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CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: CONSIDERAÇÕES DIÁLETICAS

A PARTIR DO CONCEITO DE TRABALHO1

PARTE I

O recorrente mal-estar na civilização: educação e barbárie

Robson Loureiro2

No dia 20 de abril de 1999, Erick Harris, à época com 18 anos de idade e Dylan Klebold, um adolescente
de 17 anos, ambos estudantes da escola de ensino médio Columbine – High School Columbine – em Littleton,
no estado do Colorado, Estados Unidos da América do Norte, entraram naquela instituição e assassinaram
todos que encontravam pelo caminho. A chacina deixou 13 mortos – doze alunos e um professor – e mais
de 30 pessoas feridas. Na sequência do fuzilamento, os dois jovens se suicidaram. A polícia descobriu que
eles carregavam bombas que não conseguiram detonar, o que significa que o número de vítimas poderia ter
sido ainda maior (BROOKE, 1999).

Oito anos depois do massacre de Columbine, em 16 de abril de 2007, Seung-Hui Cho, um estudante
de 23 anos matou 27 colegas e cinco professores, antes de se suicidar na Virginia Tech (Virgínia, Estados
Unidos).Cinco anos depois, no dia 14 de dezembro de 2012, Adam Lanza, um jovem de 20 anos de idade,
adentrou a Sandy Hook Elementary School – escola de ensino fundamental Sandy Hook, na cidade de
Newtown, no estado de Connecticut (E.U.A). Armado com várias pistolas calibre 9mm e um rifle, Lanza

1 Texto escrito para fins didáticos. Ainda não passou por revisão de português. Para fins de citação: LOUREIRO, Robson.
Civilização e barbárie: considerações dialéticas a partir do conceito de trabalho. Vitória: Nepefil/CE/Ufes, 2019 (mímeo).
Contato: E-mail: robsonloureiro.ufes@uol.com.br
2 Professor Associado da Universidade Federal do Espírito Santo. Pós-doutorado em Filosofia pela School of Philosophy

(University College Dublin, Irlanda, 2013/2014) e Hochschule für Grafik und Buchkunst (HGB) da Universität Leipzig (2018.2).
Doutor em Educação (linha de pesquisa História e Política) pela UFSC. Estágio de doutoramento na School of Education,
University of Nottingham e Deparment of German Language Studies (Nottingham, Inglaterra, 2004). Mestre em Filosofia da Educação
pela Unimep (SP, 1996). Graduado em Filosofia. Integra o corpo de professores da Linha de Pesquisa Educação e Linguagens
do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/Ufes). Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação,
Filosofia e Linguagens do Centro de Educação (Nepefil/CE/Ufes). Pesquisador na área de Filosofia Contemporânea, em
especial Teoria Crítica da Sociedade (Escola de Frankfurt) tendo como objeto de pesquisa alguns produtos da indústria cultural
que circulam a esfera pública burguesa, em particular o cinema e a literatura, em diálogo com a psicanálise e o campo das
ciências da educação.
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assassinou 26 pessoas, vinte das quais crianças com idade entre 5 e dez anos. Tal como no episódio de
Columbine, o assassino também se suicidou (BARRON, 2012).

No estado da Flórida, também nos Estados Unidos, no dia 14 de fevereiro de 2018, Nikolas Cruz,
um adolescente de 19 anos protagonizou um tiroteio que aconteceu em Stoneman Douglas High School, uma
escola de ensino médio. O massacre teve início na parte da tarde, quando Cruz, um ex-aluno que havia
sido expulso, adentrou sua antiga escola com um fuzil AR15 e disparou indiscriminadamente. O resultado
da ação foi 17 vítimas fatais (14 estudantes e três integrantes da equipe escolar) e 15 pessoas feridas3.
Nesse caso, a polícia informou que nas redes sociais Nikolas Cruz seguia um viés de extrema direita, pois
defendia ideias racistas e manifestava ódio contra muçulmanos, judeus, latinos e imigrantes em geral. Em
um grupo privado do Instagram Cruz teria expressado exacerbado patriotismo pelos Estados Unidos e
suas mensagens apoiavam o assassinato de mexicanos, negros e homossexuais. Seu ódio era simplesmente
devido a cor da pele das pessoas e para ele mulheres brancas que se relacionam com negros eram
traidoras4.

Este (massacres em escolas) não é um fenômeno típico da terra dos Yankees. Infelizmente, não é.
No Brasil, também ocorreram eventos parecidos com os de Columbine, Viginia Tech, Sandy Hook etc.
E, o mais lamentável: a lista só tem aumentado. Em setembro de 2018, na cidade de Medianeira, interior
do estado do Paraná, um adolescente de 15 anos de idade, filho de agricultores e aluno do Colégio
Estadual João Manoel Mondrone, entrou armado na escola e atirou contra colegas de classe. Dois alunos
ficaram feridos. Um de 15 anos de idade levou um tiro nas costas e outro, de 18 anos, foi atingido na
perna. Segundo os policiais, o autor (Paulo) teria informado que era vítima de bullying e que no atentado
recebera cobertura de um colega da mesma idade. Ele possuía uma lista com nove pessoas que seriam
seus alvos fatais. O ataque fora premeditado e planejado desde julho de 2018. Com os dois foram
apreendidos um revólver calibre 22, munição, explosivos e uma faca5.

Na sexta-feira do dia 20 de outubro de 2017, um estudante de 14 anos atirou dentro do Colégio


Goyases, escola particular de ensino infantil e fundamental, em Goiânia. Dois estudantes, João Vitor e

3 CARAZZAI, Estelita Hass. Ataque a tiros deixa 17 mortos em escola na Flórida. Folha de São Paulo, 14.02.2018. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/02/atirador-deixa-feridos-em-escola-na-florida.shtml. Acesso em:
17.03.2018. Conferir, também a matéria jornalística “Entenda o massacre na escola da Flórida e o andamento das
investigações”, publicada no Estado de São Paulo em 23.02.2018. Disponível em:
https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,entenda-o-massacre-na-escola-da-florida-e-o-que-foi-feito-ate-
aqui,70002201403. Acesso em: 25.02.2018.
4 Florida school shooting: at least 17 people dead on 'horrific, horrific day'. The Guardian. 15.02.2018.

https://www.theguardian.com/us-news/2018/feb/14/florida-shooting-school-latest-news-stoneman-douglas.
5 WURMEISTER, Fabiula; KOBUS, Bruna. Aluno armado atira e fere dois colegas em colégio de Medianeira. 28.09.2018.

Disponível em: https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2018/09/28/aluno-atira-em-colegas-de-colegio-em-


medianeira.ghtml. Acesso em 28.09.2018.
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João Pedro, ambos com 13 anos de idade, morreram e outros quatro, um menino e três meninas, foram
feridos na unidade escolar localizada no Conjunto Riviera, bairro de classe média da cidade de Goiânia.
O autor dos disparos é filho de policiais e teria dito aos agentes que na escola ele era alvo de bullying.
Cansado das agressões e escondido dos pais, o autor do crime pegou a arma da mãe, uma pistola 9mm
com a qual efetuou os disparos. Um aluno de 15 anos de idade, que estava na escola no momento do
tiroteio, revelou que o colega (autor do crime) era vítima de chacotas: “Ele sofria bullying, o pessoal o
chamava de fedorento, pois não usa desodorante. No intervalo da aula, ele sacou a arma da mochila e
começou a atirar. Ele não escolheu alvo. Aí todo mundo saiu correndo”. Já outra colega, do 8º ano,
informou que “Ele lia livros satânicos, falava que ia matar alguns dos colegas. Um dos garotos que foi
morto falava que ele fedia e chegou a levar um desodorante para sala”6.

O Massacre de Realengo causou consternação e incitou parcela da população brasileira a refletir sobre
o alto nível de violência social e como a escola mimetiza essa realidade. Era 7 de abril de 2011, quando
por volta das 8h30 Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, adentrou a Escola Municipal Tasso da
Silveira, no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro. Wellington era ex-aluno da instituição e teria
conseguido entrar na escola porque informou, para os responsáveis pelo controle da entrada, que naquele
dia ele apresentaria uma palestra. Com duas armas de fogo e muita munição, no interior de uma sala de
aula ele disparou inúmeros tiros contra os alunos presentes. Doze crianças (dez meninas e dois meninos)
foram assassinadas. Wellington só foi contido porque um aluno que conseguiu escapar dos tiros, já fora
da escola avisou a um policial que o alvejou com um tiro na perna. Mesmo ferido, o rapaz conseguiu se
suicidar.

Em 2011, na cidade de São Caetano do Sul (São Paulo), um estudante de dez anos de idade atirou
em uma professora e depois se suicidou em uma escola pública. O caso aconteceu por volta das 15h50
de uma quinta-feira, do dia 22.09.2011, quando o aluno D.M.N., do 4º ano, efetuou os disparos contra a
professora em uma sala com 25 alunos da escola municipal Professora Alcina Dantas Feijão. Depois de
balear a docente, o menino atirou duas vezes contra a própria cabeça. Ele morreu uma hora depois no
hospital de emergência Albert Sabin, em São Caetano, após duas paradas cardíacas7.

6G1 Goiás. Aluno atira em colegas dentro de escola em Goiânia, mata dois e fere quatro. G1 TV Anhanguera Goiás.
20.10.2017. Disponível em: https://g1.globo.com/goias/noticia/escola-tem-tiroteio-em-goiania.ghtml. Acesso em:
21.201.2017.

7 ESTEVES Lucas Lúcio, CARAMANTE, André et. al. Criança de 10 anos leva revólver para escola, atira em professora e
se mata. Cotidiano, Folha de São Paulo, 23.09.2011. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2309201101.htm. Acesso em: 23.09.2011.
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Não menos chocante, foi a ação de Edmar Aparecido dos Santos. O jovem, que na data
(28.01.2003) do episódio tinha 18 anos de idade, foi o autor dos disparos que deixou feridos 5 alunos, o
caseiro e a zeladora da Escola Estadual Coronel Benedito Ortiz, na cidade de Taiúva, interior do estado
de São Paulo. Após os disparos, o estudante tirou a própria vida com um tiro na cabeça. Um dos feridos
morreu, e outro ficou paraplégico: “O ex-aluno [...] atirou no que viu pela frente porque alegava ter
sofrido bullying dos colegas. Freitas invadiu o local [...] armado com um revólver calibre 38 e um punhal.
Depois, começou a atirar na direção das pessoas [...]. Em seguida, apontou a arma contra si mesmo,
apertou o gatilho e se matou8.

