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Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ Sepulturas e hierarquias sociais numa paróquia rural do Rio de Janeiro:
Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX, 43-77 /
DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhranpuh.v10i29.37939
Resumo: Este artigo analisa a relação entre sepulturas, sepultamentos e hierarquias sociais
entre os moradores livres e libertos da paróquia de Santo Antonio de Jacutinga, no
Recôncavo da Guanabara/RJ, entre o século XVIII e início do XIX. Ao investigar as
particularidades dos espaços destinados às sepulturas numa freguesia rural do Rio de
Janeiro escravista, buscamos identificar de que forma as desigualdades e hierarquias
presentes ao longo da vida numa sociedade que tinha como base características do Antigo
Regime adaptado aos trópicos se expressavam por ocasião da morte e de um dos ritos
mais importante da escatologia católica, que era o sepultamento em sagrado.
Palavras-chave: Morte católica; Sepulturas, Hierarquias sociais; Freguesia rural; Santo
Antônio de Jacutinga/RJ
1 Doutora (em 2002) e Mestre (em 1995) em História Social pela Universidade Federal Fluminense.
Graduada em História pela mesma universidade (em 1991). Atualmente é Professora Adjunta da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Email:
claudiarodrigues.3@hotmail.com
2 Possui mestrado em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). Atua
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Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX, 43-77 /
Keywords: Catholic death; Graves, Social hierarchies; Rural parish; Santo Antônio de
Jacutinga / RJ
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Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ) nos foi gentilmente cedida por Ana Paula
Rodrigues e Live France, a quem agradecemos.
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com distâncias que variavam de uma a três léguas (ou um pouco mais), que muitos
engenhos estavam localizados, alguns dos quais com suas capelas para acolher as
demandas diárias por missas e demais ritos da devoção católica quando não se podia
atravessar a distância até o templo paroquial. Passemos a identificar os templos sagrados
em busca daqueles nos quais seriam disponibilizadas sepulturas para destino dos restos
mortais dos fregueses que ali viviam. Para isso, dividiremos o artigo, doravante, em duas
partes: na primeira, identificaremos os templos de Santo Antonio de Jacutinga que se
constituiriam em espaços sagrados nos quais poderiam haver sepulturas, sendo uns
destinados ao uso dos paroquianos de modo geral (matriz) e outros pertencentes à
famílias (capelas ou oratórios) ou a uma comunidade religiosa (mosteiro de São Bento);
na segunda, teceremos uma análise das diferentes formas de uso destes espaços para
sepultamento ad sanctos entre os livres e libertos segundo os princípios hierárquicos
daquela sociedade escravista.
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momento da visita de Pizarro, esse documento ainda não havia voltado (ARAÚJO, 2008,
p. 242).
Apesar de estarem aglutinadas no templo paroquial, foi possível verificar uma
hierarquia entre quatro irmandades de Jacutinga, evidenciando a diferenciação social
vigente na paróquia, na medida em que existiam duas associações de elite (Santíssimo
Sacramento e São Miguel e Almas), uma de pardos (em geral composta por libertos ou
crioulos) e outra de “pretos” (na maioria das vezes escravos ou ex-escravos africanos).
Exemplo significativo dessa hierarquização é que, ao fazer menção a tais associações
religiosas, Pizarro não as mencionou segundo a ordem cronológica de fundação (N. S. do
Socorro dos pardos, em 1686; S. Miguel e Almas, em 1719; N. S. do Rosário dos pretos,
em 1724 e SS. Sacramento, em 1751), mas numa ordem que parecia reproduzir o status e a
hierarquia social da época, ao citar primeiro aquelas que sabidamente eram compostas
pela elite local e por último as dos chamados homens de cor, mencionando
respectivamente: Santíssimo Sacramento, São Miguel e Almas, Nossa Senhora do Socorro
e Nossa Senhora do Rosário, mesmo que a primeira citada tenha sido a última a ser
criada.
Para além da preocupação em prestar culto ao santo de devoção localizado nos
altares laterais mantidos por estas irmandades religiosas ou sustentar o altar do Santíssimo
Sacramento, é preciso destacar que os locais nos quais estavam instaladas no interior da
matriz de Jacutinga atendiam ao “obsessivo desejo” da população em garantir um
sepultamento dentro ou em volta dos templos católicos mediante a autorização
eclesiástica que tinham para manter sepulturas nestes altares (BOSCHI, 1986, p. 150-153).
Aspecto que supria as necessidades escatológicas das irmandades que não possuíam
templo próprio (REIS, 1991, p.173). A participação nessas associações garantia de forma
desigual aos livres, libertos e à escravaria que os ritos funerários fossem realizados
conforme os desejos individuais, muitos dos quais deixados em testamento, embora
apenas no caso de livres e libertos, posto que escravo não podia testar. No caso dos
chamados “homens de cor” – escravos, africanos e seus descendentes –, o papel das
irmandades seria evitar que o morto permanecesse insepulto ou que fosse sepultado com
menos honra em locais não sagrados ou menos prestigiados, sem receber de seus irmãos
os devidos cuidados que homenageavam o irmão falecido, reforçando o poder das
irmandades de cuidarem de seus membros (SOARES, 2000, p. 175).
Além do templo paroquial, outros espaços destinados a sepulturas na freguesia
de Santo Antônio de Jacutinga eram as capelas erguidas no interior de engenhos e de um
mosteiro, que se constituíam em espaços mais particulares do que aquele de uso mais
geral entre os paroquianos existente na matriz. Tratavam-se de espaços menores
chamados de oratórios ou capelas, que contavam com a presença de um sacerdote ou
capelão. Nos registros de monsenhor Pizarro, foram mencionadas seis capelas ainda em
funcionamento quando de sua passagem pela região, em 1794, sendo que poucas
possuíam autorização para a realização de rituais católicos, como missas, batizados e
sepultamentos. Apesar disso e por compreendermos que a constituição de tais espaços é
importante para desenvolvimento de nossa argumentação acerca do papel e das
hierarquias entre os espaços destinados a sepulturas na freguesia de Santo Antonio de
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passagem do visitador. Para visualizarmos os engenhos nos quais existiam tais espaços
sagrados, apresentamos no mapa 2, de 1767, que nos permite ter uma noção da posição
de certos engenhos/capelas em relação à igreja matriz.
Este mapa foi elaborado quase três décadas antes da chegada do monsenhor
Pizarro à região e, por isso, não apresenta todos os engenhos citados pelo visitador. A fim
de facilitar a localização das propriedades, consideramos que a paróquia de Santo
Antonio de Jacutinga estava, grosso modo, contida na forma ovalada em azul que
inserimos no mapa, sendo o espaço da igreja matriz, marcado com a legenda “J” no mapa
original e aqui destacado com uma cruz azul. É bem provável que a fração de tempo
entre a indicação de certas propriedades no mapa de 1767 e a visita de Pizarro em 1794
alguns dos engenhos que aparecem sem nome no mapa tenham sido nomeados pelo
clérigo no fim do século, mas não temos no momento como identificar quais seriam eles.
Certamente, são alguns dos que aparecem citados apenas como “engenhos” sem nome.
Outro aspecto a ser destacado é que as terras de Jacutinga eram atravessadas por um dos
“caminhos novos” e que aparece marcado originalmente com linha vermelha e legenda
“a”, representando a “estrada do Rio a Minas”. Vejamos, então, tais espaços particulares
do sagrado existentes em algumas das propriedades da paróquia de Jacutinga.
