica-se aqui que não há
lugar para a justiça interior. Considera que a justiça da Cidade dos Homens, que não
concede primeiro a Deus o respeito que lhe é devido, não pode ser senão injusta e
enquanto não se modele à fé cristã, assim continuará.44

Para o bispo de Hipona, a autoridade das leis da Cidade dos Homens estará
na obediência devida a César, máxima cristã de conhecimento comum: o cristão
deve obedecer às leis dos homens para sua própria salvação na ordem temporal.
Para ele, as leis da Cidade dos Homens servem à paz da cidade, protegem o povo
e, como não se esquece de lembrar, Deus está presente em todos os
acontecimentos, mesmo os mais misteriosos.

Para Santo Agostinho existem três tipos de Leis: a lei eterna, a lei natural e a
lei humana. Entende que a lei eterna é a lei em que reside a razão divina, e esta lei
deve refletir na lei natural, que por conseguinte é a lei esculpida em nossos corações
com nossa participação, como criaturas racionais na ordem do Universo. Por fim, a
lei humana deve basear-se no direito natural que é a manifestação da lei eterna.

Cláudio De Cicco explica que dentro da Escolástica travou-se um grande


debate entre os adeptos de Santo Agostinho, os franciscanos, e os adeptos de
Aristóteles, os dominicanos; todos aceitavam o mesmo esquema:

Lex aeterna – Lex naturalis – Lex humana vel positiva.


Mas Duns Escoto via na Lex aeterna um reflexo da vontade
de Deus que confere à lei um sentido voluntarista. São Tomás via na
Lex aeterna um reflexo da inteligência de Deus, o que dá à lei um

43
AGOSTINHO, Aureliano. Contra Faustum, XXII, 27. São Paulo: Paulus, 1997.
44
Cidade de Deus, XIX, 21: “Onde não há justiça, não há direito. Não se deve chamar retos os
estabelecimentos injustos do homem”.
33
sentido mais intelectualista. Mas nada está no intelecto sem passar
45
pelos sentidos. Daí o realismo Tomista.

Deste modo, a fonte última de toda lei humana seria a própria lei divina que
se manifesta na lei natural. Entretanto, as possíveis imperfeições da lei humana
derivam não da lei eterna ou divina, mas sim das próprias imperfeições do homem.
Isso porque o homem é revestido de falibilidades que decorre da pobreza do
espírito humano.

Surge um questionamento, portanto: Em um conflito entre a lei eterna e a lei


humana, qual deve prevalecer? Seguramente, a lei eterna pois esta inspira e gera
não o contrário.

Pelo exposto, fica claro que Santo Agostinho é um adepto do Direito Natural.46
Bases metafísicas não faltam: Deus impõe ordem sobre a natureza e a justiça é
obedecer a essa ordem e Deus, por conseguinte; estigmatiza “pecados contra a
natureza” .47

Como expoente máximo entre os escolásticos,48 São Tomás de Aquino viveu


entre 1221 e 1274 e frequentou a Universidade de Nápoles de 1239 a 1244,onde
estudou artes. Em 1244, ingressou na ordem dos dominicanos e tornou-se aluno
preferido de Santo Alberto Magno, que foi a primeira grande expressão do impacto
de Aristóteles sobre a cultura ocidental latina, e que expôs grandes diferenças entre
conhecimento teológico e filosófico em seu Tratado sobre a Natureza do Bem.

Na visão de Michel Villey a contribuição de São Tomás consiste


principalmente em restaurar a fonte e a filosofia do direito romano e não apenas
restituir os textos do Corpus Iuris Civilis, para Villey, Tomás de Aquino vai mais longe
pois, além de restaurar o Direito Natural de Aristóteles, reconstitui e apresenta-o de

45
DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 8 ed.. São Paulo:
Saraiva, 2017, p.122.
46
AGOSTINHO, Aureliano. Contra Faustum, XXII, 27. São Paulo: Paulus, 1997, p. 97-100.
47
De nuptiis, II, 20 a 35.
48
A Escolástica traz a doutrina das causas segundas: Deus, causa de tudo, abstém-se de agir
diretamente sobre tudo, atribuindo funcionamento automático às coisas, atribuindo suas leis naturais,
sua natureza. O movimento dos seres impele-os a determinado fim, à plenitude do Ser, sempre da
potência ao ato – dinâmico. Esse movimento obedece às leis naturais, à natureza, instintivamente.
Por obedecer a essas leis com liberdade, o homem distingue-se dos animais e pode, portanto,
afastar-se da ordem natural.
34
acordo com a tradição cristã, superando assim a Antiguidade greco-latina.49
Assevera ainda que a obra de São Tomás seria pouco original; contudo não era a
originalidade exatamente o mérito de São Tomás, além do que, nem era este o seu
intento.

A Teoria sobre o Direito de Tomás50 concebe o homem como natureza


racional, que conhece o fim das coisas, mas que não conhece o fim último, que é
Deus, pois caso contrário, seria por ele atraído – conhecendo fins parciais, o homem
é livre para querê-los ou não. Sendo naturalmente dotado de livre arbítrio, o homem
dirige-se livremente a um fim, com um hábito natural de compreender os princípios
que inspiram e guiam as boas ações – chamado sindérese. O homem peca quando,
deliberadamente, se afasta dos fins e infringe as leis universais e a lei de Deus, que
lhe é revelada.

O Método do conhecimento de São Tomás é como o de Aristóteles, qual seja,


experimental – pois não é o homem apenas espírito, é matéria; devem ser
observados os fatos para obter o conhecimento do Direito Natural, pois é partir da
observação da natureza do homem, de seus fins, dos grupos sociais, que se obterá
um Direito Natural.

Nessa esteira, São Tomás de Aquino cria uma doutrina que, assim como o
Jusnaturalismo à época, é teocêntrica, pois invoca a Deus para justificar o elemento
racional. Afirma que a lei natural é aquela fração da ordem imposta pela mente de
Deus, governador do Universo, que se acha presente na razão do Homem. Como
explica Cláudio De Cicco:

A escolástica da idade áurea, iniciada com Santo Alberto


Magno, atingiu seu apogeu com São Tomás de Aquino. Baseando-se
em Aristóteles e nos jurisconsultos romanos, era fiel ao direito natural
no seu sentido mais genuíno ou clássico. Não se deixou influenciar
pelas doutrinas de negação da capacidade humana de chegar
naturalmente ao bem na ordem temporal. Era adepto de um realismo
moderado, tentando conciliar a fé revelada com o uso adequado da
razão, e insistiu sobre a capacidade real do ser humano de chegar
51
naturalmente a muitas verdades da ordem natural.

49
É com base em Platão, Aristóteles, no Estoicismo e em textos do Gênese que se justifica a ideia
de ordem no mundo, liga-se a hipótese do Direito Natural à hipótese teísta de que o mundo é obra de
um criador, obra inteligente, ordenada – em contrapartida a negação do Direito Natural é o ateísmo.
50
REALE, Giovanni. História da Filosofia. v. 2. São Paulo: Paulus, 2003, p. , 227.
51
DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 8 ed.. São Paulo:
Saraiva, 2017, p.122.
35
São Tomás, assim como Santo Agostinho, distingue quatro tipos de Leis. A
Lex Aeterna, a Lex Naturalis e a Lex Humana, que seriam fundadas na Lex Divina.52
Por sua vez esclarece que a Divina Providência governa racionalmente o mundo, e
por isso, o próprio plano de Deus, como príncipe do Universo, tem a natureza de Lei,
razão pela qual esta deve ser eterna, isto é, pelo simples motivo de que a mente
divina nada concebe no tempo, pois é eterna - logo a lei que concebe é também
eterna. Em um sentido amplo, qualquer lei humana não é mais que o ditame da
razão prática existente no príncipe que governa a sociedade.

Assim, por que haveria de existir uma lei natural e por qual motivo o ser
humano deveria submeter-se a ela?53

São Tomás responde que, sendo a lei uma regra ou medida, ela pode
encontrar-se em um sujeito de dois modos: como princípio regulador e medidor ou
como coisa regulada e medida. Se tudo é submetido à lei eterna, todas elas
participam da lei eterna, recebendo desta uma inclinação a seus próprios atos e fins.
Como a criatura racional está mais submetida que todas as outras à providência
divina, provendo a si mesma e às outras, participa também da razão eterna, e essa
participação da lei eterna na criatura racional se denomina lei natural – por ela, como
insígnia da razão divina na alma, o homem pode distinguir o bem do mal. Todos os
atos da razão e da vontade derivarão da lei natural. As criaturas irracionais, não
participam da lei eterna segundo a razão, então, com relação a elas, pela própria
natureza da Lei, não se pode falar em Lei.

As leis humanas, derivadas da lei natural, são particularizações dispostas


pela razão prática e especulativa, que é capaz de conhecer e tirar conclusões sobre
as coisas. Essas leis são imperfeitas, pois apenas participam de modo indireto da
perfeição eterna, consequência da impossibilidade da razão humana participar
plenamente da razão divina. Para ele a razão prática tem por objeto ações a serem
realizadas, que são singulares e contingentes, portanto não são infalíveis como as
conclusões de ciências especulativas. São possíveis de coagir, pois tem a função de

52
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, V. XII, Ia.e. , IIa.e., São Paulo: Loyola, 2004, quaestios 90 e
seguintes.
53
Equivocadamente algumas pessoas invocam o Livre Arbítrio como uma disposição natural e
absolutamente livre a fim de fundamentar qualquer volição humana, mesmo que não amparada pela
racionalidade nas escolhas. Cabe a necessidade de compreender que o Livre arbítrio consiste em
governar-se à luz divina, e, portanto, de maneira racional, o que sempre irá operar escolhas balizadas
na lei eterna e divina.
36
tornar possível a convivência entre os homens, que são animais naturalmente
sociais e políticos.

Por fim, Tomás de Aquino explica a necessidade de outra lei que sirva de
fundamento às demais, que é a lei divina. O homem, com efeito, é ordenado para
fins que superam a capacidade humana: o fim da bem-aventurança eterna, muito
superior às leis precedentes. Além disso, dada a volatilidade dos julgamentos
humanos, especialmente no que toca a singularidades e contingências, é necessária
a lei divina para que o homem saiba exatamente o que fazer por intermédio de uma
lei sem erros: o homem se limita a legislar sobre o que tem capacidade de julgar,
que são atos externos e visíveis, e a lei humana não pode reprimir ou comandar atos
interiores. Por fim, em virtude do bem comum, as leis humanas não podem reprimir
todas as más ações, logo a lei divina vem para proibir todos os pecados.

Ainda na Suma Teológica, Tomás de Aquino afirma que a Justiça pode ser
vista como uma virtude geral, por repercutir em todos os atos o alcance do bem
comum. A justiça deve orientar inclusive a lei que pauta todos os atos. A lei humana
deriva da lei natural por intermédio do legislador, que a transforma em direito posto e
reclama sua efetivação. Considera que o processo de derivação da lei humana pode
ocorrer: i) per conclusionem, quando a lei positiva deriva da natural por um processo
lógico necessário, semelhante a um silogismo; ii) per determinationem, quando o
Direito Natural comporta uma lei muito genérica e que necessita de uma orientação
concreta sobre como deve ser aplicada.54

Afora as Leis, é importante notar de São Tomás o tratado da justiça, na


Secunda Secundae, em que a Suma trata das virtudes e dos vícios, em particular a
questão 57, 58 e seguintes (De Jure, De Justitia, De Injustitia). Segundo Villey,55 é
preciso ler a Suma inteira. Isto porque ela é de uma riqueza abundante para o
Direito, é um erro imperdoável ignorá-la – significa ignorar o tema do Direito Natural.

Ainda sobre o Direito Natural, segundo Villey, tais regras não são
permanentes para São Tomás.56 Para ele a chave do Direito Natural está na

54
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006,
p. 20.
55
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem.. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 138.
56
Idem, p. 149: “Mas então, se a nossa busca do justo conforme a natureza não pode jamais resultar
em fórmulas fixas e precisas, para que serve o direito natural? De que serve essa ciência incerta?
Somente para isso, que já é muito: para nos dotar de diretrizes de caráter muito geral, flexíveis,
37
definição de natureza que os antigos tinham. Segundo Villey57 a natureza, para São
Tomás de Aquino e para Aristóteles também, além da causa material e das relações
de causalidade, tem uma forma comum por trás dela, qual seja, o Homem. Ao lado
das substâncias primeiras, os indivíduos, existem as substâncias segundas, os
Universais, também compreendidos pela Natureza. Esses Universais, o gênero e a
espécie de onde o indivíduo provém, são as causas formais.

Uma questão que pode surgir é se isso quer dizer que o Direito Natural exclui
necessariamente ou ameaça o Direito Positivo?

Acredita-se que não, pois para São Tomás o Direito Natural é pressuposto
ontológico do Direito Positivo: nada impede que do Direito Natural ecloda o Direito
Positivo, contudo, devido às lacunas deste, de sua dinâmica, o Estado-Juiz precisa
de regras precisas para julgar, para criar uma ordem concreta do direito e a
Natureza constitui fonte do julgamento justo. Se o homem é naturalmente um animal
social e político, naturalmente há Estado, cidades, comunidades políticas –
naturalmente há soberanias, chefes de Estado e de governo. Vivendo em
agrupamentos sociais, é certo que o homem deve obedecer às leis positivas como
corolário do Direito Natural: deve ser justa, logo há um direito de resistência possível
já que o injusto, ou as leis estabelecidas por um louco, carecem da autoridade que
participa do Direito Natural.

Concluindo, o Tomismo funda a validade do Direito Natural na ordem da


natureza mesma, sem precisar do Estado, nem ligar-se a qualquer instituição social
do gênero para estabelecer autoridade. O direito, para o pensador em comento, é o
suum cuique tribuere, o que é justo, logo, a obediência às leis humanas é devida
somente na medida em que estas representarem o Justo.

Essa posição Tomista é contraditada por duas correntes que se destacam, o


Averroísmo de Suger de Brabante, que pode levar a um esboço do positivismo
jurídico com a separação de razão e fé, e o Nominalismo de Guilherme de Ockham,
que leva a um relativismo. Surgidos entre os séculos XIII e XIV dispõe o seguinte:

O Averroismo deriva do filósofo árabe Averrois, acreditava


na existência de duas verdades inconciliáveis, a verdade de fé e a
verdade de razão. Todo o trabalho de São Tomás era criticado,

imprecisas e provisórias. Pode acontecer que na falta de algo melhor o juiz tenha que se contentar
com essas diretrizes incertas, ou seja, no silencia das leis positivas escritas”.
57
Idem, p 184 e seguintes.
38
considerado tarefa impossível. Eis a origem remota da separação
entre fé e razão que ganha força no mundo moderno, até chegar à
dualidade kantiana entre Gnoseologia e Ética, mundo do ser e do
dever ser, substrato do Positivismo Jurídico de Hans Kelsen no
século Passado.
Já o nominalismo nega a possibilidade de se conhecer a
essência do ser e só admitia o conhecimento arbitrário de nomes das
coisas ou nomen, por isso Nominalismo. Está na origem do
relativismo gnoseológico da filosofia liberal contemporânea e no
desprezo pelo conteúdo da proposição jurídica, prestando mais
58
atenção aos signos linguísticos.

O averroísmo, ou o aristotelismo árabe afirma que existe um único intelecto


agente, imutável para toda a humanidade. A alma dos homens é imortal, mas não é
individual: é a mesma para todos os homens. A alma mortal individual é dogma
cristão, logo, os teólogos do cristianismo não hesitam em diferenciar um Aristóteles
verdadeiro, o cristão, do “falso” dos árabes. Essas diferenças expressam-se
principalmente no De anima e na Metafísica.

Por essas considerações, é impossível dizer que a Idade Média é a Idade das
Trevas. Tratou-se de um período de síntese e conciliação dos postulados religiosos
com os postulados filosóficos gregos, que iniciaram diversas correntes de
pensamento no Medievo. Como afirma Miguel Reale, a Idade Média foi a Idade
Inicial em que brotaram variadas formas de organização e de pensamentos,59 e se
existem trevas nesse período, elas existem somente na ignorância dos próprios
preconceitos.

1.2.3 O Jusnaturalismo e a Modernidade – Em especial Hugo Grócio

Nós não somos uma consciência cognitiva pura; nós somos


uma consciência encarnada num corpo. O nosso corpo não é um
objeto tal como descrito pela ciência, mas um corpo humano, isto é,
habitado e animado por uma consciência. Nós não somos
pensamento puro porque nós somos um corpo, mas nós não somos
60
uma coisa porque nós somos uma consciência .

58
DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 8 ed.. São Paulo:
Saraiva, 2017, p.122-123.
59
GONZAGA, Alvaro de Azevedo; ROQUE, Nathaly Campitelli, Formação Humanística para
Concursos. 2020, 5ª ed., p. 220. apud REALE, Miguel. Formação da Política Burguesa. Brasília: UNB,
1983. Reedição da obra de 1934. I Parte.
60
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.
XX.
39
Propondo a verificação em alguns aspectos da Modernidade, poderíamos
citar diversos nomes marcantes para a questão do Jusnaturalismo na Modernidade.
Como o fito deste tópico é delinear a racionalidade e sua relação, ou não, com o
jusnaturalismo na Idade Moderna optaremos por citar, dentro do referencial teórico
que optamos logo no inicio desse texto, alguns pensadores de destaque dessa
época que contribuirão para o esforço histórico aqui proposto.

A Reforma Protestante de Calvino pode ser vista como o berço do


Jusnaturalismo Moderno. Conforme aponta Michel Villey, “a nova lei divina torna os
homens livres: é o princípio dos direitos naturais do indivíduo, direitos subjetivos ou
direitos do homem”.61

Contextualizando o Direito Natural nessa nova fase, Michel Villey aponta que:

[...] os principais autores da Escola, os protestantes,


‘secularizaram’ os princípios do ‘direito natural’. Bastará cortar a lei
natural de suas raízes teológicas, colocar o legislador divino mais ou
menos entre parênteses. Os princípios do direito natural serão
procurados, sem que ninguém se dê o trabalho de aprofundar as
buscas, naquele fundo da ‘Natureza humana’ em que serão
depositados os princípios inatos. Aqui começa-se a substituir a
62
religião de Deus pela religião do Homem.

A influência do Calvinismo estende-se por áreas consideráveis, começando


em Genebra, passando pelo Vale do Reno, norte da Alemanha, Holanda, Escócia,
Inglaterra e para as primeiras colônias da América do Norte, em muitos casos
concorrendo com o Luteranismo.

Diz Calvino na Instituição da Religião Cristã:

Quanto aos doutores da Igreja cristã, não houve nenhum


que não tivesse reconhecido que a razão ficou muito abalada no
homem pelo pecado, e a vontade ficou sujeita a muitas
concupiscências, embora a maioria tivesse seguido os Filósofos mais
do que era mister. Parece-me ter havido duas razões que levaram os
antigos padres a assim fazer. Primeiro, temiam que, privando o
homem de toda liberdade de bem fazer, os Filósofos zombariam de
sua doutrina. Em segundo lugar, que a carne, sempre pronta para a
indolência, aproveitasse a ocasião para desprezar as boas obras; por
isso, a fim de não ensinar nada que contrariasse a opinião comum

61
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 3ª ed. 2019, p. 302.
62
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 3ª ed. 2019, p. 307.
40
dos homens, quiseram conciliar a doutrina da escritura com a dos
63
Filósofos.

Ora, do fragmento exposto, depreende-se que a doutrina Calvinista é


eminentemente moral e que insurge-se contra a tradição escolástica Tomista,
purificando-se de aportes mortais, mundanos, mas se instalando no tempo e na
sociedade. Reprova as instituições clericais como todo bom reformador, reprova o
asceticismo e libera seus seguidores de diversas obrigações católicas. Prescreve o
trabalho a todos – como proscreve a Bíblia nos Provérbios, que louvam o “dono ou
dona de casa, a mulher forte, que são laboriosos e não medem esforços, que são
capazes de poupar”. Aqui já é possível reconhecer parcela dos ensinamentos que
serão considerados por Max Weber, bem como em doutrinas de Direito Civil:
moralidade nos negócios, boa-fé, repressão moral e jurídica às ofensas à
propriedade.

Preocupado mais com a moral, o que há de consequências jurídicas, como já


apontadas é mesmo por derivação principiológica. A justiça distributiva voltou a ser
bem vista, por exemplo, mas submetida à autoridade do soberano. É importante
lembrar aqui a posição de Villey, para quem essa técnica representa o Positivismo
jurídico que decorre do Protestantismo, pois tem por única fonte as disposições do
príncipe, seus juízes e delegados, proscrevendo uma obediência irrestrita (fundado
na Epístola aos Romanos, como foi a Reforma). Cite-se:

As coisas celestes chamo-as regra e a razão da verdadeira


justiça e dos mistérios do Reino celeste. Sob a primeira espécie estão
contidas: a doutrina política, a maneira de bem governar sua casa, as
artes mecânicas, a Filosofia, e todas as disciplinas denominadas
64
liberais.

Calvino chega a conceber, portanto, uma lei racional, ao menos no sentido de


defesa, mas como a razão humana é afetada pelo pecado original, há relativa
descrença dessa possibilidade.

Agora, com base em Michel Villey,65 referência no tema da formação do


pensamento jurídico moderno, deve-se apontar que o fato é fonte do Direito na

63
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à História da Filosofia. v. 2. São Paulo: da Religião Cristã.
São Paulo: UNESP, 2008, p 98.
64
CALVINO, Jean. A Instituição da Religião Cristã. São Paulo: UNESP, 2008, p 115-116.
65
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 359-60.
41
doutrina Calvinista, devendo ser conservado pelo legislador. Com o fim de conservar
os bens é lícito socorrer-se da força pública: a justiça exige que cada um guarde,
conserve o que é seu e que os magistrados mantenham essa exigência. Os fatos
devem ser mantidos tais e quais porque a Providência assim dispôs. Michel Villey,
citando um Sermão de Calvino em que este se dirige aos pobres menciona: “És um
sacrílego quando vais pilhar o bem alheio, quando vais arrancar da mão de Deus o
que ele reserva a um outro”.66

O Direito moderno toma essa via liberal – o direito de propriedade funda-se


nas posses pré-existentes e estas são justas pois são ordenadas pela Divina
Providência e a Instituição do Estado deve assim mantê-las [in]justas. Estendendo a
análise, encontra-se aqui a justificativa das colonizações, das convenções e a
origem de uma aceitação do fato – o direito de resistência dos cidadãos à injustiça
fica gravemente comprometido, para não dizer anulado.

Antes de Grócio, há que se mencionar Hobbes, para quem as vontades livres


dos indivíduos encontram fundamento no Contrato Social, em que o soberano,
equiparando-se a Deus, dita as leis que devem ser respeitadas.

Thomas Hobbes, filho de um pastor, nascido em 1588, é arrebatado pelo


fracasso da Filosofia clássica em seu tempo. O fato de a Filosofia antiga dogmática
ter sempre sido acompanhada da Filosofia cética não garantia que a busca pela
sabedoria realizasse o seu intento se tornar sabedoria. Para resolver essa aparente
aporia,67 Hobbes propõe uma base de questionamentos céticos sobre todas as
áreas, e a que resistisse às suas refutações, seria o modelo ideal para a construção
de um edifício dogmático de saberes. A matemática foi a única ciência bem sucedida
– o que o liga a Platão.68

Hobbes assim junge saberes tradicionais com o Epicurismo e o Calvinismo.


Preocupado pelo Estado, pela ideia de Justiça, mas também como o homem, na
sociedade civil, pode dela servir-se para atingir seus fins apolíticos, associais e
prazerosos, fundando, assim, um hedonismo político,69 materialista e ateísta. A

66
CALVINO, Jean. Sermon 136 sur Deutér. 23, apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento
Jurídico Moderno. Martins Fontes, 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 360.
67
Cf. STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 148.
68
STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 147 e HOBBES, Thomas.
Leviatã, capítulo XVLI (438), São Paulo: Edipro, 2012, onde Hobbes diz que a matemática é a mãe de
toda a ciência da natureza.
69
Idem, p. 147.
42
filosofia tradicional, para Hobbes, comete um grande erro ao supor que o homem é
naturalmente social e político.

Operando essa síntese, Hobbes dirá, com base na Matemática:

[Para] evitar os sofismas dos céticos a essa tão célebre


evidência da geometria, julguei que seria necessário nas minhas
definições exprimir esses movimentos que desenham e descrevem as
70
linhas, as superfícies, os sólidos, e as figuras.

Só se pode compreender aquilo que se cria se estiver completamente sob a


supervisão consciente de seu criador. Como os homens não criaram a natureza, não
há compreensão nesse sentido, e a ciência sobre ela será fundamentalmente
hipotética sempre, o que não significa que não possa exercer domínio sobre a
mesma Natureza. Por quê? Leo Strauss71 ensina que a sabedoria em Hobbes é
idêntica à construção livre, pois o Universo, enquanto parte da Natureza, é
ininteligível e esta natureza força o ser humano a ser soberano em um cosmo que
lhe é estranho, sem limitações objetivas do objeto natureza. O conhecimento será o
fim do homem em um Universo que não pode compreender.

Tal fim impõe um princípio organizador no homem, princípio este, organizador


de suas necessidades, de seu bem.

Maquiavel, dotado de grande espírito cívico, justificava em sondagens nas


origens da sociedade civil uma busca pela Filosofia política. A necessidade,
determinando a conduta que se deve adotar, substituiu fundamentos morais e
princípios de justiça, por demais líquidos na humanidade para serem estáveis. Logo,
conclui Leo Strauss,72 a sociedade civil não pode almejar a ser pura e simplesmente
justa. Instaurada uma ordem social, pode-se falar em justiça segundo ela. Nessa
ideia de Maquiavel é que Hobbes se alicerça, para restaurar uma lei natural – pois
dela não se pode falar sem ceticismo se não puder ser conhecida.

Hobbes deduz a lei natural do páthos – da paixão – da mais poderosa das


paixões: o medo da morte violenta.73 Isso torna-se mais claro à medida que entende-

70
Apud Idem, p. 150.
71
Idem, p 151.
72
Idem, p 155.
73
Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Edipro, 2012. Capítulos XIV (92) e XXVII (197)
43
se, consoante a doutrina epicurista e spinozista da preservação no Ser, com toda a
ação tendendo à alguma paz. Essa é a raiz de toda a justiça.

Com essa conclusão, refuta-se a ideia de que a pólis é sempre anterior ao


indivíduo, o lugar onde ele alcançará sua máxima realização – como era em
Aristóteles. A inversão dos polos conduz a ideia da primazia do direito de preservar-
se a si acima dos deveres. A essa condição pré-política do homem, Hobbes chama
estado de natureza, anterior ao estado de Sociedade Civil.