O mais bárbaro e recente evento, com as mesmas bizarras características, aconteceu na quarta-feira,
dia 13 de março de 2019, na escola Estadual Raul Brasil, na cidade paulista de Suzano, na hora do recreio,
quando Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25 anos, ex-alunos da
escola, entraram e mataram dez crianças, feriram gravemente outras pessoas. Após a chacina, eles se
suicidaram. Há algumas suspeitas sobre a motivação do atentado. As autoridades apuram a participação
dos dois jovens em um grupo de jogadores do jogo de guerra, online, Call of Duty: “Há indícios de que o
crime tenha sido planejado em fóruns do game. [...] A dupla passava pelo menos três noites por semana
em uma lan house jogando game como Call of Duty, Counter Strike e Mortal Combat, de acordo com
moradores locais9.

Todos esses eventos têm a ver com o que aqui se deseja abordar, ou seja, o processo civilizatório,
que é mediado pela produção da cultura, tanto na sua dimensão afirmativa – do que danifica e destrói –
como na perspectiva de uma negação determinada do objeto – sociedade administrada que disciplina e
controla os corpos. No caso da dimensão afirmativa da cultura, percebe-se que os indivíduos, alienados de
si e dos condicionantes que lhes dificultam compreender, para além do ordinário da existência, inúmeros
fenômenos naturais e sociais, acabam por reproduzir valores e práticas impostas pelos agentes da
disciplina e do controle da sociedade administrada, cujos objetivos resumem-se em meramente dar
continuidade à reprodução de indivíduos danificados e da natureza destruída. No caso da negação
determinada – porque capaz de elaborar e estabelecer conexões com aspectos muitas vezes jogados para o
limbo da história –, os indivíduos conseguem romper com os grilhões que lhes dificultam a compreensão
da lógica de funcionamento da totalidade social que produz a realidade e fomenta o discurso fácil e
falacioso segundo o qual a única possibilidade de existência jaz na afirmação/adaptação inconteste da

8 TOMAZ, Kleber. G1 São Paulo. 8.04.2011. Governo de SP já foi condenado a pagar vítimas de atirador em escola.
Disponível em: http://g1.globo.com/Tragedia-em-Realengo/noticia/2011/04/governo-de-sp-ja-foi-condenado-pagar-
vitimas-de-atirador-em-escola.html. Acesso em: 8.04.2011.
9 Ansa. Polícia apura motivação para massacre em escola de Suzano. Isto É. 14.03.2019. Disponível em:

https://istoe.com.br/policia-apura-motivacao-para-massacre-em-escola-de-suzano/. Acesso em: 17.03.2019.


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forma capitalista de produção social da existência. Por isso, lança-se aqui a pergunta básica que orienta
as reflexões: é possível que haja civilização sem o seu contrário: a barbárie?

O pressuposto é que o mundo da cultura é consequência da atividade (trabalho) intencional


“humana”, que pode ser considerado o fundamento da linguagem articulada (a fala) e as formas mais
complexas de exteriorização (objetivação) do ser social. As inúmeras objetivações condensam-se naquilo
que se convenciona denominar de cultura e civilização. Tal relação não é linear. À medida que a cultura
se complexifica, mais aumenta a demanda pelo conhecimento, relacionado ao mundo social e natural.

Em termos antropológicos, parece razoável considerar que o desenvolvimento da cultura está


articulado à uma dialética na qual a linguagem articulada (a fala complexa) foi uma das principais
responsáveis. Por sua vez, formas mais elaboradas de cultura exigem configurações mais complexas para
a solução de problemas impostos pelo contexto. Isso demanda conhecimento sobre a realidade natural e
social, bem como são imprescindíveis formas de produção e a apropriação do conhecimento elaborado
– filosófico, científico, artístico, religioso, tecnológico –. A escola10, tanto no Antigo Oriente, como no
Antigo mundo ocidental, surgiu basicamente como um espaço cujo objetivo foi (e continua sendo,
também nas modernas e contemporâneas sociedades – após o século XVIII) lançar mão de um tempo
apropriado para que facetas do patrimônio cultural (conhecimento filosófico, científico, artístico, etc.)
pudessem ser apropriadas pelas gerações.

A essa atividade dá-se o nome de trabalho educativo, que pode ser considerado “[...] a atividade que
produz, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens” e mulheres (SAVIANI, 1991).

Por sua vez, o ato de ensinar e aprender fundamenta-se no amor pelo conhecimento e o educador é
aquele que ensina e, ao ensinar, aprende. Por conseguinte, ser professor/educador é padecer de uma falta.
É ser um eterno apaixonado pelo âmbito do conhecimento.

É preciso atentar que uma parte importante do processo de ensino e aprendizagem, que acontece
no âmbito escolar, não tem início na sala de aula. Em geral, as crianças não nascem com o gosto pelo
conhecimento sistematizado, tampouco a cultura é um elemento que se herda no genoma humano. Aprende-
se a desejar do conhecimento e, em geral, essa aprendizagem tem início no âmbito familiar. Família que,
por sua vez, pode, ou não, ser uma boa referência para a criança. Ela pode, ou não, ter aquela
predisposição, o interesse necessário para acender a fagulha do fogo que desperta o desejo pelo saber

10 Do grego antigo σχολή (scholē), que significa “lugar de descanso, ócio”, “lugar para se desfrutar o tempo livre”, para onde

se encaminhavam as crianças e adolescentes que pertenciam às famílias “nobres” e nesse espaço elas tinham acesso, condições
de se apropriarem de parte dos elementos culturais considerados importantes para aquele contexto e assim se tornarem sujeitos
mais bem integrados à comunidade.
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escolar. Se a família desenvolve essa relação de desejo, para com o conhecimento, há uma grande
probabilidade de a inserção da criança, na escola (universo da cultura letrada), acontecer de forma mais
prazerosa.

Os pressupostos que fundamentam as teses deste ensaio partem da Teoria Crítica da Sociedade em
diálogo com Psicologia Histórico-Cultural. Afastam-se, portanto, das noções não diretivistas, bem como
do clichê das pedagogias de inspiração supostamente escolanovista11, pois, ainda que o movimento da
Escola Nova defenda a necessidade de uma relação mais afetiva, reconheça as aspirações dos alunos,
crianças e adolescentes, a incorporação, quase sempre aligeirada, por parte de muitos operadores da
educação básica, dos princípios filosóficos dessa tendência de filosofia da educação, na maioria das vezes
tende a reduzir o processo educativo a uma questão meramente psicológica, com forte apelo maternal ou
mesmo paternal.

Por fim, o presente ensaio argumenta que no âmbito do processo civilizatório percebe-se uma
dinâmica e íntima dialética na relação entre a produção da cultura e a barbárie que a acompanha. Ambos
os conceitos fazem parte da mesma e conflituosa realidade. Compreender esse processo é passo
importante para realizar uma reconciliação não forçada (ou negação determinada) do indivíduo com sua “natureza
animal” e, desta forma, minimizar a danificação do humano engendrada pela própria civilização.

Introdução e problematização do tema – a dialética entre civilização e barbárie

No que diz respeito aos massacres nas escolas, descritos parágrafos acima, e sua relação com a
temática deste ensaio – a dialética entre civilização e barbárie –, chama a atenção o fato de que em quase
todos os casos, boa parte dos adolescentes que cometeram os crimes teria sido vítima de bullying. O
fenômeno é antigo. Na literatura há referências de relatos sobre situações que hoje são rotuladas de
bullying. O termo é uma “invenção” do pesquisador sueco Dan Olweus, e foi somente depois do massacre
em Columbine que ele utilizou o gerúndio do verbo to bully – tiranizar, oprimir, ameaçar ou amedrontar
– para rotular as atitudes de estudantes que se comportam como tiranos ou valentões diante de seus
colegas tratados como inferiores. Em 2012, ano da publicação do artigo O bullying nas escolas e o horror a
massacres pontuais, de autoria da Professora Gilda de Castro Rodrigues12 (2012), era possível acessar notícias
que davam conta da existência, em nível mundial, de cerca de 400 ataques em escolas, desde o ano de

11 Referente ao movimento que ficou conhecido como Escola Nova. Tem inspiração na filosofia de Jean-Jacques Rousseau.
O livro mais conhecido desse autor é Emílio ou da educação, publicado em 1762. Na lista de autores que se situam nessa
perspectiva de filosofia da educação, com deslocamentos que quase nunca ferem a totalidade dos pressupostos, encontram-
se autores como Heinrich Pestalozzi (1746-1827), e Freidrich Fröebel (1782-1852), John Dewey (1859-1952), Edouard
Claparède (1873-1940) e o educador Adolphe Ferrière (1879-1960), dentre outros.
12 RODRIGUES, Gilda de Castro. O bullying nas escolas e o horror a massacres pontuais. Revista Ponto-e-Vírgula, 11: p. 10-

21, 2012. Disponível em: https://docplayer.com.br/17480801-O-bullying-nas-escolas-e-o-horror-a-massacres-pontuais.html.


Acesso em: 05.05.2013.
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1903. Mas, nem todos os atentados estavam vinculados a bullying. Há casos nos quais os massacres foram
perpetrados pelos próprios funcionários da instituição escolar. Esse foi o caso do diretor de uma escola
elementar na cidade de Droyssig, na Áustria, que em 1902 atirou contra seus alunos. Ele matou três, feriu
outros três. Os vizinhos, a maioria agricultores que ouviram os disparos, o lincharam13. Em 1927, o
contador Andrew Kehoe espalhou explosivos em uma escola de Bath, no Michigan (Estados Unidos). A
ação matou 45 pessoas e feriu 98. Como em quase todos os episódios, o assassino cometeu suicídio
(RODRIGUES, 2012, p. 17). Ainda de acordo com Rodrigues (2012), a partir dos dados esparsos
coletados à época (sete/oito anos atrás), era possível inferir que entre 66 ataques a escolas, em 45 anos,
87% dos atiradores sofreram bullying.