Iniciaremos pelo Engenho do Brejo, resultante do desmembramento de um
engenho estabelecido desde o século XVII, cujos descendentes – os Maciel da Costa –
permaneceram na localidade “com honra e distinção” (RODRIGUES, 2015, p. 9). Em
1739 estava sob a posse de Dona Páscoa Maciel e seu marido, Cristóvão Mendes Leitão.
Em 1746, o casal obteve autorização para erguer uma capela, mediante um Breve
Apostólico, que dez anos depois foi renovado a pedido do casal, que também adquiriu a
permissão para celebração de missas. Um ponto que merece destaque nesse processo é
que os indivíduos que solicitavam oratórios privados deveriam demonstrar que
pertenciam à elite colonial, sendo constante a afirmação ao longo do documento de que
os proprietários viviam “à maneira e o costume da nobreza” (ACMRJ-BA: nº. 146, fl. 3),
que se constituía em elemento de forte distinção social. Nesse sentido, uma das funções
mais importantes de um breve apostólico era identificar se os impetrantes eram de fato
pessoas aptas a receberem autorização para manter um oratório privado, sendo necessário
comprovar a identidade dos solicitantes e se o oratório construído estava, de fato, de
acordo com os parâmetros condizentes com um espaço sagrado (RODRIGUES e
FRANCO, 2011).
As testemunhas que avalizaram as condições do casal foram o Reverendo Padre
Alexandre Pinheiro, o Capitão João Correia Bittencourt e o Capitão Manoel Pereira
Ramos, todos com altos postos na hierarquia daquela sociedade, reforçando a distinção
não só dos impetrantes, mas dos que lhes serviram de testemunhas. Uma das exigências
era que o espaço estivesse isolado do restante da casa, livre dos usos domésticos e bem
paramentado para o exercício religioso (ACMRJ-BA, nº. 86, fl. 4). Para a realização de
missas em altares particulares, algumas regras deveriam ser observadas. A mais
importante era que não podiam acontecer simultaneamente às da igreja matriz, para não
prejudicar os direitos paroquiais, principalmente nos “dias de Páscoa de Ressurreição,
Pentecostes, e do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo, e outras mais solenes
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festas do ano” (Idem). Ou seja, apesar de possuídos por famílias com distinção, os
altares/capelas particulares ocupavam um lugar inferior na hierarquia do cotidiano
religioso, sendo subordinados às igrejas matrizes e destinados somente às missas
ordinárias de devoção aos santos e de sufrágios às almas de membros das famílias que
detinham a posse do oratório. O controle da presença dos fiéis às missas da igreja matriz
era responsabilidade dos párocos e os paroquianos só poderiam ouvir celebrações em
dias santos nas capelas se fosse impossível o deslocamento (FRANÇA, 2013, p. 56).
Porém, essa não era a única restrição. No breve apostólico de 1756 aparecem algumas
determinações pontuais: as missas só seriam celebradas na presença de padres seculares
aprovados pelo Bispado; as celebrações no oratório só poderiam ocorrer de fato se um
dos dois impetrantes estivessem presentes; e além de reafirmar que Cristóvão e Páscoa
não estavam livres de comparecer à matriz em dias solenes, o oratório celebraria missas
somente na presença de membros da família que compartilhassem laços sanguíneos com
o casal e “hóspedes nobres”. Tal fato deixa claro que os altares particulares seriam
frequentados somente por uma minoria (ACMRJ-BA, n°. 146, fl.8).
Três décadas após a autorização inicial, nos anos de 1760, o engenho foi
transmitido como patrimônio aos filhos de Páscoa e Cristóvão – o capitão Apolinário
Maciel da Costa e o padre Antônio Maciel da Costa –, que representaram, portanto, uma
nova geração a reproduzir o domínio senhorial sobre aquelas terras (ESTATÍSTICAS,
1913, p. 328). Na época da visitação de Pizarro, já no fim do século XVIII, a propriedade
era administrada somente pelo já mencionado reverendo Antônio Maciel da Costa,
mencionado anteriormente como responsável pela manutenção da imagem de Nossa
Senhora da Piedade localizada num dos altares laterais da igreja matriz de Jacutinga
(ARAÚJO, 2008, p. 250).
Os próximos dois engenhos a serem citados também pertenciam a uma mesma
família. Tratam-se do Engenho de Maxambomba e do Engenho da Cachoeira, que podem ser
vistos no mapa 2 localizados um ao lado um do outro. Pertenciam, desde 1673, à
proeminente família dos Correia Vasques, descendentes dos Conquistadores da
Guanabara quando da instalação da produção açucareira na região do Recôncavo, tendo
permanecido neste ramo familiar por mais de cem anos (RODRIGUES, 2015, p. 9). Em
1710, o mestre de campo Martim Correia Vasques faleceu em combate, por ocasião da
invasão francesa ao Rio de Janeiro, deixando quinze filhos, dos quais onze eram mulheres
e quatro homens, todos com direitos de receber partes daquele patrimônio. No entanto,
os Correia Vasques se utilizaram de diversas estratégias para evitar a fragmentação das
terras. Ao analisar o testamento de Martim Correia Vasques, Ana Paula Rodrigues
identificou que o patrimônio foi deixado para ser administrado pelos herdeiros homens: o
alcaide-mor Tomé Correia, Salvador Coreia de Sá, o doutor Manoel Correia Vasques e o
tenente Martinho Correia de Sá. Em relação às mulheres, duas filhas se casaram e as
demais foram enviadas para a carreira eclesiástica; de modo que somente em duas
ocasiões foram efetuados pagamentos de dotes, uma vez que a vida monástica das outras
filhas permitiria a preservação do patrimônio. A partir de 1730, vinte anos após a morte
do pai, os engenhos de Maxambomba e Cachoeira ficaram sob a administração do doutor
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Manoel Correia Vasques, embora seus irmãos ainda recebessem rendimentos deles
provenientes (ARAÚJO, 2008, p. 88).
O doutor não teve filhos com sua esposa Maria Paes de Almeida. Porém, os
teve em duas relações de concubinato. Na primeira, com Damásia Cordeira, gerou três
filhos: Manoel, José e Guiomar. Na segunda, com a preta mina Tereza Correia de Jesus,
gerou uma filha de nome Inês Correia de Jesus. Com sua morte, dois de seus filhos
naturais da primeira relação provaram ser seus descendentes, obtendo cartas de
legitimação que lhes permitiu herdar o sobrenome e os bens do doutor e serem
reconhecidos na região, agora como o capitão Manoel Correia Vasques (homônimo de
seu pai) e o tenente José Correia Vasques. Antes de sua morte, o doutor Manoel Correia
Vasques vendeu o engenho de Maxambomba a um sobrinho – Martim Correia de Sá –,
em 1740, e passou ao seu filho homônimo a administração do engenho da Cachoeira. No
final do século XVIII, Monsenhor Pizarro registrou que o Engenho de Maxambomba já
se encontrava na posse do padre José Vasques de Souza, herdeiro do segundo filho do
doutor Correia Vasques (o tenente José Correia Vasques), enquanto o engenho da
Cachoeira permanecia na posse do filho homônimo do doutor. Como afirmou Ana Paula
Rodrigues, para que as propriedades permanecessem em posse da família Correia
Vasques, diversas estratégias foram utilizadas: filhos enviados para o clero, casamentos
arranjados ou impedidos pela força e venda de terras para parentes. Perpetuação que se
deu com a evidente presença da mestiçagem (RODRIGUES, 2015 e 2013).