Na esteira liberal, se o Direito Natural funda-se na preservação de si, todas as


outras obrigações derivam de contratos com os outros, que devem ser cumpridos.
Cada homem é juiz de tudo o que precisa para se conservar e com base no
consentimento contratual, cada um entrega-se à autoridade do soberano, que
formulará as regras necessárias para conservar a paz.74

Faz-se mister, ainda, tratar da questão do regime político no pensamento


hobbesiano. Em oposição à Filosofia antiga, Hobbes ensina que existe uma lei
natural pública que orientará qual o melhor regime em dado local, sob determinada
circunstância, respondendo de maneira bem prática ao problema da Ordem Social
Justa. O que deve ser ressaltado é que esse realismo político, que ele herda de
Maquiavel, destitui os princípios morais da política tradicional (do regime virtuoso do
rei Filósofo, por exemplo), mas, em contrapartida, só do homem enquanto criador da
sociedade civil e conhecedor matemático de todas as suas minúcias, é a quem cabe
consertá-la e aprimorá-la.75

Como afirma Leo Strauss76, para John Locke, a lei natural impõe deveres ao
homem, seja em estado de natureza, seja em estado de sociedade civil. Sendo
idêntica à lei da razão, ela pode naturalmente ser conhecida pelo intelecto sem o
auxílio de nenhuma lei positiva – o que lhe garante um status de ciência, e dela pode
ser derivado um código de conduta moral em que estaria contido, em sua
integralidade, a lei natural.

A lei natural, como declaração da vontade divina, é suprema e válida para


todos, em todos os tempos, porque é eterna, tal como Deus. É promulgada pela

74
Conclusões com base em STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009, p.
160-3.
75
STRAUSS, Leo. Op. cit, p. 165-73.
76
Idem, p. 174 e seguintes.
44
revelação do Novo Testamento, mas com ele não se confunde. Locke acredita que
para os homens, Deus é o nosso Rei, e estamos submetidos à lei da razão; e
enquanto cristãos, Jesus, o Messias, é o nosso rei e estamos submetidos a ele pela
lei revelada no Evangelho77.

Assim, conclui Locke, que todo homem e, principalmente, todo cristão deve
estudar a lei natural.

A lei natural deve ter reconhecimento geral de Lei. Ora, isso não é possível
sem que se conheça um legislador e que esta lei especifique sanções, positivas ou
negativas; como se pode falar de Lei sem coerção? Dessa maneira, se promulgada
por Deus, a revelação que nos dá a conhecer, as sanções são necessariamente
transcendentais. Se forem transcendentais, a razão não poderia conhecê-las, e, com
isso, fechar-se-ia o ciclo aqui, pois são reveladas as sanções pelo Evangelho, de
maneira clara e evidente.78

Se assim é, pergunta Leo Strauss, como Locke concebe dois tratados sobre o
governo? Mais: como é considerado o pai do empirismo inglês? A resposta é que,
talvez, John Locke tenha encontrado obstáculos na demonstrabilidade da revelação
das escrituras e da conformidade da lei natural a elas, obstáculos práticos, que o
tenham forçado a tomar outro rumo.79

Primeiramente, Locke sabia da existência, em seu tempo, de muitos deístas:


pessoas que tinham contato com o Novo Testamento, mas que não eram
exatamente cristãos, e sabia, ainda, que caso as bases fossem somente essas de
Lei Revelada pelas Escrituras, suas ideias não seriam aceitas como verdades
incontestes por esses muitos deístas.

Para Locke, havia duas leis – a lei natural integral e a lei natural parcial.80 A
primeira assenta-se nas bases já escritas de suas ideias. A segunda, no argumento
de que se a maioria dos homens conhece a Revelação por meio somente do contato
com a tradição, Locke diz que o conhecimento que se tem de que esta revelação
veio efetivamente de Deus, nunca pode ser maior do que o conhecimento que se

77
LOCKE, John. The Reasonableness of Christianity, Lightining Source. apud STRAUSS, Leo. Direito
Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009.
78
LOCKE, John. The Reasonableness of Christianity, Lightining Source apud STRAUSS, Leo. Direito
Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 139 e 147.
79
Idem, p. 177.
80
Idem, p. 183.
45
tem do acordo ou desacordo das ideias que um homem assim pode ter. Com isso,
Locke conclui que a certeza de uma vida após a morte – com todas as suas
recompensas que dão a natureza de Lei a uma lei natural - pertence ao domínio da
fé e não ao da razão natural dos homens. Assim, no sistema lockeano integral, na
visão dos homens deístas ou, porque não, de ateus, a distinção moral entre bem e
mau perde sua validade como lei. Como resolver essa aporia: a lei natural assenta-
se em bases transcendentais, mas para serem validas como lei não podem ter como
pressuposto de validade essa transcendentalidade?

Locke ensina que a felicidade pública está relacionada com o seu sistema
integral, o que resulta em ela poder ser aprovada por parte considerável da
humanidade, sem conhecerem realmente o verdadeiro fundamento da moral. Este é,
em sua visão cristã transcendental, a vontade de Deus, as recompensas ou
castigos, tais como o paraíso ou o inferno, ou também, julgamentos de consciência.
Essa felicidade pública garante, para Locke, o cumprimento de várias regras morais
e conduz o homem a uma felicidade prospera e, ainda que separadas de suas
verdadeiras bases, permanecem assentadas nelas, de qualquer modo. As
felicidades públicas, portanto, consistem nesses vínculos sociais, suas convenções e
práticas quotidianas que formam os costumes, enfim, tudo aquilo que caracteriza,
numa visão não-lockeana, o naturalmente social e político.81

Logo, na visão de Leo Strauss,82 a lei natural parcial, não sendo inteiramente
idêntica à lei integral, que é conforme o Novo Testamento. Este autor, limita-se a
descrever as condições que uma determinada sociedade política tem de cumprir
para ser civilizada, e não sendo necessário que se tenha, para tal desiderato, a
concepção cristã de Deus, parece que Locke se contradiz e não reconhece
nenhuma lei natural em sentido estrito – o que difere em muito das interpretações
usuais do Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Isso se dá, ensina Leo Strauss,
devido a um caráter mais estratégico-político: Locke, no Tratado, dirige seus
argumentos ao senso comum de seu tempo.

81
Conclusões conforme: LOCKE, John. The Reasonableness of Christianity Lightining Source, p. 144:
“Antes de Jesus, essas Justas medidas do bom e do mau, que foram introduzidas pela necessidade
em toda parte, que foram prescritas pelas leis civis ou recomendadas pelos filósofos, permaneceram
assentes nas suas verdadeira bases. Eram vistas como vínculos da sociedades, e conveniências da
vida comum e práticas salutares.” Apud STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições
70, 2009, p. 184-185.
82
Idem, p 188-189.
46
Como a lei natural, como lei que é, requer uma sanção e esta pressupõe
alguém para aplicá-la, o estado de natureza lockeano é individualista e supõe que
cada homem é o executor das sanções que concernem à lei natural. Isso sob pena
de não ser lei, ou, em todo caso ser ineficaz. Assim, sendo lei, e existindo no estado
de natureza, esse estado é consequentemente um estado pacífico, de
autopreservação, mas de preocupação mútua onde o gênero humano busca a
preservação de todos também: o estado de natureza lockeano é um estado social,
mas sem soberano, no qual todos se ligam por vínculo da lei natural.

Após a exposição acerca do estado de natureza anárquico em seu Tratado,


Locke ensina que a corrupção dos homens, os quais não respeitam a equidade e a
justiça é um grande inconveniente para a continuidade deste estado – até parece, à
primeira vista, bom e democrático, mas Locke o descreverá como má condição,
cheio de tumultos e males recíprocos83 na qual cada um é juiz de suas próprias
conveniências, tal qual descrevia Hobbes.

Como já foi dito anteriormente, fora da revelação, o homem não pode


conhecer naturalmente da lei natural, logo, ela não seria possível no estado de
natureza. Locke nega a sindérese que foi citada em São Tomás, dizendo que não há
regras morais inatas ao homem. Por viver em um estado de incerteza, de má
condição, nos primeiros tempos, a falta de hábitos de estudo, da permanência em
uma “inocência imprevidente e negligente”, Locke dirá que a lei natural, no estado de
natureza não foi efetivamente promulgada.

Inato ao homem é, isso sim, sua aversão à miséria e à infelicidade84. Não


pode ser impedida a busca da felicidade, o que o suspende à categoria de um direito
natural. A lei natural, como lei, estabelece deveres, e o Direito Natural, para Locke, é
mais fundamental do que a lei natural..85

Leo Strauss admite que em Locke, a instituição racional de um Estado dá azo


a um Direito constitucional natural.86 Explica que o princípio desse direito decorre do
poder que originariamente pertence a todos os indivíduos – ou seja, aqui, o direito
de resistência de uma sociedade organizada, em relação aos arbítrios de um
soberano ganha nova força, na medida em que tal arbítrio conduz à sanção pelo
83
LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 13.
84
Idem, v. II, Cap 11.
85
Idem, v.I, §§ 86 e 87. [Tratado 1, cap 86, 87 e 2, 26]
86
STRAUSS, Leo. Op. cit., p. 196.
47
descumprimento da lei natural. Referido autor conclui que, em Locke, a lei natural
formula condições de paz, felicidade e prosperidade públicas, tendo como sanção a
miséria e a infelicidade.

Posteriormente, o Contrato Social reforçaria as bases do Direito Positivo, bem


como, em sentido contrário, por efetivar-se como um meio de legitimar o arbítrio e
justificar o Estado, reforçaria a volta ao Racionalismo que sustentaria o Direito
Natural na Idade Moderna. Veja-se a esse respeito, Jean-Jacques Rousseau.

Mencionar Rousseau é mencionar a crise do Direito Natural Moderno. Retoma


a Antiguidade clássica contra o Modernismo em diversos aspectos, mas são
marcantes, segundo Leo Strauss87 o espírito público, o patriotismo e a liberdade, em
antítese ao liberalismo e mercantilismo característicos do Estado Moderno. Não raro,
em uma obra como Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade
entre os Homens, Jean-Jacques opõe qualidades do homem selvagem, o qual vive
em estado de natureza, ao homem civilizado, que vive nos Estados Civis.

A virtude, para Rousseau, é, sobretudo, a virtude política, mas política


patriota, que possibilita falar em liberdade e em uma verdadeira sociedade civil. Para
ele, a Sociedade Civil só pode ser uma sociedade saudável se for uma sociedade
com caracteres próprios, isto é, uma sociedade fechada. Ora, isto remonta qualquer
leitor mais atento ao que Ernst Renan em Qu’est-ce une Nation, denominava ser
uma Nação:

Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas


que, em verdade, constituem uma só fazem esta alma, este princípio
espiritual. Uma no passado, outra no presente. Uma é a posse
comum de um rico legado de recordações, a outra é o consentimento
atual, o desejo de viver juntos, a vontade de continuar fazendo valer a
herança que se recebeu indivisa. O homem, senhores, não se
improvisa: é um estuário de um largo passado de esforços,
sacrifícios, abnegações. O culto dos antepassados é o mais legítimo
de todos; os antepassados nos fizeram o que somos. Um passado
heroico, grandes homens, glória – entenda-se a verdadeira glória –
eis aqui o capital social sobre o qual se assenta uma ideia nacional.
Ter glórias comuns no passado, uma vontade comum no presente;
haver feito grandes coisas juntos e ainda querer fazê-las. Eis aí as
condições essenciais para ser um povo. Ama-se a casa que se
construiu e se transmite. O canto espartano: ‘Somos o que fostes,
seremos o que sois’, é, em sua simplicidade, o hino abreviado de toda
88
pátria.

87
Idem, p. 216.
88
Apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, 10ª ed. p. 86.
48
Aqui encontra-se um enfraquecimento do cosmopolitismo estoico e a
consequente retomada das antigas pólis em contraposição aos grandes Estados
Territoriais Modernos. É isso que Rousseau ensina.89

O cidadão deve dedicar-se ao bem comum e aos deveres cívicos e militares,


o que enfraquece a ideia epicurista de busca do prazer individual e mais uma vez
remete à República de Platão, aos costumes espartanos e romanos.

Para a instituição de uma Sociedade Civil nesses moldes, uma comunidade


deve assentir nisso: deve abandonar sua liberdade natural em favor de uma
liberdade convencional, deve abandonar a desigualdade natural em favor de uma
igualdade convencional.

Mas, como ensina Leo Strauss,90 Rousseau, não se esquece da


desigualdade, sobretudo da desigualdade intelectual entre os homens, o que fica
claro em sua descrição do estado de natureza quando diz que “uns eram mais
astutos, outros mais engenhosos e outros fisicamente mais fortes”, se se lembrar
que a igualdade é somente convencional. Dessa maneira, na primeira parte do
Discurso,91 erige uma crítica à filosofia e à ciência como prejudicial se acessível a
todos os homens, pois degrada a ciência e a filosofia em doxa. Se for acessível à
uma minoria dos homens, o conhecimento filosófico e científico é benéfico e
possibilita o surgimento de uma sociedade perfeita. Aqui verifica-se uma oposição
clara ao Iluminismo e, embora não tão visível na leitura, um elitismo filosófico e
científico, pois os estudos só podem se tornar bons se foram feitos por aqueles que
desfrutam de um ócio (como o que desfruta o homem selvagem) e da função de
educar e guiar o povo – o filósofo, ou, pode-se dizer, o rei filósofo, o Governante
Filósofo. É o que diz na Introdução do Discurso em suas primeiras linhas: “É do
homem que tenho de falar; e a questão que examino me ensina que vou falar a
homens [...]”. 92

Passando à segunda parte do discurso, aos moldes do livro quinto do De


rerum natura de Lucrécio, Rousseau descreve o que pretende uma história
hipotética da humanidade. Essa história descreve o homem em um início apolítico e

89
Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 471.
90
STRAUSS, Leo. Op. cit., p. 222-223.
91
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Primeiro Discurso In Discurso sobre os Fundamentos e a Origem da
Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 26-28.
92
Idem, Introdução.
49
amoral, demonstrando tanto quanto possível, conformidades com a lei natural. Diz
Rousseau:

[...] creio perceber dois princípios anteriores à razão um dos


quais interessa ardentemente ao nosso bem-estar e à conservação
de nós mesmos, e o outro nos inspira a uma repugnância natural de
ver morrer ou sofrer todo ser sensível, e principalmente os nossos
semelhantes. Do concurso e da combinação desses dois princípios,
sem que seja necessário acrescentar o do sociabilidade, é que me
93
parecem decorrer todas as regras do direito natural;[...]

Aqui há uma concordância com o que foi visto em Hobbes, ou seja, a lei
natural inspira-se em princípios anteriores à razão, em paixões. Mas, ao mesmo
tempo, distancia-se de Hobbes, em razão de diferenciar-se acerca de quais paixões.
Hobbes dizia que a paixão suprema era o medo da morte violenta. Para Rousseau,
o homem selvagem só teme a dor e a fome. Suas alegações são de que o homem
selvagem é muito próximo do animal – e o animal não sabe o que é morrer. Adquirir
o conhecimento da condição de mortal, o medo da morte, afastou em muito o
homem do estado de natureza nessa condição próxima a do animal.94 Mais próximo
do animal, do não-civilizado, mais alto fala a lei natural.

Assim, conclui-se que o homem selvagem, ou melhor, em seu estado de


natureza, não é necessariamente bom ou mau, mas pode agir da forma como quiser:
é instinto, páthos, sem ser orgulhoso, pois, como diz Rousseau, o orgulho, como mal
exercício da liberdade, é que definirá o nascimento da sociedade civil. Não há limites
à sua perfectibilidade ou à sua degradação.

Nessa toada de estado de natureza como um estado primitivo do homem,


apolítico, associal, amoral, onde se vive com base nos dois instintos descritos, como
surgiu a sociedade civil? Como surgiu a propriedade privada? Rousseau diz que “O
primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: ‘Isto é meu’, e
encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil”. 95

Começando a viver juntos, os humanos desenvolvem o amor conjugal e


paternal, estabelecem adjetivos, orgulho, reconhecimento público, indústria, mão de
obra, enfim, criam relações de poder entre si e as desenvolvem, talvez até

93
Idem, p.28.
94
Idem, p 43.
95
Idem, p.61.
50
tacitamente, mas com prejuízo de um estado gracioso, de uma liberdade que não
mais se pode retomar.

A essa liberdade natural, conforme ensina Leo Strauss,96 Rousseau contrapôs


a liberdade moral – obedecer somente as regras que dá-se a si próprio – e a
liberdade civil, que é aquela na cidade, próxima da moral, mas com fundamentos na
liberdade natural. Porque se o homem pretende a autopreservação e esse direito
implica o de apropriar-se do necessário para se preservar, o cultivo contínuo dessa
preservação gera a liberdade de propriedade. Porém, ainda em suas lições, tal não
gera a propriedade contínua, mas uma propriedade provisória. A continuidade é
assegurada somente pela lei positiva e antes dela pela força. Uma vez atingido esse
ponto, o estado de natureza evolui para um estado de guerra e, portanto, do
interesse de todos que se pactue a paz. Dessa forma, a proteção individual é
substituída pelos julgamentos públicos, pautado por leis às quais os homens dão
seu assentimento individual – mantêm-se livres como dantes do contrato social, pois
estão sujeitos apenas à lei geral, dão seu assentimento às regras que seguem e são
protegidos pelos seus concidadãos. A lei natural é, conclui Strauss, absorvida pela
lei positiva.

Nessa toada, convém mencionar uma observação de Norberto Bobbio sobre


Rousseau. Em sua Teoria Geral da Política,97 expondo os motivos pelos quais a
democracia é um ideal-limite e, portanto, inatingível, Bobbio reconhece que
Rousseau tinha duas doutrinas acerca da sociedade: o idealismo que expressa em
Do Contrato Social e o realismo que apresenta na segunda parte do Discurso sobre
a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Rousseau sabe
que a sociedade optou pelo que foi descrito acima com relação à perfectibilidade ou
corrupção. Como fautor da democracia direta, Bobbio ensina que ele, Jean-Jacques,
só poderia classificar a democracia representativa como uma Aristocracia Eletiva,98
pois, que outra opção seria senão pela degradação? Era o que dizia do povo inglês:
livre apenas no momento em que ia votar e logo depois voltava à servidão. Assim, o
Contrato representa a sociedade excelente, e o Discurso a que realmente se
apresenta.

96
STRAUSS, Leo. Op. cit., p. 240.
97
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 422.
98
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2007.
51
O holandês Hugo Grócio (1583-1645)99 teve uma carreira movimentada. Sua
biografia mostra que foi estudante brilhante e teve grande atividade na vida pública:
jurista, advogado que trabalhou para a Companhia das Índias Holandesas, aos 24
anos procurador-geral da Holanda, protegido de Luís XII da França, e embaixador
nesse mesmo país, entre outros fatos notórios que não são foco nesse breve
estudo. É importante notar que recebeu educação protestante e humanista de peso,
tanto que chegou a formar-se teólogo, muitas de suas obras contém citações dos
Padres da Igreja e, algumas se voltam a esses temas, mas de maneira ecumênica (o
que lhe acarretou obras no Índex).

As guerras religiosas e políticas que assolavam o mundo no início do século


XVII eram prejudiciais à burguesia mercantil, fato de conhecimento dos estudiosos.
Também é certo que a burguesia necessitava da paz para fazer crescer suas
posses, e nesse contexto Hugo Grócio foi um homem fundamental. Sua doutrina
reestrutura todo o Direito, tanto que seu livro Introdução ao Direito Holandês e o
famosíssimo De Iuri Belli Ac Pacis chegam aos dias de hoje com grande reputação
entre os juristas.

No Tratado do direito da guerra e da paz, evidencia-se que, embora de


acordo também com o Evangelho, os direitos naturais podem ser reconhecidos pelo
homem em sua própria natureza, constituindo o que nominou como Dictamen rectae
rationis, ou ‘ditames racionais’. O pensamento de Grócio está pautado ainda pelos
tratados de moral estoica de Cícero, principalmente no que diz respeito à concepção
do termo ‘fonte do direito’. O caso é que Grócio é continuador da jurisprudência
humanista. No Tratado da Guerra e da Paz, vê-se inúmeras citações de Marco
Aurélio, Sêneca, Cícero, fragmentos do Corpus Iuris Civile, Homero, devendo a
Platão e Althusius a sua teoria de um direito ideal, desvinculado de fatos. Diz
Grócio: “Posso protestar de boa-fé que como os matemáticos ao examinarem as
figuras fazem abstração dos corpos que ela modificam, também eu, ao explicar o
direito, desviei meus pensamentos de qualquer fato particular”.100

Nas palavras de Bobbio, Grócio situa o Direito Natural como fundamento de


um Direito reconhecível como válido por todos os povos (de onde futuramente

99
REALE, Giovanni. História da Filosofia – Do Humanismo a Descartes. v. 3. São Paulo: Paulus,
2003, p. 100.
100
GROCIO, Hugo. DGP. §§VI e VII., apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico
Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 35.
52
adviria o Direito Internacional). Afirma, ainda, que esse direito é ditado pela “razão,
sendo independente não só da vontade de Deus como também da sua própria
existência”.101 Tal doutrina abre caminho no campo da Moral, do Direito e da Política,
ao iluminar a cultura laica e antiteológica.

No começo da guerra dos trinta anos, era necessário que a Europa evitasse
novos conflitos para poder reiniciar um desenvolvimento social. Nesse contexto é
que surge o Tratado da Guerra e da Paz, no qual, Grócio concebe, sob a visão da
guerra, uma ciência do direito.

No livro I ele classifica as guerras em guerras públicas, guerras privadas e


guerras mistas – as primeiras opõem os Estados contra si, as segundas tratam de
agressões internas, assassinatos, violências, raptos, etc., e as terceiras englobam as
Revoluções de particulares contra o Estado. Com o título De Bello, Grócio
categoriza o Direito em diversas ramificações que hoje se apresentam em manuais
didáticos, a despeito de a experiência jurídica ser, como queria Miguel Reale, una.

Entre os Estados pertencentes a confissões opostas, apenas um Direito


Natural profano pode impor regras comuns, imparciais. A ideia de Kosmopólis
estoica é então, de grande utilidade para a doutrina de Grócio – no sentido de uma
comunidade humana. Assim, Grócio laiciza e sistematiza a doutrina do Direito
Natural.

A grande conquista de Grócio, segundo Michel Villey, está em optar por


fontes estoicas, constituindo um verdadeiro Direito Natural estoico. Acompanhe-se a
lição do mestre francês.102

Grócio deduz as regras de direito da natureza do homem, construindo uma


teoria do direito com base em Cícero, Marco Aurélio. Segundo o qual, Deus inscreve
no coração de cada homem uma lei comum que vale suptae natura, por sua própria
natureza, independentemente de opiniões e costumes individuais ou particulares de
um grupo, impondo-se a todos os homens segundo a ideia cosmopolita estoica.
Assim, refuta a tese de Aristóteles de que o justo se situa nas coisas, deslocando o

101
In BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
2006, p. 20.
102
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 651.
53
eixo para o antropocentrismo característico dos humanistas: o justo está no homem,
sua fonte é o homem, na razão – é o que dita a reta razão, a boa razão.

Grocio formula a distinção entre Direito Natural e Direito Positivo valendo-se


dos conceitos de jus naturale e jus voluntarium:

O direito natural é um ditame da justa razão destinado a


mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário
segundo seja ou não conforme à própria ‘natureza racional’ do
homem, e a mostrar que tal ato é em consequência disto vetado ou
comandado por Deus, enquanto autor da natureza. (...) Os atos
relativamente aos quais existe um tal ditame da justa razão são
103
obrigatórios ou ilícitos por si mesmos.

Ainda segundo Grócio, o jus voluntarium pode ser proclamado pelo Estado,
mas também pela família e pela comunidade internacional (jus inter gentes, o Direito
que regula as relações entre os povos ou os Estados).

A moralidade, consoante as lições villeynianas, é fonte do Direito, na medida


em que é ditada pela razão – o que caracteriza certa integração do Direito na moral:
nada que não se possa depreender de sua formação estoica e protestante.
Racionalmente, determina que o homem é:

inclinado para viver com seus semelhantes, não de qualquer


maneira, mas pacificamente, e numa comunidade de vida tão bem
regrada quanto suas luzes sugerem a ele [...] o cuidado de manter a
sociedade de uma maneira conforme às luzes do entendimento
humano é a fonte do direito propriamente assim chamado, e que em
geral resume-se a isto: que é preciso abster-se religiosamente do
bem alheio; e restituir o que porventura tenhamos nas mãos, ou o
proveito que disso se tenha tirado; que se é obrigado a manter a
palavra; que se deve reparar o dano causado por culpa própria; e que
104
toda violação dessas regras merece punição [...].

Regras que não sejam extraídas imediatamente desses princípios primeiros,


formarão, com o consentimento dos homens, o jus gentium. Mas deve-se buscar
apoio da autoridade dos sábios antigos do período helenístico e do Corpus.

O Renascimento, com sua base antropocêntrica, influenciou diretamente a


definição de justiça. Uma nova doutrina jusnaturalista, de caráter subjetivo e
racional, paulatinamente substituiu o Jusnaturalismo teológico, muito por conta de

103
In BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
2006, p. 20.
104
GROCIO, Hugo. DGP. §§VI e VII. P. 5, apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico
Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 653.
54
sua capacidade de se adaptar à perda gradual da influência da Igreja na sociedade.
Confiava-se na existência de uma razão humana universal, que trazia consigo um
código de ética que destacava o caráter único do indivíduo, independentemente do
tempo e espaço.

Assim, para os iluministas, era a razão humana universal, e não a força


divina, que seria capaz de dar ordem à vida em sociedade, garantindo direitos a todo
e qualquer indivíduo desde o seu nascimento, a começar pelo direito a ser
respeitado pelo Estado, que impunha suas leis com base em um Direito Positivo
injusto.

O Objetivo do Direito para Grócio era, como em Aristóteles, a busca do justo,


mas substitui a justiça comutativa e a distributiva, como explicitamos anteriormente,
pela justitia expletix que comporta soluções firmes para estabelecer a paz entre os
litigantes. Não há a preocupação ambiciosa de dar a cada um o que é seu, a justiça
como fim do Direito, mas sim o uso do justo como meio para a paz – havendo
acordo entre os litigantes e estabelecendo-se a paz, o jurista lava as mãos e
contribui de maneira útil para a extinção de conflitos e violências. Aqui, segundo
Villey,105 consiste a astúcia maior de Grócio em colocar o direito sob o prisma da
guerra – toda guerra (leia-se conflito), precisa ser sufocada antes que ecloda, com
os instrumentos que foram necessários, da maneira que for preciso – o que é muito
mais coadunável com os objetivos da burguesia mercantil. O Direito, assim, retirado
da razão, é bem diferente da casuística Aristotélica.

O juiz romano, exemplifica Michel Villey,106 não estaria submetido a uma regra
elaborada pela doutrina – a segurança jurídica que começa a ser exigências dos
negócios jurídicos, para fomentar o liberalismo e impulsionar a ascensão burguesa,
exige regras bem definidas, positivadas, racionais, contudo menos equitativas serão
as decisões. O direito tomará um viés axiomático.

E qual o objetivo da punição? Viu-se na citação que a violação aos princípios


deve ser punida. A punição, para Grócio tem o caráter corretivo, punindo-se para
que não erre mais.

105
VILLEY, Michel. VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem.
São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 657.
106
Idem, p. 659.
55
Michel Villey critica107 o método de Grócio, a que ele próprio chamava de a
posteriori, uma espécie de método experimental. Segundo Grócio, que reconheceria
as dificuldades de demonstrar a evidência de seus postulados mais básicos, o
consentimento e o assentimento dados pelos homens às regras desde tempos
longínquos, fariam com que fossem tidas como aceitas pela universalidade dos
homens. Parece que Grócio está altamente contaminando sua doutrina com uma
espécie de alienação, no melhor sentido marxista do termo, e instituindo uma
ideologia que disfarça um Positivismo que recebeu de diversas instituições,
legalizando o domínio burguês. O direito, como consequência, fica estranhamente
mesclado, o monarca encontra aporte ao absolutismo e o direito de resistência, com
base no contrato e na soberania, fica anulado. Tudo está resolvido e resolvido pelo
Racionalismo jurídico.

