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PROGRAMA ÉTICA E CIDADANIA

construindo valores na escola e na sociedade

Competência e profissionalismo: o lugar da ética

Nílson José Machado1

1. Introdução: contaminações
Competência e profissionalismo são duas palavras muito presentes no
discurso educacional, ainda que com conotações variadas, oscilando, algumas
vezes, entre pólos antagônicos. No que se refere à competência, por um lado, há
o elogio da mesma como um saber fazer que se situa entre o know how e o savoir
faire, uma capacidade de mobilização de recursos com discernimento; por outro
lado, a competência evoca, às vezes, uma associação direta com a competição,
com a concorrência predatória, concentrando-se as atenções na dimensão técnica
de tal noção. Simetricamente, o profissionalismo convive, por um lado, com a idéia
de um saber técnico, de um fazer tecnicamente bem realizado, e por outro, com o
modo de ação de quem, muito além da competência técnica, imprime um sentido
ético a suas ações, em conseqüência de compromissos com projetos e valores
socialmente acordados. Assim é que, de um crime hediondo, realizado com
requintes de crueldade, esbanjando-se competência técnica, um jornalista ou um
policial costumam afirmar: “Isso é coisa de profissional”; similarmente, como
indício de tal imbróglio conceitual, um jogador de futebol reconhecidamente
competente numa perspectiva técnica, que abandona sua equipe em razão de
uma proposta milionária de uma equipe adversária, defende-se proclamando: “Sou
profissional”. A linha divisória que distingue o profissional do maníaco ou do
mercenário pode parecer sutil, em alguns casos, mas é fundamental que seja

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Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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nitidamente reconhecida. Sublinhar os elementos fundamentais na construção do
significado das noções de competência e de profissionalismo, explicitando o papel
da Ética em tal construção, é o objetivo principal do presente texto.

2. A idéia de competência
Iniciemos com a idéia de competência. Três são os ingredientes
fundamentais em sua constituição. Em primeiro lugar, a pessoalidade é uma
dimensão característica da noção de competência: as pessoas é que são
competentes (ou incompetentes), não fazendo qualquer sentido expressões como
“livros competentes", "computadores competentes", ou objetos competentes, de
uma maneira geral. A consideração de tal fato nos remete imediatamente a
algumas considerações sobre o conceito de pessoa.
Constituímo-nos como pessoas representando papéis, em diferentes
âmbitos: na família, no trabalho, na vida política etc. A sociedade é um vasto
sistema de distribuição de papéis. A palavra deriva de persona, que em latim era a
máscara utilizada pelos atores no teatro. Uma pessoa pode ser caracterizada,
pois, como um feixe de papéis sociais. Para apresentar qualquer um de nós, em
uma situação formal, o apresentador desfila uma série de papéis que
desempenhamos regularmente, no trabalho, na família, na vida pública etc. Em
alguns desses papéis, somos protagonistas; em outros, meros coadjuvantes. Em
todos os casos, ninguém se constitui como pessoa sem o outro, sem representar
papéis junto com os outros ou para os outros. Não é possível imaginar-se uma
pessoa socialmente desintegrada, ou seja, que não partilhe projetos e valores com
os outros.
Um segundo ingrediente da idéia de competência é o âmbito. Se alguém
nos afirma que "Fulano é competente", ou pressupõe que conheçamos o contexto
e saibamos o âmbito em que tal pessoa atua, ou então, automaticamente,
perguntamos: "É competente em quê?" E soa estranho dizer-se: "É competente
para o que der e vier". A idéia de competência reclama a determinação de um
âmbito. Dizemos naturalmente: "Isto não é da minha competência", quando