Seria no Engenho da Cachoeira que a família escolheu edificar uma capela com
a invocação de Nossa Senhora da Conceição, várias vezes reconstruída. Em 1731, ela foi
erguida pela segunda vez, por requerimento de Manoel Correa Vasques, pois a antiga
construção havia se deteriorado pela umidade. A autorização para tal foi obtida do bispo
Antônio de Guadalupe e a nova construção foi erguida junto à casa da família
proprietária, tendo permanecido em sua posse por muitas décadas. Tanto que em 1794,
momento da passagem de Pizarro, ela ainda era administrada pela família, tendo recebido
elogios do visitador pelo tratamento que o espaço sagrado recebia. Segundo este, ela era
“tratada com asseio e decência” (ARAÚJO, 2008, p. 245). Detalhe importante é que ela
possuía concessão para ter sepulturas. Até agora, a primeira de nossa relação. A questão
que se coloca e que ainda não conseguimos ter bases seguras para responder é sobre
quais seriam os critérios para uma capela ter direito a realizar sepultamentos e outra não,
já que não possuímos o breve de autorização desta capela. Um ensaio de resposta pode
ser o fato de se tratar de propriedade com grande número de escravos, talvez, conjugado
com a proeminência da família, além da eventual necessidade de espaço para
sepultamento de cativos e outros cadáveres diante da relativa distância da matriz, como
podemos verificar no mapa 2. Aliás, se voltarmos a este mapa, poderemos identificar que,
enquanto as terras do Engenho de Maxambomba eram atravessados pela “Estrada Geral
para Minas”, as do Engenho de Cachoeira estavam mais distantes deste local de
passagem. O que pode explicar, possivelmente, uma eventual opção da família por
manter a capela no engenho mais preservado do trânsito das pessoas, mas ao mesmo
tempo com disponibilidade de fazer sepulturas, exatamente pelo fato de as terras da
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família serem constantemente visitadas, abrigando hóspedes em trânsito. Mas estas são
apenas hipóteses que ainda merecem ser melhor investigadas.
Outro exemplo de engenho que permaneceu por quase todo o século XVIII em
propriedade de uma mesma família foi o Engenho da Posse. Sua fundação aconteceu no
início do setecentos por obra do casal João de Veras e Dona Ana Maria Nascente, que
deu início ao processo de estabelecimento da primeira capela da propriedade, concedida
por um breve apostólico de 1733, que possuía exigências parecidas com as mencionadas
no caso da capela do Engenho da Posse, citado anteriormente, e que não repetiremos
aqui por limites de espaço. Bastando citar que o pedido foi avalizado por testemunhas
igualmente pertencentes à elite local, que comprovaram viver o casal segundo a “lei da
nobreza”, assim como bem cuidarem do espaço sagrado, paramentá-lo com objetos e
alfaias e mantê-lo “livre dos usos domésticos” Um dado complementar foi a declaração
de uma das testemunhas, Manoel Pereira de Ramos, de que João de Veras Ferreira era
senhor de engenho e não possuía nenhum “trato mecânico”; ou seja, não exercia
atividades manuais (ACMRJ-BA, nº. 25, fl.02). O que, para a nobreza portuguesa e para a
elite colonial luso-brasileira, era um sinal positivo de distinção social. Afinal viver sem
realizar trabalhos mecânicos era viver sem realizar tarefas feitas por escravos, forros e
seus descendentes (GUEDES, 2006, p. 379-422). Esse oratório não foi citado por Pizarro
em 1794, sendo provável que não estivesse mais de pé no momento da passagem do
visitador ou tenha sido incorporado à outra capela, bem maior, que seria construída no
engenho, como veremos mais abaixo.
O auge da capacidade produtiva do Engenho da Posse ocorreu na geração que
administrou essa propriedade, a partir de 1764, composta pelo filho do casal, Francisco
de Veras Nascentes, juntamente com seu cunhado e sócio, Manoel Alves da Silva. Nesse
período, o engenho possuía 120 escravos, produzia açúcar, alimentos e extraía grande
quantidade de madeira. (RODRIGUES, 2017, p. 151). Trinta anos depois, quando da
visitação de Pizarro, a propriedade se encontrava nas mãos de uma nova geração da
família, sendo administrado por Francisca Casemira Xavier de Vera, filha do falecido
Francisco de Veras Nascentes e esposa de Bento Luiz de Oliveira Braga. Com essa união,
o patrimônio da família cresceu consideravelmente, uma vez que este era dono do
Engenho de Nazareth, em Irajá, e depois de seu casamento com Francisca Casemira
passou a comandar o da Posse, além de construir mais a engenhoca de Caioaba em terras
de seu sogro. A família também possuía mais três sítios em Jacutinga, uma olaria em
Iguaçu e duas fazendas produtoras na freguesia de Sacra Família (ARAÚJO, 2008, p. 93-
95 e 2017, p. 151).
Quando Pizarro passou por aquelas terras, fez menção a uma capela sob
invocação de Nossa Senhora da Madre de Deus, que teria sido ereta pelo Capitão
Francisco de Veras Nascentes e seu cunhado Manuel Alvares da Silva, provavelmente, em
de 1767, mediante autorização do bispo Antônio do Desterro. O visitador elogiou a
capela afirmando que a havia encontrado com “gosto e asseio” e que seu capelão era o
Reverendo José Alvares, natural do Arcebispado de Braga, de 39 anos, ordenado neste
mesmo arcebispado em 1784. Morava na freguesia de Jacutinga desde 1792 e tinha
faculdades de usar suas ordens e ser confessor. Segundo o visitador, o capelão era
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“moralista”, possuía “bons costumes” e vivia “de suas ordens e suas lavouras”, servindo
muito a capela (ARAÚJO, 2008, p. 250).
Os próximos engenhos a serem citados possuíam como características o fato de
terem sofrido mudanças de proprietários, não permanecendo na posse de um mesmo
ramo familiar. Iniciaremos pelo Engenho de Nossa Senhora da Conceição de Sarapuí, que
abrigara a antiga igreja matriz da freguesia homônima que havia sido extinta, em 1736,
por receber poucas doações dos paroquianos e nenhuma da Fazenda Real. Em virtude
disso, foi incorporada à paróquia de Jacutinga como capela, apesar de ter sido reduzida à
ruínas até a propriedade ser adquirida por Francisco Antunes de Lima, em 1757. No
breve apostólico por meio do qual obteve a autorização para o reerguimento da capela,
Francisco justificara que precisava participar da celebração de missas por padecer de
grave enfermidade que o levava a colocar sangue pela boca e estar, por isso, impedido de
apanhar sol e de se locomover até a matriz de Jacutinga. Também argumentou que a
grande distância de uma légua e meia até a Matriz dificultava que seus vizinhos e escravos
participassem da missa. Problemas que, segundo ele, seriam revolvidos com a autorização
para que fossem celebradas missas na capela de Nossa Senhora da Conceição, tendo ele
apresentado uma detalhada lista de todos os objetos e alfaias que continha aquele espaço
sagrado para a realização de tal ritual (ACMRJ-BA, n°. 158, fl.3-4).