De fato, a literatura informa que parte considerável dos autores desses homicídios cometidos em
escolas, teria sofrido bullying. Sem contar que, naqueles eventos ocorridos a partir da década de 1990, é
bem comum a presença de jogos eletrônicos cujo conteúdo explora personagens protagonistas de
histórias com nítida predisposição a comportamentos misóginos, xenófobos etc. Não obstante, no caso
específico do bullying, a socióloga Miriam Abramovai (2019) problematiza e considera incorreto usar o
conceito de bullying para se compreender esses fenômenos, como o episódio de Suzano. Para ela, o
conceito incorpora muitos problemas e não específica nenhum – o racismo, a homofobia, a violência que
vem de fora para dentro da escola. Em outros termos, o mais grave é que o conceito de bullying não
distingue problemas entre as diferentes gerações, tampouco ele lida com aqueles que acontecem entre
professor e aluno (ABRAMOVAI, 2019)14.

O bullying, por sua vez, parece constituir toda atividade do trote universitário, que faz algum tempo
tornou-se a reprodução de uma prática “pedagógica” fundamentada na agressão e na humilhação: educação
para a disciplina por meio da dureza (ZUIN, 2012). Este autor problematiza a tese de que o trote ainda possa
ser caracterizado como sendo um rito de passagem. Para ele, a prática do trote desvia os objetivos iniciais
da integração que pode acontecer mediada pelo ideal de companheirismo,“[...] e passa a ser a expressão
da sociedade que reconhece como seus aqueles que se deixam “educar” pela reprodução e perpetuação
de atitudes sadomasoquistas (ZUIN, 2002, p.15). No caso dos eventos que envolvem o bullying que
acontece nas escolas de educação básica – ensino fundamental e médio –, parece que os operadores e
gestores das instituições de ensino têm focado nos processos preventivos, ampliação de programas

13 The New York Times. Schoolmaster kills pupils. 9.10.1902. Disponível em:
https://timesmachine.nytimes.com/timesmachine/1902/10/09/118481680.pdf. Acesso em: 17.03.2019.
14 ABRAMOVAI, Miriam. Os jovens mudaram, e a escola não acompanhou. Entrevista. Deutsch Welle Brasil, 15 de março

de 2019. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/os-jovens-mudaram-e-a-escola-nao-


acompanhou,bcde2c580d46f052b6a26743ce5cf5b130xuoxb3.html. Acesso em: 16.03.2019.
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pedagógicos com a finalidade de transformar a realidade das escolas, no sentido de tentar pôr fim aos
recorrentes episódios de barbárie.

Infelizmente, o mesmo ainda não acontece, de forma mais incisiva quando se trata da prática do
trote universitário. Há indícios suficientes para se considerar que parte considerável dos agentes e gestores
universitários pouco se importa se o trote é praticado, ou não, em suas instituições. Muitos trotes já
resultaram em morte. Mas, o elemento comum a todos esses eventos é a propagação de prática de
subserviência, humilhação física e moral dos alunos calouros: características de violência simbólica que
passa a ser considerada normal e que pode produzir sequelas psicológicas (ZUIN, 2002, p. 17).

Mais antiga do que se pode imaginar, a tradição do trote teve início por volta do século XI, durante
a Idade Média. Os candidatos (palavra de que deriva do latim candidus, ou seja, ‘branco’, ‘puro’) aos cursos
das primeiras universidades europeias não podiam frequentar as mesmas salas que os veteranos e,
portanto, ficavam nas antesalas, os chamados vestíbulos, que continham as roupas dos alunos mais
antigos. Os recém-chegados (calouros) tinham suas vestes retiradas e queimadas. Seus cabelos eram
raspados com o discurso de que precisam receber medidas profiláticas contra a propagação de doenças
(ZUIN, 2002, p. 29). Assim, o ato de raspar os cabelos, que supostamente simbolizava uma medida
profilática, converteu-se na raspagem dos cabelos dos adolescentes atuais que são identificados como
‘bichos’. Tal prática aduz à padronização que também ressoa na identidade coletiva dos grupos de
militantes da extrema direita, na política, e os skinheads, que fazem questão de serem reconhecidos por
meio dos cabelos raspados e suas individualidades subordinadas às ordens do grupo pertencente (ZUIN,
2002, p. 28).

Assim como o bullying, o trote é um fenômeno mundializado. Em espanhol diz-se Trote e em


Italiano é Troto; no idioma francês, Trot; no inglês, Trot; Em alemão, Trotten. A palavra alude à forma como
os cavalos se movimentavam e que se situa entre o passo ordinário (mais lento) e o galope. Em termos
históricos, data de 1342 o primeiro registro da aplicação de um trote com conotação sadomasoquista, na
universidade de Paris (ZUIN, 2002, p. 30). Na Alemanha, práticas bárbaras foram executadas desde o
medievo. Na universidade de Heidelberg, no ano de 1491, os veteranos identificavam o novato como se
ele fosse uma fera que deveria se aculturada por meio de provações, tais como beber o líquido de uma
taça que supostamente seria vinho, mas que na realidade continha urina, ou mesmo ter os pelos do nariz
e os cabelos cortados, pois eram considerados animais peludos que deveriam ser depilados, em nome dos
costumes ‘civilizados’ (ZUIN, 2002, p. 31).

Geralmente, o calouro era espancado, era obrigado a comer fezes de animais e satisfazer desejos
sexuais dos veteranos por meio da masturbação ou da felação. Ele passava a ser considerado um pennal,

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que vem de pena, ou pluma, o principal instrumento de trabalho do estudante, mas em algum momento
era absolvido de ser um animal irracional. A ele era oferecido um ‘banquete’ em que tinha que comer ‘um
prato de salsicha temperada com areia, sal de outros detritos’ e prestar um juramento no qual se
comprometia ‘fazer com os próximos novatos tudo que lhe foi feito’ (MATTOSO citado por ZUIN,
2002, p. 31)

No Brasil, a prática do trote, de acordo com Zuin, teve início no ano de1800, época na qual os
estudantes já se preocupavam em estabelecer linhas divisórias que delineavam as características dos
calouros e dos veteranos nos cursos superiores; muitos dos estudantes, que haviam estudado no exterior,
em especial em universidades portuguesas, implantaram o trote no Brasil muito provavelmente porque
também teriam recebido o trote em Portugal (ZUIN, 2002, p. 32). Desde então, o trote universitário tem
feito parte do lado mais bárbaro da nossa sociedade. Em 1980, Carlos Alberto de Souza morreu ao
receber socos na cabeça, após ter reagido à tentativa feita pelos veteranos, de cortarem seus cabelos; em
1994, G.J.M.B, de 17 anos, foi hospitalizado após ter sido despido e espancado por veteranos que o
obrigaram a comer grama e fezes de animais; em 1998 cinco calouros do Instituto de Geociências da USP
foram hospitalizados devido à intoxicação por bebida alcoólica; em 1999 Edson Tsung-Chi Hsueh foi
encontrado morto no clube da Faculdade de Medicina da USP. A barbárie não para.

Ainda que o bullying não seja o melhor conceito para se poder iniciar o processo de análise sobre a
realidade social que expõe seus sintomas a partir de eventos que assustam a todos nós, indistintamente;
ainda que o trote tampouco possa ser considerado um rito de passagem (do jovem para a idade adulta) à
altura do que realmente se espera da instituição universitária (lugar de produção e socialização do
conhecimento não ordinário), parece urgente se debruçar sobre esses fenômenos, em especial quando se
pensa na formação daqueles que serão os futuros e futuras operadores (professores e professoras) e
gestores (diretores, coordenadores) das instituições de ensino, quer seja em nível básico ou superior.

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A escola no contexto da excitada sociedade do espetáculo

Com relação (especificamente) à escola, nos tempos atuais é possível afirmar que ela parece
apresentar uma situação limite. Quase que um beco sem saída – aporia. De um lado, ela é concebida como
sendo o espaço, a instituição mais privilegiada, que ainda seria capaz de criar as reais condições de
possibilidades para que a grande maioria da sociedade, em especial os seguimentos mais pauperizados da
classe que vive do trabalho, tenha acesso aos principais elementos que compõem uma parcela
considerável do patrimônio cultural da humanidade. De outro lado, muitos afirmam que a escola 1) não
tem acompanhado as transformações do mundo atual; que 2) ela é conservadora na sua forma de lidar
com o conhecimento; que 3) os professores ainda são tradicionais, nos seus métodos de ensino; que 4)
as avaliações nada avaliam e que 5) o mundo fora da escola é muito mais atraente, excitante e sedutor.
Esse mundo, por muitos considerado o cotidiano, é visto como mais atraente e encantador e tem a ver com
o potencial dos “dispositivos agenciadores de subjetividades”, típicos da sociedade do espetáculo
(DEBORD, 1997) ou sociedade excitada (TÜRCKE, 2010)15, porque com bases fincadas na indústria do
entretenimento, cujos consumidores semiformados tendem a enaltecer as diversas tecnologias
disponíveis.

Sobre essa questão, chama a atenção o fato de que é justamente das assim denominadas escolas
tradicionais, ultrapassadas, que têm se formado os mais bem qualificados profissionais de todas as áreas –
cientistas, escritores, filósofos, músicos, cineastas etc. Será que quem faz a crítica formou-se em uma
instituição diferente daquela criticada? Muitas pessoas acreditam que, mais do que uma competição, trata-
se de uma “batalha” que o mundo da escola trava com a sociedade do espetáculo. Parte considerável dos
pais, dos professores e especialistas, de diversas tendências teóricas, afirma que a escola tem perdido essa
“batalha”. O que fazer para mudar esse cenário? O que fazer para que a escola não perca espaço para
essa realidade atrativa, cheia de estímulos sedutores próprios dos produtos da indústria do entretenimento
que alimenta a cultura industrial? É possível frear a volúpia de processo? É possível modificar esse
cenário?