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queremos estabelecer tal âmbito. A fixação de um âmbito significa a referência a
um contexto, significa uma contextuação. Toda competência realiza-se em
determinado contexto. Assim como não existe uma autoridade para todos os
âmbitos, também não é concebível uma competência para todos os contextos
imagináveis.
Na escola, por exemplo, exercitamos continuamente a capacidade de
abstrair. As abstrações são absolutamente fundamentais; sem elas, não existe a
possibilidade do conhecimento. Quem sabe que 3 abacaxis mais 4 abacaxis são
sete abacaxis, mas ignora quanto dá a reunião de 3 bananas com 4 bananas, não
sabe coisa alguma. Entretanto, enquanto não são equilibradas pela capacidade de
contextuar, as abstrações costumam ser alvo de críticas. O outro da capacidade
de abstrair é a capacidade de contextuar. A relação 3 + 4 = 7, apreendida no
contexto dos abacaxis, deve ser passível de uma contextuação no contexto das
bananas, ou das maçãs, ou das pessoas, ou de quaisquer coisas, ou não houve
aprendizado algum. A idéia de competência está diretamente associada a essa
capacidade de situar o aprendido em diferentes âmbitos. Não se constrói o
conhecimento sem um movimento cíclico que se inicia na abstração e se realiza
na contextuação.
Naturalmente, quanto mais abrangente é o âmbito, mais difícil é
caracterizar-se a noção de competência; quanto mais restrito é o mesmo, mais
fácil é fazê-lo. É razoavelmente simples explicitar-se o que seria um, digamos,
motorista competente; é bem mais complexo caracterizar-se um cidadão
competente, ou uma criança competente. A questão mais natural é: competente
para quê? E aí, sentimos as dificuldades inerentes à falta de clareza de nosso
projeto coletivo, de nossa idéia de sociedade, de nossa visão de mundo.
Um terceiro ingrediente da idéia de competência é a capacidade de
mobilização. Uma pessoa competente é capaz de mobilizar o que sabe para
realizar o que deseja; alguém que estuda muito, aprende tudo, e não realiza coisa
alguma é, sem dúvida, incompetente. Naturalmente, antes da mobilização referida,
é preciso haver o desejo, a vontade, o projeto. Alguém que nada deseja, que não

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tem projetos, ou a quem nada apetece, é certamente um incompetente. A
inapetência é a ante-sala da incompetência. Etimologicamente, a palavra
competência deriva de com + petere, ou de pedir junto com os outros, buscar junto
com os outros, desejar ou projetar junto com os outros. Claro, no entanto, que
importa muito aquilo que se deseja. Se tivermos em nossa escola alunos com
muitos desejos, com muitos projetos – um deles quer ser o chefe de uma grande
quadrilha nacional, o outro prefere uma carreira internacional, talvez na Máfia etc.
– então não creio que tenhamos motivos para grandes satisfações. De modo
geral, quem busca apenas bens materiais, submete-se à contingência da mera
competição, em que se alguém ganhar, alguém necessariamente tem que perder.
Quando o que se busca, no entanto, são valores mais sutis e relevantes, como o
conhecimento, por exemplo, então o sucesso de um não significa a desgraça dos
outros. Quando somos competentes na busca do conhecimento, todos podem
ganhar simultaneamente. O conhecimento é um bem tão especial que podemos
dar, vender ou trocar sem se ficar sem ele.

3. A idéia de profissionalismo
Igualmente interessante é a idéia de profissionalismo. Por mais digno que
seja todo trabalho honrado, intuímos que nem toda ocupação constitui uma
profissão. Vivemos, nos dias atuais, um quadro de ocupações muito volátil. O
esmigalhamento das tarefas no universo do trabalho conduz à perda do
significado do mesmo e a uma descaracterização da idéia de profissão. Em alguns
casos, não temos dúvidas: falamos de profissionais da Educação, de profissionais
da Saúde, de profissionais da Justiça, de profissionais das Forças Armadas, por
exemplo. Mas também lemos ou ouvimos falar em “assassino profissional”, ou
usamos expressões como “político profissional” com certa conotação negativa.
Quais seriam, então, os elementos constitutivos da noção de profissionalismo,
cuja identificação nos livraria de tal indesejável confusão?
Três são os ingredientes fundamentais da idéia de profissionalismo. Em
primeiro lugar, um profissional exibe uma imprescindível competência técnica.