Duas décadas depois, as terras mudariam novamente de mãos e, segundo os
relatórios do Marquês do Lavradio, de 1769-1779, o engenho já pertencia a Inácio Gomes
e seus herdeiros, os quais se dedicavam ao cultivo de mandioca (ESTATÍSTICAS, 1913,
p. 328). Nesta nova administração das terras, a capela voltaria a decair. No final do
século, a propriedade passou para novas mãos, sendo adquirida pelo capitão João Soares
de Bulhões (ARAÚJO, 2008, p. 250), natural de São João Del Rei que se transferiu para o
Recôncavo da Guanabara no século XVIII. O que indica que estas terras não foram
daquelas mantidas por várias gerações dentro de uma mesma família, embora o novo
morador tenha buscado criar relações com uma das famílias mais tradicionais da região,
ao se casar com Dona Maria Maciel, filha de Apolinário Maciel da Costa, dono do
Engenho do Brejo, acima analisado. Possivelmente devido a esta sua inserção na
comunidade, buscando ligações com a elite local, o engenho ganharia mais estabilidade
sob o novo comando. Além desta propriedade em Jacutinga, Bulhões se tornou dono do
Engenho de Caioaba, na freguesia de Inhomorim. Em suas terras produziam-se açúcar,
mandioca e aguardente. Quando se casou, alcançou o topo da hierarquia social de
Jacutinga, deixando de ser considerado “de fora”, buscando se dedicar ao engenho e
fazendo com que sua produção aumentasse consideravelmente. Foi neste sentido que no
início do século XIX a propriedade possuía 128 escravos, 50 cabeças de gado, 30 burros,
ampliando também suas benfeitorias com a construção de olaria, carpintaria, casas,
estrebaria e uma tenda de ferraria. Sua posição social lhe rendeu os títulos de capitão da
nova companhia de Jacutinga e cavaleiro professo da Ordem de Cristo (RODRIGUES,
2013, p. 99). Outra ação significativa que tomou foi a reabertura da capela de Nossa
Senhora de Sarapuí, que havia sido fechada por morte do antigo proprietário.
Se o engenho parece ter adquirido mais estabilidade em finais do século XVIII
sob a administração do capitão João Soares de Bulhões, quando Pizarro chegou a
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Jacutinga, a capela parecia não manter as mesmas condições da época de sua reconstrução
cerca de três décadas antes da chegada do visitador. Apesar disso, o capitão Bulhões
solicitou permissão ao monsenhor para fazer uso dela, mas o representante da hierarquia
eclesiástica do bispado não se furtou a registrar as “graves irregularidades” que
identificava no templo e o fato de João Soares Bulhões não possuir a documentação
necessária para a sua manutenção. Pizarro determinou que o capitão poderia fazer uso da
mesma por seis meses, mas se nesse período de tempo não fossem providenciados os
documentos legais junto à Câmara Eclesiástica, a capela seria interditada (ARAÚJO, 2008,
p. 246). Infelizmente, não temos notícias sobre o desenrolar deste processo.
A quinta capela a ser citada é a que existia no Engenho do Pantanal, de Antônio
Ferreira Quintanilha, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição do Pantanal,
construída em 1754, mediante autorização do bispo Antônio do Desterro. Em 1766, as
terras foram vendidas e no fim do século XVIII já pertencia a João Teixeira Malheiros.
Apesar desta troca de proprietários, Pizarro encontrou a capela em bom estado no ano de
1794 e registrou que possuía autorização de uso de pia batismal, mas não possuía
permissão para uso de sepulturas. Porém, o livro de óbitos de Jacutinga indica que a
mesma recebeu um sepultamento, como veremos no próximo item, sugerindo que o
engenho no qual a referida capela estava construída pode ter passado para a posse de uma
nova família, no lugar dos Teixeira Malheiros, que obteria autorização para realizar
sepultamentos. Segundo Live França (2013, p. 45), a capela do Pantanal apresentou
intensa atividade no que se refere aos sacramentos de batizados e confirmação,
superando a própria igreja matriz, confirmando 63 pessoas, contra somente 50 crismados
pela matriz.
A próxima propriedade a ser citada é a fazenda de Antonio de Pina, no lugar
chamado São José do Rato, situada bem distante das demais, a 3 léguas de distância, na
direção do rio Iguaçu. Antônio de Pina era filho do negociante Brás de Pina, rico
proprietário de terras do recôncavo e do Rio de Janeiro que possuía o monopólio da
pesca de baleia no litoral paulista. Ao fundar o Engenho do Rato, Antônio de Pina estava
promovendo o crescimento do patrimônio da família Pina. Além desta propriedade,
herdou a sesmaria de Madureira, comprou outras terras em Jacutinga e acumulou títulos
militares. Em 1803, foi vereador do senado da Câmara do Rio de Janeiro e, em 1806, foi
reformado com a patente de tenente-coronel, recebendo o título de cavaleiro da Ordem
de Cristo, com remuneração de 12$000 réis (RODRIGUES, 2013, p. 109). Com isso,
podemos afirmar que o poder da família Pina estava muito além das terras que possuía.
Em uma delas, a Fazenda Caioaba, foi construído um oratório. Não há descrição detalhada
do local, a não ser que tinha permissão para realizar missas. Um dado significativo dos
registros de óbito analisados foi a menção de um sepultamento no “cemitério da Fazenda
do Capitão Antonio de Pina” (ACDNI, 1785-1809), cuja exata localização – em termos
de engenho – não conseguimos ainda identificar.
Por fim, cabe mencionar uma capela não vinculada a um engenho familiar, mas
ao Mosteiro de São Bento. A presença de monges beneditinos em Jacutinga remonta ao
início da colonização da Guanabara, na segunda metade do século XVI, quando se
instalaram na região ao redor do rio Iguaçu. Live França (2013, p. 19-20) chama atenção
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Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX, 43-77 /
para o fato de que este foi o primeiro território ocupado pelos beneditinos na América
portuguesa. Com a consolidação da colonização das terras do recôncavo, os monges
acabaram por se associar à elite colonial que surgia nos fundos da Guanabara e passou a
doar terras aos monges para que estes permanecessem na região (SOUZA, 2012, p. 72).
Do século XVII em diante, em virtude das doações recebidas, passaram a compor parte
significativa da elite colonial, tornando-se “senhores de engenho” e de escravos.
Em seu interior, estava instalada a Capela de Nossa Senhora do Rosário que, no
momento da visita de Pizarro, se encontrava asseada e bem paramentada, possuía pia
batismal da qual fazia uso com autorização do reverendo pároco, bem como podia ter
sepulturas. A análise do livro de registro de óbitos de livres e libertos da freguesia de
Jacutinga revela que entre 1788 e 1806, dezessete pessoas foram sepultadas nas covas
desta capela, que parecia ser um ponto de referência sagrada para os moradores da
paróquia. Vejamos melhor como se dava a distribuição dos locais de sepultamento na
freguesia e o seu uso por parte dos paroquianos, conforme sua posição e distinção social.
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algum motivo ainda não identificado, Francisco tenha obtido uma sepultura perpétua
para si e seus descendentes em uma das covas da igreja Matriz. A justificativa para tal
cogitação é que, caso houvesse uma sepultura perpétua na propriedade que entrou em
decadência e foi vendida, não faria sentido que a viúva e os descendentes do sargento
mor continuassem a ser inumados já desde 1786 em uma sepultura no interior de uma
propriedade que não era mais da família.