Com relação aos direitos subjetivos, Grócio ensina que são: “uma qualidade
da pessoa que a torna apta a possuir ou a realizar uma certa ação, sem que a moral
seja ofendida”.108

Assim, no livro II Do Direito da Guerra e da Paz, Grócio classifica os direitos


subjetivos em “o que é nosso” e “o que nos é devido”, por exemplo, a liberdade, a
legítima defesa, o direito de propriedade, de crédito, de obter o que foi pactuado ou
a sua reparação, etc. A contribuição para delinear direitos subjetivos é grande, mas
ao preço já mencionado do empobrecimento da justiça – como diz Michael Villey: “O
utilitarismo moderno visa defender direitos; o ponto de vista do advogado triunfou
sobre o do juiz, do jurisconsulto, da justiça”. 109

Nesse contexto, pensadores como Grócio, Pufendorf e Locke concebem a


natureza humana como genuinamente social. Na visão de Hobbes e de Rousseau, a
natureza humana seria originariamente associal ou individualista.

Para esses pensadores, a lei natural, em síntese, muito se voltaria aos


preceitos da moralidade como condicionantes das ações humanas voluntárias.
Pufendorf, por exemplo, escreve De Officiis, um tratado dos deveres, e lança uma
teoria dos ‘seres morais’ (entia moralia).110

107
Idem, p. 664.
108
Apud Idem, p. 666.
109
Idem, p. 667.
110
Idem, p. 308.
56
Emmanuel Kant, por seu turno, oferece argumentos que atribuem peso à
racionalização do Jusnaturalismo. Para o filósofo, a prática moral não se baseia
apenas na experiência, mas fundamentalmente no que denomina ‘imperativo
categórico’: uma lei relativa à racionalidade universal humana que traduz o agir
conforme um ideal desejável e que, ao mesmo tempo, equivalha a uma máxima
universal. Em outras palavras, o imperativo categórico coloca a razão como o
princípio orientador dos limites da ação e da atitude humana. O imperativo
categórico é único, absoluto e não deriva da experiência. A ética traduz-se como o
compromisso de agir consoante o próprio preceito ético fundamental - motivado por
ele e para alcançá-lo, ou seja, menos para atingir um determinado objetivo e mais
para viver sob esse preceito. Viver sob uma determinada moral, cultivando-a como
um dever e assim torná-la válida como uma lei universal, imanente da natureza.

Eleva-se a justiça a uma dimensão que transcende a experiência (o ser justo


ou injusto) e que norteia a razão: o agir conforme uma dada diretriz deve ser um fim
e não um meio, diretriz essa que possa valer como preceito universal, ou seja, todos
devem agir sob essa condição. Kant define, ou no mínimo delineia o Direito, mas a
justiça não está nesse plano, transcende a definição, é mais abrangente, é um valor
universal.

Deste modo, o direito posto torna-se passível de crítica com base em padrões
éticos de princípios reconhecidos pela razão humana.

No século XVIII, com o crescente Racionalismo, em que ganha peso a figura


do legislador e começa a despontar certa ênfase no Positivismo Jurídico, ainda
assim o Direito Natural tem grande relevância. Apesar da crescente formatação das
Constituições nos mais diversos Estados, o Direito Natural tem força não apenas no
campo doutrinário como também no aspecto prático. Conforme Norberto Bobbio:

No pensamento do século XVIII têm ainda pleno valor os


conceitos-base da filosofia jusnaturalista, tais como o estado de
natureza, a lei natural (concebida como um complexo de normas que
se coloca ao lado - ou melhor, acima - do ordenamento positivo), o
contrato social. No contexto da realidade do Estado ainda domina o
direito natural. O Estado, realmente, se constitui com base no estado
de natureza, como conseqüência do contrato social, e mesmo na
organização do Estado os homens conservam ainda certos direitos
111
naturais fundamentais.

111
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006,
p. 42.
57
Em acréscimo, salienta-se a questão das ‘lacunas da lei’, casos típicos de
limitação da ação do legislador:

As conseqüências desta concepção se manifestam


particularmente num caso muito importante e interessante, que indica
o limite da onipotência do legislador - o caso no qual o próprio
legislador deixou de regulamentar determinadas relações ou
situações, isto é, para usar a fórmula típica, o caso da ‘lacuna da lei’.
Enquanto os juspositivistas, para serem coerentes até o fim,
excluindo o recurso ao direito natural, negaram a própria existência
das lacunas, os escritores do século XVII e do século XVIII não a
negam absolutamente e afirmam, ao contrário, que em tal caso o juiz
deve resolver a controvérsia aplicando o direito natural. Esta solução
é perfeitamente lógica para quem admite que o direito positivo se
funda (através do Estado e do contrato social que faz surgir este
último do estado de natureza) no direito natural: vindo, aliás, a faltar o
112
primeiro, é evidente que deve ser aplicado o segundo.

Vale mencionar ainda o entendimento de Glück, no final do século XVIII:

O direito se distingue, segundo o modo pelo qual advém à


nossa consciência, em ‘natural’ e ‘positivo’. Chama-se direito natural o
conjunto de todas as leis, que por meio da razão fizeram-se conhecer
tanto pela natureza, quanto por aquelas coisas que a natureza
humana requer como condições e meios de consecução dos próprios
objetivos [...] Chama-se direito positivo, ao contrário, o conjunto
daquelas leis que se fundam apenas na vontade declarada de um
113
legislador e que, por aquela declaração, vêm a ser conhecidas.

De acordo com Bobbio,114 o pensamento de Glück revela um outro aspecto da


mudança da concepção do Direito Natural na Modernidade, não mais considerando
a fonte do Direito (se emanado de Deus ou da Natureza), mas o modo pelo qual os
destinatários conhecem esse Direito, se através da razão (trata-se do Direito Natural,
já que provém da natureza das coisas), ou por meio de uma declaração de vontade
do legislador (Direito Positivo).

A seguir faremos algumas considerações acerca do pensamento de José


Pedro Galvão de Souza e de Paulo Ferreira da Cunha, aquele um jusnaturalista
ortodoxo, tomista-aristotélico, e este um jusnaturalista que busca entender os
elementos dispostos nesse tópico da modernidade.

112
Idem, p. 42.
113
GLÜCK. Commentario alle Pandette. Milão, 1888, vol. 1, pp. 61-62. Apud BOBBIO, Norberto.
Idem, p. 21.
114
Idem, p. 21-22.
58
Para tanto, nos tópicos a seguir, buscaremos verificar como o Jusnaturalismo
foi fortalecido, ou ressignificado, em algumas perspectivas, e como o próprio
Positivismo Jurídico passou por remodelações com inserções de elementos
necessários para aprimorar uma Teoria do Direito.

Giambattista Vico, filósofo italiano, define a história como um ciclo que se


repete, em corsi e ricorsi, um conjunto de vivências e manifestações que se repetem
– processo conhecido como movimento de corsi e ricorsi. A visão humanista,
alavancada pela nova interpretação do Estoicismo por autores renascentistas,
culminou nas Declarações de direitos e, então, na ascensão dos regimes totalitários
do século XX, e ressurgiu com ainda mais força após a Segunda Guerra Mundial,
especialmente depois da consagração, em 1948, da Declaração Universal da ONU.

59
Capítulo II – O Direito Natural na concepção de José Pedro Galvão
de Sousa

Neste capítulo elaboraremos alguns apontamentos a respeito da doutrina


Jusnaturalista de José Pedro Galvão de Sousa115. Para isso nos valeremos de sua
obra mais consagrada nesse tema: Direito Natural, Direito Positivo e Estado de
Direito.

Tal obra contempla sua posição mais assente sobre o tema. É por isso que,
mesmo tendo acessado bibliografia mais ampla sobre o assunto, focaremos nossa
investigação em apontar os principais aspectos dessa obra para que possamos
cotejá-la com o pensamento de Paulo Ferreira da Cunha. Como o próprio autor

115
Nascido em 6 de janeiro de 1912 em São Paulo. Lecionou em diversas Faculdades, na Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, na Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento, na Faculdade
de Direito do Largo de São Francisco (Universidade de São Paulo), na Faculdade de Comunicação
Social "Casper Líbero" da qual foi diretor, na Faculdade de Direito da UNESP e na Faculdade de
Direito de São Bernardo do Campo. Mas fez história na Faculdade Paulista de Direito (atualmente
incorporada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), da qual foi um de seus fundadores em
8 de janeiro de 1946, tendo sido vice-diretor e vice-reitor.
Foi professor visitante de Filosofia Política da Faculté Libre de Philosophie Comparée, Paris. Fundou
o Centro de Estudos de Direito Natural, que hoje leva o seu nome.
Integrou como membro a Academia Paulista de Direito, o Instituto dos Advogados, o Instituto de
Direito Social, a Sociedade de Língua Portuguesa, a Academia Brasileira de Ciências Morais e
Políticas e a Real Academia de Jurisprudência y Legislación de Madrid, como acadêmico honorário.
Tem como referencial teórico em suas pesquisas, a doutrina de São Tomás de Aquino, sobretudo na
prima secundae, questão 93 a 98 da Suma Teológica, além de Francisco Elias de Tejada (El derecho
político; La Formacion de la Sociedad Politica natural); Eric Voegelin (The new science of politics;
História das ideias políticas de Erasmo a Nietzsche); Eugenio D’ors (Curso de Derecho Romano);
Alvaro D’ors (El Derecho Politico); Leonardo Coimbra (Metafísica e Direito Natural); Pedro da
Fonseca (Metafísica e Lógica). Com relação a referencias históricas, Bernardino Llorca (História de la
Iglesia Catolica), Marcel Bigne de la Villeneuve (Teoria del Estado).
Deixou, como discípulos Ricardo Henrique Dip (La Prudencia Juridica); Felix Adolfo Lamas (La Razon
Pratica y el Derecho Natural); Miguel Ayuso Torres (El Leviatan; La Agora y la Piramide Juridica).
Faleceu em 31 de maio de 1992 deixando um legado bibliográfico muito rico no campo da política e
da filosofia jurídica: O positivismo jurídico e o direito natural; Política e Teoria do Estado; Perspectivas
históricas e sociológicas do direito brasileiro; Introdução à história do direito político brasileiro;
Socialismo e corporativismo em face da Encíclica "Mater et Magistra"; Raízes históricas da crise
política brasileira; Capitalismo, socialismo e comunismo; A historicidade do direito e a elaboração
legislativa; Da representação política; A constituição e os valores da nacionalidade; O totalitarismo
nas origens da moderna Teoria do Estado (um estudo sobre o "Defensor Pacis" de Marsílio de
Pádua); O Estado tecnocrático; Iniciação à Teoria do Estado; Direito Natural, Direito Positivo e Estado
de Direito; Dicionário de Política (José Pedro Galvão de Sousa, Clóvis Lema Garcia e José Fraga
Teixeira de Carvalho); Para Conhecer e Viver as Verdades da Fé.
60
observa no prefácio: “Os estudos aqui reunidos foram escritos em diferentes épocas,
mas há entre eles uma conexão que dá unidade ao presente volume”.116

A obra é definida pelo próprio autor como “dissertação”117, mas é consenso


que mereça classificação que faça jus a seu peso. É composta por oito capítulos em
divididos em duas partes:

a) “O Positivismo Jurídico e o Direito Natural”: parte I (capítulos I a III);


b) “O Direito Natural em sua Fundamentação Transcendente e em sua
Realização Histórica no Direito Positivo”: parte II (capítulos IV a VIII).

Na primeira parte “O Positivismo Jurídico e o Direito Natural”, o autor pretende


mostrar uma incompreensão do real sentido do direito natural no início do
positivismo moderno; então, nos capítulos seguintes, discorre sobre as doutrinas
positivistas próprias da filosofia do direito, que, por si próprias, vão ao encontro do
direito natural.118

Já na segunda parte, autor inicia “O Direito Natural em sua Fundamentação


Transcendente e em sua Realização Histórica no Direito Positivo” falando sobre o
fundamento Objetivo da Ordem Moral e Jurídica. Então, nos capítulos V e VIII,
analisa suas próprias obras, compostas por textos publicados em revistas de Direito
e trabalhos apresentados em congressos no Brasil e no mundo. Como é de praxe,
em todas as obras o autor faz questão de colocar o direito natural como
consequência direta da lei natural, de caráter divino.

Para o seguimento de nosso texto, a seguir faremos uma retomada dos


principais temas abordados em cada um desses capítulos.

2.1. O Positivismo Jurídico e o Direito Natural

A primeira parte dessa obra119, relativa ao positivismo jurídico em face do


direito natural, data de três décadas de sua publicação120, e como aponta o próprio

116
SOUSA, José Pedro Galvão de. Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1977, p. 2.
117
Idem, p. 12.
118
Idem, p. 2.
119
Idem, p. 6.
120
Tendo-se em vista que a obra foi publicada na década de 70 do século passado, trata-se de um
trabalho elaborado na década de 40 do mesmo século.
61
autor, “conserva a própria atualidade do tempo em que foi pela primeira vez
publicado”121. Trata-se do trabalho desenvolvido à época para o concurso de
Professor Catedrático de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco.

José Pedro Galvão de Sousa discorre sobre o conceito clássico de direito


natural no primeiro capítulo – Do Direito Natural Clássico ao Positivismo Jurídico. Ao
longo do texto, o autor cita Aristóteles, que deu origem à discussão ainda na Grécia
Antiga ao separar a justiça por natureza da justiça pela lei, e discorre sobre um dos
primeiros usos patrísticos do termo Lei Natural, feito no século VII por Santo Isidoro
de Sevilha. O filósofo classifica a Lei Natural como um conjunto de normas ligado à
justiça, para ordenar as ações da aristocracia frente à comunidade política. Depois
de afirmar os vínculos entre o Direito Natural, o Direito Romano, o Direito Canônico e
as teorias surgidas na Idade Média por meio de nomes como Egídio Romano, Jaime
Viterbo, Alejandro Hales e Alexandre Elpidio, Graciano conclui:

Não obstante as multíplices variantes dessa tradição, é


unânime a aceitação de um princípio superior de conduta, regra geral
de toda ação humana, inerente à própria natureza e critério supremo
122
da justiça e da equidade.

Em seguida, o filósofo atesta a essência moral do direito natural. Isso significa


que, para Graciano, o direito natural equivale aos princípios fundamentais da
moralidade. A lei natural preza, portanto, pelo bem-estar da natureza123 humana.

José Pedro Galvão de Sousa, levando em conta os relatos de Graciano, faz


uma crítica ao direito positivo que se abstém da característica moral. Para o autor,
também o direito positivo está atrelado a um preceito moral, apesar de seu conceito
diferir do de direito natural. O direito positivo, porém, adapta-se de forma especial às
necessidades do bem comum. Na prática, isso significa que o papel do direito
positivo é garantir a execução do direito natural em determinada ordem social. O
direito natural do homem à vida, à constituição de família e ao produto de seu
trabalho, por exemplo, são necessidades do bem comum e, por isso, abrem espaço
ao direito positivo para que sejam plenamente garantidos.

121
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 5.
122
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 6.
123
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 8/9:
62
Três correntes de pensamento foram fundamentais, segundo o autor, para
determinar uma mudança de rota naquele direito natural tradicional da Grécia Antiga
até a Idade Média. Primeiro, o voluntarismo, doutrina que privilegia a vontade em
detrimento das disposições intelectuais do homem; segundo, o racionalismo, que
traz a razão como a única forma disponível ao homem para alcançar o pleno
conhecimento; e, por fim, o individualismo, conceito político que valoriza a autonomia
individual frente à noção de grupo ou sociedade.

Assim, a partir do século XVIII, novas formas de pensar o sistema jurídico


começam a surgir. O autor afirma que, com um juízo exacerbado dos direitos
subjetivos naturais e sob influência de Augusto Comte, o direito natural passa a ser
classificado pelas correntes positivistas filosóficas como um conjunto modelo de
normas que deve ser utilizado para a concepção das novas legislações.

A crítica maior que pesa contra os defensores do direitos natural, elaborada


pelos positivistas consiste na questão da universalidade e imutabilidade da lei da
natureza. Diante das variações da moral e do direito, no espaço e no tempo, os
positivistas asseveram o repleto relativismo, e concluem que o Direito Natural não
sobrevive atualmente a uma robusta crítica científica.

José Pedro rebate com a seguinte máxima:

Mas a argumentação é falha. Não basta confrontar com as


observações dos fatos sociais somente os sistemas de direito natural
que têm a pretensão de estabelecer um tipo perfeito e imutável de
toda a ordem jurídica positiva. Segundo a genuína concepção de
direito natural, os predicados de universalidade e imutabilidade valem
para os primeiros princípios, mas à medida que se vai descendo para
o particular e contingente, nas aplicações da lei da natureza, mais
124
variável e relativa se torna esta.

Na mesma esteira, o autor distingue a lei natural em si mesma e o


conhecimento que dela temos. Os primeiros princípios prenuncia o autor, a lei
natural é universal e permanente em si mesma e é de todos conhecida sem
possibilidade de erro. Não é preciso demonstrar que deve fazer o bem e evitar o mal
por exemplo. Já no que tange aos preceitos secundários, a lei natural nem sempre é
imutável e quando o é, pode não ser igualmente conhecida:

124
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 14.
63
Seja o conhecido exemplo da obrigação de restituir uma
coisa dada em depósito. Trata-se de um preceito secundário da lei
natural, aplicação do princípio geral de justiça – dar a cada um o que
lhe pertence. Suponhamos que eu tenha recebido uma arma em
depósito. Se o depositante ou proprietário pedir a devolução dessa
125
arma para cometer um crime, é claro que eu não devo entregá-la.
126

Sustenta o autor que o conhecimento das aplicações da lei natural não é o


mesmo em todos e pode ser prejudicado por causas acidentais, tais como a força
das paixões, maus costumes ou elementos distintos do desenvolvimento da razão e
da civilização. Tais desvios em suas aplicações no direito positivo revelam que há
leis justas e injustas. Esta última pode ser definida como uma lei que contraria a
razão e que, portanto, não pode ser classificada como lei. Ou seja: enquanto o
direito natural expressa, por princípio, a noção de justiça, o direito positivo corre o
risco de violar o direito natural e, assim, se tornar injusto.127

Galvão de Sousa segue citando o positivismo jurídico, em diferentes tempos e


configurações128. Ao longo do segundo capítulo – “O Positivismo Jurídico e o
Fundamento do Direito” –, o autor identifica o positivismo jurídico em nomes como
Hobbes e Rousseau, por exemplo. O primeiro apela para o positivismo jurídico ao
justificar o absolutismo do Estado frente ao ius naturale, que garante o direito da
liberdade ao indivíduo; já em Rousseau, o direito positivo aparece na
fundamentação do contrato social, que relega o direto natural como algo exterior. O
autor, com base em suas análises, chega então a três pilares para fundamentar o
positivismo jurídico:

125
Idem, p. 16.
126
Este clássico exemplo é extraído da obra de Platão “A Republica” em 331-e: “dar a cada um o que
lhe é devido, máxima que se afigura bem enunciada (...) devolver o que nos foi dado para guardar,
se, ao pedi-lo, o dono se encontra perturbado das idéias.”. p. 55
127
Também podemos nos perguntar se cabe ao legislador positivo sancionar quaisquer normas ou se
é seu dever seguir estritamente o que manda o direito natural. Para São Tomás de Aquino, vale a
segunda opção: o legislador deve, sim, respeitar as exigências da lei natural. Na visão tomista das
virtudes cardeais, a vontade do legislador deve ser guiada pela prudência e pela razão, para, assim,
encontrar o bem, interpretá-lo, e transformá-lo em lei. A prudência, portanto, é a grande virtude do
legislador, é a força que o faz agir de maneira moderada, incisiva e, por fim, justa.
128
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 19/20: o autor cita e analisa movimentos como: o
utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill; o positivismo de Augusto Comte; a teoria da
criminalidade dos italianos Ferri e Lombroso; o positivismo sociológico de Spencer; o caráter
psicológico do positivismo italiano; o teleologismo de Ihering; a teoria jurídica do Estado de Laband e
Jellinek; o direito positivo “intuitivo” de Gurvith; o modelo positivista jurídico-moral de Ripert; a
corrente de positivismo independente de Merkel, Berbohm, Austin e Edmon Picard; o formalismo
ceticista jurídico; e o positivismo marxista, com seu caráter econômico.
64
1 – o que reduz todo direito ao direito positivo, sem admitir nenhuma
espécie de direito natural (exemplo: o “direito puro” de Picard);
2 – o que atribui um valor intrínseco absoluto ao direito positivo,
negando-lhe um fundamento suprajurídico, mas admitindo também
um direito natural (exemplo: o positivismo de Rousseau);
3 – o que fundamenta o direito positivo em uma lei superior, de ordem
129
cósmica ou sociológica (exemplo: o sistema de Spencer).

O autor então discorre sobre a obra de Spencer, Pedro Lessa, Icilio Vanni,
Micelli e Leon Duguit, nomes que defendem a existência de uma norma superior ao
direito positivo e, portanto, representam a terceira possibilidade acima
fundamentada.

Filósofo e sociólogo inglês, Herbert Spencer se baseia na lei da sobrevivência


dos mais fortes, presente de forma incisiva na vida de todas as espécies inferiores à
espécie humana. O homem, no entanto, tem sua peculiaridade: mantém viva sua
espécie por meio da lei que condiciona maior prosperidade aos indivíduos mais bem
adaptados às suas condições de vida. Para Spencer, portanto, a conservação da
espécie é o bem maior, é o que rege todo o sistema moral da humanidade. Sua
fórmula de justiça configura-se assim: “Todo homem é livre de agir como queira,
desde que não infrinja a igual liberdade de qualquer outro homem”130. O direito,
portanto, para Spencer, é o resultado direto da expressão natural social do homem,
que está diretamente ligada ao princípio primordial de conservação da espécie, que,
por sua vez, se configura como o grande guia da conduta universal.

Galvão de Sousa classifica o brasileiro Pedro Lessa, que atuou de forma


marcante como docente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
como o grande representante do positivismo jurídico evolucionista. O autor cita os
Estudos de Filosofia do Direito, de Lessa, que trazem a seguinte constatação quanto
à validade do direito natural: “Desconhecer esse resíduo de todas as legislações
escritas e consuetudinárias, equivale a supor que a fauna e a flora de todos os
países, dadas as sensíveis diferenças de clima e de solo, não estejam sujeitas às
mesmas leis biológicas fundamentais”.131

129
Idem, p. 22.
130
Idem, p. 26: “Corolários da fórmula de justiça são os diversos direitos subjetivos ou liberdades
individuais, como os direitos à integridade física, à liberdade de locomoção, à propriedade, de doar e
legar, de contratar livremente etc.”.
131
Idem, p. 27.
65
O autor se refere ao filósofo e sociólogo Icilio Vanni como o grande
representante do “positivismo crítico”, que deduz o fundamento do direito das
“condições de existência humana no estado de associação”; tal fundamento teria, no
entanto, um caráter social e psicológico, em detrimento de uma qualidade natural e
biológica. Os conceitos fundamentais do direito estariam, portanto, armazenados no
âmago da psicologia social. O filósofo também defende a ligação do direito a uma
“ordem universal”, discorre a respeito de sua constituição histórica e conduz uma
investigação ética de seus preceitos racionais. Galvão de Sousa, com base nesse
ponto, faz uma colocação pertinente:

“Ora, afirmar que o direito depende da ordem universal; que ele se funda
nas condições de existência do homem no estado associativo e que, por
sua vez, esse estado é natural ao homem; enfim, que há uma natureza
humana específica em função da qual devemos procurar a valutazione
ética do direito – tudo isso não é reconhecer a existência de um
132
fundamento objetivo e natural da ordem jurídica?”.

Para o autor, Micelli valoriza ainda mais a qualidade psicológica do direito.


Professor da Universidade de Pisa, o italiano trata da consciência como origem
fundamental do direito, responsável pelo conjunto de ações conhecido como
“consciência jurídica”. A ordem dos fins jurídicos e a ideia de uma estrutura perfeita
de relações jurídicas, superior ao direito como se conhece hoje, vem dessa
consciência. Sobre tal discussão, Galvão de Sousa complementa: “Em todos os
tempos, a consciência humana proclamou a existência de uma ordem natural a que
se devem conformar as leis positivas para serem justas”.133

Galvão de Sousa, enfim, cita Léon Duguit, que manifesta uma ideia
semelhante de direito natural, também fundamentada em uma base psicossocial. O
autor exemplifica com os conceitos de justo e injusto, que aparecem como uma
constante na natureza humana de forma extremamente variável, apesar de
manterem um caráter permanente de proporção e igualdade. Duguit pode ser
comparado a Cícero quando discorre sobre os fundamentos do Direito, apesar de
seu posto revolucionário na ciência jurídica. Ambos defendem a permanência da
norma do direito em seu princípio, com infinitas possibilidades de mudanças em
suas aplicações. Tal constatação está presente primordialmente na consciência do

132
Idem, p. 31.
133
Idem, p. 34.
66
ser humano, e indubitavelmente resulta do direito natural, ou seja, é própria de todo
e qualquer indivíduo desde o seu nascimento. O autor aponta, aqui, uma contradição
na obra de Duguit: apesar de desprezar o direito natural, o filósofo defende a
necessidade de uma sociedade para a vida do homem e, portanto, sua
inevitabilidade de agir conforme tal princípio “tirado dele mesmo, de sua dupla
natureza individual e social”. O caráter social do homem é o que determina a regra
de direito, ou seja, para o homem se manter vivo, ele necessariamente precisa estar
em uma sociedade e, para viver em sociedade, é primordial que aja de acordo com
as normas exigidas pelo bem-comum. Mais adiante, o autor aponta que
“posteriormente, Duguit explicou melhor a coexistência do sentimento de
solidariedade com outro sentimento que se acha na origem do estado de
consciência criador da regra de direito – o sentimento de justiça”134.

Por fim, Galvão de Sousa constata que Duguit faz uma confusão entre direito
ideal e direito natural ao rejeitar este último: “É pena que Léon Duguit não chegasse
a conhecer perfeitamente o objetivismo da concepção clássica de direito natural, de
que ele, por vezes, com algumas de suas próprias ideias, tanto se aproximou”.135 O
autor faz um alerta para a frustração provocada pelo positivismo na filosofia, ao
tentar, de forma inútil, substituir a natureza fundamental da realidade por uma
reunião de ciências particulares; tal frustração se estende à filosofia jurídica, com a
destituição do conceito de direito natural. Presta solidariedade, enfim, a Del Vecchio,
na seguinte citação:

A ideia de direito natural é, na verdade, daquelas que


acompanham a humanidade no seu desenvolvimento; e se, como, de
certo, tem ocorrido, principalmente em nossos tempos, algumas
escolas fazem profissão de excluí-la ou ignorá-la, ela se afirma,
poderosamente, na vida. Por isso é vã e incôngrua a tentativa de
136
repudiá-la.