A resposta mais imediata tem sido: para não se perder essa competição, entre a escola e os atrativos
e sedutores processos de excitação afetiva e cognitiva próprios da indústria do entretenimento da excitada
sociedade do espetáculo que mobiliza o desejo de crianças e adolescentes, a solução mais cômoda parece
ser uma adesão incondicional/indeterminada à lógica do mercado da diversão. É possível seguir na

15 Informações adicionais sobre o Professor Türcke, conferir: 1)


http://www.jornaldaunicamp.unicamp.br/unicamp_hoje/ju/outubro2010/ju477_pag0607.php; 2)
http://reflexxelfer.blogspot.com/2010/10/entrevista-christoph-turcke.html.
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contramão dessa realidade? Como incluir as possibilidades de intervenção tecnológica, no âmbito da
instituição escolar, sem fetichizar16 (naturalizar) – a tecnologia –, ou seja, sem perder de vista que ela é
uma produção humana? Qual o problema, por exemplo, se por acaso o professor não usa o equipamento
hightech de última geração? Por que ele tem que seguir a onda e simplesmente aderir aos modismos? Quem
garante que estar integrado, afinado com a moda ditada pelos operadores e gerentes da indústria cultural,
com a velocidade supersônica ditada pela perversa didática da indústria do entretenimento, significa o
que de melhor se pode fazer, em termos de formação – Bildung? Por que a escola, alunos e professores
devem aderir, incondicionalmente, aos ideais da excitada sociedade do espetáculo17? Quais as implicações
éticas, estéticas, ontológicas e gnosiológicas dessa entrega incondicional a esse mundo que mais danifica
do que plenifica a existência? Quais os fundamentos para uma educação que não se quer deixar tornar
apenas uma, dentre as várias mercadorias da sociedade capitalista? Como pensar o ato educativo nesse
contexto social contemporâneo?

Esses são problemas que merecem ser enfrentados por meio da pesquisa e do debate rigoroso, que
vá às raízes do fenômeno. Questões que exigem uma reflexão cuidadosa e sem tergiversações, mas que
tendem a tangenciar alguns pressupostos básicos da relação entre conceitos tão caros ao campo
educacional. De imediato, parte-se da concepção de acordo com a qual a profissão de magistério, o ser
professor em nada tem a ver com a ideia de sacerdócio, tampouco com o sentido de missão ou se quer
pensar que o trabalho educativo do docente seja um bico, no sentido de emprego, uma atividade qualquer
que se realiza para complementar a “renda”, no final do mês. Ainda que a maior parte dos professores e
professoras tenham entrado na carreira do magistério por “falta de opção”, porque era “o que dava para
fazer”, mister considerar que o trabalho docente é uma atividade que requer uma formação (Bildung) que
envolve tanto seu sentido lato sensu, como sua dimensão stricto sensu (Erziehung, Ausbildung) – aqui entendida
muito mais com qualificação técnica.

Em ambas as situações, há que se considerar a presença marcante do amor (philia), da paixão pelo
conhecimento. Tanto a formação técnica, quanto a humanística mantém estreita relação com o amor e a
paixão pelo conhecimento, pois parece razoável pensar que a filia que se tem pela área específica permite
uma mais bem qualificada assimilação do conteúdo, próprio de cada área. Físicos que detestam física;
químicos que “odeiam” a química; biólogos que prefeririam ter sido médicos ou veterinários; geógrafos
que não suportam a “geografia”; matemáticos que desejavam ter sido engenheiros, enfim, todos esses
professores e professoras, desgostosos com suas respectivas áreas de atuação profissional, provavelmente

16 Sobre fetichismo, conferir: 1) http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/FabioCesardaSilva.pdf;


17 Sobre A Sociedade do Espetáculo, conferir: https://www.marxists.org/portugues/debord/1967/11/sociedade.pdf
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podem apresentar resistências quando estiverem no momento da formação. Contudo, pode haver
situações nas quais a pessoa é altamente qualificada, pois no sentido pragmático, ele ou ela é
reconhecidamente um/a brilhante físico/a, uma exímia bióloga, matemática, filósofa, geógrafa,
historiadora, etc., mas, quando se trata da atividade docente – do trabalho educativo –, na maior parte
das vezes a formação desse professor ou professora pode ter sido marcadamente limitada e prejudicada.
As razões podem ser tanto endógenas e idiossincráticas, próprias do sujeito, como também relacionadas
a fatores exógenos que envolvem as políticas públicas direcionadas para o campo da educação, em geral,
e aquelas cujas metas são as especificidades locais da comunidade escolar. Em síntese, o que se quer
defender é que o ato de ensinar, compartilhar/socializar o conhecimento historicamente elaborado, que
se tornou objeto de mediação (a partir da atividade docente, do trabalho educativo), requer uma formação
ampla, qualificada, capaz de permitir aos futuros e futuras professoras lidarem com a realidade para além
da sua dinâmica pragmático-instrumental.

A atividade docente, o ser professor@ requer o investimento em uma formação tecnicamente


qualificada e, principalmente, aliada ao compromisso ético-político que o permita perceber a dimensão
histórico-social na qual o fenômeno educativo acontece e quais as determinações objetivas tendem a
condicionar tanto a sua (do professor) própria dimensão subjetiva, como a dos alunos e alunas.

O início está na filia, no amor/paixão que se tem pelo conhecimento. Este “sentimento”, contudo,
não brota de forma espontânea. Ele é aprendido. Pode e deve ser ensinado de forma intencional e diretiva.
Tal aprendizagem, relativa ao sentimento de amor/paixão pelo conhecimento (em geral) e à cultura
letrada (em particular), tem início com a intervenção dos adultos (pais, responsáveis etc.), desde a primeira
infância e que continua na instituição escolar, com uma ação pautada em um compromisso político, por
parte dos responsáveis, os operadores diretos (professores/professoras, gestores da escola) que visam
ampliar as condições de vida dos alunos. Isso tem a ver com um exercício no qual são levados –
professores e alunos – a compreenderem qual lugar ocupam na produção social da vida, em especial no
âmbito da escola pública.

Nesse artigo defende-se também uma ideia de não passividade e aceitação ingênua em face dos
modismos que orientam teses quase que hegemônicas, não apenas no discurso do ideário educacional
contemporâneo, como também no âmbito da prática docente. Portanto, recorre-se ao conceito de
negatividade18, em contraposição a uma cultura afirmativa.

18Há uma tendência em conceber e confundir o conceito de negatividade com o termo negativismo ou pessimismo. Com efeito,
negatividade é aqui empregado para determinar a negação de algo que ao invés de potencializar, possibilitar a emancipação e
autonomia do sujeito, acaba por assujeitá-lo. Um pensamento negativo não significa, em hipótese alguma, uma ideia negativista
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O processo é sempre contraditório. O conhecimento, por si só, nada garante, em termos da
formação de um indivíduo mais próximo daquele projeto cujo (começo, meio e) “fim” é a aquisição da
humanidade. Aqui ele é entendido como uma fagulha que pode tanto acender as luzes da razão e da
sensibilidade, como até mesmo ofuscar nossa capacidade racional, sensível/afetiva. O despertar da razão
não pode ser confundido com a lógica da racionalidade técnico-instrumental que sustenta a danificada
sociedade administrada pela ganância do capital que concebe e reduz a natureza a uma mera mercadoria,
assim como literalmente a destrói para a satisfação dos interesses econômicos de poucos, em detrimento
da produção da miséria social da maior parte da comunidade mundial, justamente aqueles indivíduos que
caem sob a garras daquela lógica. E, uma das primeiras formas do despertar da razão, um dos primeiros
tipos de conhecimento, é justamente a mitologia. E é por meio dela que muitas culturas antigas
permitiram que homens e mulheres realizassem seus respectivos processos de compreensão de inúmeros
fenômenos, quer sejam eles naturais ou sociais.

Em algumas mitologias da Antiguidade, por exemplo, em particular no Prometeu Acorrentado,


descrito na tragédia de Ésquilo, o semideus Prometeu rouba o fogo do conhecimento da morada dos
deuses e o sopra na humanidade. Nesse mito, por meio do conhecimento, Prometeu acredita que a
humanidade se libertará da sua condição de ignorância – alienação.

Com o filósofo Sócrates, por volta do século V. a. C, a ideia de amizade (Filia) e o amor cercam-se
de um elemento mediador: o conhecimento. Mas, qual entendimento ele tem sobre esse conceito? Para
Sócrates, e boa parte de uma tradição teórica que vem depois dele, o amor é concebido como falta. É
desejo daquilo que não se possui. Por isso, quando uma pessoa ignora, mas tem ciência da sua ignorância,
refletia Sócrates, é porque se é um amante da sabedoria e, por isso mesmo, sente a necessidade de romper
com a ignorância e se agarrar ao conhecimento libertador.

Um critério fundamental para se ter acesso ao conhecimento diferenciado, não ordinário (não
cotidiano), é ser um apaixonado, um amante do conhecimento sistematizado. O desejo, além de
primordial, também pode ser aprendido e cultivado. Ou seja, até mesmo o desejo impõe-se como um
atributo do processo de constituição da individualidade de cada um. O desejo não é biologicamente
constitutivo. Por isso, por mais que não haja uma relação direta, o ato de aprender é ambíguo, pois ele
carrega tanto um sentimento de prazer, como também de desprazer. Nem sempre o processo por meio
do qual o sujeito se relaciona com o conhecimento (filosofia, ciência, artes, tecnologia) que foi
historicamente produzido, elaborado e registrado ao longo das gerações, é vivenciado de forma prazerosa.

entendida como sinônimo de pessimismo. Em outros termos, negar as formas de negação da vida é, ao fim e ao cabo, uma
atitude mais positiva do que aqueles que, por defenderem a realidade tal como ela é, acreditam ser positivos.
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Aprender a escrever, a ler, a tocar um instrumento musical, a dirigir um automóvel ou uma
modalidade desportiva envolve essa contradição – prazer e desprazer –, ou seja, toda atividade de
aprendizado carrega certa dose de desprazer que só vai ser totalmente destruída no momento em que o
gesto corporal, a habilidade cognitiva e sensitiva transformam-se em um habitus, uma segunda natureza
(SAVIANI, 1991). Não obstante, quando há uma excessiva dose de desprazer, no processo de
aprendizagem, as consequências danosas podem e tendem a acompanhar o sujeito por toda uma vida.

O que se espera, é que desde a primeira infância a criança receba, ainda no seio da família, os
primeiros estímulos, bem como a disciplina e o hábito necessários para que ela possa cultivar, mesmo em
situação de suposto desprazer, o prazer e o desejo de não apenas “saborear”, mas, principalmente,
incorporar o conhecimento não ordinário.