A referência ao tipo de sepultura existente na matriz identificado como “cova
dos vigários” sinaliza para mais uma hierarquização espacial no interior daquele templo.
Destinada aos párocos que serviram a freguesia, o único registro presente no livro
pesquisado foi o relativo ao clérigo Manoel Pinto de Pinho, sepultado em 1792, com 80
anos, identificado como sendo branco e livre, tendo sua alma encomendada pelo padre
Domingos da Rosa Andrade e recebido todos os sacramentos (ACDNI, 1785-1809).
Segundo Pizarro, ele foi o 17º pároco de Jacutinga antecedendo aquele que recebeu o
visitador, o reverendo Joaquim José de Oliveira (ARAÚJO, 2008, p. 248). Após essa
identificação dos principais tipos de sepulturas encontrados nos assentamentos de óbitos
pesquisados, passaremos a analisar aspectos da dinâmica social dos sepultamentos na
freguesia. Para tal, dividiremos a análise segundo os critérios de cor e condição jurídica
que, ao nosso ver, se constituíam em significativos exemplos de hierarquização social por
ocasião da morte, com reflexos sobre os locais de sepultura.
A complexidade social na América portuguesa apresentava estreitas relações
com as características do Antigo Regime europeu que ao ser transplantado para a
América acabou criando uma sociedade de características únicas, principalmente devido
ao significativo papel da escravidão africana aqui presente (FRAGOSO e GOUVEIA,
2010, p. 14-15). O caráter escravista da América lusa não se pautava somente pelo
predomínio da escravidão como forma de trabalho, mas pelo impacto que esta exerceria
sobre as distinções jurídicas entre homens livres e escravizados, ou ainda, entre os que
nasceram livres e os que alcançavam a alforria; de modo que a relação entre escravidão e
liberdade influenciaria as múltiplas hierarquias que seriam criadas nos diferentes
segmentos sociais (SCHWARTZ, 1988, p. 209).
A recriação das hierarquias conferiam caráter dinâmico às distinções criadas por
aquela sociedade, na qual a mobilidade se fazia presente e se expressava na mudança de
cor ou na sua omissão segundo a posição dos indivíduos em determinado contexto social,
de modo que “as cores não petrificam posições sociais” (GUEDES, 2010, p.103).
Contudo, este dinamismo social não pode ser pensado como um sistema livre de
hierarquias, posto que estas, além de permearem os aspectos socioeconômicos, também
se fizeram adentrava na vivência religiosa do catolicismo em suas várias dimensões, como
afirmam Adalgisa Campos e Renato Franco (CAMPOS e FRANCO, 2004b, p. 4).
Segundo Milra Bravo, esta dinâmica das distinções também esteve presente nas posturas
frente à morte, na américa portuguesa, posto que os espaços para sepultamento não
escaparam da dinâmica dos privilégios sociais que criavam hierarquias e exclusões. A
própria Igreja foi capaz de construir argumentos que legitimaram e naturalizaram a ordem
social, mantendo as hierarquias existentes entre os grupos, através de um poder simbólico
capaz de instaurar um consenso sobre a ordem do mundo (CAMPOS e FRANCO,
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2004b, p. 4-9; BRAVO, 2014, p. 102-103). Seguindo essa linha de raciocínio, nem todos
os que morriam poderiam ser colocados em sepulturas eclesiásticas. Os excluídos da eram
os “judeus, heréticos, cismáticos, apóstatas, blasfemos, suicidas, duelistas, usurários,
ladrões de bens da Igreja, excomungados, religiosos enriquecidos (se tinham profissão de
pobreza), aos refratários à confissão e à extrema-unção, infiéis, crianças e adultos pagãos”
(REIS, 1996, p. 174).
Em Jacutinga, existia uma bem definida hierarquia entre os locais de inumação,
como expressa na divisão entre as covas do interior do templo e as do adro, situadas do
lado de fora a descoberto. Nesta diferenciação espacial, o local de maior prestígio eram as
sepulturas localizadas próximas ao altar-mor e, consequentemente, as mais caras;
enquanto o adro era um local com menos prestígio que, por estar bem distante do altar-
mor, apresentava simbolicamente na escatologia católica menor eficácia para a salvação
das almas dos que ali eram sepultados. Segundo João José Reis (1996, p.176), a crença de
que ser enterrado próximo aos altares era uma garantia maior para o morto representava
uma herança medieval associada à ideia de que locais próximos aos santos e mártires da
comunidade cristã favoreceriam os espíritos no momento do Juízo Final. Adalgisa
Campos (2004a) confirma essa ideia ao dizer que, na sociedade colonial, o homem do
barroco possuía uma concepção social voltada para a manutenção dos privilégios.
Podemos perceber que, em uma sociedade marcada por esse tipo de diferenciação, seria
impossível que a morte fosse algo que nivelasse todos os homens a um mesmo patamar.
Morrer em uma sociedade com tais características implicava levar para o além as
hierarquias existentes entre os vivos. Por isso que, segundo João José Reis (1996, p. 190),
a localização da sepultura era um aspecto muito importante na construção da identidade
do morto.
A geografia da boa morte não contribuía em nada para que o morrer fosse um
meio de se alcançar a igualdade social. Na verdade, as paróquias da América portuguesa
estendiam as distinções de cor tão peculiares em sociedades escravistas aos mortos
(BRAVO, 2014, p. 28-9). O que nos permite afirmar que, embora a salvação fosse um
objetivo comum a todos os homens, parecia ser mais acessível para determinados grupos
sociais. Seria mais fácil para ricos em detrimento dos pobres, pois aqueles possuíam
condições de pagar por locais de sepulturas próximos aos altares e por sufrágios e outros
serviços fúnebres em quantidades e valores que variavam segundo suas posses e pressa
em purgar os pecados que acreditavam ter em vida (RODRIGUES 2005, cap. 1- 2). Isso
pode ser percebido nos preços que as covas possuíam em Jacutinga. Enquanto se cobrava
1$000 pelas sepulturas da porta principal, que seria o local mais próximo ao exterior, as
que adentrassem o templo em direção ao altar-mor eram “taxadas” progressivamente em
2$000 e 4$000 réis; sendo este último valor correspondente às covas mais próximas ao
altar-mor (ARAÚJO, 2008, p. 288). A título de comparação, na vizinha paróquia de
Nossa Senhora da Piedade de Iguaçu, uma sepultura para adulto no altar-mor chegaria a
custar 12$800 réis (ARAÚJO, 2008, p. 256). Deste modo, se levarmos em conta que
covas situadas próximas ou no próprio altar-mor eram as mais caras – mesmo que
possuíssem variações em cada paróquia – e que esse espaço era considerado o de maior
valor soteriológico na hierarquia das sepulturas, justamente por terem um poder salvífico
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mais elevado, teremos que as covas mais baratas eram o destino daqueles que possuíam
condição material inferior na lógica da hierarquizada sociedade de Antigo Regime na qual
predominava a desigualdade. Talvez, por isso, mesmo aqueles que por algum outro
motivo não puderam estar dentro dos templos fosse significativo estar pelo menos às
suas portas, ainda que pelo lado de fora, como se estivessem para adentrar a igreja.