Em “A Necessidade do Direito Natural”, capítulo que encerra a primeira parte


de sua obra, Galvão de Sousa defende o direito natural e a justiça como os únicos
critérios capazes de fazer oposição contundente ao legislador e, dessa forma,
impedir seu arbítrio. Para justificar sua conclusão, diz que “negar o direito natural é

134
Idem, p. 40.
135
Idem, p. 43.
136
Idem, p. 45.
67
negar o princípio absoluto da justiça. Ora, o direito ou é objeto da justiça, ou é
simples produto das flutuações do arbítrio legislativo”.137

Sem o direito natural, o legislador não tem motivo para buscar o bem-estar da
comunidade ou para impor o cumprimento de quaisquer normas. Por conta disso, é
comum testemunhar afirmações vindas dos próprios positivistas a respeito da
aceitação de um princípio essencial e constante, que se coloca acima da vontade
humana, e que serve como alicerce para a constituição do fundamento da ordem
jurídica.138

A lei natural prega, em primeiro lugar, a imposição de escolher o bem frente


ao mal; a justiça, por outro lado, tem o objetivo de garantir a cada indivíduo aquilo
que lhe é devido – o que, por definição, denomina-se justo.

Galvão de Sousa se posiciona contra aqueles que tentam limitar as ações do


legislador levando em conta preceitos de utilidade social:

É incontestável que a utilidade social não pode ser


eliminada das cogitações do jurista. A lei é um preceito racional; deve,
pois, conformar-se à reta razão, ao direito natural. Mas é um preceito
racional para o bem comum; e por isto, deve conformar-se também
ao interesse social. Justiça e utilidade social são os dois critérios
supremos da ordem jurídica positiva. Mas quando se diz que o direito
positivo deve ser conforme a utilidade social, ou melhor, que se
destina o direito positivo a promover o bem comum, isto já é
determinação de um princípio mais geral, anteriormente admitido, e
supõe: 1 – a obrigação de fazer o bem; 2 – a noção objetiva de bem
139
comum e o conhecimento dos fins da atividade humana.

O autor, então, discorre sobre as definições de “bem” e “fim”. Da mesma


forma que o “ser” é o objeto natural da inteligência, o “bem” é o da vontade. Já a
ideia de “fim” é regida pelo princípio da finalidade, ou seja, pelo fato de todo agente
operar com a expectativa de um fim. O fim poderia, portanto, ser definido como o
“bem honesto”, em detrimento a um “bem necessário” ou ainda “prazeroso”. Dessa
constatação surge mais uma falha dos positivistas:

Enquanto o direito natural clássico se fundamenta no bem


honesto, o positivismo procura geralmente encontrar o fundamento
objetivo do direito no bem útil. Ora, o bem útil só pode ser
compreendido como um meio, ao contrário do bem honesto, que se
procura por si mesmo, e do bem deleitável, que é o termo dos

137
Idem, p. 46.
138
Tal como a Norma Fundamental de Hans Kelsen.
139
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 48/49.
68
movimentos do apetite sensível. (...) Eis a razão pela qual os
positivistas, que fundamentam suas doutrinas no bem útil, são
140
incapazes de construir uma filosofia do direito completa.

Mas, para se conhecer o direito natural tal como se formou através do longo
evolver das doutrinas que remonta a Aristóteles e aos romanos, bem como se
entender as distinções entre o bem e o mal, o justo e o injusto, é preciso conhecer
as suas bases metafísicas, e esse é o objeto da Segunda Parte da obra em
comento.

2.2. O Direito Natural em sua Fundamentação Transcendente e em sua


Realização Histórica no Direito Positivo

Como já dissemos, na segunda parte (cap. IV ao VIII) o autor colaciona


alguns artigos e trabalhos apresentados em congressos e conferências
internacionais e nacionais. Entretanto, não abre mão de afirmar sua defesa da
condição do direito natural como consequência direta da lei da natureza, de caráter
divino. Nas suas palavras:

O direito natural não é algo de desencarnado das realidades terrenas, nem


um direito meramente moral e sem valor jurídico, tal como ensinam erradamente
alguns, partindo aliás de um falso pressuposto: a separação entre a moral e o direito.

Nos capítulos seguintes ver-se-á, primeiro, a unidade


fundamental dessas duas ordens normativas que regem a atividade
humana. Depois, serão considerados alguns aspectos do
relacionamento entre ambas, a nos mostrarem, por um lado, a ordem
jurídica positiva derivando da lei natural e, por outro, o direito natural
141
inserindo-se no direito positivo.

No capítulo IV (O Fundamento Objetivo da Ordem Moral e Jurídica), José


Pedro Galvão de Sousa expõe o pensamento filosófico que embasa sua

140
Idem, p. 51.
141
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 53: “O direito natural não é algo de desencarnado das
realidades terrenas, nem um direito meramente moral e sem valor jurídico, tal como ensinam
erradamente alguns, partindo aliás de um falso pressuposto: a separação entre a moral e o direito. /
Nos capítulos seguintes ver-se-á, primeiro, a unidade fundamental dessas duas ordens normativas
que regema atividade humana. Depois, serão considerados alguns aspectos do relacionamento entre
ambas, a nos mostrarem, por um lado, a ordem jurídica positiva derivando da lei natural e, por outro,
o direito natural inserindo-se no direito positivo”.
69
compreensão do direito natural. Para ele, o ser humano, “para viver como homem”,
isto é, conforme a sua natureza, deve obedecer a certas normas, que ele denomina
de lei natural. Essas normas não somente coexistem com a natureza, mas lhe
preexistem, na mente divina, pois a natureza humana é criada por Deus142. Tal
entendimento é, e sempre foi, o aspecto mais combatido do direito natural. As
correntes positivistas argumentam que essas leis são produto da razão humana,
sem intervenção divina. A fim de fundamentar sua posição, e contrapor-se aos
positivistas, o autor, em várias passagens procura reforçar seu entendimento. A
título de exemplo, citamos essa passagem:

Não há nenhum antropomorfismo em atribuir inteligência ao


princípio ordenador do universo. (...) A rigor, nem se deve dizer que
esse Princípio tem inteligência ou é inteligente, mas sim que é a
Inteligência – na lição de Aristóteles, o pensamento é a sua própria
essência. (...) Tudo isto mostra como a ordem natural, expressa pelo
determinismo das leis físicas e pela livre sujeição dos atos humanos à
lei moral, supõe uma Inteligência Ordenadora que não pode ser outra
143
senão a de Deus, Autor da natureza. (grifos no original).

E continua, em outra passagem, combatendo os entendimentos contrários à


sua posição:

Para evitar o absurdo das pseudo-explicações da ordem do


universo pelo acaso, ou admitimos a criação do mundo por Deus, a lei
eterna e a Providência, ou somos levados ao panteísmo.
Eis por que toda filosofia do direito. (...) é necessariamente
144
teológica, não se tratando aqui – é óbvio – da teologia revelada.
(...)
Portanto, a concepção do direito natural, se não supõe
necessariamente a Revelação, entretanto supõe a lei eterna e, nesse
145
sentido, é uma concepção teológica.

Galvão de Sousa considera o ser humano muito diferente dos outros animais
porque, dotado de “uma débil centelha da sabedoria, do poder e do bem eternos”,
possui essência ou natureza racional. É essa razão que o leva a saber que deve
fazer o bem e evitar o mal. E chega a apoiar citação de Martyniak de que a

142
Idem, p. 56: “Tal ordenação da conduta humana é o fundamento último e a norma suprema da
moralidade dos atos humanos e de toda a ordem moral e jurídica. É a lei da natureza enquanto na
mente do Autor dessa natureza, o qual é o legislador supremo do universo. É a lei eterna, cuja
irradiação, no homem, chamamos de lei natural”.
143
Idem, p. 64.
144
Idem, p. 65.
145
Idem, p. 70.
70
tendência para a reprodução, no ser humano, “não é um instinto animal”. Também
apoia o entendimento dos romanos (citando Ulpiano), de que só os seres
inteligentes (ou seja, os seres humanos) podem ser sujeitos de direito, porque são
dotados de razão.

Repreende os positivistas que denegam o direito natural, inspirado em


Durkheim, quando colocam em seu lugar um critério superior e objetivo de justiça,
que faça com que o direito não seja uma expressão arbitrária da força. E combate
Léon Duguit, com seu droit objectif, baseado na solidariedade. Argumenta que
solidariedade é a natureza social do ser humano e em abono de sua tese cita
Vareilles-Sommières:

Chama-se ainda lei eterna porque ela foi concebida e


querida desde toda a eternidade e para toda a eternidade por Deus
eterno. A lei eterna e a lei natural não são duas coisas diferentes
como a leitura superficial dos teólogos poderia fazer crer. São uma só
e mesma lei: que se chama lei eterna quando se considera como
decretada no espírito do supremo Legislador, lei natural quando se
146
considera como promulgada no espírito do homem.
A imutabilidade e a universalidade da lei natural decorrem
da lei eterna, da qual aquela é uma participação na criatura racional,
sendo que os seus princípios são suscetíveis de ser conhecidos mais
ou menos perfeitamente pelos homens. Criador e ordenador do
universo, Deus estabelece a ordem natural pela lei eterna e dá ao
homem a razão mediante a qual este conhece aquela ordem. Mais
uma vez, a transcendência e a imanência do direito natural. Ele é
transcendente, enquanto contido na lei eterna; imanente, enquanto
expressão da natureza humana, a qual participa da lei eterna pela
147
razão, que permite ao homem o conhecimento da ordem natural.

Conclui seu pensamento, afirmando:

A lei, por excelência, é a lei eterna. Todas as outras leis são


leis por participação. E a lei positiva só é verdadeira lei na medida em
que participa da lei natural, a qual, por sua vez, é uma participação da
148
lei eterna no homem.

No capítulo V – Direito Natural e Direito Histórico149 (A Propósito da Filosofia


Jurídica de Giambattista Vico), o autor inicia esse trabalho expondo as
“equivocações do positivismo jurídico”, contrariando o entendimento desta corrente

146
Idem, p. 69.
147
Idem, p. 81.
148
Idem, p. 70.
149
Comunicação apresentada ao Convegno di Studi sull’Opera di Giambattista Vico, Bari, 7-8 de
dezembro de 1975.
71
que entende ser o direito determinado exclusivamente pelos legisladores e os
tribunais dos diferentes países. Os argumentos são basicamente os mesmos já
expendidos na primeira parte do livro, acima analisados.150 Também repete os
argumentos contra Léon Duguit, com seu conceito de solidariedade; contra Icílio
Vanni, com sua “valoração ética”; contra Micelli, com sua consciência reguladora
comum a todos os homens.

Lembra que os máximos representantes da multissecular tradição baseada na


visão do homem em perspectivas éticas e metafísicas partiam da evidência dos
primeiros princípios e do conhecimento experimental da natureza humana, além da
norma fundamentalíssima formulada por São Tomás de Aquino: bonum est
faciendum et malum vitandum. Conclui, mostrando a influência do direito natural:

O direito natural apresenta-se assim como um ideal a ser


realizado pelo direito positivo. E daí vai apenas um passo para que
ele seja transformado num código completo, servindo de modelo
político e legislativo a todas as sociedades, sejam quais forem as
suas condições históricas. Equacionamento este que do plano
filosófico do direito natural foi transposto para o plano técnico-jurídico
do direito positivo, nos movimentos constitucionalistas do século
151
passado e nas codificações do direito civil.

Além disso, critica a escola histórica do direito, pela oposição feita


principalmente por Savigny entre a “escola histórica” e a “escola não histórica”, o que
desencadeou as críticas ao direito natural como um direito não histórico, puramente
racional, inaceitável ante as exigências da ordem jurídica positiva. Observa que
esses críticos viam o direito natural como primitivo ou pré-social, equívoco que
residia precisamente no julgar a ideia de direito natural através de concepções que a
deturpavam.152

Ao abordar a exemplaridade do direito natural, o autor repete as


argumentações já apresentadas nesta obra, no sentido de que não se deve

150
Repete a passagem em que Cícero, “com as louçanias do seu estilo”, demonstra que se os
decretos dos chefes e as sentenças dos juízes constituíssem o direito, nada os impediria de alterar,
com suas deliberações, a natureza das coisas. Por que motivos não poderiam decidir que o que é
mau e pernicioso se considerasse bom e salutar?
151
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 75.
152
Idem, pp. 75/76: “Importa, pois, ter presente que: 1º) a natureza, quando aplicada esta noção ao
direito para daí se chegar à ideia de direito natural, é algo de concreto, vívido, realizado na história;
2º) o direito natural não é um paradigma ideal a servir de modelo ao direito positivo, mas um princípio
ordenador, um fundamento, uma diretriz”.
72
considerar o direito natural um direito ideal para servir de modelo às legislações
positivistas.153

Sobre a variabilidade da lei natural, socorre-se dos estudos de etnologia e dos


trabalhos da escola histórico-cultural, bem como dos ensinamentos de Santo Tomás,
no que respeita o problema da variação da moral, e argumenta que vários são os
motivos desses procedimentos que vão de encontro à lei da natureza: a ação
provinda das paixões, os descuidos da razão humana na prática dos princípios
primordiais da moralidade, a diferença na evolução de manifestações culturais aptas
a mudanças de qualidades diversas e, por isso, sujeitas a aperfeiçoamentos e a
declínios.

Ao analisar o pensamento de Giambattista Vico, observa que o problema da


transcendência e a imanência154 do direito natural é uma das preocupações
primeiras do pensador napolitano e que ele não seguiu o imanentismo de Grócio,
que admite a possibilidade da lei natural sem a lei eterna. Vico tem constantemente
diante de si a verdade que o ser humano, criado por Deus em natureza íntegra, é
por sua causa corrompido e em sua queda, além de sofrer detrimento nos dons
naturais, perdeu a graça, que o tornava participante da natureza divina. Donde a
distinção entre a virtude moral dos gentios (que não podem praticar a virtude
perfeita) e a dos cristãos. O mesmo ocorre com a compreensão do direito natural
pelos gentios, que se afastam, por vezes, em suas práticas sociais, dos princípios da
lei natural.

Conclui que Giambattista Vico, dotado de profundo senso histórico,


proporciona elementos fundamentais para uma filosofia do direito construída sobre a
condição real e histórica do ser humano, contribuindo sobremaneira para sua
doutrina jusnaturalista.

153
Ibidem, p. 79: Para ele o direito positivo é uma “técnica de realização do justo” e o direito natural “é
expressão do justo em si” (...) “O que se deve procurar no direito natural não é um modelo para as
legislações e os regimes políticos (pois estes e aquelas dependem do condicionamento histórico de
cada povo), mas sim a razão do justo que deve impregnar todos os regimes e todas as leis. O direito
natural não é um direito ideal, mas um direito fundamental”.
154
Idem, p. 81: “Mais uma vez, a transcendência e a imanência do direito natural. Ele é
transcendente, enquanto contido na lei eterna; imanente, enquanto expressão da natureza humana, a
qual participa da lei eterna pela razão, que permite ao homem o conhecimento da ordem natural”.
73
No capítulo VI (O Direito Natural e as Fontes do Direito155), Galvão de Sousa
baseia esse trabalho afirmando que o tema “fontes do direito” passou por ampla
revisão, causada pelo “declínio do positivismo jurídico” e pelo “repúdio ao legalismo
formalista”, que haviam desfrutado de grande prestígio entre juristas do século
anterior156. O positivismo nega o direito natural, sustentando que o único direito
realmente existente é o direito positivo; o legalismo pretendia restringir o direito à lei
escrita.

Assim, começaram a ser consideradas entre as fontes do direito, além da lei,


o costume, a jurisprudência, os princípios gerais do direito, as normas convencionais
e estatutárias. Apesar disso, considera que, a mentalidade positivista e legalista
ainda prevalece entre certos juristas. Um sintoma da permanência dessa
mentalidade está na identificação, feita por muitos, entre o direito e a lei e a
generalização da conceituação do direito exclusivamente em dois aspectos,
correspondentes aos denominados direito objetivo e direito subjetivo.

Direito objetivo é a lei, a norma jurídica; direito subjetivo é a faculdade ou o


poder de agir dentro dos limites traçados pela lei. Esse formalismo retira do direito
todo conteúdo de justiça e essa visão mecanicista merece acurada crítica.157

O direito é termo análogo, isto é, pode ser entendido de vários modos em


sentidos diferentes, embora relacionados entre si: é o justo objetivo, o que é devido
a cada um; é o poder moral de exigir o que nos compete (direito subjetivo); é a lei,
ou norma regulamentadora do exercício do direito nas relações sociais; é a ciência
jurídica. Em todos esses casos vemos a norma dirigida a fazer observar o que é
justo e no justo objetivo a ideia essencial do direito. Galvão de Sousa recrimina todo
pensamento jurídico que ignora esse fato:

Nada mais contrário à experiência histórica de todas as


épocas do que fazer do direito um produto do Estado, tese
característica do totalitarismo de nossos dias, tendo, aliás, neste
ponto como precursores, o liberalismo e o positivismo. Não só porque
antes do Estado, que é uma formação política historicamente recente

155
Comunicação apresentada às Terceiras Jornadas de Direito Natural, de Santiago do Chile (21 a 26
de junho de 1977).
156
Observe-se que o autor está se referindo ao século XIX, pois o livro foi publicado em 1977.
157
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 87/88: “Efetivamente, é pelo direito, como expressão
de uma ordem instituída na sociedade, que se alcança a harmonização das liberdades, indispensável
para assegurar o convívio pacífico dos homens. Mas o que sobretudo importa é que a coexistência
humana seja realizada segundo os princípios da justiça. Do contrário, como diria Santo Agostinho,
não haveria nenhuma diferença entre uma sociedade bem ordenada e um agrupamento de
bandoleiros. Diremos hoje, de gangsters ou de terroristas”.
74
e peculiar à idade moderna, outras sociedades já estavam
politicamente organizadas e naturalmente tinham uma ordem jurídica
própria, da qual não podiam prescindir (...). O monismo jurídico, não
concebendo outro direito senão o estatal, levado ao extremo por
Kelsen na identificação do Estado com a ordem jurídica, implica um
univocismo que faz perder toda a riqueza de significações do conceito
158
de direito.

Assim como o direito, a expressão “fontes do direito” pode ser tomada em


significações diversas, conforme consideremos fonte no seu sentido próprio e
originário. A fonte nos dá a água, mas ela tem origem nas camadas mais profundas
da terra. Do mesmo modo também as fontes do direito, que podem ser diferenciadas
entre “fontes de produção” e “fontes de manifestação do direito”. As fontes podem
significar a produção de alguma coisa ou a sua produção. E num sentido mais
profundo, fonte significará a justificação racional da regra de direito, seu fundamento
transcendente, aspecto esse que nos conduz do direito positivo ao direito natural.
Baseado nessa consideração, Galvão de Sousa nos dá a seguinte classificação das
fontes do direito, levando-se em conta suas diferentes significações:

1) fontes do direito no sentido técnico-jurídico (lei, costume,


norma jurisprudencial, direito estatutário, etc.);
2) o fundamento do direito;
3) fontes históricas do direito (v.g., o direito romano, fonte
do direito civil moderno, ou as Ordenações Filipinas, fontes do Código
Civil brasileiro);
4) fontes literárias (assim, os órgãos oficiais onde são
159
publicadas as leis).

Analisa as mudanças operadas no conceito das fontes do direito, nas


diferentes épocas e conclui que tem havido retrocessos. Considera que na Roma
clássica, as fontes formais do direito positivo, no sentido técnico-jurídico eram os
costumes, a lei, os plebiscitos, os senatus-consultos, as constituições imperiais e os
editos dos magistrados. Mas acima da vontade do povo, dos príncipes ou dos
senadores, reconhecia-se uma lei superior, o direito na sua fundamentação
transcendente. Quando, porém, em épocas posteriores, o Imperador reuniu em si as
funções das diversas magistraturas, sua vontade, expressa pelas constituições,
tornou-se a única fonte do direito. O mesmo ocorreu séculos mais tarde, após o

158
Idem, pp. 90/91.
159
Idem, p. 93.
75
Renascimento e a revolução protestante, com a nova mentalidade de se ver na lei o
produto da vontade do príncipe (absolutismo monárquico) ou do povo (absolutismo
democrático), reduzindo-se o direito à lei, donde o legalismo formalista e a
identificação positivista da ordem estatal com a ordem jurídica.

Galvão de Sousa não nega a importância da lei escrita, mas “cumpre não
atribuir à lei um poder mágico criador e transformador das coisas, (...) cavando-se
um abismo entre o direito formalmente elaborado e a vivência social, ou seja, entre
as fontes do direito no sentido técnico-jurídico e as fontes reais ou materiais”.160

Ao analisar a questão das fontes do direito positivo em face do direito natural,


Galvão de Sousa alerta para o fato de que não devemos entender que eles
constituem dois planos inteiramente diferenciados ou dois compartimentos
estanques. Também não devem ser admitidas visões errôneas do direito natural, ora
entendendo-o como um ideal, um modelo para o direito positivo, ora admitindo-o
num sentido puramente ético e não jurídico, separando a moral do direito. Essas
apreciações equivocadas do direito natural deixam de considerá-lo como
fundamento do direito positivo, em relação às determinações contidas na ordem
jurídica positiva. Essa transcendência é decorrente do critério de justiça, onde se
encontra a própria razão de ser do direito. Galvão de Sousa argumenta que esse
critério de justiça:

implica reconhecimento de uma ordem natural moralmente


inviolável e cujas normas se impõem à vontade do legislador e o juiz.
Tais normas são, por exemplo, aqueles três preceitos do direito
formulados pelos romanos: viver honestamente, não causar dano a
outrem, dar a cada um o que é seu. São preceitos da lei natural, que
se contêm no primeiro princípio da ordem prática: deve-se fazer o
bem e evitar o mal. (...) Sem o reconhecimento da lei natural e a
subordinação a um critério objetivo de justiça, o direito positivo torna-
se mera expressão da vontade do poder, isto é, da força social
dominante. É o domínio do voluntarismo incontrastável, que, nas
condições atuais das sociedades políticas, dá origem à última e mais
161
refinada forma do poder absoluto: o Estado totalitário.

O direito natural é intrínseco ao tempo presente, e, em comparação ao direito


positivo, é transcendente e imanente. Transcendente, porque não depende de uma
ordem jurídica colocada de forma positiva, mas advém de uma ordem natural e se
manifesta sob os limites da razão; imanente, porque sua atuação frente às normas

160
Idem, p. 96.
161
Idem, p. 97.
76
do direito positivo faz com que todo e qualquer elemento que se mostre contrário ao
direito natural torne-se imediatamente injusto ou injurídico.

Galvão de Sousa conclui suas considerações sobre as fontes do direito


fazendo uma sugestão e um alerta:

“O certo é considerar o direito positivo composto pelos


vários ramos de uma árvore frondosa, os quais constituem as
diversas fontes do direito, todas elas vivificadas pela seiva do direito
natural. Se esta não circula, a árvore se reduzirá a um acúmulo de
162
galhos secos”.

Em seguida, no capítulo VII (O Direito Civil entre o “Ius Naturale” e a


Tecnocracia163), o autor defende que o direito civil pertence à primazia cronológica e
ontológica do direito, antecedendo historicamente os outros ramos do direito, porque
sempre regulamentou instituições visceralmente ligadas à natureza humana. O
direito civil é aqui considerado no seu sentido amplo, isto é, na qualidade de direito
comum e abrangendo o direito de família, o das coisas, o das sucessões e o das
obrigações. Lembra que entre os romanos o direito civil era todo o direito positivo de
um Estado, mas hoje o direito civil é restrito ao direito privado. A primazia do direito
civil explica-se pelo fato de que, nas sociedades mais simples, atendia-se
primeiramente às necessidades mais elementares dos seres humanos, como o
direito à vida de cada um e o respeito aos seus bens, interesses vitais de todos.
Mesmo quando posteriormente o direito penal surgiu, supunha o reconhecimento
prévio dos direitos a serem protegidos, o que é objeto do direito civil.

Passa a fazer uma análise da problemática entre o direito da sociedade e o


direito do Estado, lembrando que este é uma formação política “de cerca de quatro a
cinco séculos”, inexistente na Idade Média como conceituamos modernamente.
Antes do Estado, o poder político estava concentrado na pessoa do rei, poder
diminuído inicialmente nas monarquias absolutas164. Ao absolutismo monárquico

162
Idem, p. 100.
163
Artigo escrito para a Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, de São Paulo
(1977).
164
Tese contrária a essa pode ser verificada nas obras de Francois Guizot, História do Governo
Representativo na Europa; Jacque Heers, História da Idade Média; Joan Huizinga, o outono na Idade
Média; Jacques Le Goff, A Sociedade Medieval, para quem, o poder na Idade Média era distribuído
dentre as várias partes do chamado “corpo místico de Cristo” no aspecto temporal. Além, da Clássica
divisão entre autoridade espiritual e poder temporal presente na patrística e sobretudo na primeira
escolástica, reis e cortes duelavam pela representatividade dos extratos sociais existentes na
sociedade medieval. Isso significa dizer que o Rei medieval não apenas tinha limitações impostas
77
sucedeu o absolutismo democrático e o poder institucionalizado eliminou
gradativamente o poder pessoal. Galvão de Sousa nota que, por exemplo, na
França de Luiz XIV o rei não ousava tocar no direito civil, porque se tinha a
consciência bem clara de que a sociedade, pelo costume e pelas suas instituições,
gerava uma ordem jurídica própria, não devendo o Estado desconhecê-la, nem
muito menos absorvê-la. O mesmo ocorreu, na mesma época, na monarquia
federativa da Espanha e na Itália iluminista do século XVIII. Observa que:

(...) o idealismo passou a prevalecer sobre o realismo nas


doutrinas políticas, nas concepções dos juristas, na obra legislativa e
até mesmo na aplicação do direito, sempre que tais doutrinas e
concepções ou a atividade dos legisladores e dos juízes deixavam
inspirar-se pelo subjetivismo, que foi a princípio romântico, depois
racionalista, em seguida positivista... para tornar-se em nossos dias
165
tecnocrático.

Afirma que vêm daí as construções jurídicas e os planejamentos políticos ou


econômicos, delineando uma ordem nova, dando origem às ideologias e também às
utopias da cidade futura, tudo desembocando na tecnocracia. Começaram a surgir
por toda a parte constituições elaboradas por assembleias constituintes a que se
atribuía um poder criador para dar ao Estado e até a sociedade uma

lei fundamental, como se esta não existisse já na própria


constituição natural e histórica de cada povo donde frequentemente o
conflito entre a lei constitucional e a realidade constitucional, entre o
direito do Estado e o direito da sociedade (...) No século passado
(século XIX) as constituições foram liberais, neste século (século XX)
passaram a ser socialdemocráticas ou francamente socialistas, tudo
dependendo da composição das assembleias – cabendo à maioria
decidir – ou da vontade do detentor do poder, no caso das
166
outorgadas.

O autor, qualificando a Constituição como lei fundamental do Estado, analisa


as várias fases de sua evolução, desde seus primórdios, como lei de garantias
contra as arbitrariedades do poder real (Magna Carta inglesa). Prossegue,
identificando em constituições modernas (França revolucionária, primeira
Constituição escrita, a dos Estados Unidos da América do Norte) esse mesmo pacto

pela autoridade espiritual do papa, senão também pelo conjunto das exigências impostas pela
sociedade medieval no aspecto corporativo. Por essa razão, o rei detinha funções militares, fiscais e
representativas do consenso social e espiritual, todavia, tais funções eram sopesadas pelo
extraordinário poder dos senhores feudais e do clero reunidos nas cortes (parlamentos medievais).
165
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 106.
166
Idem, p. 107.
78
entre súditos e o poder soberano, constituindo lei fundamental, no sentido de firmar
os princípios concernentes à estruturação do poder político e de garantir os direitos
dos cidadãos. Posteriormente, a Constituição passou a estabelecer também os
princípios fundamentais de toda a ordem social.