Outro elemento, que participa desse processo, é a disciplina que, por si só, não pode ser
considerada uma prática indesejável. Em si mesma, a disciplina não é nem boa, nem má. Assim, quando
se trata de desenvolver formas de aprendizagem, em especial com o conhecimento menos superficial,
mais sistematizado, é fundamental uma mediação direcionada por meio da disciplina e limites – elementos
fundamentais para a constituição do sujeito ética e politicamente responsável. Contudo, a reflexão que
atravessa este artigo nega e afasta-se de qualquer tipo de educação fundamentada na disciplina por meio
da dureza (ADORNO, 1995).

Claro parece estar que seria muito mais interessante se, por acaso, o cuidado amoroso e a paixão
pelo conhecimento tivessem início já no âmbito familiar. Pode-se afirmar que aprender e ensinar, no
sentido lato do termo, são aspectos constitutivos do universo da cultura. Contudo, há tipos de
conhecimento que, dado o nível de sofisticação e grau de complexidade, acabam por demandar um
ambiente – físico e simbólico – de aprendizagem capaz de estimular e despertar o desejo em se apropriar
do saber elaborado. Isso pode não significar tudo, tampouco seja garantia para uma boa iniciação ao
universo da cultura letrada, da educação formal escolar, por exemplo, mas, sem dúvida, é um
determinante essencial.

Ninguém nasce com o desejo pelo conhecimento, quer seja ele no nível cotidiano ou do não
cotidiano. No caso deste, o interesse pelas suas mais diversas formas (as ciências, as artes, a tecnologia, a
filosofia etc.) é despertado pela mediação daqueles que de alguma forma tendem a reconhecer e valorizar
sua importância. Tem a ver com a qualidade da mediação que a pessoa é submetida no processo de
constituição da individualidade. Por isso, é bem possível pensar a partir, e com Saviani (1991, p. 19), para
quem o trabalho educativo é “[...] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular,
a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”, e mulheres. Por

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conseguinte, para se refletir sobre qualquer questão que envolva o fenômeno da educação, em todos os
níveis e espaços, há que se referir ao humano, pois é com isso que se lida no processo educativo. O objeto
do trabalho educativo não é apenas o conhecimento, mas, principalmente, o ser social (humano). Daí a
pergunta: afinal, o que é o homem – o ser humano?

Tanto a pergunta como a resposta a essa questão pode ser encontrada em diversos campos do
conhecimento: mitologia, sabedoria milenar, filosofia, ciência, artes e humanidades, teologia etc. Tratar
dessa temática (o conhecimento) requer abordar sobre a condição humana e isso implica refletir sobre o
que é isso, que denominamos ser humano.

Há inúmeros pensamentos que sustentam a tese de que o humano é um ser dado e acabado e que
haveria um conceito a priori, capaz de defini-lo. Acontece, que essa questão – o que é o homem/ser
humano –, da maneira como está formulada, tende a ser inadequada e insuficiente para de fato
compreendê-la para além de respostas tendenciosamente fáceis e superficiais. Uma pergunta mais
qualificada seria: como o humano se constitui enquanto tal, ou como ele produz a sua “natureza”
humana?

O Homo sapiens foi o único hominídeo que, na escala evolutiva, dentre inúmeras outras espécies de
primatas, conseguiu atingir um sofisticado patamar existencial e a diferença reside basicamente em poucos
mas significativos fatores: a bipedia, que possibilitou a liberação dos membros superiores e o
desenvolvimento do sistema nervoso central que anatômica e fisiologicamente adquiriu, por meio da
evolução, um cérebro maior e mais complexo, do ponto de vista da quantidade e da qualidade das
conexões nervosas; a oposição dos dedos polegares com os indicadores, e a aquisição da linguagem
articulada, especialmente a fala.

Nossos antepassados Austropopithecus, Ramapithecus, Homo Afarensis, Cro-Magnon, Neanderthal, Homo


erectus, Homo habilis, são a confirmação histórica do processo evolutivo e a hominização representa a
transformação de algumas delas, ao longo de milhares de anos, até chegar no Homo sapiens. Contudo, é
por meio da humanização (socialização) que o animal humano adapta a natureza às suas demandas, com
fins de garantir não apenas a perpetuação da sua herança filogenética, mas também do ser social – da
dimensão simbólica que diz respeito à cultura. Nesse sentido, a inserção do bebê humano, em uma
comunidade de falantes, é um passo importante, talvez mesmo o imperativo categórico para que cada
indivíduo realize a potência do processo de humanização.

O enfrentamento aqui proposto diz respeito à compreensão da histórica e dialética (porque


contraditória) relação presente no processo civilizatório mediado pelo trabalho, cultura e educação.
Mediação que exige formas, procedimentos diretivos e intencionais cercados por uma dose necessária de disciplina
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(limites, rituais), amor/paixão (no sentido de carência, falta de) pelo conhecimento. Contudo, é preciso
atentar-se para o fato de que, em hipótese alguma, um sujeito mais educado seja garantia de constituição
de uma humanidade menos bárbara. Não por acaso, os inúmeros casos de bullying na escola básica e os
trotes universitários são práticas sociais (repulsivas para alguns) que ocorrem justamente em um ambiente
que supostamente deveria garantir e promover a produção e socialização da cultura – aqui entendida
como o cultivo de aspectos humanos, em especial a produção de um universo simbólico e as inúmeras
objetivações materiais. Ainda que esta não seja uma entidade (a cultura) sacrossanta, mas produzida por
homens e mulheres, assusta o fato de episódios de barbárie terem acento justamente no ambiente escolar,
protagonizados por aqueles (a imensa maioria meninos) que mais necessitam da apropriação do
conhecimento sistematizado – ciências, artes, filosofia, tecnologias – para ampliar sua experiência no e
com o mundo.

No fundamento do processo civilizatório encontram-se os seguintes importantes elementos que


os constitui: o trabalho; a aquisição da linguagem (fala articulada) e complexa; da cultura e da educação.
Didaticamente, esta ideia representa uma espécie de tentativa de síntese de todo esse processo, que em
termos históricos levou milhões de anos para desembocar no Homo sapiens spaiens. Esses elementos –
trabalho/linguagem/cultura/educação – nos remetem à compreensão de como o ser humano se constitui
enquanto tal. Por isso, concomitante à pergunta como o ser humano produz a sua humanidade, subjaz a
questão sobre qual seria a principal (ou principais) diferença, entre o animal humano e o não humano? E
aqui é preciso enfrentar o tema da educação, pois toda e qualquer cultura requer procedimentos
educativos, no sentido lato do termo. Cada contexto social apresenta a sua forma de educar e os
conteúdos próprios que os membros da comunidade elegem como necessários para torná-los mais aptos
e plenos para viverem e conviverem, para existirem e coexistirem junto aos seus. A humanização tem
mais chance de acontecer quando ao indivíduo é dada a oportunidade de apropriação dos elementos
constituintes do ambiente cultural, quer seja de forma institucionalizada (educação formal da escola), quer
seja informalmente, mediado pela família e outrem. Dito de outra forma, cada contexto social produz
suas formas e procedimentos educativos que com o tempo tendem, ou não, a se tornarem mais
complexos. Ao nosso redor, tudo está carregado dessa dinâmica na qual há a participação, a intervenção
da atividade intencional humana. Intencionalidade no processo de transformação da natureza e dos
próprios sujeitos – da dimensão simbólica – que integram a comunidade. Portanto, o trabalho é uma
atividade cujo resultado modifica tanto a natureza externa, como o faz com aqueles que nela intervêm.

Em termos de evolução da espécie, os primeiros hominídeos, em face da necessidade de


sobrevivência, sentiram-se impelidos a transformar a natureza. A pedra lascada, a pedra polida; os
primeiros instrumentos de pesca produzidos com ossos de animais, as machadinhas para caça; a
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domesticação do fogo e a metalurgia que permitiu a produção de ferramentas a partir do ferro e outros
minerais; a revolução agrícola, com a domesticação das plantas e a domesticação dos animais; a invenção
da escrita e os diversos suportes produzidos para registrar os processos mentais e materializar ideias, até
chegar à invenção da imprensa móvel de Gutenberg; a Primeira Revolução Industrial (1750), com as
máquinas a vapor; a Segunda Revolução Industrial (1860), com os motores movidos a petróleo, a Terceira
Revolução Industrial após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945); A quarta Revolução Tecnológica em
curso, com a nanotecnologia. Ou seja, o mundo ao nosso redor está carregado dessa atividade intencional,
projetiva, consciente que é o trabalho.

Com a Revolução Tecnocientífica, das últimas décadas, percebe-se uma diferenciação em relação
à Primeira e à Segunda Revolução Industriais. Após a 2ª Guerra Mundial houve um profundo avanço, no
campo tecnológico, desencadeado em especial pela junção entre conhecimento científico e a produção
industrial. A pedra de toque dessa Terceira Revolução Industrial foi justamente a “fábrica”, cujos
fundamentos estão no conhecimento e na pesquisa científica. Os conhecimentos gerados pelas pesquisas
acadêmicas são repassados quase que simultaneamente para o processo produtivo das fábricas e indústrias
em geral.

O mais importante, nessa nova fase produtiva, é que ela depende do conhecimento mais complexo,
sofisticado. Portanto, não é qualquer saber que será objeto de socialização pela escola. O conhecimento
tecnocientífico, que é repassado para a indústria, requer investimentos financeiros e dedicação à pesquisa:
anos de estudos. Por mais que haja uma desvalorização da matéria-prima natural, o conhecimento passa
a ser um valor agregado ao produto. Os setores da indústria que mais se destacam são os vinculados à
produção de computadores (softwares, hardwares, a microeletrônica dos chips, dos transistores, dos circuitos
eletrônicos), assim como a ciência da automação, ou robótica, que tem ampliado sua aceitação nas
indústrias, nas telecomunicações, na informática em geral.

Nos dias atuais, da sociedade contemporânea, é intensa a interdependência da cadeia produtiva,


onde a “inovação” de qualquer tecnologia contribui, direta ou indiretamente, para o desenvolvimento de
outra. Quanto mais as formas de produção da existência complexificam-se, mais dinâmicos e complexos
tornam-se os meios que permitem a socialização do conhecimento necessário para se tornar um ser
humano não apenas mais bem integrado à vida social, como também em condições de romper com
processos heterônomos da sua formação.