Situação que verificamos no assentamento da preta forra Jerônima Gomes de Jesus,
viúva, que foi sepultada “no cemitério desta freguesia junto à porta principal”, em
06/04/1793, tendo recebido todos os sacramentos, sido encomendada pelo pároco e
amortalhada em hábito de São Francisco. Ou seja, apesar de se encontrar no adro ou
cemitério, estava próxima à entrada principal do templo. Este registro é bastante
representativo do lugar social ocupado por aquela ex-escrava que, mais do que se
encontrar do lado de fora da matriz, estava a alguns passos do seu interior, marcando a
sua diferenciação em relação aos que ainda eram escravos, ou mesmo forros e livres
pobres inumados no adro, mais distantes da entrada. Entenda-se que, aqui, não se trata
daquela sepultura mencionada por Pizarro que estava do lado de dentro, junto à porta
principal, e que tinha um custo menor que as covas localizadas na direção do altar-mor.
Ao contrário, era uma cova do lado de fora do templo, ainda que contíguo à entrada
principal.
A divisão hierárquica dos locais de inumação naquela sociedade, entretanto, não
acontecia somente por fatores econômicos, embora estes fossem significativos. Outro
importante fator de distinção frente à morte era a questão étnica. Em uma sociedade com
características de Antigo Regime, a desigualdade era um princípio que guardava em si
múltiplas hierarquias, sendo a cor uma delas (GUEDES, 2009, p. 492). Com a expansão
agrária, criavam-se espaços de convivência entre portugueses, africanos, imigrantes livres
e libertos de outras áreas da América portuguesa, numa situação que contribuía para a
formação de uma sociedade marcada pela multiplicidade de cores que se dividiam de
forma hierárquica. Entretanto, como afirma Guedes, as posições sociais não devem ser
congeladas pelas cores, uma vez que a hierarquia e o lugar social manifestos na dinâmica
das cores eram fluídas e dependiam diretamente de circunstâncias sociais (Idem, p. 508).
Nesse contexto, um mesmo indivíduo podia aparecer como pardo em uma fonte e como
branco em outra, ao mesmo tempo em que a presença da escravidão acabava por associar
indivíduos livres à cor branca, os escravos à cor preta e alguns libertos (ou cativos com
posições hierárquicas dentro da escravaria) à cor parda.
Em Jacutinga, como podemos ver na Tabela 2, as diferentes “cores” que
formavam a sociedade dos vivos estiveram presentes nos espaços dos mortos, embora
sejam bem poucos os assentamentos que explicitem esta informação. Encontramos a
referência a 4 (0,3%) brancos, 4 (0,3%) cabras, 21 (2,0%) índios, 123 (11,4%) pardos e 63
(5,8%) “pretos”. Para além desses, dados é significativo que 870 (80,2%) mortos não
tivessem mencionados no assentamento as devidas informações sobre a cor com a qual
foram identificados no final de sua vida. O que poderia representar essa ausência de
informações? Na comparação entre os destinados às covas da fábrica e ao adro, podemos
verificar que os maiores percentuais de pardos e “livres” foram inumados nas primeiras,
enquanto índios, cabras e pretos aparecem sepultados no segundo. Se nos ativermos ao
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campo “sem referência”, vemos que justamente nas covas da fábrica, entendidas aqui
com espaços de maior prestígio que o adro, aparece o maior número de ausência de
referência à cor (55,7%), enquanto no adro estiveram os cadáveres com menor ausência
de referência (16,2%). Tais aspecto podem sinalizar a importância que aquela sociedade
dava para a marcação e qualificação da diferença, em especial dos pertencentes aos
segmentos considerados mais inferiores na escala social se seguirmos a lógica de uma
sociedade de Antigo Regime, marcada pela desigualdade.
COR SEM
BRANCO CABRA ÍNDIO PARDO PRETO TOTAL
REF.
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
SEPULTURA
Cova de Fábrica - - - - 2 9,5 56 45,5 20 31,7 484 55,7 562 51,8
Adro 4 100 2 50,0 19 90,5 43 34,9 34 54,0 141 16,2 243 22,4
Irm. Ss. Sacramento - - - - - - - - 1 1,6 90 10,3 91 8,5
Irm. S. Miguel e
- - - - - - 7 5,8 1 1,6 66 7,6 74 6,8
Almas
Irm. do Rosário - - 2 50,0 - - 10 8,1 5 8,0 40 4,6 57 5,2
Irm. N. S. do
- - - - - - 3 2,5 - - 9 1,0 12 1,1
Socorro
Cova dos Vigários - - - - - - - - - - 1 0,1 1 0,1
Sep. Perp. Fco.
- - - - - - - - - - 3 0,3 3 0,3
Castillo
Mosteiro de S.
- - - - - - 2 1,6 - - 15 1,8 17 1,6
Bento
Capela particular - - - - - - - - 2 3,1 1 0,1 3 0,3
Fora da Freguesia - - - - - - 1 0,8 - - 7 0,8 8 0,7
Sem identificação - - - - - - 1 0,8 - - 13 1,5 14 1,3
TOTAL 4 100 4 100 21 100 123 100 63 100 870 100 1085 100
Fonte: ACDNI: Assentos paroquiais de óbito da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga (1785-
1809).
consta que “parecia ser branco” (ACDNI, 1785-1809). Ou seja, frente a inexistência de
outros elementos que lhe identificasse, a cor por si só indicou uma diferenciação. Mas
nem por isso deixou de ser sepultado no adro, pois não houve quem pagasse por uma
sepultura no interior do templo a um desconhecido, mesmo que “parecesse” ser branco.
Aspecto que demonstra a complexidade das relações sociais naquela sociedade escravista
que apresentava uma série de distinções e critérios para se obter sepultura no interior do
espaço mais sagrado da paróquia, por estar na proximidade dos santos e se beneficiar das
orações daqueles que por suas sepulturas caminhassem ao frequentar a igreja matriz
cotidianamente.
Para além disso, o caso acima demonstra que a cor na sociedade colonial podia,
muitas vezes, ser uma questão de percepção de quem observava o outro e não um
modelo rígido a ser percebido por todos coletivamente (GUEDES, 2008, p. 99). No caso
do anônimo sepultado no adro da matriz no ano de 1793, não apareceu quem oferecesse
informações sobre ele para o assentamento paroquial do óbito. Em seu óbito consta que
havia morrido em Meriti e seu cadáver fora levado para Jacutinga e deixado em
desamparo, exposto na casa de Félix Souza Costa (ACDNI, 1785-1809). Com isso,
pretendemos demonstrar que nesses quatro exemplos, sendo o mais extremo o último,
tais indivíduos eram reconhecidos como brancos, pois, possivelmente, essa fosse a única
coisa que os destacava frente a sociedade, sendo possivelmente pobres ou remediados e,
por isso, sepultados no espaço menos prestigiado da paróquia mas cuja cova era gratuita.
Seguindo a mesma abordagem utilizada para entender o silêncio dos assentos
paroquiais sobre a classificação dos mortos em relação à cor e à condição social que
possuíam em vida, podemos conjecturar que se o ato de registrar a condição jurídica não
se fazia necessário no caso de indivíduos livres, pois essa era uma característica
publicamente reconhecida pela comunidade local, o mesmo aconteceria em relação à
identificação da cor de quem havia morrido. Isso porque não seria importante registrar
indivíduos que fossem notoriamente brancos, da mesma forma que os que não fossem
notadamente negros, índios ou pardos. Entende-se, assim, o silêncio de algumas
informações como possível sinal de distinção, fosse para ascensão ou decadência social.