Referindo-se ao Brasil, observa que, enquanto nossa primeira Constituição


republicana, de 1891, se limitava a trazer a organização dos poderes e a garantia
dos direitos individuais, a de 1934 e as seguintes ampliaram a esfera dos seus
dispositivos, para abranger, como matéria constitucional, a ordem econômica e
social, a família, a educação, a cultura e a segurança nacional. Essa Constituição
colocava a família “sob a proteção especial do Estado”, tendo em vista preservar
instituições basilares da sociedade civil, fortalecendo pela intangibilidade
constitucional.

A Constituição era, assim, fonte de um direito superior, do qual todos os


outros ramos de direito dependiam. Mas, posteriormente, houve um alargamento das
funções do Estado, com a socialização do direito privado, foi-se dando uma invasão
do direito público, prevalecendo a Constituição do Estado pela constituição da
sociedade, absorvendo-a progressivamente. A publicização do direito, atingindo seu
extremo nos Estados totalitários, manifesta-se hoje como tendência generalizada,
particularmente típica onde prevalece a tecnocracia. Essa tendência é condenada
por Galvão de Sousa, em crítica contundente para seu tempo e mais para os dias de
hoje:

Manipulando uma sociedade massificada e apoiada no


dirigismo estatal, o poder público atua como se a sociedade não
tivesse uma constituição própria, entra em concorrência com os
corpos intermediários ou simplesmente passa a exercer as funções
destes, como se eles não existissem, e enquadra os indivíduos e os
grupos nas sua planificações. Uma tal atuação não se verifica apenas
na ordem econômica ou para atender objetivos de segurança, pois
até planejamentos familiares são feitos... e o Estado torna-se
167
distribuidor de pílulas anticoncepcionais.

Essa centralização e o dirigismo estatal, pressupostos do Estado tecnocrático,


submetem os direitos individuais à ordem econômica, política e social, num processo

167
Idem, pp. 109/110.
79
que acarreta a transformação do direito civil, em termos de direitos subjetivos, em
direito público.168

Galvão de Sousa defende que é a conformidade ao direito histórico que


assegura aos preceitos do direito civil perfeita adequação às condições reais de uma
sociedade. Considera como ponto de partida incontestável o fato da origem
consuetudinária do direito, de sua formação gradual numa linha de continuidade
histórica, de uma lenta passagem do direito familiar ao direito estatal. Mas os
juristas, influenciados pelos iluministas do século XVIII e pelos idealistas do século
XIX, vieram contribuir poderosamente para uma ruptura com o direito histórico na
busca de sistematizações abstratas e de modelos ideais para os códigos e as
constituições. Galvão de Sousa sintetiza essa ruptura nos seguintes termos: “Assim
se explica que a elaboração legislativa deixasse de ser um legere, isto é, o
reconhecimento de uma ordem natural e histórica, para se converter no produto de
um velle, numa criação mais ou menos arbitrária do legislador”.169

Crítica mais contundente o autor dirige à distorção existente na elaboração


legislativa levada a efeito pela tecnoburocracia:

O direito passa a ser manejado pelo poder confiado aos


técnicos, o que não é difícil, pois há bacharéis que, retomando a
tradição dos “legistas” defensores do absolutismo monárquico, se
fazem tecnocratas do direito, a serviço do absolutismo estatal e
monocrático. Tudo isso contribui para que a esfera do direito privado
se vá contraindo cada vez mais ao mesmo tempo em que se vai
dilatando a do direito público. (...) Redução do direito público ao
direito do Estado e absorção do direito civil pelo direito público são
dois aspectos jurídicos bem característicos do estatismo
170
contemporâneo.

168
No seu entender é a crise do direito civil, atribuindo-a à publicização do direito, ao individualismo
voluntarista e a uma ruptura com o direito histórico. Começa por comparar as concepções que tinham
do matrimônio os juristas romanos, que o viam como instituição, que transcendia o direito positivo e a
visão do individualismo, reduzindo o casamento a mero contrato. Da mesma maneira, outros ramos
do direito civil, como o direito das coisas, com a propriedade, e no direito das sucessões, com a
sucessão hereditária, tinham como pressupostos a constituição natural da família e o direito natural
da propriedade. O direito das obrigações está, no tocante à reparação do dano, informado pelo
princípio superior correspondente ao alterum non laedere dos romanos. O voluntarismo individualista
faz da vontade a criadora do direito, mediante a lei e o contrato. Para o positivismo jurídico o direito é
emanação da vontade e não decorrência de uma ordem subjetiva que transcende a vontade a ela se
impõe e a autonomia dos particulares vai sofrendo restrições progressivas e o direito público,
reduzido a direito do Estado, tende a absorver o direito privado.
169
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 115/116.
170
Idem, pp. 122/123.
80
O autor apela para que os legisladores deem a devida importância ao direito
civil, mas a valorização do direito civil só pode ser devidamente levada a efeito
mediante uma exata compreensão do direito natural, à luz de uma visão realista da
sociedade e do direito. E arremata:

Se o direito civil precede no tempo aos demais ramos do


direito, sobre os quais exerce uma primazia ontológica, é
precisamente porque suas origens estão na mais natural de todas as
comunidades, a família, cujos direitos, consoante Emil Brunner, “têm
uma prioridade incalculável sobre os direitos de todas as outras
171
comunidades naturais, inclusive sobre os do Estado.

No último capítulo da obra (O Estado de Direito e o Direito Natural172), Galvão


de Sousa se propõe a demonstrar que sem o direito natural não há verdadeiro
Estado de direito, grande aspiração daqueles que querem ver respeitados os direitos
humanos. Conceitua Estado de direito como a submissão do Estado à ordem
jurídica, de maneira a salvaguardar as liberdades, evitando as arbitrariedades do
poder. Argumenta que se a concepção do Estado de direito pressupõe o
reconhecimento da personalidade humana com uma esfera de liberdade intangível
para os órgãos estatais, a conclusão lógica é de que ele supõe necessariamente o
direito natural. Conclui:

(...) se há uma intangível esfera de liberdade da pessoa


humana em face do Estado, é porque, segundo a ordem natural, o
Estado existe para o homem e não o homem para o Estado. (...) Ou
se admite, pois, o direito natural, expressão jurídica dessa ordem da
qual dimana o critério de justiça para os governantes, os legisladores
e os juízes, ou estes todos ficam na estrita e exclusiva dependência
da ordem normativa estabelecida, que constitui o direito positivo de
um povo, disto resultando erigir-se o Estado em fonte única do direito.
A tais consequências leva-nos logicamente o positivismo jurídico, por
173
negar o direito natural.

Há um exame por parte de Galvão de Sousa sobre a presença do Direito


natural e do positivismo jurídico no constitucionalismo da Inglaterra, que se tornou
paradigma de Estado de Direito.174 Segundo ele, o fato de resistir esse país ao

171
Idem, p. 123.
172
Este capítulo é um desenvolvimento de discurso de abertura das Jornadas Brasileiras de Direito
Natural (São Paulo, 23 a 30 de setembro de 1977, tema: O Estado de direito).
173
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 126/127. Nesse sentido ver também, Jacques
Maritain, o Homem e o Estado, O Humanismo Integral; Guido Gonella, As bases na ordem social,
Ismael Quiles, La persona Humana.
174
Ou Law of the Land. Segundo Albert Von Dicey, The Law of the Constitution, Cap. II e … Van
Caennegen, Legisladores, Juizes e Professores. Para o sistema anglo saxônico, o fundamento do
81
impacto do absolutismo, encaminhando-se para a monarquia constitucional e
parlamentar, até hoje subsistente, deu ao sistema político da Grã-Bretanha uma
solidez contrastante com a instabilidade dos regimes adotados pelos povos
europeus. Criação original do povo inglês, numa época em que o direito estava
profundamente radicado na vivência histórica e não sofria o influxo de
abstracionismos ideológicos, tal foi o common law, até hoje assinalando de forma
bem característica o sistema jurídico anglo-saxônico.

O common law desenvolveu-se numa linha de respeito ao direito natural. O


autor lembra que no século XIII já havia o denominado rule of law, nos seguintes
termos: “o rei não pode estar subordinado aos homens, mas a Deus e ao direito,
porque o direito faz o rei. Cabe ao rei devolver ao direito o que o direito lhe deu, a
saber, domínio e poder; pois não há rei onde a vontade, e não o direito, exerce
domínio”.175 Mas alguns juristas começaram a ensinar que a vontade do príncipe era
a vontade do direito, ensinamento que terminou no absolutismo de concepção
voluntarista. O voluntarismo conduziu depois ao positivismo jurídico de Hobbes,
fazendo com que o espírito do common law, um fruto do direito natural, fosse
suplantado por padrões de pensamento positivista. O absolutismo implicou um
repúdio às doutrinas dos jurisconsultos do common law.

Galvão de Sousa analisa, então, o direito natural e o positivismo no


constitucionalismo dos Estados Unidos da América do Norte. Lembra que os
Founding Fathers e os redatores do Federalist propunham-se a continuar e
aprimorar o regime constitucional que herdaram da Inglaterra (o rule of law), para
viverem sempre em uma sociedade sujeita a um governo de leis e não de homens,
adotando uma ideia de Estado de Direito176 que dava ênfase aos direitos individuais
– à vida, à liberdade e à busca da felicidade. No início a Constituição norte-
americana limitava-se a estabelecer a separação dos poderes, organizar o sistema

direito não é político, mas experiencial, de modo que a terra e a propriedade constituem desde os
primórdios do Common Law o fundamento objetivo para o exercício dos direitos individuais. Tal noção
é bastante distinta da noção de Estado Direito, vez que nesse caso o direito é produto da deliberação
política dos parlamentos. Enquanto no Common Law o costume e o precedente formam as fontes
primárias do direito, na tradição romano-germânica o direito é produto da vontade política e reveste-
se de conteúdo prescritivo normativo.
175
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 132.
176
Assim como na Inglaterra, o Direito Norte Americano não parte da Construção moderna de Estado
Direito, segundo a tradição continental. De acordo com a jurisprudence norte americana, a defesa dos
direitos individuais pressupõe uma articulação entre a tradição clássica do direito constitucional, o
direito federal, os direitos estaduais e principalmente o Stare Decisis. Nesse sentido ver, James Bryce
The American Constitution.
82
federativo. As emendas constitucionais subsequentes foram acrescentando
liberdades e direitos não previstos anteriormente. Posteriormente veio o controle
jurisdicional da legislação e da administração. Essas inovações terminaram com o
espírito do common law e sob influência do individualismo de Locke, das
concepções de Montesquieu e dos iluministas, conduziram ao amplo termo “Estado
de direito liberal-burguês”. Mas aqui o jusnaturalismo foi mitigado pelo sentido
pragmático e pelo empirismo da nova sociedade, refletido nos seus guias políticos e
nos legisladores, voltados para objetivos práticos imediatos, sem perder de vista as
condições históricas da comunidade nacional em formação.

O autor avalia, então, a evolução do constitucionalismo na Alemanha, “terra


de eleição do idealismo filosófico”. Kant forneceu os pressupostos e as diretrizes às
construções dos arquitetos da teoria do Estado e do direito constitucional da
Alemanha. O Rechtstaat kantiano contém o substrato do Estado de direito do
liberalismo, o qual correspondeu ao domínio político da burguesia e deriva hoje
(década de 1970), para as concepções do Estado social de direito (welfare state,
Sozialstaat). Observa, também, que a democracia de Weimar, depois da Primeira
Guerra Mundial, foi uma expressão do Rechtstaat e a acepção de Hitler ao poder
fez-se sem quebra da normalidade constitucional. Galvão de Sousa termina sua
análise do constitucionalismo alemão:

E, na verdade, a experiência alemã, de entre as duas


guerras, confirma cabalmente, de forma exuberante, que, nos marcos
do positivismo jurídico, o Estado de direito perde toda a riqueza do
seu conteúdo, pela ausência de um critério com o qual estabelecer a
legitimidade ou ilegitimidade de uma ordem jurídica. Cai-se no Estado
de mera legalidade, isto é, de uma legalidade positiva, produto de
uma vontade que se impõe de modo absoluto, seja a vontade do
177
povo, a do príncipe ou a do chefe (Führerprinzip).

E termina seu trabalho sobre o Estado de direito e o Direito natural com


palavras que marcam sua posição no sentido de que não devemos buscar um
Estado de Direito Positivo, mas sim um Estado de Direito Natural:

É certo que as instituições são importantíssimas, que,


conforme forem elas, poderão contribuir para corromper os homens
ou para propiciar o bom exercício do poder e a garantia dos direitos.
Seria um grande erro pensar que as crises e os problemas políticos
devam ser resolvidos apenas pela presença de homens prudentes e
justos no governo. Não menos errado seria pretender que as

177
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 145/146.
83
instituições possam produzir seus efeitos ex opere operato e realizar
milagres. Assim, o Estado de direito não depende só do bom arranjo
constitucional. Isto é necessário, e necessário, também, é que haja
uma adaptação das instituições ao meio histórico. Mas é
indispensável que os homens, aos quais cabem as responsabilidades
do poder, tenham plena consciência do que significa o direito natural,
como fundamento da ordem jurídica positiva e princípio ordenador da
atividade do Estado na condução da sociedade à realização dos fins
humanos. É pela superação do positivismo jurídico e sem os
equívocos e ambiguidades do liberalismo, que se poderá chegar a um
Estado de direito, contra as opressões do totalitarismo e da
178
tecnocracia nos dias presentes.

178
Idem, pp. 150/151.
84
Capítulo III – O Direito Natural na concepção de Paulo Ferreira da
Cunha

3.1. Notas sobre Paulo Ferreira da Cunha e sua perspectiva culturalista do


Direito Natural.
Antes de tudo, vale destacar o viés filosófico e ideológico no qual o autor se
pauta para elaborar seus escritos.

Apresentando profunda admiração e identificação com o Jusnaturalismo,


Paulo Ferreira da Cunha179 desenvolve seus pensamentos de acordo com tal escola.
Investigador das questões que envolvem o tema, com ânimo desbravador do
labirinto infindo que percorre a matéria do Direito, segue confiando que seus escritos
são muito mais pensamentos abertos, questionamentos profundos e acessíveis para
uma inacabável reelaboração. Diante desse posto, busca em seus estudos a
universalidade do Direito Natural. Contudo, e ainda que maciço de muita pesquisa, o
assunto, de difícil caracterização ou definição, parece nunca encerrar dúvidas e

179
Paulo Ferreira da Cunha exerce atualmente o cargo de Professor Titular de Direito da
Universidade do Porto além de ser Juiz do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal. É também
professor Associado da Laurentian University, Canadá e Professor Visitante da Universidade de São
Paulo (USP) e da Kyiv de Direito. Professor Honorário da Universidade Presbiteriana Mackenzie e
PhD tanto na Universidade de Paris II como na Universidade de Coimbra. Obteve duas PhD em
Direito: pela Universidade de Paris II (Jurisprudence, na seção de História do Direito) e pela
Universidade de Coimbra (Direito Constitucional, na secção de Saúde Pública).
Podemos destacar como especialidade o estudo do Direito Público, Direito Constitucional, mas em
especial Filosofia do Direito, Filosofia Política e Ciência Política.
Vencedor de diversos prêmios, dentre eles, o Prêmio Jabuti (2007), melhor livro de Direito;
Independência Português Historical Society Prize, menção honrosa, 2006. Além de ser Membro
Honorário do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania no Brasil, e Acadêmico Perpétuo da
Academia Paulista de Letras Jurídicas.
É membro da Academia Europeia de Teoria do Direito, em Bruxelas; Centro de Estudo das Grandes
Ideias, Chicago; Centro Europeo di Studi su Mito e Simbolo, Messina; Equipe Internationale de
Philosophie Interdisciplinaire Pénale (Institut de Criminologie, Université Paris II); Instituto de Direito
Constitucional e Cidadania, Londrina, Associação Internacional de Direito Constitucional, da
Sociedade de Direito Natural, Nova York; Observatório Constitucional, São Paulo; Personne, culturas
et Droit, RéseauInternacional "Droits Fondamentaux" (repertório des Enseignants et Chercheurs
Francófonos dans le domaine des Droits Fondamentaux); Seção de Philosophie penale de l'Institut
Michel Villey derrame cultura la juridique et la philosophie du droit (Université Paris II); Institut de
Criminologie, nd EIIPP – Equipe Internationale de Philosophie Interdisciplinaire Pénale); Società
Internazionale per l'Unità delle Scienze, Génova; UK Association for Legal e Filosofia Social, Londres,
etc.
Autor de inúmeros artigos e textos jurídicos publicados em diversos meios.
85
contradições. Mesmo assim, o autor deixa claro, ao longo de sua produção
acadêmica, que a ânsia diante desse objeto de questionamentos não cessará.

(...) Mas para quem não tenha tanto entusiasmo por um


conhecimento do que o Direito (em sentido normativo) manda, e
prefira meditar no que o direito possa ser, ou para que deva servir,
pode ter tido a virtualidade de começar esse calvário redentor das
dúvidas. Porém, desenganem-se os que cuidarem que vamos atolar-
nos, perplexos e quedos, no pântano das dúvidas sobre o que seja o
direito, ou os que porventura estiverem à espera de que pairemos,
alheios ao mundo, nas nuvens dos discursos vazios sobre uma justiça
sem vida, sem carne, sangue, nervos. Ao contrário da raposa que
desdenha das uvas filosóficas, olharemos no solo do concreto para
os altos sabores da fina sabedoria, sempre que a prática nos
180
sobressalte o espírito crítico.

Nessa caminhada, enfatiza a importância da reflexão e poder crítico do leitor


na árdua tarefa da observação e análise dos fatos jurídicos, porque “o direito natural
visa uma maior universalidade”181, sempre em oposição ao que reza o
Juspositivismo, repreendendo a corrente que diz, em visão legalista, que “Direito é o
que está na lei”.182 Ainda que, inúmeras vezes cite a presença de interligação mútua
das correntes teóricas, no mundo contemporâneo.

Suas principais obras e os artigos aqui selecionados giram em torno de


variados temas abstrusos do Direito, muitas vezes de cunho filosófico – sempre com
a preocupação de serem embasados, refletidos e defendidos sob a luz da corrente
jusnaturalista. Pontuaremos alguns principais, para a orientação de leitura: Filosofia
e Metodologia Jurídica; Problemas do Direito Natural; Jusnaturalismo e
‘Jushumanismo’; Jusnaturalismo x Juspositivismo; Declaração dos Direitos do
Homem; Teoria da Justiça; Princípios, Valores e Direito Natural nas Constituições e
nos Códigos Civis espanhol e português; Política, Direito e o Sagrado; Direito
Contemporâneo; Ideologia, Utopia e Constituição; Jusracionalismo luso-brasileiro.

Diferente de José Pedro Galvão de Souza, leitor ortodoxo da doutrina Tomista


Aristotélica, Paulo Ferreira da Cunha é um leitor heterodoxo da doutrina tradicional
do jusnaturalismo. Como veremos a seguir, o autor lusitano integra o jusnaturalismo
e o Direito Natural nas dimensões humanistas e mesmo ao racionalismo.

180
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993, p.38.
181
Idem, p. 32.
182
Idem, p. 30.

86
Inegável que Paulo Ferreira da Cunha afasta-se da ortodoxia jusnaturalista,
isso não significa que o autor torna-se um opositor do jusnaturalismo tornando-se um
positivista normativista. O tridimensionalista e culturalista Miguel Reale bem pontua
que não é preciso extremar para distanciar:

“Nesta matéria devemos lembrar-nos de que a verdade,


muita vezes, consiste em distinguir as coisas, sem separa-las. Ao
homem afoito e de pouca cultura basta perceber uma diferença entre
dois seres para, imediatamente, extrema-los, um do outro, mas os
mais experientes sabem a arte de distinguir sem separar, a não ser
183
que haja razões essenciais que justifiquem a contraposição.”

Poderíamos chamar Paulo Ferreira da cunha de jusnaturalista agnóstico, o


que não é nossa inclinação, mas sim entendemos que Paulo Ferreira da Cunha é
um Culturalista que estuda o Direito Natural no plano imanente e histórico no mundo
da cultura, e com isso percebe um relativismo e não um universalismo, ainda que
considere a existência de uma Justiça Universal, mas entende a inexistência de uma
metodologia no Jusntauralismo.

Sobre o culturalismo é importante pontuarmos algumas questões que Miguel


Reale bem ensina sobre o tema. Citamos um ensinamento que nos rememora a
necessidade de compreendermos o caráter dinâmico do direito em uma leitura do
direito fundado na perspectiva neokantiana

“tornou-se plena a compreensão do caráter dinâmico e


concreto da tridimensionalidade, ficando superada a perspectiva
estática que eu ficara preso, como de resto toda concepção
culturalista do direito de tipo neokantiano ou fundada no ontologismo
184
axiológico de N. Hartmann” .

Sobre o Direito, Reale posiciona-o no mundo da cultura e não da natureza.


Afirma:

“A nosso ver, para a distinção entre o mundo da natureza e


o mundo da História e, consequentemente, para a distinção entre
ciências físico-matemáticas e ciências histórico-culturais, é,
indispensável partir de uma distinção entre ciências físico-
matemáticas e ciências históricos-culturais, é indispensável partir de
uma distinção formulada pelos autores como Dilthey, Max Weber, ou
Spranger, entre ‘explicar’ e ‘compreender’, distinção à qual já nos
referimos sumariamente e que desenvolvemos com a alteração que

183
REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 27. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 41.
184
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. p. 60.

87
nos parecem necessárias no estado atual dos estudos
epistemológicos. É dessa analise que vamos partir, para chegarmos à
distinção nítida entre o conceito de lei, que os físicos elaboram, e o
185
conceito de lei ou norma, que podem ter os juristas”.

Isso porque o Direito e as leis jurídicas não podem ser iguais às leis da física
por exemplo. É nesse tom que Reale constrói a ideia de que o Direito está no mundo
da Cultura e não da natureza. A fim de esclarecer mais:

“Sendo a lei física uma expressão neutra do fato, qualquer


lei, por mais que pareça, cede diante de qualquer aspecto fatual que
venha contrariar o seu enunciado. Entre a lei e o fato, no mundo
físico, não há que hesitar: prevalece o fato, ainda que seja um só fato
186
observado; modifica-se a teoria, altera-se a lei.”

E mais a frente afirma:

“quando, pois, uma lei cultural envolve uma tomada de


posição perante a realidade, implicando o reconhecimento da
obrigatoriedade de um comportamento, temos propriamente o que se
187
denomina regra ou norma.”

Sobre o valor fonte do Direito, Reale nos ensina com relação ao homem:

“O homem não é uma simples entidade psiquicofisica ou


biológica, redutível a um conjunto de fatos explicáveis pela
Psicologia, pela Física, pela anatomia, pela Biologia. No homem
existe algo que representa uma possibilidade de inovação e de
superamento. Representa algo que é um acréscimo à natureza, a sua
capacidade de síntese no ato instaurador de novos objetos do
188
conhecimento como no ato constitutivo de novas formas de vida.”

Sobre a interação de Valores com os fatos Reale acentua:

“Entre pessoa e sociedade há, pois, uma correlação primordial, um vínculo de


implicação e polaridade, de tal sorte que o homem vale como homem na
sociedade ainda que só milênios após tenha podido atingir a consciência da
sua individualidade ética e de sua co-participação a uma ‘comunidade de
pessoas’.” 189.

Isso posto, a pessoa é, portanto, o valor fonte de todos os valores, e o homem


construirá o mundo da cultura a sua imagem e semelhança, deste modo, a pessoa

185
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. p. 243.
186
REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 27. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 28.
187
REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 27. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 29.
188
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. p. 160.
189
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. p. 162.
88
delineia-se como uma categoria histórica, ou seja, uma conquista da obra
civilizadora da espécie humana.

De tudo isso, certo é que não resta dúvida que Paulo Ferreira da Cunha é um
grande estudioso do Direito Natural, sendo um profundo estudioso do tema do
Jusnaturalismo, e por isso merece nossa atenção.

Cabe dizer que estas considerações não serão feitas a partir da ordem
cronológica das obras aqui selecionadas, pois ao observar-se o conjunto, não se
vislumbra uma linearidade de pensamentos, mas um “devir” (um ir e vir) de
questionamentos. Por conta disso, elaboramos um texto que visa a resgatar os
principais temas, ora mencionados, com expectativa de apresentar alguns desses
movimentos.

3.2. Considerações a respeito do pensamento Jusnaturalista de Paulo Ferreira


da Cunha

Durante a elaboração de seus textos, o autor discorre laboriosamente sobre o


Direito Natural. Na obra Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia
Jurídicas, Paulo Ferreira da Cunha considera que Aristóteles pode ser considerado o
pai do Direito Natural ocidental, além do que é nesse momento que se começa a
delinear que o Direito Natural tem por base uma Lei Natural:

No ocidente (...) o ‘pai’ do Direito Natural foi Aristóteles. (...)


O Direito Natural está directamente ligado com o considerado justo.
Não necessita este de concreta vigência ou positivação, pois paira
sobra as realidades jurídicas, inspirando-as, julgando-as. (...) O
Direito Natural tem como base a Lei Natural, resíduo de eticidade que
existe em todos os povos. É a chamada Lei Moral. (...) Poderemos
caracterizar o Direito Natural como algo imanente ao Homem e às
coisas da Natureza e não da razão. Não é a vontade do ser, é uma
realidade situada. Está na Natureza e é independente da vontade do
Homem. (...) tem um núcleo absoluto imutável e universal. (...) São
constituintes do Direito Natural um conjunto de valores e ideias
consideradas justas em cada sociedade, sendo este independente
das leis que regem essa mesma sociedade, podendo não estar de
190
acordo com essas leis, consequentemente tidas por não justas.

E é somente mais à frente, nessa obra, que o autor mostra de maneira clara a
relação e a distinção do Direito Natural, da Lei Natural e da Moral ao afirmar:

190
Idem, p. 18/19.
89
O Direito Natural não se confunde com a moral. Já a
chamada ‘lei natural’ pode integrar-se nessa categoria, mas essa não
é lei jurídica – antes constitui uma espécie de consciência moral
comum de todos os povos. (...) porque o direito natural não é moral –
é direito, e a lei natural não é direito, é moral. Há uma diversidade de
funções destas duas ordens normativas e uma interligação
191
profunda.

Essa distinção de Direito Natural e Moral também ganha força quando se


discute a Natureza Humana. É em Direitos Humanos – Jusnaturalismo e
Jushumanismo: o desafio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789192, que o autor afasta a necessidade de considerar que o Direito Natural está
ligado ao plano sensível e visível da natureza humana, isto porque estes preexistem
às leis e às constituições. Observa, ainda, a dificuldade de não verificar jamais essa
ligação que pode haver, mas muito mais como crença do que como doutrina e
conceito. Nas suas palavras:

(...) Acreditam os jusnaturalistas que os direitos pré-existem


às leis e às constituições e por isso podem e devem ser declarados.
(...) No plano filosófico, não é, todavia, obrigatório partilhar-se o credo
do autor do Timeu para acreditar em direitos naturais: sendo eles
inerentes à própria natureza do Homem (do Homem em sociedade,
dado serem direitos jurídicos, com dimensão de heteronomia, de
sociabilidade), não vivem (apenas) no céu dos arquétipos, mas
impregnam a vida de relação de cada um. Contudo, obviamente, sem
se acreditar numa ligação entre direitos naturais e natureza humana
será muito difícil vê-los como entidades presentes (ainda que possam
está-lo brilhando pela ausência; no caso, clamando pela ausência) no
193
real, no próprio quotidiano.