De fato, tanto as formas de ensino, bem como os conteúdos considerados necessários para a
inserção do indivíduo na vida social têm se modificado desde o mundo Antigo – Mesopotâmia (com os
Persas, Assírios, Caldeus), Egito, Grécia, Roma, China, Índia. Com o advento da escola, tal como se

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consolidou no século XVIII, principalmente na Era Contemporânea (pós Revolução Francesa, 1789), as
características da instituição escolar são bem diferentes daquilo que dela se demandava em alguns
contextos sociais da Idade Antiga e na Idade Média.

De todo modo, a mais polêmica e talvez impertinente tese que está na base de toda essa discussão
tem a ver com a fundamentação (ontologia) do ser, e que diz respeito justamente à pergunta sobre o que
faz o ser, ser o que é. No caso do ser humano, se há, qual é o fundamento, qual é o caráter ontológico da
nossa existência? São inúmeras as possibilidades de resposta para essa questão: Deus; a própria natureza;
o trabalho; a psique – alma; a mente; a consciência, a cultura etc.

Parece que a ideia de Deus/deuses é parte constituinte do imaginário da quase totalidade das
comunidades humanas existentes. A crença/fé em deuses/Deus é anterior ao surgimento das instituições
que formalizaram, sistematizaram, racionalizaram/teologizaram o sagrado. O que aqui se sugere é pensar
que aquela “primeira” relação que nossos antepassados hominídeos tiveram, movidos pelo temor da
natureza, estimulou a faculdade da imaginação e da fantasia capaz de criar um fundamento
supranatural/sobrenatural que explicasse o surgimento da existência humana. O momento de
questionamento, das inúmeras narrativas mitológicas, ocorreu no século V a.C, com o surgimento da
Filosofia, na Grécia Antiga.

A pergunta sobre o fundamento do ser é, talvez, tão antiga quanto à própria história da civilização.
Os primeiros pensadores gregos se perguntavam sobre a origem e o fundamento primeiro – arché – de
todas as “coisas”. Eram os fisiólogos, teóricos da natureza – Physis. Buscavam a explicação causal de
processos e fenômenos naturais a partir de causas puramente encontráveis na natureza, no mundo natural
concreto e não fora, em um mundo sobrenatural divino, como nas explicações míticas. Dentre esses
primeiros pensadores estão Tales de Mileto, para quem a água era o princípio de tudo. Para seus
discípulos, Anaxímenes e Anaximandro, a arché era o ar e o Apeiron – o indeterminado, indefinido,
subjacente à natureza –, respectivamente. Para Heráclito, o princípio de tudo era o fogo. Demócrito
defendia que era o átomo. Empédocles sustentava a teoria dos quatro elementos – Terra, Água, Ar, Fogo.

Ao se retomar essa ideia de princípio de tudo, observa-se que na história do pensamento houve
um deslocamento: de uma defesa na qual se explicava a existência de tudo, ora como sendo causa de
elementos naturais ou indeterminados, ora como vontade dos deuses ou de deus. No caso do ser humano,
ainda que sejamos seres orgânicos e inorgânicos, isto é, por mais que sejamos natureza, a possível
explicação para a pergunta o que é, ou melhor, como o ser humano se tornou e se torna humano, parece
não comportar mais a resposta dos primeiros pensadores, sequer da maioria dos filósofos da Antiguidade
Clássica.

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O que aqui se defende, é que não há uma “essência” humana a priori. O Homo sapiens só se torna o
que é quando é interditado pela dinâmica histórica da cultura que é veiculada em uma determinada
sociedade. Por sua vez, o processo civilizatório é histórico e dialético e, por isso mesmo, contraditório,
pois não estabelece, de antemão, se algo vai ser “positivo” ou “negativo”. Ou seja, em uma sociedade
com alto grau de complexidade, em termos de produção social da existência, também o será o alto nível
de exigência demandado pelas formas de socialização do saber elaborado. Cada um de nós está imerso
nesse dinâmico, porque histórico e dialético vínculo entre trabalho, linguagem, cultura, civilização e
barbárie. Portanto, parte-se do pressuposto de que para que haja civilização é fundamental a
produção/socialização da cultura, que por sua vez depende de processos complexos, elaborações
cognitivas e sensíveis próprias da linguagem articulada (fala) humana partícipes do processo de
socialização do conhecimento que acontece por meio da educação.

Em termos filogenéticos, tudo indica que também a linguagem tem como fundamento o trabalho.
Este, por sua vez, pode ser considerado tanto um potencializador da existência, como também um
danificador/destruidor da vida em todas as suas manifestações. Ou seja, há uma característica
contraditória no processo de hominização que aconteceu pela mediação do trabalho. Contradição que
faz parte do próprio movimento, tanto da natureza quanto da sociedade. A hipótese, que abarca a
categoria da contradição, concebe a história como sendo produto de um movimento não linear. É um
processo repleto de avanços, rupturas, retrocessos, novos avanços. É justamente nessa dimensão
dialética, portanto não linear e mecânica, que é possível escapar das armadilhas produzidas pelo
pensamento maniqueísta que elege forças do bem e forças do mal para serem os protagonistas e/ou
coadjuvantes da história.

Por fim, ressalta-se que a reflexão sobre os eventos que terminaram com inúmeros mortos e
feridos; com o suicídio dos protagonistas, e cujos episódios foram citados nos primeiros parágrafos desse
ensaio, só reforçam o desejo e a necessidade de ampliar nossa capacidade de compreensão sobre algumas
facetas típicas do fenômeno relativo à educação, em especial do trabalho educativo, pois tudo sugere que
há uma linha tênue que separa a civilização da barbárie – o humano do não humano – e que nos faz
pensar que na realidade elas são faces da mesma realidade. Daí porque o recorrente retorno à pergunta:
como o ser humano constitui-se humano? Por sua vez, uma das respostas possíveis está na compreensão
do conceito de trabalho. Assim, no próximo item são apresentadas algumas breves considerações sobre
o que vem a ser trabalho.

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Sobre (a dialética do) conceito de trabalho

De que forma o animal humano se faz humano? A subjetividade se objetiva nas objetivações que
são as marcas (o registro) deixadas pela atividade humana na transformação da natureza, cujo escopo é a
satisfação das demandas naturais e socialmente constituídas, bem como na transformação do próprio
mundo simbólico. Por exemplo: o computador no qual escrevo esse ensaio não nasce em pé de árvore.
Ele não é um objeto natural, mas, sim, uma objetivação das forças sociais humanas gestadas ao longo da
história. Esse aparelho, com toda sua tecnologia, registra o acúmulo de conhecimento que tem sido
gestado desde o Paleolítico, há aproximadamente 2.5 milhões de anos. Da primeira pedra lascada, até o
surgimento das primeiras pedras polidas pode-se, ao menos em tese, considerar que desde então o
trabalho tem sido a atividade por meio da qual a hominização pôde se efetivar. Mas, o que é, como
conceituar trabalho?

No campo da Física, trabalho designa uma atividade realizada por uma força, ou seja, trabalho
mecânico. Uma força aplicada em um corpo realiza um trabalho quando neste se produz um
deslocamento. Utiliza-se a letra grega tau minúscula ( ) para expressar trabalho. A unidade de trabalho
é o Joule (J). Quando uma força tem a mesma direção do movimento, o trabalho realizado é positivo:
>0.Quando uma força tem direção oposta ao movimento o trabalho realizado é negativo: <0.

O trabalho resultante é obtido através da soma dos trabalhos de cada força aplicada ao corpo, ou
pelo cálculo da força resultante no corpo.

Para o campo do conhecimento da Física, trabalho é um conceito relevante. Não obstante, o


sentido de trabalho que interessa para as reflexões aqui propostas é aquele desenvolvido no século XIX,
no campo da filosofia. Então, aqui vai ser entendido como: trabalho é uma atividade intencional,
mentalmente idealizada, antecipada e corporalmente efetivada capaz de mediar o processo de
hominização (e humanização), para fins de consolidação do ser/indivíduo social.

Antes de o animal humano existir, na forma de Homo sapiens sapiens (homem que sabe que sabe), a
natureza já existia. Somos, portanto, seres naturais. Mas nossa existência é posterior à existência da
natureza. Contudo, para ser, para existir é preciso, em princípio, satisfazer demandas biológicas: as
necessidades do estômago, por exemplo, cuja satisfação não acontece de forma espontânea. Se fôssemos
plantas, retiraríamos nossas forças vitais da energia solar. Não apenas o ato corporal de transformar a
natureza exige a garantia da energia vital básica para movimentar os músculos que agem na atividade de
trabalho, mas o próprio ato de antecipar mentalmente (idealmente) a atividade requer a satisfação de
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algumas necessidades básicas. Somos, portanto, seres naturais carentes. Para viver dependemos de algo
que não possuímos a priori: que está fora (oxigênio, água, alimentos etc.) de nós. Contudo, o que nos
distingue dos animais não humanos? O que nos torna seres humanos e, o que continuamos a compartilhar
com os animais não humanos? Satisfazer necessidades biológicas é uma delas; isto é, nos iguala a todos
os outros animais. Daí porque, é preciso também satisfazer as necessidades da sensibilidade e da razão
que se tornaram mais complexas com o desenvolvimento da espécie e do gênero humano.

São vários, os elementos que nos diferenciam dos outros animais: temos a capacidade de 1) criar
símbolos; 2) reter fatos e eventos na memória; 3) narrar acontecimentos passados; 4) projetar
acontecimentos futuros; 5) transformar, de forma intencional, a natureza externa, adaptando-a para a
satisfação de nossas demandas, quer sejam elas biológicas, quer sejam culturalmente produzidas. De uma
forma ou de outra todo o processo de hominização, em termos antropológicos, aconteceu mediado pelo
trabalho.