Não podemos afirmar com toda a segurança que os indivíduos que não tiveram a cor
anotada nos registros de óbito fossem brancos. Porém, tal como Milra Bravo (2014, p.
30), o que pretendemos sugerir é que no caso de mortos tidos como brancos não parecia
ter sido necessário fazer uma distinção tão evidente à cor do cadáver, como o era no caso
de pessoas de outras cores. Da mesma forma, nos chama a atenção a grande quantidade
de pessoas que foram enterradas sem que fossem anotadas informações relacionadas à
condição jurídica em vida. Em uma sociedade escravista, questões referentes à coloração
da pele, origem étnica e/ou condição jurídica seriam definidoras de uma hierarquia social
presente no cotidiano da sociedade colonial. Por isso, era de se esperar que tais
informações fossem ressaltadas nos assentamentos de óbito, mas são pouquíssimas as
indicadas: 2 (0,1%) indivíduos escravos, 187 (17,4%) forros e 895 (82,5%) sem referência
à condição jurídica. Ainda que o livro de óbitos consultado fosse destinado
especificamente para o assentamento de cadáveres de livres e libertos, nos parece que a
diferenciação entre esses dois segmentos sociais deveriam ser indicadas, se seguirmos os
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SEPULTURA Nº % Nº % Nº %
Cova de Fábrica 70 37,3% 492 54,9% 562 51,8%
Adro 84 44,8% 157 17,5% 243 22,4%
Irm. Ss. Sacramento 1 0,5% 90 10,1% 91 8,4%
Irm. São Miguel e Almas 7 3,7% 67 7,4% 74 6,8%
Irm. do Rosário 20 10,7% 37 4,2% 57 5,2%
Irm. N. Senhora do Socorro 2 1,0% 10 1,1% 12 1,1%
Mosteiro de S. Bento 2 1,0% 15 1,7% 17 1,6%
Cova dos Vigários - - 1 0,1% 1 0,1%
Sepultura perpétua - - 3 0,3% 3 0,3%
Capela Particular 1 0,5% 2 0,2% 6 0,6%
Fora da Freguesia 1 0,5% 7 0,8% 8 0,7%
Sem Referência - - 14 1,6% 14 1,3%
TOTAL 187 100% 895 100% 1085 100%
FONTE: ACDNI: Assentos paroquiais de óbito da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga (1785-
1809).
Esse mesmo “silêncio” foi identificado por Milra Bravo ao estudar a hierarquia
social da morte na freguesia da Antiga Sé, na cidade do Rio de Janeiro. Sua abordagem
para lidar com essa ausência de informações se baseou na seguinte premissa: em uma
sociedade colonial e escravista, seria mais importante destacar o passado escravista dos
mortos do que a condição dos indivíduos livres. Ou seja, na morte, cativos e forros eram
identificados pela ligação que possuíam com a escravidão – fosse no presente ou no
passado –, mas não seria necessário diferenciar os livres, uma vez que, enquanto tal,
seriam sempre assim reconhecidos. Dessa forma, ela passou a considerar todos os
indivíduos sem menção à condição social no óbito como sendo “livres” (BRAVO, 2014,
p. 29). Aspecto a se destacar é que o silêncio por ela identificado estava presente em
livros de registros de óbito de uma freguesia que não apresentava separação por condição
jurídica, apresentando em um único volume as três condições, uma vez que não havia
livros específicos para escravos, como no caso de Santo Antonio de Jacutinga.
Seguiremos este mesmo método aplicado por Milra Bravo em nossa amostragem e é
somente por isso que na tabela 3 é possível identificar a coluna referente aos livres com
dados, termo que está sendo utilizado entre aspas pelos motivos aqui apresentados.
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estariam mais inseridos na sociedade, por terem nascido na América; sem contar a
associação em geral feita entre africanos como pretos. Este aspecto pode ser
compreendido ao analisarmos o caso de Isabel, preta forra de origem mina, igualmente
sepultada no adro. Se não escapou deste espaço funerário, seus parentes e amigos
buscaram agregar outros rituais, como a busca dos últimos sacramentos (penitência,
eucaristia e extrema-unção) quando ainda moribunda e a encomendação da alma pelo
pároco, após o passamento. Embora o registro não tenha mencionada como foi
amortalhada e tenha sido inumada em um lugar desprestigiado, podemos observar que
Isabel cumpriu etapas importantes no processo de preparação para a “boa morte”,
considerada como aquela permeada de rituais fúnebres preconizados pela sermonística
católica pregada cotidianamente pelos clérigos aos fiéis, desde a Baixa Idade Média
(SOBRAL, 2014; SANTOS, 2016), com vistas à obtenção da salvação da alma no além-
túmulo. Uma das garantias para o “bem morrer” era a preparação para o passamento com
a devida antecedência que permitisse agregar a maior parte dos ritos, tais como: a redação
do testamento, a administração dos três sacramentos, o uso de mortalha de santos, a
encomendação da alma por um clérigo, a realização de missas de corpo presente e outras
em sufrágios pela alma do morto e das de outrem, o sepultamento em sagrado, a
distribuição de legados pios, dentre outros elementos escatológicos determinados pelo
fiel quando sentisse a morte iminente (ARIÈS, 1989; VOVELLE, 1978; REIS, 1991;
RODRIGUES, 2005). Por trás destas concepções, quanto mais fortuna se tivesse para
empregar na realização dos funerais – que Michel Vovelle chamou de barroco e que Reis
chamou de “festa” –, mais garantias se acreditava ter na maior intercessão possível pela
alma daquele que partia para o além. Se não fosse possível conjugar todos os elementos,
ao menos alguns eram buscados, mesmo para os indivíduos remediados que, embora
tivessem o adro como destino, procuravam incluir alguns dos elementos rituais aqui
citados, como se percebe no caso dos pretos forros Isabel e Manuel, por exemplo. Este
último, apesar de ser inumado no adro da matriz de Jacutinga, recebeu todos os
sacramentos, foi amortalhado em pano branco e teve sua alma encomendada. Com isso,
queremos dizer que o fato de essas pessoas terem como local de repouso final um espaço
conhecido pelo seu caráter de inferioridade na hierarquia social e soteriológica da época,
não impediu que utilizassem de outras estratégias no sentido de encontrar formas de
católicas “bem morrer”.
Apesar de destinado ao registros dos óbitos de livres e libertos, o livro
consultado menciona os registros de dois escravos: Manoel, que foi sepultado no adro da
matriz em 05 de janeiro de 1803, tendo recebido todos os sacramentos pelas mãos do
vigário Mariano José de Mendonça; e Dionísia, que morreu aos cinquenta anos e foi
sepultada também no adro em 14 de agosto de 1808, envolta em uma mortalha branca,
mas sem receber os sacramentos fúnebres porque morreu repentinamente (ACDNI,
1785-1809). O que faria com que as mortes de dois escravos fossem registradas em um
livro reservado aos livres? Em uma sociedade reconhecidamente escravista era de se
esperar que isso não fosse possível. Num primeiro momento, poderíamos pensar em
eventual descuido dos padres responsáveis por esses assentos. Porém, é possível que
outros motivos tenham contribuído para que isso acontecesse.