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Ninguém é profissional se não é competente do ponto de vista técnico, sem ter
estudado um elenco de disciplinas específicas. Ninguém é profissional sem um
repertório de ações, sem uma bagagem de conhecimentos. A falta de
competência técnica é o primeiro indício da inexistência de profissionalismo, mas
a existência da referida competência nem de longe é suficiente para caracterizá-lo.
A competência técnica, por exemplo, não distingue o profissional do
mercenário. Ninguém sobrevive como mercenário se não for competente,
tecnicamente. Se em uma ação criminosa tecnicamente bem realizada pode-se
vislumbrar a presença de um profissional, é apenas nos limites da competência
técnica. O abismo que separa as duas categorias é representado pelos
compromissos que vigem em ambos os casos. O compromisso do mercenário
limita-se a quem lhe municia, a quem lhe fornece a "mercê", ou o pagamento, a
recompensa pecuniária; um profissional, no entanto, ao professar sua
competência técnica, coloca-a a serviço do bem público, assumindo
compromissos que vão muito além da recompensa monetária. Profissionais
podem ser muito bem remunerados, mas em nenhum caso submetem-se a ordens
descaracterizadoras de sua função social, do papel que desempenham em função
da competência que professam. O comprometimento com projetos que
ultrapassam em muito seus interesses pessoais é o segundo ingrediente decisivo
na construção da noção de profissionalismo.
Um terceiro ingrediente compõe a idéia de profissionalismo, juntamente
com a competência técnica e o compromisso público: trata-se da imprescindível
auto-regulação do exercício profissional. De fato, o próprio compromisso público
depende essencialmente de tal auto-regulação, e nesse sentido, as associações
de classe desempenham um papel fundamental. De um verdadeiro profissional,
não se pode dizer que suas ações são pautadas exclusivamente pelos ditames
das políticas públicas, nem pelos interesses financeiros da empresa privada em
que trabalha. Quando procuramos um médico, por exemplo, confiamos nele como
profissional, confiamos em seu procedimento segundo um código de ética que
regula sua atuação. Especialmente no que tange a questões de natureza ética, o

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papel das associações profissionais é muito relevante. Poder-se-ia mesmo dizer
que a auto-regulação seria uma contra-partida necessária para um efetivo
compromisso público de uma categoria profissional.
Naturalmente, os três ingredientes mencionados da idéia de
profissionalismo - a competência técnica, o compromisso público e a auto-
regulação - podem conduzir a desvios indesejáveis. Já nos referimos ao fato de
que o mercenarismo representa um desvio da idéia de profissionalismo, ao reduzi-
la à mera competência técnica, sem o imprescindível compromisso público.
Similarmente, o amadorismo também constitui um desvio, na medida em que, por
mais competente tecnicamente que seja determinada atuação, a carência de um
efetivo comprometimento que só o exercício profissional provê diminui o
significado do que se realiza. Uma outra forma de desvio, um tanto mais grave, é a
que confunde o compromisso público com o compromisso com os companheiros
de profissão, reduzindo uma idéia fecunda como a de profissionalismo ao mero
corporativismo. Tais possibilidades de desvio, no entanto, devem apenas servir de
alerta, nem de longe contaminando a caracterização pretendida do exercício
profissional.

4. Profissionalismo e cidadania
Seria interessante mencionar, ainda que de passagem, um paralelismo
existente entre as idéias de profissionalismo e de cidadania. Freqüentemente, a
palavra "cidadania" aparece na imprensa associada à garantia dos chamados
"direitos humanos", expressos em documentos como a Declaração Universal de
1948, como se a formação do cidadão dependesse basicamente do respeito a tais
direitos. Trata-se, no entanto, de uma simplificação exagerada, e podemos afirmar
com segurança que, mesmo em um suposto país onde todos os referidos direitos
fossem sistematicamente assegurados, ainda assim, a Educação teria como meta
precípua a construção da cidadania. Construir a cidadania significa a construção
dos instrumentos que possibilitem uma articulação adequada entre os interesses
dos indivíduos e os da sociedade, entre nossos mais caros projetos pessoais e os