Em outro texto, sem abandonar a ideia acima, compõe outra perspectiva em


Problemas do Direito Natural194, ao afirmar que:

Mas, como diria o Principezinho de Saint- Exupéry, o


essencial é invisível para os olhos. E, se é verdade que não vemos
autonomamente o Direito Natural a passear-se nas nossas ágoras e
nos nossos tribunais, nos parlamentos e nas repartições, o certo é
que é de sua natureza não existir no mundo sensível da juridicidade
prática a não ser precisamente pelo, através do direito positivo. Ao

191
Idem, p. 32.
192
CUNHA, Paulo Ferreira da. Direitos Humanos – Jusnaturalismo e Jushumanismo: O desafio da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, Almedina, 2003, p. 39.
193
Idem, p. 39.
194
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
90
contrário do que muitos julgam, o Direito Natural não é o arquétipo
inteligível do Direito, a Ideia de Direito, não é o Direito justo cuja
transposição ou directa aplicação prática garantiria a felicidade. O
Direito Natural é critério do Direito Positivo e seu limite máximo ou
mínimo – por isso pode ser identificado já com um conjunto de”
Princípios”, que as normas “depois” positivariam, adoptando a base
universal às particularidades do tempo e lugar. É uma forma algo
simplista de ver o problema, retratando-o muito à imagem e
semelhança do Direito positivo, mas pode valer como ponte de
195
acesso ao problema.

Em O Direito196, Paulo Ferreira da Cunha esmiúça afirmativas acerca do


Direito Natural e do Jusnaturalismo. No texto que leva sua autoria, Direito Natural e
Jusnaturalismo – Teste a alguns conceitos difusos, o autor intenciona esclarecer
ideias: “(...) convite à destrinça entre conceitos, apartando umas situações de outras,
cada noção da sua semelhante, mas diversa”. São apresentados alguns testes de
múltipla escolha para uma pergunta que foi elaborada. Pergunta 1: O Direito Natural
pode ser encarado como uma metodologia jurídica? Paulo Ferreira da Cunha
discorre: “corrigindo o afirmado grosso modo supra (...) o Direito Natural é um
método jurídico, ou pode ser usado metodologicamente, sendo metodologia no
sentido de teoria do método”. Pergunta dois: O que o Jusnaturalismo é? A resposta
correta entre as alternativas, segundo o autor, será: O Direito Natural distingue-se do
jusnaturalismo porque uma coisa é o ser e outra a teoria do ser. Para ele: “O Direito
Natural é a coisa, uma coisa difícil de reconhecer, sem dúvida, mas é o ser, e o
jusnaturalismo, os diferentes jusnaturalismos, são teorizações a propósito dessa
entidade”.

O artigo Problemas do Direito Natural197 traz uma importante visão do autor


sobre a criação e desenvolvimento do Direito:

Na verdade, estamos é perante duas criações antagónicas:


depois do mare magnum da síncrese inicial, o cutelo histórico
cortador do Nó górdio cria o Direito, arrancando-o à religião, à moral,
à política: é o chamado ius redigere in artem. Os Romanos,
inspirados filosoficamente nos gregos, criam o Direito como arte
autônoma, relativamente livre da álea fugaz da sorte política. E
concebem-no com parte natural e parte positiva. Compreendendo que

195
Idem.
196
CUNHA, Paulo Ferreira da. Direito natural e jusnaturalismo: teste a alguns conceitos difusos. In: O
direito, a.133 n. 2 (janeiro-março, 2001), E. I. – Editora Internacional Ltda. p. 320.
197
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
91
a aspiração humana à Justiça nunca se deixará enclausurar no papel
das leis. E por isso é a Justiça (e o Direito que dela deriva e para ela
quer tender) ‘constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o
que é seu’ – constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi.
Daí que o Direito Natural seja o grande inspirador e o grande julgador
198
do Direito positivo.

Ainda no mesmo texto, o autor faz uma análise de duas possíveis


problemáticas que permeiam o assunto. Em princípio faz um breve resumo sobre
como, a seu ver, se apresenta a face do Direito contemporâneo. Critica a visão
positivista legalista que parece simplista e reducionista com o monismo estatal em
vista da realidade.

Para refutar tal visão, elenca seus argumentos:

1) O Direito não é só regra ou norma, há também o direito consuetudinário,


jurisprudencial, contratual, doutrinal, entre outros.

2) Não existe só Direito estatal, há o das autarquias locais, o internacional, o


das regiões etc.

3) Existe Direito que não seja coercitivo, como em casos de direito tradicional
e Direito Internacional Público clássico.

4) “A regulamentação e organização sociais, a paz, e a segurança podem,


finalmente, ser levadas a cabo através de múltiplas formas que não são,
rigorosamente, jurídicas, nem é necessário que o sejam sempre”.199

Muito embora apresente exemplos potentes sobre o assunto, entende que há


uma “cegueira” crônica envolvendo os pensamentos dos positivistas, que se
prendem à prática daquilo que está normatizado, completamente dependentes dos
escritos dos códigos e das leis. Expande: “(...) se devotam à exegese pura e dura da
lei positiva. Disse-se, com razão, que o positivismo é a filosofia espontânea dos
juristas”.200

Para dar mais robustez ao seu argumento, de que a lei pode ser injusta,
invoca, então, a figura de Antígona:

198
Idem.
199
Idem.
200
Idem.

92
“E lex iniusta non est lex, a lei injusta não é lei, como afirmou,
justissimamente, Tomás de Aquino”. Depois ilustra sua ideia de “projeto
cultural e espiritual do Direito”. Enumera os valiosos pensamentos: 1) A
justiça é a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu. 2) Os
preceitos do Direito são os seguintes: viver honestamente, não prejudicar
ninguém, atribuir a cada um o que é seu. 3) A jurisprudência é o
conhecimento das coisas divinas e humanas, o conhecimento do justo e do
injusto. Tais princípios, segundo o autor, deveriam ser vistos como filtro para
os “comportamentos sociais em uso, aqueles que poderiam ser
considerados o mínimo denominador comum da civilidade ética, e assim
201
aptos a passarem, estilizados, para o domínio do juridicamente imposto.

Fala agora sobre como o Direito é visto; de uma forma tripartida: 1) como
manifestação da justiça – seu princípio e seu fim. 2) encarado em si mesmo – a
atribuição do seu a seu dono. 3) como jurisprudência – para poder avaliar
corretamente aquilo que é justo ou injusto. Em seguida desenvolve uma tríade para
que seja, muito propriamente, anexada à maneira de como o Direito é vislumbrado.
É ela: 1) a Justiça (Iustitia). 2) o Seu (Suum). 3) a Pessoa (Persona). Dessa forma,
levando em conta esta essencial tríade, Paulo Ferreira da Cunha pensa que o modo
de se ver o Direito possa se aproximar mais do ideal de Justiça.

Discorre sobre dois aspectos. Um problema científico do Direito Natural e um


problema pedagógico da mesma matéria. No primeiro caso, reconhece a grande
dificuldade de se propor uma Ciência do Direito Natural. Diante da avalanche
positivista científica sociológica, pensa que definir os propósitos do Direito Natural
com alguma metodologia seja tarefa impossível: “O Direito Natural é uma hipótese
dispensável, quando não uma quimera incômoda ou um ópio dos juristas”.202 Explica
que o jusnaturalismo e o Direito Natural não foram impugnados pelo olhar
juspositivista imperante dos nossos dias, mas que caíram no esquecimento,
juntamente com a Filosofia do Direito, e esta, quando foi recuperada, já não podia
dar conta dos novos argumentos do Direito, já que os problemas eram outros.

Defende, pois, que aqueles poucos “mais apegados ao ser e à verdade que
às aparências e às conveniências não consideraram nunca que tivesse
desaparecido simplesmente por haver passado de moda”.203 Por fim, admite o

201
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
202
Idem.
203
Idem.
93
problema: “Sejamos claros. Sejamos sinceros: O Direito Natural não se pode provar.
(...) Voltamos à carga com as únicas armas que temos – que são introspecção,
sinceridade, recta intenção, tenaz busca da verdade, na qual acreditamos, embora
não nos proclamemos seus donos ou arúspices”.204

Quanto ao segundo caso, o Problema Pedagógico Natural, o autor toma como


exemplos as aulas que ministra sobre a matéria no quinto ano da Faculdade de
Direito. Elucida que, em princípio, teve medo de que houvesse rejeição ou mesmo
repulsa por parte dos alunos. Entretanto, qual não foi sua surpresa ao perceber que
os alunos mais se entusiasmavam e se encantavam do que o contrário. A proposta
de ensinar e estudar o Direito Natural torna-se um desafio quando se colocam as
questões do dia a dia, que não são habitualmente pensadas, para reflexão a partir
de valores e princípios. Aí, termina-se com a sensação de que o problema
pedagógico não existe realmente, pois “o Direito vive da substância, da
juridicidade”.205

Em Reflexões sobre o Direito Contemporâneo206, Paulo Ferreira da Cunha


mostra a “Dialética do entendimento e vivência do direito no séc. XX”. Demonstra
que os tempos atuais estão marcados pela pluralidade de correntes do Direito.
Esclarece que tal quadro traz alguma dificuldade para se captar o sentido dos
pensamentos vigentes. Essa situação deixa uma percepção de confusão de ideias,
de que algo se perdeu. Não é apenas a pluralidade de correntes divergentes do
jusnaturalismo, mas até mesmo uma variação da própria conceituação dessa
corrente jurisfilosófica.

Fala, então, objetivamente, de definições construídas em relação ao conceito


de Direito Natural. Na primeira metade do século pondera que as visões desse
período, levam a crer que o jusnaturalismo é como se fosse a única forma de se
opor ao positivismo jurídico. A juízo do autor, tal leitura é equivocada, pois, o

204
Idem.
205
Idem.
206
CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de
Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009. Disponível em:
[https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958]. Acesso em:
24/09/2021.
94
jusnaturalismo não deve aceitar toda e qualquer perspectiva pluralista em sua
doutrina pela simples visão bipolar de oposição ao Jusnaturalismo.207

Já em meados do séc. XX, Ferreira da Cunha considera que o jusnaturalismo


seria como o retorno à ideia de uma dimensão “transpositiva ou natural da
juridicidade”, inclusive assegura que tal visão nunca deixou de ser proclamada por
jusnaturalistas de vários matizes, independente de sua confissão de fé ou até
mesmo de bases marxista.208

Nota que até os anos oitenta do século passado a dicotomia maior ainda
estava caracterizada pela oposição: jusnaturalismo versus juspositivismo. Depois
disso, surgem novas correntes de pensamento. O jusnaturalismo clássico se
desdobrará em vários novos fluxos. Também o positivismo segue nesse caminho,
apresentando análises, sobretudo, sociológicas. Desse positivismo sociológico ou
historicista, nasce o pensamento jurídico pós-moderno. Assim como o positivismo,
segundo o autor, respaldado em Michel Villey e Jacques Leclercq209, o
jusnaturalismo realista clássico também se aproximou da sociologia jurídica e esteve
em diálogo com a fenomenologia. Por vezes, como exemplifica com Percy Black210,
a conciliação entre as duas correntes antagônicas foi proposta, porém com
resultados infrutíferos.

207
Idem. “(...) de Stammler à fenomenologia, passando pela escola sudocidental alemã, se haviam
apontado outros caminhos, naturalmente muito ao arrepio do legalismo. A expressão jusnaturalismo
parece comportar assim um sentido latíssimo, em que se identifica com a rejeição do positivismo e do
monismo jurídicos. Por isso há também a tentação de com o jusnaturalismo identificar todas as
perspectivas pluralistas no Direito, especificamente nesta sede autognótica e onto-fenomenológica”.
208
Idem. Para alguns seria o retorno à ideia de uma dimensão transpositiva ou natural da juridicidade.
Aliás, ela nunca deixara de ser proclamada pelos jusnaturalistas de vários matizes, não apenas de
inspiração cristã (ou especificamente católica romana, como limitativamente proclamam, ainda hoje,
certos positivistas), mas de outras confissões, e até de raiz marxista.
209
LECLERCQ, Jacques. Du droit naturel à Ia sociologie, trad. brasileira, Do Direito Natural à
Sociologia, Livraria duas Cidades, São Paulo, s/d. apud CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre
o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009.
Disponível em: [https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958].
Acesso em: 24.09.2021.
210
BLACK, Percy. Challenge to Natural Law and to Positive Law forever irresolvable?, in Vera Lex,
New York, vol. XI, n.º 1, p. 11. apud CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre o Direito
Contemporâneo. Revista Páginas de Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009.
Disponível em: [https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958].
Acesso em: 26/10/2021.
95
No panorama que sobra, o autor enxerga o esquecimento do Direito Natural
Clássico e a persistência de um “positivismo puro e duro do legado napoleônico sob
o império da lei e sob a prática negadora de filosofias”.211

Após explanação histórica a respeito dos estudos das correntes que


englobam Direito Natural, Jusnaturalismo e Juspositivismo, deixa a inquietude da
mudança de paradigma que paira sobre o assunto:

Em síntese: passou-se, pois, na contemporaneidade, da


opção entre um assumido e todo-poderoso positivismo legalista e um
decerto quixotesco, mas aprumado, jusnaturalismo de recorte
clássico, para um subtil e envergonhado juspositivismo (que não
deixa de imperar soberanamente na prática), a par de um pós-
modernismo por vezes cáustico, mas cujas aportações construtivas
212
parece tardarem.

Em seu livro Filosofia do Direito213, o autor faz algumas considerações das


correntes do pensamento jurídico. Inicia com as duas principais correntes em
oposição: o juspositivismo e o jusnaturalismo. O juspositivismo se encerra na teoria
monista, ou seja, quando nega a existência do Direito Natural e baseia-se somente
na exegese da lei normatizada. Já o jusnaturalismo é dualista, pois acredita, além da
norma, nesse Direito Natural sublime ao ser humano, advindo da “Natureza, da
razão e/ou divindade ou da ordem das coisas (que se reconduz à natureza)”214
inalienável e anterior ao direito vigorante. O juspositivismo subdivide-se em
Historicista – corrente em declínio, Sociologista – afirma a dependência do Direito
face aos fatos sociais, e Legalista – o Direito é o que o poder manda (dura lex, sed
lex).

E observa:

Há alguns graves erros a evitar: o pensar-se que o Direito


Natural pode passar sem o positivismo e vice-versa: ou o cuidar-se
que o primeiro é bonzinho e o segundo pérfido; o de crucificar a lei,
idilicamente pensando que se pode passar sem ela, ou que o Direito
Natural a proscreve ou minimiza de algum modo. Importa erradicar
tamanha confusão: o jusnaturalismo apenas considera (e não é
pouco) que a lei injusta não é lei, não é Direito. Mas daí a

211
CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de
Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009. Disponível em:
[https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958]. Acesso em:
12.10.2021.
212
Idem.
213
CUNHA, Paulo Ferreira da. Filosofia do Direito – Primeira Síntese, Almedina, 2006.
214
Idem, p. 131.
96
automaticamente se pregar a desobediência vai uma enorme e quase
intransponível distância: recusar a lei só poderá fazer-se se daí não
advierem males maiores. (...) A injustiça da lei deve, desde logo,
traduzir-se na violação de algum dos três preceitos jurídicos,
características internas das normas jurídicas (viver rectamente, não
prejudicar ninguém, atribuir a cada um o que é seu). O homem
moderno encontra-se infelizmente cada vez mais desprovido de
meios técnicos e axiológicos capazes de servirem a um juízo sobre a
justiça das normas. A sua cultura degrada-se, o seu conhecimento do
mundo restringe-se, a sua normal capacidade de avaliação sem
paixão volve-se quase nula, o subjectivismo cresce. E assim é
deveras perigoso taxar de injusta uma norma sem a fazer passar pelo
215
crivo da profunda e plural crítica.

Discorre, agora, sobre os pluralismos jurídicos em Jusnaturalismo lato


sensu216: autores e correntes que defendem o pluralismo jurídico no sentido de uma
ontologia e uma normogênese não exclusivamente positivistas, considerando a
existência de formas do Direito extra-voluntárias, expressas pelos sintagmas direito
vital, direito divino, natureza das coisas etc., os que se preocupam com a lei injusta,
e toda juridicidade injusta. Em seguida fala do Jusnaturalismo stricto sensu217: em
sentido rigoroso, ou seja, são aqueles jusnaturalistas que acreditam numa dimensão
a todos os títulos jurídica, superior e fundante do Direito positivo, a que chamam
normalmente “Direito Natural”.

A respeito do Realismo Clássico, Ferreira da Cunha certifica que essa escola


do Direito Natural tem como oposto filosófico o nominalismo218, que é base dos
pontos de vista jurídicos da modernidade. Tem como fundamento as concepções
filosóficas de Aristóteles, dos romanos e, mais adiante, de São Tomás de Aquino.

“O Direito Natural não é o Direito ideal por oposição ao


Direito positivo, havendo antes uma complementaridade entre os
dois. Isto é, segundo S. Tomás, para o bem da sociedade não bastam
os princípios da Lei Natural, mas são necessárias leis humanas
219
(positivas), as quais se baseiam sempre nestes princípios”.

215
Idem, pp. 134/135.
216
Idem, p. 137.
217
Idem, pp. 137/138.
218
O nominalismo, ao qual o autor se refere, consiste na doutrina que se assenta na concepção de
que é inadmissível a existência do universal tanto no mundo das coisas como no pensamento. Para
tal corrente a universalidade só é encontrada como nome, como manifestação fonética.
219
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993, p. 22.

97
Ou seja, São Tomás retoma os conceitos do Direito Natural, desde
Aristóteles, e coloca a necessidade de a sociedade ter regras, normas positivadas,
para seu bom funcionamento e ampliação das virtudes.

Depois, passa a analisar o Jusnaturalismo Positivista, contraditório em sua


própria definição. Nessa corrente, os direitos advindos da natureza humana são
reduzidos às fórmulas positivadas do Direito. Dentre tantos problemas dessa escola
esta, a redução do Direito Natural a uma fórmula positivada, é o que existe de
pior.220

Por fim, considera o Jusracionalismo. Tal corrente é contrastante direta do


Realismo Jurídico221. Essa última corrente mencionada surgiu nos tempos modernos
e não tem muito respaldo substancioso daqueles que a defendem. Desavisados, por
vezes, tratam esse movimento de forma leviana e o confundem com o
jusnaturalismo. Considera-se ver, de todo modo, a análise dessa corrente é muito
complicada, haja vista a falta de material para tal perspectiva e a falta de estudiosos,
que por conta da dificuldade em organizá-la, se rende a outras correntes.

O positivismo legalista é abordado em vários momentos da produção


acadêmica do autor. Como vimos em Princípios de Direito222, ele define tal doutrina
como a que identifica o Direito como um conjunto normativo coercitivo. Diz que essa
norma jurídica reduz a ideia do Direito à “imperatividade, estadualidade,
coercibilidade etc.”. E mais adiante, em tom crítico, resume sua ação “sem sentido,
fundamento e teleologia próprios, o Direito, nesta visão, é só a forma de legitimar e
revestir com belas palavras de justiça e/ou de ciência o nu poder”.223

À frente, na mesma obra, para defender seus princípios naturais, deixa um


pensamento acerca do sistema jurídico atual – tão enraizado e contaminado pelo
positivismo – o que pode fazer ao ser humano, ao cidadão, que vive sob suas leis, e
parte para a análise crítica:

Ora é importante saber-se qual é o modelo e o destinatário


de qualquer ordem jurídica. E esta questão mais importância ganha
nos nossos dias. Há que por o problema: qual o modelo humano que
o direito actual tem em vista? E para quem é feita a lei? É lamentável

220
Como já observamos em VERA-CRUZ, Eduardo. Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito,
Principia, 2010, p. 140.
221
O Realismo jurídico possui uma visão muito mais ligada ao fato ou a realidade social.
222
Idem, p. 48/49.
223
Idem. p. 49.
98
dizê-lo, mas a verdade é que o tipo que resulta da actual malha
legislativa é o de um servo do Estado gigante. Pagador, servidor,
submisso, todos os dias ferido na sua dignidade e atropelado nos
seus direitos naturais (e até positivos) por leis e actos da
administração que o lesam e perseguem como se qualquer cidadão
de um criminoso se tratasse. A lei é feita para o mau, sim, mas por
vezes exagera-se. Para ele e por causa dele – mas não desprezando
os bons, e tomando-os por maus. Enquanto isso, e enquanto a lei a
todos se destina, por entre as suas malhas, e a rir-se nas barbas das
autoridades, o bandido verdadeiro, o assassino, o ladrão, o violador,
escapa e até lhe pedem desculpa por cima, como vítima da
224
sociedade. Parece, assim, que os maus nunca são punidos.

Também no texto Problemas do Direito Natural identificam-se algumas


críticas. Enquanto os juspositivistas traçam duros julgamentos à falta de substância-
matéria que falta às definições do Direito Natural, Ferreira da Cunha lembra que este
Direito foi esboçado e teve vida pela mesma faculdade que legitimou o Direito
positivo. “Esse Direito Positivo dito real é uma criação cultural ao mesmo título que o
Direito Natural. (...) A mesma faculdade e fabuladora, formalizadora, mitificadora que
criou o Direito positivo criou também o Direito Natural”.225 Então, coloca uma
proposta de pensamento àqueles empenhados no estudo do Direito:

Não tenhamos ilusões de que o bom jurista é o tecnocrata


que estudou muito e de tão embrenhado nos livros da sua
especialidade não vê um palmo à frente do nariz. O Direito é
jurisprudência, e a prudência é virtude que tem absoluta necessidade
de conhecimento da vida e dos Homens: o que se obtém por
experiência pessoal (indispensável) e pelo conhecimento da alheia –
e que se colhe sobretudo nas grandes obras da humanidade, nos
grandes livros da nossa grande conversa de séculos. E que só numa
mínima parte são livros de direito positivo, ou sobre direito positivo,
226
sempre tão mutável.

Sobre a questão dos Direitos Humanos (questão esta que faz emergir, desde
sua origem, deleitosas discussões a respeito de sua base, se advinda do Direito
Natural, ou, se distinta em toda essência), Ferreira da Cunha se dedica ao assunto
no capítulo II do livro Direitos Humanos227, intitulado Jusnaturalismo e

224
Idem, p. 110.
225
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
226
Idem.
227
CUNHA, Paulo Ferreira da. Jusnaturalismo e Jushumanismo. O desafio da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In: Direitos Humanos. Almedina, 2003.
99
Jushumanismo. O desafio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789. Nele, o autor esclarece, mais uma vez, que sua apresentação é de cunho
didático, quase nada erudita, um convite ao diálogo com os tantos autores usados
para compor tal bibliografia. Neste artigo, ainda há uma inovação para caracterizar o
viés do pensamento explanado: o ‘jushumanismo’.

Inicia notando a aflição preliminar do assunto. Explica que os representantes


do povo francês expõem “numa declaração solene, os direitos naturais”228 do
cidadão, do Homem francês. Em seguida, coloca o questionamento: “Mas poderão
fazê-lo para o Homem em geral (que pressupõe-se, este Homem não será apenas o
Homem francês, que, acumulando a cidadania, no caso, tornaria imprestável a
distinção)?”229 Tal postura traz à baila novamente a discussão do ideal de
universalidade.

Dá-se seguimento e o autor, no plano metodológico, abrange a complexidade


dos fatos:

(...) a influência ambiente e as raízes do jusnaturalismo


presentes na Declaração do Homem e do Cidadão são racionalistas,
e que a concepção prevalecente nessa modalidade de direito natural
é já pré-positivista, aí avultando a ideia de lei e da sua importância
230
(...).

Adiante tece algumas observações sobre a questão da Divindade231 atribuída


às raízes do Direito Natural. Fala sobre o peso que há, no aspecto ontológico, dessa
argumentação e justificação divina a respeito do tema. Todavia ressalta que nos dias
de hoje não se faz necessário invocar certo preceito. Crentes e não crentes podem,
através das análises críticas, “coincidir num Direito Natural e em direitos humanos
compativelmente concebidos”.232 No mesmo sentido Paulo Ferreira da Cunha se
manifesta no sentido de um Direito Natural que dialoga com os Direitos do Homem
ao afirmar:

228
Idem, p. 38.
229
Idem, p. 39.
230
Idem, ibidem.
231
CUNHA, Paulo Ferreira da. O Direito, a Política e o Sagrado. Universidade do Porto, 2004: Nesse
artigo, além do Divino, o autor aborda questões importantes, como a dificuldade que se tem também
em definir o significado de sagrado, sua relação com a questão do Estado, além de fazer um resgate
histórico de alguns fatos e oferecer algumas reflexões dos papéis dos reis, dos juízes etc.
232
CUNHA, Paulo Ferreira da. Jusnaturalismo e Jushumanismo. O desafio da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In: Direitos Humanos. Almedina, 2003. p. 43.
100
Como pioneiramente terá visto Francisco Puy, os próprios
Direitos do Homem são a linguagem hodierna do Direito Natural. Na
verdade, a única linguagem capaz de ser escutada ainda, a esse
propósito, no mundo atomizado e muito pouco filosófico dos nossos
233
dias.

Mais tarde faz questão de explicitar seu viés jusnaturalista sobre o ponto em
questão. Acredita que os Direitos do Homem são os Direitos Naturais

Os direitos do Homem (hoje ditos direitos humanos por uma


questão de comodidade linguística que começou como anglicismo ou
americanismo, mas que já entrou nos usos) não são senão os direitos
naturais. E esses direitos são caracterizados como inalienáveis (esta
qualidade prende-se com o facto de, historicamente, terem sido
confiscados, com o absolutismo, sobretudo com o absolutismo do
despotismo esclarecido das Luzes) e sagrados. (...) Ponderem
jusnaturalistas e jushumanistas: para os pais fundadores da
Declaração não há diferença entre Direitos do Homem e direitos
Naturais. Os Direitos do Homem são naturais, inalienáveis e
234
sagrados.

Importante ressaltar que as Declarações dos Direitos dos Homens, embora


visem a isso, não são a manifestação precisa dos Direitos dos Homens, mas sim a
representação que muito perde em conteúdo pela própria limitação que a linguagem
oferece. Desse modo, se os Direitos dos Homens não podem ser verificados em sua
totalidade universalizante nas Declarações Universais, não há que se falar em
Direitos Naturais Positivados em Declarações Universais. Isso só corrobora a tese,
apresentada constantemente por Paulo Ferreira da Cunha, da impossibilidade da
visão simplista de que os Direitos Naturais podem ser Direitos Positivados.