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Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX, 43-77 /
elite local. Nestas covas do Santíssimo Sacramento haviam sido sepultados membros das
“melhores” famílias da região, como Gabriel Correia Vasques, em 16/07/1801,
amortalhado no caro hábito de São Francisco, que precisava ser adquirido no centro da
cidade onde estava localizado o convento de Santo Antônio, no qual tais mortalhas eram
produzidas e vendidas por cerca de 6$000 réis; ou seja, mais caro do que a sepultura que
custava mais na matriz de Jacutinga. Dos 74 corpos depositados em covas da confraria de
São Miguel e Almas, 7 eram pardos, 1 negro e 66 brancos. Na confraria de Nossa
Senhora do Socorro dos Homens Pardos, os registros revelam a presença de 3 cadáveres
de pardos e 9 sem identificação. Por último, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário
sepultou 57 confrades: 2 cabras, 5 pretos, 10 pardos, sendo que 40 mortos aparecem sem
identificação quanto a cor. Seguindo a mesma lógica de antes, mas a invertendo-a pelo
lado dos pretos, acreditamos que muito possivelmente se trataram de cadáveres de “não
brancos”, uma vez que estaria subentendido que se tratava de irmandade de pretos
(ACDNI,1785-1809).
As irmandades do Santíssimo Sacramento e de São Miguel e Almas, que em
Jacutinga sepultaram majoritariamente livres e brancos, eram confrarias que
tradicionalmente abrigavam membros da elite. Anderson de Oliveira (2011) chama a
atenção para a forte ligação entre os membros do santíssimo e o sustento do culto nas
paróquias. Segundo ele, as exigências das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia em
relação à guarda da hóstia sagrada demandavam gastos consideráveis e, muitas vezes,
eram os irmãos do santíssimo que arcavam com esses custos. Isso permitiu que os
“homens bons” das localidades que assumiam essas funções, por meio destas
irmandades, passassem a reivindicar a prioridade nas festas e procissões. O que pode ter
se refletido no acesso às suas covas. Nesse sentido, compreende-se que uma irmandade
da elite tenha enterrado dentro da matriz de Jacutinga quase três vezes mais que a
irmandade de Pretos do Rosário. Mesmo que não devamos olvidar que, ainda assim, estes
eram “pretos” que se diferenciavam dos demais – sepultados no adro – por poderem
contar com o auxílio confraternal diante da morte, certamente a maioria dos identificados
nos assentamentos como pretos da paróquia foi sepultada no adro.
O mesmo pode ser observado em relação à Irmandade de São Miguel e Almas.
Segundo Adalgisa Campos (2013), o culto às Almas do Purgatório era muito difundido
no imaginário cristão. A institucionalização dessa devoção acabou por criar as irmandades
de São Miguel e Almas, cujo santo principal era considerado o protetor das almas dos
“justos” (DILLMANN, 2015). Sobre a composição social dessas confrarias, embora
fossem populares na questão da devoção e das obras de caridade, seus membros eram
brancos da elite, tal como nas irmandades de Misericórdia (CAMPOS, 2013 e
DILLMANN, 2016). É interessante perceber que uma irmandade seletiva em relação às
regras de ingresso, mas popular na questão devocional, tenha sido a segunda no número
de sepultamentos de Jacutinga, ao mesmo tempo em que permitiu que algumas pessoas
de “cor” tenham encontrado um local de repouso final para seus cadáveres.
À guisa de Conclusão...
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Setembro/Dezembro de 2017 - ISSN 1983-2850
/ Sepulturas e hierarquias sociais numa paróquia rural do Rio de Janeiro:
Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX, 43-77 /
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Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX, 43-77 /
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/ Sepulturas e hierarquias sociais numa paróquia rural do Rio de Janeiro:
Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX, 43-77 /
Esses três casos demonstram que nem todos os potentados de Jacutinga foram
sepultados na sua igreja matriz. Vários podem ter sido os motivos para tal: terem
eventualmente morrido enquanto estavam fora da paróquia de origem, por estarem
doentes e se curando em casa de outrem ou nas suas casas de morada na cidade, por
estarem de passagem pela cidade a negócios ou, ainda, por terem buscado maior
intercessão divina e/ou maior distinção social frente ao morrer nas sepulturas dos
templos de importantes igrejas da cidade (fosse no da freguesia da Candelária, no de uma
ordem Terceira inexistente em Jacutinga ou outro motivo que por ora desconhecemos).
Certamente, estes são exemplos que demonstram a que ponto podiam chegar as
distinções e hierarquizações nas escolhas das sepulturas que abrigariam os cadáveres
daqueles que tinham parte de suas propriedades em Jacutinga.
Diferentemente de casos como estes, contudo, outro grupo da elite de Santo
Antonio de Jacutinga se manteve no espaço paroquial do recôncavo após a morte, mas
seguindo critérios particulares de escolha da sepultura que abrigaria seu cadáver no sono
que dormiria até o momento da Ressurreição para o Juízo Final. Como exemplo,
podemos citar os integrantes da família Correia Vasques, que possuíam um cemitério em
torno da sua capela no Engenho de Cachoeira, mas que não destinaram os cadáveres dos
seus mortos para lá. Gabriel Correia Vasques foi sepultado numa cova da Irmandade do
Santíssimo Sacramento em 16/07/1801. José Vasques de Brito, pardo forro, agregado na
fazenda da Cachoeira, foi sepultado numa cova da fábrica em 28/09/1790. Se a família
Correa Vasques era reconhecidamente poderosa proprietária de terras que possuía capelas
particulares, nos perguntamos por que então seus membros seriam sepultados na igreja
matriz? Podemos considerar que as sepulturas da matriz seriam espaços de maior
prestígio social e poder simbólico escolhidos pelas famílias dos homens bons que
buscavam “bem morrer” elegendo uma sepultura na própria freguesia, onde preferiram se
manter após a morte, aguardando pela salvação no fim dos tempos. Desta forma,
adaptavam para o post-mortem algumas das estratégias para se manter nas proximidades
daquelas propriedades que buscaram não fragmentar com o passar das gerações,
alcançando algumas delas um período de mais de um século. Talvez, para essa fração da
elite colonial, manter-se no Recôncavo da Guanabara com a distinção que lhes coubesse
na escolha dos funerais e da sepultura tenha sido mais importante como forma de
devoção e de expressão do seu poder entre os vizinhos paroquianos.
A prosperidade do recôncavo, em especial de Jacutinga, contribuiu para que
vários dos seus fregueses continuassem nas freguesias dos fundos da Guanabara, mas não
somente porque a produção de itens de abastecimento fosse um negócio lucrativo ou
porque aquele entroncamento no caminho para as minas gerais fosse um caminho novo
aberto de possibilidades. As análises aqui feitas nos levam a cogitar que, para além da
prosperidade material, fosse importante manter os laços já construídos com parentes e
amigos, não só vivos como já mortos. Ali permaneciam, mantendo-se próximo de seus
santos de devoção e, em especial, de seus antepassados e, quando mortos, desejavam ser
próximo a estes inumados. Talvez, isso explique a grande quantidade de sepulturas na
matriz, em comparação com os outros espaços igualmente sagrados nos quais poderiam
ser sepultados, como as capelas particulares e a dos beneditinos.
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/ Sepulturas e hierarquias sociais numa paróquia rural do Rio de Janeiro:
Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX, 43-77 /
Fontes Manuscritas
ARQUIVO DA CÚRIA DIOCESANA DE NOVA IGUAÇU (ACDNI).
Assentos paroquiais de óbito da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga (1785-1809).
Fontes Impressas
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