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projetos que alimentamos coletivamente. As leis, as normas socialmente
acordadas, a legislação político-eleitoral, as declarações de direitos e deveres,
com a Declaração Universal de Direitos Humanos apenas buscam regular, ou
servir de instrumentos para tal articulação. Votar e ser votado é um instrumento de
construção da cidadania, uma vez que nos permite pensar e buscar associar o
que queremos para nós, pessoalmente e o que queremos para nossa cidade,
nosso Estado, nosso país. Insistimos neste ponto: aí, na articulação entre o
interesse pessoal e o interesse coletivo reside o cerne da idéia de cidadania.
Analogamente, a referência ao profissionalismo costuma ocorrer numa
associação direta com a competência técnica, mas o núcleo mesmo da idéia de tal
noção encontra-se na articulação entre o interesse público e o interesse privado.
Na formação profissional, em qualquer área que almeje tal caracterização, um
verdadeiro profissional, quer trabalhe numa empresa pública, quer trabalhe numa
empresa privada, age profissionalmente: não é quem lhe paga o salário que
determina seu modo de agir. Um profissional da Educação, da Saúde, da Justiça
ou das Forças Armadas não muda seus princípios nem seu modo de agir em
situações-limite, em função do pagamento que recebe, ou da natureza de seu
empregador.
Aí reside, portanto, a distinção fundamental entre a atuação de um
profissional e o mero desempenho de uma ocupação de qualquer natureza, por
mais digna e honrada que seja: na existência de princípios reguladores, de cunho
moral, de natureza ética. Sem dúvida, tais princípios deveriam regular todas as
ações humanas, mas no caso específico da inserção social no universo do
trabalho, eles são distintivos da atuação do verdadeiro profissional.

5. O lugar da Ética
Como se sabe, a Ética e a Moral dizem respeito aos valores. No entanto,
ainda que tais termos sejam utilizados hoje de modo razoavelmente indistinto, eles
têm origens diversas e a compreensão de tal distinção pode ser útil para a
compreensão do lugar da Ética no exercício profissional. O termo "Moral" é de

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origem latina (mos, moris), associado a regras, a costumes, a modos de
procedimentos; já o termo "Ética" origina-se do grego ethos, estando associado a
uma reflexão sobre os costumes, ou sobre a moral, fundada em princípios que
transcendem a mera consolidação de hábitos. Trata-se de uma distinção sutil, mas
fundamental. Tentemos uma explicitação da mesma.
A Ética e a Moral dizem respeito a normas de conduta, que expressam
valores e que regulam as ações, os fatos. Na perspectiva Moral, o fato é o ponto
de partida; os hábitos, os costumes expressam valores, que se consolidam em
uma norma, socialmente aceita, e que deve ser seguida por todos. No percurso da
Ética, os valores são o ponto de partida: é um valor que se consubstancia em uma
norma para instaurar um fato, para criar um hábito. Por exemplo, não decorre da
Moral uma norma como o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos
Humanos: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos". Não foi a observação dos costumes, ao longo dos tempos, em diversas
culturas, que se chegou a tal preceito: a igualdade proclamada é uma questão de
princípio. Ela vem de cima, seu fundamento não é o hábito, não é o costume, mas
algo que antecede tudo isso, e que é muito difícil de ser caracterizado. Alguns
buscam tal fundamento na Religião, ainda que seja possível fundar a Ética em
outros territórios. Inevitável, no entanto, é o recurso a princípios universais,
explicitadores de valores perenes, não-contingentes.
A atuação de um profissional deve pautar-se necessariamente em um
repertório de valores socialmente acordados, tendo por base princípios fundadores
que ultrapassam em muito a busca do lucro, do benefício pessoal. Em nome de
quê um profissional da Saúde ou da Educação doa-se em ações, plenas de
significação, simbolicamente poderosas, mas em geral, tão distanciadas do poder
em sentido político ou econômico? O que alimenta sua luta, como um Quixote, em
circunstâncias normalmente tão adversas? Pode não ser simples explicitar os
princípios que fundamentam suas ações, mas é absolutamente impossível
compreendê-las sem uma perspectiva Ética.

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Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Luís de – A Ética como pensar fundamental. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1992.
ARAÚJO, Ulisses F. , PUIG, Josep Maria – Educação e valores. São Paulo:
Summus, 2007.

COMPARATO, Fábio Konder – Ética. Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno.


São Paulo: Cia das Letras, 2006.
FREIDSON, Eliot – Renascimento do Profissionalismo. São Paulo: EDUSP, 1998.
KOLAKOWSKI, Leszek – Tratado sobre la mortalidad de la razon. Caracas: Monte
Ávila Editores, 1969.
MACHADO, Nílson José – Educação: Projetos e valores. São Paulo: Escrituras,
2000.
MACHADO, Nílson José – Conhecimento e valor. São Paulo: Moderna, 2004.

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