O trabalho é a atividade típica dos animais humanos. Castores, abelhas, joões-de-barro, aranhas,
bichos-da-seda não trabalham; apenas realizam aquilo que a natureza deles exige. São prisioneiros das
suas respectivas inscrições gênicas e dificilmente conseguem ir além daquilo que neles foi inscrito pela
natureza. Os animais não humanos realizam atividades que afetam a natureza, mas é pouco provável que
haja uma intencionalidade, no sentido de consciência. O que visam é satisfazer exclusivamente suas
necessidades básicas imediatas e a dos filhotes. São atividades determinadas por inscrições genéticas que
fornecem material biológico suficiente para alimentar uma memória natural – instinto de sobrevivência.
É até possível que animais não humanos sejam capazes de desenvolver habilidades sensoriais que muito
lembram a aprendizagem, mas que, de fato, o suposto aprender, nesse caso, está vinculado a uma vivência
concreta. Um urso, por exemplo, após colocar o focinho em uma colmeia, uma única vez, pode ser capaz
de, por um ato reflexo mecânico, não reflexivo, nunca mais repetir essa ação, pois a dor causada naquela
“experiência”, fica registrada em sua memória. Os animais não-humanos podem até desenvolver formas
variadas de ação sobre a natureza, o que não significa que produzam instrumentos técnicos; tampouco
acumulam um conhecimento cuja finalidade seja um melhor desempenho da ação. A ação dos animais,
em face da natureza, tem apenas uma característica de integração indissolúvel.

O início de todo processo de trabalho diz respeito a uma intencionalidade prévia (mentalmente
idealizada) que faz com que o animal humano seja capaz de projetar (antecipar mentalmente), a partir de
uma dada realidade, algo que não existe. Essa atividade é realizada por uma conjunção de forças e energias
biocorporais e estético-sensíveis de cujo cérebro, do primata humano, é um de seus principais órgãos
propulsores.

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É pela atividade do trabalho que o animal humano dá início à sua libertação em face das forças
(leis) da natureza. É pouco provável que a atividade dos primeiros hominídeos, no Paleolítico, possa ser
caracterizada de trabalho. Há evidências arqueológicas e antropológicas que sugerem que, ainda naquele
período, a ação era quase que uma mera mímesis daquilo que acontecia na natureza. A pedra lascada
talvez não tivesse sido construída com base em uma intencionalidade sofisticada, pois há indícios de que
ela teria sido o principal instrumento que teria durado em torno de um milhão de anos. Em uma
comparação grosseira, é como se durante um milhão de anos o carro fusca fosse o único modelo de
automóvel que a humanidade teria sido capaz de produzir. Então, é possível inferir que, ainda que
houvesse intencionalidade, no ato de bater uma pedra na outra, ou mesmo pegar aquelas já devidamente
lascadas pela ação da natureza, é plausível imaginar que ainda era baixo, o nível de capacidade reflexiva e
projetiva dos primeiros hominídeos.

Ainda que, de fato, não se possa denominar de trabalho a “produção” de pedras lascadas, esses
artefatos são evidências suficientes que nos põem em um patamar diferenciado, em face dos outros
animais. Foi justamente no Paleolítico, com os primeiros hominídeos, que se deu o início do processo
de afastamento da imposição da condição natural. Não obstante, isso não significa, em hipótese alguma,
que no processo de hominização, deixa-se de ser natureza. Pelo contrário, continua-se a ser animal.

De qualquer forma, em algum momento da história da espécie, o ato deixou de ser apenas bater
uma pedra na outra, mas também polir, criar outros tipos de ferramentas com a pedra. Desde então, a
ação passou a ser intencional porque refletida, consciente e projetiva. Eis a característica do trabalho
humano: transformação da natureza externa. E, por meio desse procedimento produz-se algo que não
existe no mundo natural: a cultura, a civilização.

No processo ativo e consciente de transformação da natureza, há uma transformação do próprio


sujeito, ou seja, nos transformamos a nós próprios, pois sempre se descobre e se tenta transpor as
limitações impostas pela realidade. A atividade do trabalho nos transforma porque nos exige uma
capacidade de raciocínio e uma sensibilidade cada vez mais sofisticada: planejamento, previsão
(antecipação) das possíveis dificuldades. E, o mais importante (que tem a ver com a cultura e a educação),
exige um acúmulo do conhecimento já adquirido pelas gerações anteriores. O processo civilizatório é
fruto dessa atividade laboral que permitiu a produção de novos conhecimentos cuja função é agir em face
dos limites impostos pela natureza; o processo civilizatório também tem a ver com a produção de formas
de registro e socialização das novas técnicas de intervenção/transformação da natureza.

Transformar a natureza externa não é algo que acontece facilmente, pela ação de um único
indivíduo, de forma isolada. Em geral, a garantia da existência do animal não humano tem acontecido de

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forma cooperada. Por isso, a cooperação é uma das características do processo civilizatório. Corroboro
com a tese de que foi a partir do trabalho cooperativo que aconteceu o desenvolvimento da linguagem
falada e articulada: outro elemento que nos diferencia do restante dos animais não humanos.

Se o trabalho foi a atividade que mais acelerou o processo de hominização, também ele, até um
determinado momento, pode ser considerado o principal mediador e fundamento para o processo de
humanização. Em outros termos, é forçoso afirmar que ao longo da história, o trabalho nem sempre
pode ser considerado uma atividade capaz de humanizar. Na Antiguidade, em particular nas civilizações
erguidas pelos Assírios, pelos Caldeus, pelos Egípcios, na Grécia, em Roma Antigas o trabalho, em
especial o trabalho manual, era destinado aos escravos.

Até o século XVII d.C., essa foi uma realidade bastante comum e disseminada pela sociedade
europeia. Mas, ainda que de forma incipiente, essa concepção começou a mudar a partir do século XV e
XVI, principalmente com o desenvolvimento de uma nova classe social: a burguesia comercial. Surgida
nos séculos XII e XIII, após o ressurgimento das cidades na Europa, a burguesia desenvolveu uma nova
forma de lidar e conceber o trabalho, que desafiou as ordens sociais ociosas, em particular o Clero, a
Nobreza, a Aristocracia e a Realeza.

Da língua latina vulgar, trabalho é representado por tripalium, que é um instrumento, formado por
três peças de madeira ou outro material, cuja finalidade era a tortura. Na Antiguidade, tinha-se por
costume realizar a prática da tortura e matar os condenados por meio desse instrumento.

Na linguagem bíblica, trabalho vincula-se a ideia de sofrimento e punição: “Ganharás o teu pão
com o suor do teu rosto (Gênese)”. Atrela-se, aqui, a concepção de que é por meio de um esforço doloroso
que homens e mulheres sobrevivem à natureza. Para os gregos antigos, o trabalho era a expressão da
miséria humana; os romanos opunham o otium (lazer, atividade intelectual) ao vil negotium (trabalho,
negócio). Japiassú e Marcondes (1996, p. 262) consideram que:
A divisão do trabalho, ou seja, a repartição das tarefas necessárias à sobrevivência de um grupo
entre os diversos membros desse grupo, embora já tenha existido nas sociedades pré-industriais,
desenvolveu-se consideravelmente com o surgimento da sociedade industrial. Adam Smith foi o
primeiro a elaborar uma teoria sobre a repartição dos trabalhadores [...] A divisão do trabalho
atinge o seu máximo com a taylorização, isto é, com a repartição altamente racional do “trabalho
em cadeia”; tentando englobar todos os fatores necessários a uma produtividade ótima.

Em tese, o trabalho, em um sentido mais genérico, tal como utilizado nesse ensaio, diz respeito à
atividade, por meio da qual, homens e mulheres modificam a natureza e o mundo social de forma
consciente, intencional/voluntária, com o objetivo de satisfazer não apenas as necessidades básicas
(alimentar-se, vestir-se, habitar), mas também as necessidades sensitivas e intelectivas, da própria cultura.

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É por meio do trabalho que homens e mulheres põem em movimento as forças de que o corpo é dotado
a fim de assimilar a matéria, dando-lhe uma forma útil à vida (MARX).

Notas introdutórias sobre o conceito de barbárie a partir da teoria crítica da sociedade

Em um dos livros mais instigantes publicados no século XX, A dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos, os autores, Adorno e Horkheimer, têm como proposta realizar a crítica da sociedade burguesa
a partir de uma filosofia da história da dominação. Eles partem de uma análise teórico-crítica (em
oposição à teoria tradicional) da história, para mostrarem como o progresso recai em barbárie e como a
mitologia, que o esclarecimento – Aufklärung (aqui sinônimo de esclarecimento) – tentou liquidar, retorna
como seu próprio produto. Por isso se perguntam como a humanidade totalmente dominada pelo
esclarecimento submerge em uma catástrofe geral? Em outras palavras, “[...] por que a humanidade, em
vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, tem se afundado em uma nova espécie de
barbárie?”

Como tenho insistido, ao longo desses primeiros encontros, no curso de Fundamentos filosóficos
da educação, o desafio é perceber a contradição inerente à história humana. Em tese, o domínio da natureza
traz a promessa de felicidade e emancipação. Quanto mais progresso, ao menos em tese teríamos uma
sociedade mais feliz. Contudo, ao dialogarem com Freud, Adorno e Horkheimer mostram como esse
processo é uma história de domínio do medo, de renúncia do instinto, de sacrifício: a “[...] civilização,
por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório [...]. Se a barbárie se encontra
no próprio princípio civilizatório, então pretender opor-se a isso tem algo de desesperador” (ADORNO,
1995a, p. 119-120). Ou, como observa Freud (1997), em O mal-estar na civilização, o custo da civilização é
muito alto; pois, se ela é construída à custa da repressão das pulsões, essa repressão tende a gerar a mesma
destrutividade que ela quis evitar. Fica então embutida, na ideia de progresso, uma dimensão regressiva: de
barbárie.

Por outro, os autores seguem o caráter contraditório do trabalho humano revelado por Marx: o
trabalho é fonte de humanização. Porém, sob condições capitalistas de produção, o caráter do trabalho
modifica-se a partir de dois fenômenos característicos, quais sejam:
1. O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence o seu trabalho.
2. Além disso, o produto do trabalho é propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o
trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor diário da força de trabalho. Sua utilização,
como a de qualquer outra mercadoria, por exemplo, a de um cavalo que alugou por um dia,
pertence-lhe durante o dia. Ao comprador pertence o uso da mercadoria, e o possuidor da
força de trabalho apenas cede realmente o valor-de-uso que vendeu, ao ceder seu trabalho
(MARX, 1985, p. 209-210).

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Adorno e Horkheimer (1985, p. 162) enfatizam que houve épocas na história em que a repressão
das classes e grupos dominantes era imediata e todo o trabalho era entregue às classes inferiores. Nesse
período, os dominantes consideravam o trabalho uma afronta pública. No entanto, sob o capitalismo, os
senhores transformados em burgueses, com o objetivo de se apoderarem do trabalho alheio, passaram a
defender que o trabalho não envergonha.