Assevera a necessidade de os jusnaturalistas e os defensores dos direitos


humanos aceitarem algumas premissas para que seus discursos e suas ideias
sejam mais convergentes:

O jusnaturalista dialéctico terá de fazer um esforço para se


concentrar mais nas bases sobre que assenta o diálogo e recordar-se
de que algumas sínteses vai ter de ir havendo. Por seu turno, o
defensor dos direitos humanos tout court terá também de passar a
admitir uma de duas coisas: que valores, princípios e direitos (ou,
pelo menos, alguns deles), para além da sua historicidade, podem

233
CUNHA, Paulo Ferreira da. CARVALHO, Ana Sofia. Da Tutela dos Direitos Fundamentais Em
Portugal, hoje. In Revista eletrônica Julgar, 2021. p. 23. Disponível em:
[file:///C:/Users/user/Downloads/20210921-JULGAR-Tutela-dos-Direitos-Fundamentais-em-Portugal-
Paulo-Ferreira-da-Cunha-Ana-Sofia-Carvalho-1%20(1).pdf]. Acesso em 02/12/2021.
234
CUNHA, Paulo Ferreira da. Jusnaturalismo e Jushumanismo. O desafio da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In: Direitos Humanos. Almedina, 2003 p. 44.
101
pré-existir em algum tipo de latência, ou que, uma vez historicamente
alcançados, passam para um nível superior de juridicidade, do qual
235
não mais será legítimo verem-se apeados.

Ao fim, conclui optando pela prevalência do bom-senso, seja qual for a


corrente adotada pelos estudiosos:

“(...) para além dos pontos em que obviamente uns e outros


coincidem, há mais lugares de convergência, e sobretudo há coisas
que uns têm a aprender com os outros. (...) A opção que
consideramos integral e coerente é, pois, a de jusnaturalista
236
jushumanista ou de jushumanista jusnaturalista”.

Como explicado em seu livro Filosofia do Direito237, Ferreira da Cunha


identifica a corrente jusracionalista como de difícil organização. Em sua obra
Princípios de Direito238, fala sobre pensadores que deram sua contribuição para esse
movimento da época iluminista. Cita Grotius, Hobbes, Espinosa, Leibniz, Wolff, Kant
etc.

Esta corrente traz uma divinização da razão humana. “O Direito Natural passa
a ser o Direito que a Natureza humana postula com o auxílio da razão”.239 Por meio
dessa razão humana se formulariam leis e, dessa forma, se alcançaria a felicidade e
o bem coletivo. “Le but la société est le bonheur commun”.240 Entretanto, assevera
que, muito embora o jusracionalismo não se identificasse com o sistema vigente à
época – o despotismo esclarecido, que não levava em consideração o interesse do
povo – não demorou para que o pensamento, esse Direito Racionalista, servisse aos
déspotas para reafirmar o sistema. “Trata-se de leis gerais, abstractas, hipotéticas,
que não são mais do que a expressão coercitiva e formal deste espírito elitista. Este
é um Direito dos intelectuais, dos ‘professores’, um Direito que quer moldar a si

235
Idem, p. 40.
236
Idem, p. 49.
237
CUNHA, Paulo Ferreira da. Filosofia do Direito – Primeira Síntese, Almedina, 2006.
238
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993.
239
Idem, p. 25.
240
Idem. “O Objetivo da Sociedade é a felicidade comum”
102
próprio, um Direito utópico”.241 E lembra Michel Villey: “O jusracionalismo tem três
quartos de positivismo incorporado”.242

Encontram-se em Do jusracionalismo luso-brasileiro e da unidade essencial


do jusnaturalismo243 as observações do autor a respeito da dicotomia Direito Natural
Clássico e Direito Natural Moderno. Segundo alguns defensores da tríade
aristotélica-romanístico-tomista244245, essas duas vertentes da matéria não são
passíveis de coexistência, ou seja, a diversidade dos estudos, cronologicamente
analisada, pode delinear ruptura de pensamentos. É nesse sentido que Ferreira da
Cunha dá início à sua recente reflexão. Para compreender melhor os meandros do
assunto há que se buscar na história, nas ciências e nas fontes literárias, objetos
para esclarecer tais ideias.

(...) De Portugal ao Brasil setecentista, passando pelo


constitucionalismo de Cádis, pelo vintista, pelo suíço, recuando às
velhas liberdades ibéricas e voltando ao tempo atual, com os direitos
humanos e a sua globalização teórica, talvez haja lugar a uma
desconstrução da dicotomia. Julgamos assim poder concluir que é
246
necessário um estudo da diversidade do jusracionalismo.

241
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993. p. 26.
242
Idem. VILLEY, Michel. apud CUNHA, Paulo Ferreira da.
243
CUNHA, Paulo Ferreira da. Do jusracionalismo luso-brasileiro e da unidade essencial do
jusnaturalismo – Reflexão problemática filosófico-histórica. Collatio 12 – CEMOrOc – Feusp / IJI –
Universidade do Porto, 2012. Disponível em: [http://www.hottopos.com/collat12/17-30FC.pdf]. Acesso
em: 28.10.2021.
244
No mesmo sentido: “Um dos dogmas aparentemente estabelecidos na doutrina do direito natural é
a de que (numa tese que entronca em Leo Strauss, e difundida sobretudo em círculos adeptos da
tríade aristotélico-romanístico-tomista) haveria um direito natural clássico e um direito natural
moderno, muito diversos e incompatíveis. Sempre foi uma dicotomia que nos intrigou, sobretudo
quando confrontado com a realidade da argumentação de fundo, sobretudo no séc. XVIII,
apresentado como o grande século de consumação da viragem, a qual teria começado, porém, muito
antes.” In CUNHA, Paulo Ferreira. As revistas do Cemoroc: liberdade científica e inspiração – em
comemoração do seu 25.º Aniversário e no seu 300.º Número. No. especial comemorativo do volume
300 e dos 25 anos das revistas do Cemoroc (1997-2022) Convenit Internacional 38 jan-abr 2022 p.
14. Disponível em [http://www.hottopos.com/convenit38/8PFC.pdf] Acesso em 10/12/2021.
245
No mesmo sentido: “O Direito Natural de Aristóteles não é, realmente, o dos Iluministas (a que
alguns acham dever chamar, mais que jusnaturalistas, “jusracionalistas”). Embora seja, sobretudo,
um artificialismo político atirar o Direito natural clássico contra o moderno e vice-versa, porque muito
têm ainda em comum.” In CUNHA, Paulo Ferreira. Encruzilhadas do Pensamento Jurídico na
Sociedade da Informação. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 19, n. 30, p.196-209, jan./abr.
2021 p. 200. Disponível em
[https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/3669/1271] Acesso em 03/12/2021.
246
CUNHA, Paulo Ferreira da. Do jusracionalismo luso-brasileiro e da unidade essencial do
jusnaturalismo – Reflexão problemática filosófico-histórica. Collatio 12 – CEMOrOc – Feusp / IJI –
Universidade do Porto, 2012. Disponível em: [http://www.hottopos.com/collat12/17-30FC.pdf]. Acesso
em: 28.10.2021.
103
Retoma o conceito já descrito sobre a dualidade jusnaturalista. Questiona se,
de fato, ele pode ser aceito de forma plácida. Propõe que a resposta, que talvez não
se revele, deva ser procurada pela observação, por toda busca em diversas
literaturas.

Especificamente, no caso da literatura jurídica luso-brasileira mais corrente,


menciona que não se tem catalogado quem são os membros dessa escola
racionalista (jusracionalista). Todavia, reconhece que existam tais teóricos,
demarcados num tempo e lugar definidos, partícipes, de alguma forma, no
movimento em questão.

Fala, então, sobre o fato de a ligação entre o geral e historicamente


assimilado, e o particular, que parece ser a verdade mais profunda dos fatos, das
pessoas e das coisas, ser terrivelmente difícil. Para analisar a mudança de
paradigmas ideológicos ao longo de suas histórias, seleciona quatro autores de
língua portuguesa jusracionalistas: António Diniz da Cruz e Silva, Tomás António
Gonzaga247, Paschoal José de Melo Freire dos Reis248 e António Ribeiro dos
Santos249. Influenciados pelo Iluminismo, movimento cultural de auge no séc. XVIII,
que entusiasmou pensadores, principalmente europeus, para os tempos da razão,

247
Idem. “Tomás Gonzaga vive tempo suficiente para passar da defesa (talvez algo postiça) do
absolutismo puro e duro no primeiro Tratado de Direito Natural editado em língua portuguesa, para,
talvez recordando em si o legado dos seus maiores, todos juristas, se tornar no paladino da
legalidade e dos direitos contra a bota opressiva do general governador, nas suas Cartas Chilenas. E
finalmente, de juiz a preso e degredado, decerto com (prudentes) ideais independentistas, acabará
adepto do credo revolucionário, enquanto certamente usufrui dos réditos da escravatura, pois se casa
com uma viúva que disso vivia, já nas costas do Índico, em Moçambique. As duas sucessivas partes
dos seus poemas a Marília espelham o trânsito da ilusão à desilusão: e não apenas em matéria
amorosa”.
248
Idem. “Melo Freire continua pombalista sem Pombal, o que é uma coerência incómoda. Pombal
fizera a economia dos códigos com as remissões da Lei da Boa Razão. Agora o período marino quer
rever as Ordenações... Mas aí é que Melo Freire aproveita para propor um Novo Código... Que não
irá avante, porque Ribeiro dos Santos lhe sai a caminho, invocando as velhas leis do Reino... Não se
sabe até que ponto só velhas leis... E alguns acabam por considerá-lo já um proto-liberal”.
249
Idem. “(...) esteve no seu tempo sem verdadeiramente ser apenas do seu tempo. Sem perder de
vista as fontes e as questões do momento, sempre teve a sua pátria na República das Letras, e,
como tal, não só pela desilusão e amargura das perseguições que lhe moveram, mas também por
real inclinação, prefere afinal Camões às Pandectas. Perante a ameaça de um Código confiscador
das liberdades e ao arrepio da tradição nacional, procura suster o perigo, não poupando o redator do
projeto, Melo Freire. Mas depois, passada a tempestade, mais que tudo almeja por remeter-se à vida
privada, na companhia de poucos amigos e dos sempre fiéis livros. O árcade Elpino Duriense
(pseudônimo árcade de Antônio Ribeiro) é um sábio de grande comedimento e aticismo”.
104
como já explanado. Segue dizendo que existiu um iluminismo luso-brasileiro sui
generis. Descreve como cada um deles distribuiu seus pensamentos ao longo de
suas produções intelectuais e acaba por concluir que, de alguma forma, tais
produções – e algumas de bastante valor ao Direito – se tornaram por vezes
confusas e questionadas. “É uma encruzilhada histórico-ideológica: até que ponto o
tradicionalismo e o velho liberalismo (não, obviamente, o neoliberalismo
neoconservador de hoje) têm pontos de contacto?”250, interroga, por exemplo, o
pensamento de Melo Freire, que no fim é considerado por alguns um proto-liberal. E
depois analisa atitudes e posturas dos quatro autores.

Ao analisar a peça de advogado de Melo Freire a favor do


último dos Távoras, tentando recuperar honra, títulos e bens, ao
analisar os tratados jurídico-políticos de Ribeiro dos Santos, alguns
inéditos na Biblioteca Nacional de Lisboa, ao ver a argumentação de
Cruz e Silva quando o procuram inquirir pela sua reação de classe
contra o poder, ou quando se analisa o que nos chegou da obra de
Tomás Gonzaga, vemos um tempo novo, sem dúvida, de mais razão,
mais progresso (e fé numa e noutro) e até, aqui e ali, de promessa de
alguma liberdade. Mas o jusnaturalismo que todos professam não se
nos afigura ter sofrido uma mutação essencial. Há aqui e ali um
251
fraseado de cor local, mas a essência parece permanecer.

Passa então a analisar alguns mitos que envolvem o Direito Natural moderno.
Citando Christian Lazzeri252 aponta erros recorrentes quando se interpreta tal Direito.
1) Nem todos os jusnaturalistas modernos são contratualistas. Explica que a ruptura
com a ideia aristotélico-tomista não-contratual não foi completa. 2) Muitos dos
conceitos utilizados pelos jusnaturalistas modernos não são originais. Já foram
pensados e elaborados anteriormente. 3) Por mais que tais pensadores do Direito
Natural moderno tentem laicizar as ideias do poder de origem contratual entre
Homens, isso não implica na total independência de uma jurisdição divina. 4) “A
teorização de que a constituição do poder político (e da sociedade política, por
contraposição ao estado de natureza) é uma vantagem para os que virão a ser
governados e que assim a razão de ser do contrato social é a utilidade corresponde

250
Idem.
251
Idem.
252
Idem. LAZZERI, Christian. apud CUNHA, Paulo Ferreira da.
105
também a uma simplificação e uma generalização em que não podem caber todos
os jusnaturalistas”.253 Em seguida afirma:

Os direitos individuais sofrem realmente uma mutação –


tornando-se, no direito moderno, direitos subjetivos, com tudo o que
isso implica, filosófica e metodologicamente. Mas não olvidemos que
os direitos subjetivos não são do séc. XVIII. Já Suarez e Grotius são a
considerar, e mesmo o nominalismo do séc. XIV. Nesse sentido,
trata-se apenas de uma consolidação de uma tendência que já vinha
254
a acompanhar a evolução do direito.

Ao final, depois de abordar uma perspectiva histórica do movimento


jusnaturalista, que dá origem a essa outra corrente jusracionalista, pondera sobre
qual o grau de ruptura ou aproximação entre os dois pensamentos:

(...) quando vemos a falsa e deformada querela entre


direitos antigos e direitos modernos, entre constitucionalismo histórico
e constitucionalismo liberal, toda fundada, afinal, na animosidade
política, sem prejuízo, como é óbvio, de diferenças contextuais,
cremos ser legítimo suspeitar que o jusracionalismo, para mais com
estes quatro exemplos, pelo menos o jusracionalismo luso-brasileiro
(mas haveria que indagar mais longe...), não terá sido um corte
radical com o jusnaturalismo clássico. Senão, evidentemente, na
medida em que foi solidário de evoluções e depois de ruturas
255
políticas que são tão fundas que ainda hoje nos dividem.

Em Do Direito Natural Positivo256 o autor se propõe a fazer uma análise sobre


como alguns dados nas histórias constitucionais portuguesa e espanhola recentes
fizeram com que ambas se influenciassem mutuamente.

Primeiro anota que a Constituição da República portuguesa de 1976, embora


esboce – em visão jusnaturalista, vários direitos naturais e remeta à Declaração
Universal dos Direitos do Homem em seu art. 16º, n. 2, não se vale do conceito de
Direito Natural. Também na Constituição espanhola encontra-se uma nova
denominação, no art. 1º, n. 1 – são os valores superiores que são caracterizados
pela Liberdade, a Justiça, a Igualdade e o Pluralismo Político. E diz que essa nova

253
CUNHA, Paulo Ferreira da. Do jusracionalismo luso-brasileiro e da unidade essencial do
jusnaturalismo – Reflexão problemática filosófico-histórica. Collatio 12 – CEMOrOc – Feusp / IJI –
Universidade do Porto, 2012. Disponível em: [http://www.hottopos.com/collat12/17-30FC.pdf]. Acesso
em: 28.10.2021.
254
Idem.
255
Idem.
256
CUNHA, Paulo Ferreira da. Direito Natural Positivo – Princípios, Valores e Direito Natural nas
Constituições e nos Códigos Civis Portugueses e Espanhóis. In: Estudos em Homenagem à
Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço. Almedina, 2004.
106
denominação pode ecoar, de modo hermenêutico, na Constituição portuguesa.
Lembra em nota257 que a primeira vez que se cogitou colocar valores em destaque
na Constituição, o foi feito pelo português Mário Bigotte Chorão, em 1975, na
Universidade de Saragoça.

Buscando na história, traça um paralelo entre as informações e como pode se


delinear o diálogo entre as duas Constituições e os Códigos. Com relação à
Constituição espanhola, ela parece caminhar mais precocemente, já que reconhece
“valores” pela primeira vez, antes de a Constituição portuguesa esboçar qualquer
coisa nesse sentido.

Coloca que o conceito de pluralismo político como valor na Constituição


espanhola talvez tenha sido mais uma redação tradutora de um medo de novas
ditaduras, mais do que, de fato, uma intenção de se tornar um valor em sua
essência. Também em relação à ideia de Liberdade e Igualdade, revela que tais
integram a própria imagem da Justiça e metaforiza, diante dos três elementos, a
Santíssima Trindade.258

Não se pode, pois, segundo o autor, falar unicamente pela história moderna.
Para análise profícua, se torna fundamental retomar ideias de outrora: “Perder de
vista o rasto clássico das ideias, limitá-las ao debate moderno, é ver apenas uma
parte da questão”.259 Ainda coloca a mesma preocupação em relação ao Direito
Natural: “E idêntico problema detectamos na crítica ao direito natural, por abstracto e
apriorístico, crítica que será merecida em sua versão moderna, mas já desprovida de
sentido na sua versão realista, e sobretudo nos seus esforços dialécticos”.260

Reconhece um problema: não graduar os valores esquematizados na


Constituição espanhola. A Justiça, segundo Ferreira da Cunha, é um valor superior à
Liberdade e à Igualdade. E, além, para ele, o Pluralismo Político nem em valor se
configura. Já na Constituição de 1992, o texto constitucional espanhol apresenta
outra face, apoiada na tríade Liberdade, Justiça e Solidariedade. Completa:

Daí que a tríade acolhida no art. 1º possa ter outra


ressonância, bem diferente da explicitada, para a espanhola inicial,
pelo seu ator. Se ali é uma Justiça arbitrando entre a Liberdade e a

257
Idem, p. 875.
258
Idem, p. 878.
259
Idem, p. 879.
260
Idem, ibidem.
107
Igualdade, e das duas recebendo inspiração, aqui a tríade é colocada
como que num crescendo histórico, da própria história da revolução
portuguesa: primeiro conquista-se a liberdade (está a falar-se,
evidentemente, da liberdade política), depois, assegura-se o suum
cuique autêntico da Justiça (mas ainda numa ideia de algum
titularismo decerto...), porque o coroar da sociedade que se pretende
construir está na dimensão solidária, do dar mais do que é o seu do
261
outro.

Discorre, depois, sobre Princípios, Direito Natural e Valores262. Assevera, em


princípio, que juspositivismo e jusnaturalismo são paradigmas hermenêuticos,
independentes de lei ou doutrina, ou seja, as interpretações diante de um texto
poderão ser feitas a partir da corrente escolhida pelo estudioso. Lembra que Javier
Hervada, por exemplo, faz uma interpretação jusnaturalista da Constituição
espanhola263.

Explica que os positivistas, erroneamente, tentam fazer uma construção


científica do Direito sem permanente conexão entre as normas com os princípios
gerais: “Ora os princípios positivam afinal os valores. Não podem confundir-se com
eles”.264

Deixa, pois, um pensamento acerca da importância da relação entre Valor e


Direito Natural:

A preocupação de não associar os valores superiores da


Constituição espanhola ao Direito Natural coloca-nos um problema
importante: qual a relação entre Valores e Direito natural. (...) A
extra/ultra judicidade dos valores implica que eles naturalmente
inspiram e enformam o Direito Natural, mas não se identificam com
eles. O Direito Natural é, não o esqueçamos, Direito. Diversamente,
os valores, enquanto valores, são entidades axiológicas. (...) E
permitimo-nos falar de todo o Direito nesta relação e não apenas do
Direito Natural, porque pressupomos que todo o Direito tem de ser
265
conforme ao Direito Natural.

Em conclusão ao texto, o autor traça o panorama geral de sua visão diante


das Constituições espanhola e portuguesa266267. Diz que em ambas as Constituições

261
Idem, p. 880.
262
Idem, ibidem.
263
Idem, p. 881 – Los derechos Inherentes a la Dignidad de la Persona Humana. In: Persona y
Derecho. Pamplona, 1991.
264
Idem, p. 882.
265
Idem, p. 885.
266
Idem, p. 891.
108
veem-se, enquanto direito positivo, traços e elementos trans-positivos que podem
dialogar com os princípios jurídicos gerais, os valores e mesmo com o Direito Natural
ou os seus princípios, ainda que o jusnaturalismo interpretativo se fará mais
presente na Espanha. Finaliza apontando:

A verdade é que num e noutro caso impera a ideia de que o


direito positivo se encontra permeável a entidades supra/trans-
positivas, e que no topo dessa normatividade, e superando-a, sempre
se encontra a ideia (valor, princípio, direito-natural) da Justiça. Dada
esta presença real do direito trans – ou ultra – ou supra – positivo no
direito positivo, poderemos sem dúvida falar de Direito Natural
268
Positivo.

De todo o exposto, consideramos ser muito difícil apresentar, em síntese,


uma definição de Direito Natural e jusnaturalismo para o Ilustre autor. Como
advertimos no início desse capítulo, o pensamento do Nobre Professor possui
diversos movimentos, que necessariamente não seguem uma cronologia e ele,
sequer, se compromete em apresentar definições, mas sim apresentar reflexões269.

Embora exista essa dificuldade, podemos traçar algumas considerações no


sentido de que Ferreira da Cunha considera o Direito Natural um tema
imprescindível para o Direito, que este Direito Natural deve sempre ser verificado em
uma perspectiva clássica, ou seja, não se aceitando uma postura moderna
jusracionalista, que é possível integrar alguns elementos do Jusnaturalismo com o

267
Sem querer incorrer em qualquer sincretismo, é possível verificar que o Brasil observa uma visão
muito mais juspositivista do que jusnaturalista. Não apenas pelas próprias interpretações com relação
aos princípios gerais do direito, mas também por um exemplo que temos na questão de interpretação
do Preâmbulo de nossa Constituição Federal, conforme julgamento de nossa corte máxima
constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF), que pacificou seu entendimento que o preâmbulo
não é norma constitucional, não podendo, portanto, prevalecer sobre texto expresso na Constituição
Federal, e nem poderá servir de paradigma comparativo para declaração de inconstitucionalidade,
porém, por traçar as diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição, será uma de suas
linhas mestras interpretativas. Nesse sentido: CICCO, Claudio De e GONZAGA, Alvaro de Azevedo.
Teoria Geral do Estado e Ciência Politica, Revista dos Tribunais, 8ª edição. 2020, p. 135 e ss.
268
Idem, p. 893.
269
Tal elaboração mais voltada a questionamentos é alvo de crítica de Jorge Miranda, professor
catedrático e presidente do conselho diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Em
apreciação da dissertação de doutoramento, apresentada por Paulo Ferreira da Cunha, Jorge
Miranda discorre sobre os problemas que o texto apresenta. Dentre eles aponta uma observação:
“(...) muito mais de cultura geral do que de especialização técnica; de cultura geral não só jurídica,
mas também histórica, filosófica, literária e até musical! (...) a ponto de, eventualmente, alguém
menos aberto à largueza de horizontes, poder vir a questionar onde deveria inserir-se o presente
doutoramento”. Jorge Miranda, In: Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Mestre Paulo
Jorge Fonseca Ferreira da Cunha – Constituição, Direito e Utopia. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa. LEX – Edições Jurídicas Ltda. n. 1, 1996.
109
Jushumanismo e que o Direito Natural jamais deve ser reduzido ao Direito Positivo
embora não exista entre eles um maniqueísmo ou uma prescindibilidade. Considera,
ainda, que o direito natural tende a visar uma maior universalidade se comparado ao
Direito Positivo. Inclusive, com relação ao Juspositivismo, considera tal corrente
pobre por estar aprisionada apenas à letra da lei.

110
Capítulo IV – Algumas aproximações e distanciamentos do
pensamento de José Pedro Galvão de Sousa e de Paulo Ferreira da
Cunha

Feitas as considerações nos capítulos anteriores, faremos aqui uma análise


comparativa do pensamento de José Pedro Galvão de Sousa e Paulo Ferreira da
Cunha, em especial no que tange suas doutrinas de Direito Natural. Cabe esclarecer
que o exame partirá dos elementos expostos anteriormente nos capítulos anteriores.

Em princípio, vê-se a necessidade de elaborarmos algumas considerações a


respeito do tema principal desta investigação, qual seja, o Direito Natural para os
dois autores. É cediço que ambos defendem tal teoria e desenvolvem suas teses a
partir da crença em um Direito Natural, superior à lei escrita (positivada), diretamente
ligado ao Princípio da Justiça, arraigado em pressupostos sublimes à vontade do
Homem.

Ocorre, entretanto, que as proposições de suas origens divergem. Galvão de


Sousa acredita que o início do Direito Natural é marcado em Aristóteles. Já Ferreira
da Cunha, muito embora perceba em Aristóteles uma parte basilar no
desenvolvimento das ideias do Direito Natural ocidental, não afirma sua origem
primordial em tal filósofo. O segundo autor reconhece pensamentos orientais
parecidos e enfatiza: “No Ocidente – porque há todo um pensamento oriental,
africano, etc. de índole semelhante, mas que não podemos aqui, brevitatis causa,
analisar – o ‘pai’ do Direito Natural foi Aristóteles”.270 Entretanto, aponta em
Aristóteles a capacidade de delimitar melhor o Direito Natural de outras realidades
normativas como a moral e a religião:

“(...) o Direito enquanto ciência, dotado de um método,


função e objecto próprios não existia, realmente, até a reflexão
inovadora de Aristóteles. Até este autor, o Direito era confundido com
outras realidades normativas como a religião, a moral etc. Melhor: o
que havia era uma síncrese de todos estes elementos, da qual se

270
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993, p. 18.
111
ressentia até o que mais especificamente revelava o direito, os
julgamentos judiciais. Portanto, antes de Aristóteles, pode afirmar-se
271
que o Direito existia e não existia. ”

Compreende-se, com clareza, em Galvão de Sousa, uma concepção


teológica, fundada na Lei Eterna, do Direito Natural. Para ele, o que dá unidade ao
seu pensamento é esta fundamentação, em toda sua obra é enfático neste sentido.
Citamos a seguinte passagem:

Não há nenhum antropomorfismo em atribuir inteligência ao


princípio ordenador do universo. (...) A rigor, nem se deve dizer que
esse Princípio tem inteligência ou é inteligente, mas sim que é a
Inteligência (na lição de Aristóteles, o pensamento é a sua própria
essência). (...) Tudo isto mostra como a ordem natural, expressa pelo
determinismo das leis físicas e pela livre sujeição dos atos humanos à
lei moral, supõe uma Inteligência Ordenadora que não pode ser outra
272
senão a de Deus, Autor da natureza.

Ressalta que o Homem deve viver de acordo com a sua natureza, a partir de
certas normas que ele denomina: lei natural, cuja essência preexiste à natureza, pois
é criada por Deus.

Tal ordenação da conduta humana é o fundamento último e


a norma suprema da moralidade dos atos humanos e de toda a
ordem moral e jurídica. É a lei da natureza enquanto na mente do
Autor dessa natureza, o qual é o legislador supremo do universo. É a
273
lei eterna, cuja irradiação, no homem, chamamos de lei natural.

E conclui: “Portanto, a concepção do direito natural, se não supõe


necessariamente a Revelação, entretanto supõe a lei eterna e, nesse sentido, é uma
concepção teológica”.274

Por seu turno, Ferreira da Cunha não compartilha da ideia de que o Direito
Natural tem sua fonte somente em princípios teológicos. Adota postura diversa, não
tão ortodoxa, quando de sua descoberta. Observa-se que:

(...) O Direito Natural está directamente ligado com o


considerado justo. Não necessita este de concreta vigência ou
positivação, pois paira sobre as realidades jurídicas, inspirando-as,
julgando-as. (...) O Direito Natural tem como base a Lei Natural,
resíduo de eticidade que existe em todos os povos. É a chamada Lei

271
Idem, p. 20.
272
SOUSA, José Pedro Galvão de. Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1977, p. 64.
273
Idem, p. 56.
274
Idem, p 70.
112
Moral. (...) Poderemos caracterizar o Direito Natural como algo
imanente ao Homem e às coisas da Natureza e não da razão. Não é
a vontade do ser, é, é uma realidade situada. Está na Natureza e é
independente da vontade do Homem. (...) tem um núcleo absoluto
imutável e universal. (...) São constituintes do Direito Natural um
conjunto de valores e ideias consideradas justas em cada sociedade,
sendo este independente das leis que regem essa mesma sociedade,
podendo não estar de acordo com essas leis, consequentemente
275
tidas por não justas.

Novamente se pode reconhecer que a ideia de Direito Natural não


compreende apenas a concepção teológica, quando o mesmo autor considera que o
Direito, em seu cerne, preexiste às leis e às constituições, mas não,
necessariamente, definido pela Lei Eterna.276 Para ele, basta-se entender que o
âmago do Direito é precedente a toda natureza do Ser Humano.

Outra questão a ser destacada no estudo dos dois autores se revela na


relação da Moral com o Direito Natural. Para eles o estudo da Moral é elemento
fundamental e imprescindível para a compreensão do Direito Natural. Todavia, a
forma como a questão desponta para cada um deles delineia algumas diferenças.

Para Galvão de Sousa, o Direito Natural é a própria Moral. Logo ao início de


seu texto277, no primeiro capítulo, conclui que o Direito Natural é fundamentalmente
moral e que o Direito Natural estrito restringe-se aos primeiros princípios de
moralidade. Enfatiza seu pensamento:

(...) o ius, o que é por justiça devido a outrem, é uma


faculdade ou poder moral essencialmente vinculado ao justo objetivo.
(...) A lei só é justa quando conforme à ordem natural. E os direitos
subjetivos fundam-se na própria natureza humana, na dignidade
pessoal do homem, na liberdade do ser racional, no seu destino
278
transcendente e eterno.

Em compensação, Ferreira da Cunha considera que o Direito Natural nada


tem a ver com a moral, embora esta possa ser vista de forma integrada à Lei
Natural, nas suas palavras: “O Direito Natural tem como base a Lei Natural, resíduo
de eticidade que existe em todos os povos. É a chamada Lei Moral”.279 E conclui:

275
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., pp.18/19.
276
CUNHA, Paulo Ferreira da. Jusnaturalismo e Jushumanismo: O desafio da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In: Direitos Humanos. Almedina, 2003, p. 39.
277
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., Capítulo I.
278
Idem, p. 147.
279
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., p. 18.
113
O Direito Natural não se confunde com a moral. Já a
chamada ‘lei natural’ pode integrar-se nessa categoria, mas essa não
é lei jurídica – antes constitui uma espécie de consciência moral
comum de todos os povos. (...) porque o direito natural não é moral –
é direito, e a lei natural não é direito, é moral. Há uma diversidade de
funções destas duas ordens normativas e uma interligação
280
profunda.

O pensamento de Galvão de Sousa e de Ferreira da Cunha, apesar de


definirem-se de modo distinto (em síntese, o primeiro crê que Direito Natural e Moral
se fundem em mesmo significado, e o segundo difere Direito Natural e Lei Natural e,
a seu ver, somente esta última pode ser vista conjuntamente com a Moral),
pressupõem uma universalidade Moral, como se tal preceito fosse, ainda, superior a
toda racionalidade, corroborando a imagem de que o que é juridicamente justo
decorra das ideias soberanas de que existe “a obrigação de fazer o bem, a noção
objetiva de bem comum e o conhecimento dos fins da atividade humana”.281

A respeito da corrente teórica Juspositivista e suas derivações, que


basicamente defendem que “Direito é o que está na lei”,282 ambos os autores são
claros em suas críticas. Galvão de Sousa parece mais enfático em seus julgamentos
acerca do tema, ao longo de todo o texto283 constrói complexos teóricos para
demonstrar quão falho se apresenta o pensamento juspositivista. Explana, de modo
categórico, que há uma imensa falta de compreensão no que postula o positivismo
moderno em relação ao Direito Natural. Cita Del Vecchio para dar apoio à sua
opinião:

A ideia de direito natural é, na verdade, daquelas que


acompanham a humanidade no seu desenvolvimento; e se, como, de
certo, tem ocorrido, principalmente em nossos tempos, algumas
escolas fazem profissão de excluí-la ou ignorá-la, ela se afirma,
poderosamente, na vida. Por isso é vã e incôngrua a tentativa de
284
repudiá-la.

280
Idem, p. 32.
281
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 49.
282
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., p. 30.
283
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit.
284
DEL VECCHIO, Giorgio apud SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 45.
114
Também nota que os fundamentos que regem O Direito Natural e o Direito
Positivo são bastante díspares, enquanto o primeiro baseia-se no “bem honesto”, o
positivismo encerra-se no “bem útil” e a grande crítica encontra-se no fato de que o
bem útil não pode ser visto como fundamento, mas tão somente como meio.285
Indaga, pois:

(...) Ou se admite, pois, o direito natural, expressão jurídica


dessa ordem da qual dimana o critério de justiça para os governantes,
os legisladores e os juízes, ou estes todos ficam na estrita e exclusiva
dependência da ordem normativa estabelecida, que constitui o direito
positivo de um povo, disto resultando erigir-se o Estado em fonte
única do direito. A tais consequências leva-nos logicamente o
286
positivismo jurídico, por negar o direito natural.

E finaliza sua obra advertindo para a necessidade de o Direito Natural vigorar


no regulamento das sociedades:

(...) Assim, o Estado de direito não depende só do bom


arranjo constitucional. Isto é necessário, e necessário, também, é que
haja uma adaptação das instituições ao meio histórico. Mas é
indispensável que os homens, aos quais cabem as responsabilidades
do poder, tenham plena consciência do que significa o direito natural,
como fundamento da ordem jurídica positiva e princípio ordenador da
atividade do Estado na condução da sociedade à realização dos fins
humanos. É pela superação do positivismo jurídico e sem os
equívocos e ambiguidades do liberalismo, que se poderá chegar a um
Estado de direito, contra as opressões do totalitarismo e da
287
tecnocracia nos dias presentes”.

Ferreira da Cunha, não menos crítico em relação ao Juspositivismo, elabora


seus pensamentos com grande ímpeto. Na mesma linha que segue Galvão de
Sousa, repreende duramente o positivismo jurídico. Também indica que existe um
grande desentendimento por parte dos positivistas em relação ao Direito Natural e
às correntes jusnaturalistas. Exemplifica, de maneira prática e didática, onde outras
formas de Direito, que não as positivadas, aparecem: no direito consuetudinário, no
jurisprudencial, contratual, doutrinario, no das autarquias locais, no internacional, no
das regiões etc.288 Contudo, contrário ao que reza Galvão de Sousa (que acredita e

285
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 51.
286
Idem, pp. 126/127.
287
Idem, pp. 150/151.
288
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
115
expõe um método para provar a existência do Direito Natural), Ferreira da Cunha
admite uma falta de substância que comprove a teoria do Direito Natural: “Sejamos
claros. Sejamos sinceros: O Direito Natural não se pode provar. (...) Voltamos à
carga com as únicas armas que temos – que são introspecção, sinceridade, recta
intenção, tenaz busca da verdade, na qual acreditamos, embora não nos
proclamemos seus donos ou arúspices”.289 Este autor também insiste, em vários
momentos, no esquecimento do Direito Natural nos tempos atuais e lembra que o
que se vê é a persistência de um positivismo puro e duro negador da filosofia.290

Em sua obra,291 Galvão de Sousa não aborda o assunto “correntes


jusnaturalistas” ou “correntes juspositivistas”. A discussão gira em torno de “Direito
Natural e Direito Positivo”. Ferreira da Cunha, além de falar sobre Direito Natural e
Direito Positivo, discorre sobre as correntes clássicas que teorizam tais conceitos.
Ainda, disserta sobre as derivações destas correntes. No texto Reflexões sobre o
Direito Contemporâneo292, faz uma breve explanação histórica de como as correntes
jusnaturalistas e juspositivistas foram criando identidade. O mesmo ocorre em seu
livro Filosofia do Direito293, quando explica o Jusnaturalismo em sua forma stricto
sensu e lato sensu, o Realismo Clássico tomista, o Jusnaturalismo Positivista e, por
fim, o Jusracionalismo (todas as correntes estão descritas no capítulo anterior).

Vale lembrar que os dois autores também são altamente desfavoráveis ao


voluntarismo, corrente jurídica mais radical, que encontra seu alicerce na vontade
arbitrária do agente jurídico. Para além do positivismo, o voluntarismo se revela na
pretensão despótica dos juristas na aplicação das leis normatizadas. Galvão de
Sousa elabora críticas a partir da observação histórica e conclui:

O voluntarismo faz da vontade a criadora do direito,


mediante a lei – expressão da vontade geral – e o contrato ou acordo
de vontades individuais. Embora estas ideias tivessem surgido sob
inspiração do direito natural racionalista do século XVIII, dando
ênfase aos direitos subjetivos naturais, o fato é que elas constituíram

289
Idem.
290
CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de
Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan.-jul. 2009. Disponível em:
[https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958]. Acesso em:
12.10.2021.
291
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit.
292
CUNHA, Paulo Ferreira. Reflexões sobre o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de Filosofia,
v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009. Disponível em:
[https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958]. Acesso em:
12.10.2021.
293
CUNHA, Paulo Ferreira da. Filosofia do Direito – Primeira Síntese, Almedina, 2006.
116
uma antecipação do positivismo jurídico, preparando-o. Para o
positivismo jurídico o direito é emanação da vontade e não
decorrência de uma ordem subjetiva que transcende a vontade e a
294
ela se impõe.

Também nota: “O voluntarismo, pelas suas repercussões no pensamento


jurídico e político, preparou os modernos absolutismos, fazendo da vontade do rei ou
do povo a fonte última do direito”.295 Além disso, critica a definição de Ihering de
direito subjetivo – “interesse juridicamente protegido”:

Trata-se de uma visão mecanicística do direito, na


perspectiva da segurança – isto é, da garantia a ser assegurada aos
homens para uma convivência pacífica na vida social – mas deixando
de lado aquilo que é precisamente essencial ao direito: a justiça.
Positivismo, legalismo e voluntarismo: a segurança decorre das
condições estabelecidas coercitivamente pela norma legal, e esta
resulta de uma determinação da vontade do legislador
independentemente de sua subordinação a um critério objetivo e
296
superior de justiça, a que não se faz nenhuma referência.

No mote filosófico que abarca a definição de Direito, em sua essência, da


legitimidade do Ser que é passível deste Direito, encontram-se diferentes pontos de
vista durante o estudo dos textos. Galvão de Sousa concorda com Ulpiano no
sentido de que só os seres humanos, dotados de razão, podem ser sujeitos de
Direito.297 Defende a ideia de que somente por conta dessa natureza racional é
possível distinguir o bem e o mal e, consequentemente, agir de forma a evitar o mal.

Ferreira da Cunha cita Peces Barba para confirmar a mesma ideia, a de que
“todos os direitos só podem ser humanos”.298 Entretanto, diferentemente de Galvão
de Sousa, reflete para além dessa questão e, em nota299, vislumbra,
contemporaneamente, a necessidade de se pensar no problema do direito dos
animais, e também nos direitos não atinentes a homens nascidos e vivos300,
protodireitos e normas do que deles derivam. Apesar de reconhecer que o assunto
seja polêmico e dificílimo, afirma que o que existe hoje é um direito ao ambiente –

294
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 114.
295
Idem, p. 118.
296
Idem, p. 87.
297
Idem, p. 63.
298
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993, p. 86.
299
Idem, nota 15, p. 95.
300
Presunção romana.
117
que se pressupõe um direito Humano ao ambiente – mas que margeia o assunto
pertinente aos animais e plantas.

Interessante observar que ambos preocupam-se em demonstrar a questão da


Justiça sob a ótica do Direito Natural em casos práticos. Galvão de Sousa apresenta
como exemplo o caso da arma que é entregue a alguém, para que a guarde.301 Se o
dono a pede, o guardador deve devolvê-la, em obediência à lei. Mas se o
proprietário pede a arma para praticar um homicídio, há um valor superior que, ao
arrepio da lei, manda que se não devolva a arma. É justiça, Princípio de Direito
Natural, acima da lei escrita. Ferreira da Cunha analisa a mesma questão,
pontificando:302

Mas, por vezes, a própria justiça é excessivamente dura.


Mesmo se nela fizermos intervir, modelando inteiramente os juízos, a
componente intrinsecamente justa, da adequação ao caso concreto, a
equidade. A equidade pode não ser suficientemente équa. Summum
ius, summa iniura. É preciso haver válvulas de segurança no direito
que prevejam a recusa dos casos não jurídicos que não impliquem
uma gritante relevância jurídica (como os citados supra), e o
abandono daquelas questões jurídicas cujo tratamento, pelo seu
melindre, pouca monta (bagatelas), ou previsível viesse provocar
maior dano nas pessoas que efectivo bem (pela fúria do direito, fiat
iustitia, pereat mundus). A Pessoa é, também desta forma, elemento
regulador e instância de apreciação dos demais elementos fundantes.
Dizia Albert Camus: “Defenderei a minha mãe antes da Justiça”. Há,
realmente, para cada um, valores mais altos que os do Direito, e
muito mais altos que os do direito positivado, legal ou contratual, de
circunstância.

Em nota303, Ferreira da Cunha refere-se aos “casos literários” do judeu


Shylock304 e do jardineiro Israel Gow305.

301
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 16.
302
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., p. 58.
303
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., nota 82, p. 78.
304
Shylock é o judeu agiota que foi muito humilhado por um rico mercador de Veneza, Antônio.
Antônio, em situação que lhe falta dinheiro, pede ajuda a Shylock. No contrato, Shylock estabelece
uma cláusula onde diz que caso o devedor Antônio não pagar o empréstimo no vencimento, o credor
(Shylock) terá o direito de retirar do corpo de Antônio, uma libra (453 gramas) de carne. Chega o dia
do pagamento e Antônio não tem o dinheiro que deve a Shylock e reconhece que “o doge (juiz de
Veneza) não pode impedir o curso da lei”. O juiz pede que o judeu volte atrás em sua intenção. A
resposta de Shylock resume o maior argumento dos positivistas, que só acreditam na lei: “Jurei por
nosso santo Sabá que exigiria a execução da cláusula penal de meu contrato. Se me recusardes, que
o dano que disso resultar recaia sobre a Constituição e as liberdades de vossa cidade!”. (Ou seja,
excesso de justiça, excesso de injustiça, summum ius, summa iniura.). Shylock não se comove. Quer
retirar a libra de carne, exigindo a execução do contrato. Diante da problemática apresentada no
texto, pensa-se: o que parece mais justo? O estrito cumprimento da lei ou aplicação de princípios de
Direito Natural? O advogado de Antônio diz ao judeu que ele vai receber o que lhe é devido, em
estrito cumprimento do contrato – e aí se configura, estranhamente, o exato cumprimento da lei. In: O
118
Em face de todo o exposto, notamos alguns pontos importantes a serem
considerados de modo a elaborar uma síntese desta análise.

Primeiro, observa-se que José Pedro Galvão de Sousa e Paulo Ferreira da


Cunha sempre partem da mesma teoria do Direito para alcançar seus
questionamentos e fundamentá-los em suas dissertações, a do Direito Natural.
Também, apesar de possuírem modos distintos para discorrer sobre o Direito
Positivo, ambos são contrários e críticos definitivos em relação ao que prega tal
teoria. Do mesmo modo, são enfáticos na posição avessa ao viés filosófico do
voluntarismo.

No que tange ao princípio da elaboração filosófica da matéria Direito Natural,


tem-se nitidamente determinado em Aristóteles, nos estudos de Galvão de Sousa.
Já para Ferreira da Cunha, pode-se afirmar o mesmo somente em relação ao
Ocidente, uma vez que reconhece que no Oriente estudos semelhantes também
foram desenvolvidos.

Do mesmo modo divergem no que pressupõe este Direito Natural. Enquanto


Galvão de Sousa assegura que seu núcleo é de origem estritamente teológica,
Divina, pela Revelação de Deus, revelada pela Lei Eterna, Ferreira da Cunha
assevera que essa origem não só se revela de maneira teológica, mas que a

Mercador de Veneza (William Shakespeare, Obra Completa: Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1995, v. II,
pp. 437/497).
305
No conto, o padre Brown investiga o desaparecimento do último lorde Glengyle, num remoto
castelo da Escócia. No castelo mora apenas um jardineiro simplório, pois o lorde não deixou
herdeiros. Depois de idas e vindas, de análises de pistas e de adoção e abandono de hipóteses,
resolvem desenterrar o lorde, e encontram o esqueleto está sem cabeça. Brown descobre, na horta
cuidada por Israel, um pedaço de canteiro sem hortaliça. Cavam no local e acham a cabeça do lorde.
Brown interpela a sós o jardineiro, que conta a sua história. Um dia foi levar um telegrama ao lorde,
no castelo. Glengyle, que acreditava que todos os homens eram desonestos, gratificou o mensageiro
com uma moeda de farthing. Dias depois recebeu a visita de Israel Gow, que informava ter recebido
do lorde uma moeda de uma libra e trazia o troco exato de 19 xelins, 11 pence e 3 farthing. Israel não
sabia, mas o lorde havia lançado um desafio à humanidade: se um dia encontrasse um homem
honesto, este teria todo o ouro de Glengyle. Assim, o lorde levou Israel para o castelo e instituiu-o seu
herdeiro, determinando que, por ocasião de sua morte, todo o ouro existente no castelo passaria ao
criado. Daí a explicação para todos os objetos estranhos encontrados, faltando pedaços, no quarto
ocupado pelo lorde: tudo o que faltava era exatamente o ouro que Israel, escrupulosamente, havia
retirado dos objetos, obedecendo exatamente ao que determinava lorde Glengyle. E a cabeça
separada do corpo? Aqui aparece o Direito Natural. Israel Gow tinha retirado da sepultura a cabeça
de lorde Glengyle a fim de extrair alguns dentes de ouro da caveira, recebendo justamente o que lhe
fora prometido. Se o investigador da Yard seguisse estritamente a lei, haveria de instaurar inquérito
contra Israel Gow por profanação de túmulos e, com exagero, furto ou desrespeito aos mortos. Mas o
padre Brown teve visão mais abrangente, levando em conta a personalidade do investigado (ou
melhor, a pessoa, um dos parâmetros do Direito, segundo Ferreira da Cunha), e as circunstâncias do
caso, concluindo: “Esta não é uma história de crime. É antes a história de uma estranha e distorcida
honestidade”. In: Conto “A honra de Israel Gow”, que consta do livro “Contos Fantásticos no labirinto
de Borges”. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2005, pp. 105/118. O autor é Gilbert Keith Chesterton.
119
compreensão de que o Direito Natural seja superior a toda natureza humana já
apresenta a preexistência primordial e sua soberania diante do Direito Positivo.

Com relação ao desenvolvimento das correntes juspositivista e jusnaturalista,


entende-se que Ferreira da Cunha possui maior produção que teoriza estes temas
em sua forma clássica e suas derivações. Até mesmo por ser um autor
contemporâneo, constantemente se atualiza das alterações e inovações que
ocorrem nas várias doutrinas que explicam o Direito.

Há outra distinção de pensamento entre os dois autores. Quando discorrem


sobre o Ser legítimo sujeito ao Direito, encontramos em Galvão de Sousa posição
clara, compreendida em Ulpiano, que defende ser o Ser Humano o único Ser no
mundo passível de Direito. Para Ferreira da Cunha, nota-se que essa discussão
deverá ser expandida, pois enxerga que outros seres na natureza também são
passíveis de Direito.

Por fim, ressalta-se que ambos evidenciam nos casos práticos cotidianos a
presença do Direito Natural e como ele se relaciona diretamente com a Justiça e a
Moral, enquanto o Direito Positivo falha nessa ligação, pois nem tudo o que rege a
Letra da Lei necessariamente tem precisão para decidir aquilo que é Justo. A nós
ficam guardadas grandes lições que despertaram a reflexão e expadiram nosso
universo.

120
Conclusão

A guisa de encaminharmos nossas considerações finais pontuamos o que de


mais importante se destacou em nossa dissertação que entendemos ter atingido
seus objetivos; qual seja, investigar os elementos históricos e filosóficos do
jusnaturalismo e do Direito Natural, bem como e apresentar e cotejar os
pensamentos de José Pedro Galvão de Souza e Paulo Ferreira da Cunha.

Estabelecida à metodologia, bem como o referencial teórico, elaboramos o


texto que aqui se apresentou e chegamos as conclusões que expomos a seguir:

O termo Jusnaturalismo é definido como sendo uma corrente jusfilosófica que


admite um “direito natural” (ius naturale), ou a existência de uma norma de conduta
intersubjetiva, que se abriga em um sistema formado pelas normas do Direito
Positivo, fixadas pelo Estado. O Jusnaturalismo é universal e imutável, devendo
prevalecer ao Direito Positivo no caso de conflito. A doutrina denominada
Positivismo Jurídico, segundo a qual o Direito é somente aquele determinado pelo
Estado, sem se considerar qualquer menção a valores éticos, é, em si, antiética.

Já com relação à doutrina do Direito Natural, verificado sob a luz dos


pensamentos brasileiro e lusitano, tivemos dados proveitosos dentro dessa
pesquisa.

Ao fim, pudemos constatar que, de fato, tanto José Pedro Galvão de Sousa
quanto Paulo Ferreira da Cunha colocam a matéria como desígnio supremo no
desenvolvimento de seus conceitos e teorias. Para ambos, o Direito só pode criar
corpo, se tornar legítimo, a partir do que reza o jusnaturalismo clássico, a corrente
filosófica que apresenta o Direito Natural.

Percebemos na obra de Galvão de Sousa, Direito Natural, Direito Positivo e


Estado de Direito, traços inquestionáveis no que diz respeito à origem do Direito
Natural. Definitivamente ficou claro que o autor crê numa concepção teológica da
matéria em questão. Para ele não há outra possibilidade deste início a não ser pelos
preceitos de uma Lei Eterna; somente o que é posto pelos princípios divinos pode
validar o Direito, ou seja, o Direito Natural.

121
Já diante dos textos selecionados de Paulo Ferreira da Cunha, conseguimos
evidenciar que o autor não descarta outras formas para a procedência do Direito
Natural. Na verdade, admite que o Direito Natural é sublime à natureza humana, que
basta se perceber sua soberania perante toda razão, independente de qual seja a
essência deste entendimento, para acolher sua existência e sua extrema
importância.

Independentemente da crença que cada um deles elege para tal origem,


destacamos que ambos entendem que o Direito só poderá ser visto partindo dos
pressupostos do Direito Natural e do que prega o jusnaturalismo clássico. Inclusive,
e principalmente, de forma enfática, como argumento decisivo contra o Positivismo
jurídico e suas adjacências mais radicais como, por exemplo, o voluntarismo, o
racionalismo e o individualismo.

Vale ressaltar que os dois autores, em síntese, também acham que o Direito
Natural nunca poderá se abreviar ou se compor com as noções do Direito Positivo.
Não há compatibilidade, pois enquanto o primeiro vigora a partir de Princípios
Superiores ao Homem, o segundo é vigente somente pela letra da Lei normatizada,
positivada.

Com relação à Moral, percebemos que os dois autores distinguem suas


teorias de modo evidente. Para José Pedro Galvão de Sousa o Direito Natural é a
própria Moral, não se diferenciam, são a mesma substância e devem servir como
base para toda organização social humana. Por sua vez, Paulo Ferreira da Cunha
individualiza os dois conceitos, Direito Natural é uma coisa e Moral é outra. O último
autor acredita que o Direito Natural produz a Lei Natural e, aí sim, esta pode ser
entendida como Moral.

Embora Paulo Ferreira da Cunha enfatize que toda sua obra deva ser
apreciada como questionamentos filosóficos, e não como teorias doutrinárias ou
definitivas, pudemos notar opiniões bem tracejadas a respeito de alguns temas.
Quando o autor discorre sobre as várias correntes clássicas do estudo do Direito e
também das modernas, observamos que sua defesa está sempre direcionada ao
que articula o Direito Natural. Ferreira da Cunha consegue fazer um panorama
bastante útil e detalhado da “evolução” dos principais pensamentos do Direito. Nesta

122
tarefa, discorre sobre a Jusracionalismo, corrente que faz oposição direta ao
Realismo jurídico clássico tomista, que possui em seu cerne muitos elementos
positivistas e que, ainda, se mostra muito confusa por não definir claramente quais
são suas presunções. Do mesmo modo, fala sobre o Jushumanismo, viés filosófico
que dialoga diretamente com a questão dos Direitos Humanos, principalmente com
relação à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O autor
compreende, afinal, que há, sim, pontos de encontro entre o Jusnaturalismo e o
Jushumanismo, mas que os juristas necessitam retomar bases do Direito Natural
para que os Direitos Humanos sejam de fato efetivos.

Entendemos, a partir de análise, que os pontos principais de convergência de


pensamentos entre os dois autores acontecem: a) Na crença de que só existe um
Direito autêntico, qual seja, o Direito Natural. b) Que este Direito Natural deve ser o
único essencial para constituir a vida em sociedade, pois ele se caracteriza pela
universalidade que seu conteúdo abrange. c) O Direito Natural está intimamente
unido ao conceito de Justiça. d) O Direito Positivo e o Direito Natural não são
compatíveis, pois partem de concepções simetricamente opostas. e) As correntes
radicais derivadas do juspositivismo são abomináveis e não devem ser usadas na
atuação dos agentes do Direito. f) Ambos se esforçam durantes seus escritos,
incansavelmente, para comprovar como o Direito Natural é presente no cotidiano e
como sua compleição se revela sempre superior às Leis escritas.

Já os principais pontos de distanciamento de ideias a respeito das matérias


que norteiam o Direito Natural são: a) A origem do Direito Natural: um
obrigatoriamente teológico e outro não necessariamente teológico. b) A maneira
como a Moral é ligada à matéria do Direito Natural. c) A visão acerca dos seres que
são passíveis de Direito. Como visto, Galvão de Sousa defende que somente o Ser
Humano é sujeito legítimo de Direito, enquanto Ferreira da Cunha argumenta que tal
pensamento necessita ser revisto, já que reconhece que outros seres também são
suscetíveis ao Direito.

Por fim, destacamos o grande empenho dos autores na difícil tarefa de


persuasão para validarem a teoria do Direito Natural. E, diante de todo exame feito,
corroborando as várias teses analisadas neste trabalho, entendemos que, para além
das discussões teóricas, precisamos que, na prática, o ensino do Direito, tanto
123
lusitano como brasileiro, seja avaliado no sentido de minimizar o conteúdo positivado
da Lei, Constituição, Códigos etc., para que aqueles que aplicam a matéria
desenvolvam mais senso crítico, quando do momento de agirem como juristas.
Percebemos que a Justiça muitas vezes se distancia daquilo que a Lei, o texto legal,
profere. Intuímos, pois, que não adianta ter somente as ferramentas positivadas do
Direito para que se cumpra o ideal do que seja justo. Há que se ter bom-senso, há
que se ter intenção a partir de princípios que não nascem nas normas, mas que
sublimam qualquer posição codificada, como bem pretendem ambos os autores
ensinar.

De todo o exposto, temos a convicção que estudar Direito Natural,


jusnaturalismo e juristas de tão alta escol colabora muito com o cenário sócio
jurídico e na efetividade não apenas do Direito mas da Justiça.

124
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