A partir das reflexões de Marx, eles observam como a promessa de emancipação da natureza
mediante o trabalho declina, sob relações sociais capitalistas, em pura dominação de classe. Sob o
capitalismo, a grande maioria dos trabalhadores vê-se inserida em um processo no qual o trabalho é
repetitivo, enfadonho e sem nenhuma expressão criativa. Eles sequer se reconhecem no produto do seu
trabalho. Daí que o trabalho se transforma em alienação. Esse caráter contraditório é exemplificado pelos
autores, ao afirmarem que a naturalização dos seres humanos, sob o capitalismo, está vinculada ao
progresso social. Para eles, o aumento da produtividade econômica produz, por um lado, as condições
para um mundo mais justo, e, por outro lado, confere ao aparelho técnico controlado pela burguesia uma
forte superioridade sobre o conjunto dos trabalhadores.

Essas reflexões constituem a base da análise adorniana sobre o progresso. O diagnóstico de Adorno
revela um paradoxo da sociedade dos fins da década de 1960: ao mesmo tempo em que se vivia sob a
ameaça iminente de uma catástrofe mundial, representada pela bomba atômica, também se defrontava
com o fato de que, ao menos potencialmente, tendo em vista o alto nível alcançado pelas forças
produtivas, a fome não mais seria um problema (ADORNO, 1995b, p. 38). Por essa razão, diante do
conceito de progresso, tornava-se fundamental perguntar: “[...] progresso do que, para que, em relação a
que [...]” (ADORNO, 1995b, p. 37).

Baseado na contribuição de Walter Benjamin (1892-1940, Adorno lembra que, em geral, o


progresso é confundido com o avanço e o acúmulo de habilidades e conhecimentos. A “fórmula
publicitária do sempre melhor e melhor” (ADORNO, 1995b, p. 39) indicaria um movimento ascendente
uniforme na história. De outra maneira, Adorno está longe de renunciar, in totum, à ideia de progresso e
advogar a decadência como traço ontológico do movimento histórico.

Para ele, tanto a defesa de um progresso total como a da sua negação são atitudes convergentes.
Em termos históricos, ambas as posturas representam momentos do desenvolvimento da burguesia
como classe social:
Enquanto a classe burguesa permaneceu oprimida, pelo menos no plano das formas políticas,
opôs-se a palavra de ordem do progresso à situação estacionária vigente; seu patos era o eco
desta. Somente depois de esta classe já ter conquistado as posições de poder decisivas, o conceito
de progresso degenerou em ideologia, que logo foi imputado pela vácua profundidade ideológica,
ao século XVIII. O XIX chegou aos limites da sociedade burguesa; esta não podia realizar sua
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própria razão, seus ideais de liberdade, justiça e espontaneidade, a não ser superando o seu
próprio ordenamento. [...] Certamente, quando o imperialismo lançou suas sombras, a burguesia
renunciou prontamente a essa ideologia e lançou mão de um recurso desesperado: falsificar a
negatividade, que a crença no progresso rechaçava, em algo metafisicamente substancial
(ADORNO, 1995b, p. 52).

Essa confluência manifesta a antinomia do progresso cuja origem reside no princípio burguês da
troca. Na sociedade capitalista, acredita-se que, nas relações de trabalho, toda operação de troca ocorre
entre equivalentes, ou seja, ela é justa porque acontece entre iguais. Essa concepção tradicional e positiva
de trabalho era adotada mesmo entre membros da social-democracia alemã. Adorno (1995b) rejeita esse
procedimento e lembra que o próprio Marx rechaçou o programa lassalista de Gotha e a absolutização
da noção de trabalho como única fonte de riqueza social. A acumulação de riqueza constrói-se a partir
de uma desigualdade na qual “[...] o contratante socialmente mais poderoso recebe mais que o outro”
(ADORNO, 1995b, p. 60). Portanto, a base material para o progresso é a “mentira da igualdade”
(ADORNO, 1995b, p. 60).

Os detratores dessa reflexão demonstram dificuldades em perceber a relação dialética, portanto


contraditória, da relação entre trabalho/civilização/barbárie. Por isso Adorno sublinha que o filósofo
Alemão Karl Marx não descartou a possibilidade social de incidência na barbárie. Na história
contemporânea, um dos casos mais ilustrativos desse horizonte é o dizer que se encontra no portal de
entrada do campo de concentração de Auschwitz: O trabalho liberta (Arbeit macht Frei).

A interdependência entre progresso e barbárie, reforçada na filosofia de Adorno, arrefeceu a ilusão


daqueles que acreditavam que a instrumentalização (Francis Bacon – o filósofo) e a positivização
(Augusto Comte) do conhecimento pudessem resolver contradições sociais, que não se solucionam no
nível lógico-formal, bem como fomentar uma sociedade de indivíduos emancipados. No entanto, quando
destacam o viés contraditório da história, a partir da contribuição teórica de Marx e Freud, Adorno e
Horkheimer apostam na intervenção humana, no sentido de forçar essa contradição. Eles desenvolvem,
a partir do conceito de esclarecimento, uma filosofia da história.

Produto do processo de trabalho, o esclarecimento promete a libertação do mito, mas, sob muitos
aspectos, a ciência acaba por se tornar uma mitologia. A promessa de destruição dos mitos se renova, de
forma mais intensa, com o advento da sociedade capitalista. Nessa renovação também se acirra a
contradição da Aufklärung. Sob os interesses do capital, a ciência é cativa de uma lógica e limites
instrumentais e pragmáticos. Daí a necessidade de se conceber a história em um horizonte dialético
(esclarecimento e mito, progresso e barbárie).

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A ideia de Adorno era desmistificar o passado a partir do presente. Passado cujo progresso,
enquanto mito, até então não tem parado de produzir o sofrimento em progressão geométrica. Mesmo
que já se tenham alcançado as condições objetivas para se eliminar a barbárie que acomete milhões de
seres humanos, o infortúnio persiste. Assim, a educação em Adorno aparece como um processo
formativo no qual há a chance, mesmo que limitada por diversos condicionantes, de se escavar as ruínas
do que o esclarecimento se tornou e captar aí as possibilidades do que ele pode vir a ser. Daí porque,
para o filósofo (1995f, p. 116-117):
Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições
mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é
justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas
individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto
imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu
alcance e suas possibilidades. E para isto ela precisa libertar-se dos seus tabus, sob cuja pressão
se reproduz a barbárie. O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito
do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em
que se conscientiza disso.

Mas, afinal, o que aqui se entende por barbárie? A partir da contribuição de Adorno (1995f), pode-
se com ele afirmar que barbárie diz respeito a todo tipo de extremismo, tais como a fome causada pela
miséria econômica produzida pela ganância do capital que fomenta a desigualdade social; o preconceito
delirante que ocupa parte considerável da existência do homem e da mulher comuns, na vida diária –
xenofobia, misoginia, homofobia, preconceito de classe, etc. – que acarreta na opressão de pessoas que
não espelham a imagem e a semelhança do modelo determinado por parcela considerável daqueles que
detêm a hegemonia sobre a propriedade privada dos processos de produção; o genocídio, a tortura e a
ignorância, o que, em última instância, tem a ver com a insistente produção social do sofrimento humano,
em especial para os seguimentos mais pauperizados da classe que vive do trabalho. É preciso, portanto,
escreve Adorno, contrapor-se a tudo isso.

Apesar de argumentos contrários, mesmo no âmbito das teorias sociais, ele defende a importância
da educação escolar, o que implica que a escola elabore o seu próprio passado, isto é, “[...] que a escola
cumpra sua função, que se conscientize do pesado legado de representações que carrega consigo”
(ADORNO, 1995f, p. 117). Não é por acaso que, em outro texto, Adorno (1995a, p. 119) considera que
a exigência primeira para a educação é a de que Auschwitz não se repita. Contudo, o que se percebe é
que há um baixo nível de compreensão e aceitação relacionado a esse pressuposto (de que Auschwitz
não se repita) que é quase que um imperativo categórico. Isso se observa quando as questões suscitadas
a partir daquele evento histórico, pouco ou quase nada afetam, mas dão provas de que a monstruosidade
ainda persiste no âmago das pessoas. A depender do estado de consciência e inconsciência das pessoas,
isso é um sintoma que revela a persistência da possibilidade que o acontecimento se repita. Tal reflexão
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nos põe a pensar que debates públicos relativos a metas educacionais, carecem de significado e
importância em face da meta principal: a de que Auschwitz não se repita (ADORNO, 1995a). A barbárie,
a que foram submetidos todos que passaram por esse (e tantos outros) campo de extermínio, é
emblemática e é justamente contra ela que se deveriam juntar todos os esforços das metas educacionais.
Muito se fala na ameaça de uma regressão á barbárie, mas tudo indica que “[...] não se trata de uma ameaça,
pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que tem de
fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora” (ADORNO, 1995a, p. 119).

A barbárie não é algo externo, distinto ao que supostamente é civilizado, tampouco este deve
dissipá-la para, dialeticamente, produzir um processo de emancipação do indivíduo bárbaro. Ela é, sim,
a face paradoxal da própria civilização, emerge quando se torna arrogante de si. Civilização e barbárie são
as faces de uma mesma moeda: adversárias e cúmplices, de uma mesma e única humanidade.

Para os gregos antigos, diferente dos romanos, ainda que de forma distinta, os bárbaros também
eram uma civilização. Os romanos, por sua vez, consideravam bárbaros todos os povos que estavam fora
de seu domínio. O mundo era resumido, então, entre a “Romania e Barbárie”. Foi justamente na Roma
antiga que com os romanos o termo bárbaro adquiriu o estereótipo antropológico daquele que a todo o
momento ameaça a civilização. Bárbaro, para o romano antigo, é o outsider, o forasteiro, o não local que
deve ser “exterminado” mediante um interessante jogo de palavras. Aquele que por razões diversas não
consegue assimilar o modus vivendis do habitante da cidade – civitas – e que por essa razão balbucia o latim,
também é considerado um bárbaro. Contudo, como foi possível observar ao longo da discussão
apresentada nos parágrafos acima, a barbárie é constitutiva, inerente ao processo civilizatório.

Na próxima parte desse ensaio dar-se-á continuidade a essa discussão, mas, a partir da constituição
da linguagem e da cultura.

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