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O texto abaixo é uma tradução literal do artigo intitulado “¿Ecólogos o Ególogos?

Cuando las ideas

someten a los datos” de autoria de Alejandro G. Farji-Brener, o qual foi publicado na revista Ecología

Austral, volume 19, páginas 167 a 172, em agosto de 2009. A tradução foi realizada pelo Professor Marcos

Vinicius Meiado, da Universidade Federal de Sergipe, para utilização do texto como material didático nas aulas

da disciplina Metodologia de Pesquisa.

Ecólogos ou ególogos? Quando as ideias se submetem aos dados

ALEJANDRO G. FARJI-BRENER

RESUMO. Alguns ecólogos se apaixonam tanto por suas ideias que terminam manipulando as
informações para que os resultados se ajustem às suas predições. Neste trabalho, descrevo
algumas características destes pesquisadores (denominados “ególogos” porque vivem o
fracasso de suas hipóteses como uma derrota do seu ego) e detalho as formas pelas quais eles
tentam substituir os dados pelas suas ideias. A manipulação dos dados raros e a inquisição
estatística (torturar os dados até que eles confessem o que se deseja escutar) são alguns dos
procedimentos mais comuns. Para compreender melhor o funcionamento da natureza, nós
ecólogos deveríamos ser escravos dos dados e não das hipóteses que guiaram as coletas dos
dados.
[Palavra-chave: desenho experimental, ego acadêmico, manipulação estatística]

ABSTRACT. Ecologists or egologists? When the ideas enslave the data: Some ecologists
feel in love with its ideas and, as a result, they tend to manipulate the information to
artificially improve the fit between results and predictions. In this work I describe certain
characteristics of this researchers (denominated egologist because they suffer the rejection of
its ideas as a defeat of its ego), and detail how they enslave the data by their ideas. The
manipulation of outliers’ data and statistical inquisition (to torture the data until they confess)
are some of the more frequent procedures. To better understand how nature works we, as
ecologists, should be enslaved by the data and not by the hypotheses that guided their
collection.
[Keywords: experimental design, academic ego, statistical manipulation]
Existem muitas idéias possíveis que podem explicar as causas de um padrão na

natureza. No entanto, o ecólogo tenta escolher apenas algumas delas. Esta escolha depende de

muitos fatores, incluindo os de natureza histórica, sociológica, logística e até mesmo fortuita

(Kuhn, 1983). No entanto, é inegável que a escolha das idéias que um pesquisador está

testando envolve o lado pessoal. As hipóteses escolhidas para guiar uma investigação podem

representar, indiretamente, o grau de criatividade, o nível de informação e uma capacidade

dedutiva de um ecólogo (de alguma forma, o seu ego). Em outras palavras, escolher uma ideia

para testar e descartar outras pode ser entendida como uma aposta intelectual na mesa de

jogos da comunidade acadêmica.

Os pesquisadores podem viver essa aposta acadêmica de diferentes formas. Alguns a

consideram uma forma de conhecer os mistérios da natureza e não temem que suas ideias

sejam incorretas. Esta classe de pesquisadores aceita descobrir que seu raciocínio estava

equivocado, porque entendem que a ciência avança graças a rejeição de hipóteses erradas

(Graham & Dayton, 2002). Eles compreendem que a derrota parcial do seu ego acadêmico

representa uma vitória na batalha por compreender como funciona a natureza.

Contrariamente, outros pesquisadores se apaixonam tanto pelas suas ideias que sofrem sua

inexatidão como uma derrota pessoal. Estes ecólogos se enamoram das hipóteses que

propõem (tal como uma manifestação de seu ego), em vez de se apaixonar pelos dados que

estas ideias geram (tal como uma manifestação do que acontece na natureza). Assim, essa

paixão os leva a manipular a informação para que suas ideias triunfem, mesmo quando não

representam a realidade. Eu denominarei essa classe de pesquisadores de “ególogos”, porque

é o ego e não a curiosidade que dirige sua forma de trabalhar.


SEIS MANEIRAS DE SUBMETER A INFORMAÇÃO AO PODER DAS IDEIAS (E ALGUMAS

SUGESTÕES PARA EVITÁ-LAS)

O desenvolvimento de uma pesquisa implica em nos informarmos, ir ao campo,

desenhar uma amostragem, coletar dados, analisar e interpretar dada informação. Em todos

estes casos, existem maneiras para que os “ególogos” submetam seus dados ao poder de suas

idéias. Esta submissão pode começar na origem do projeto, continuar através da coleta de

dados e terminar com a análise estatística, mediante formas que vão crescendo em

complexidade. Abaixo vou detalhar algumas das maneiras em que, direta ou indiretamente,

um pesquisador pode impor suas ideias, independentemente do que sugere as informações

obtidas.

1. Apostar no seguro

Neste caso, o pesquisador escolhe avaliar ideias que, por informação prévia ou senso

comum, sabe-se, previamente, que existe uma enorme probabilidade de se encontrar o

resultado esperado. Esta forma encerra um paradoxo para o “ególogo”. Por um lado asegura a

vitória das hipóteses na sua batalha imaginária contra os dados. Mas, por outro lado, essa

vitória possue o sabor amargo de quem enfrenta e ganha de um inimigo muito mais fraco.

Geralmente, os cientístas iniciantes escolhem esta forma, visto que, possivelmente por

insegurança ou falta de experiência, levantam questões muito simples, cujas respostas são

óbvias, ou questões tendenciosas de problemas já levantados (e resolvidos) por outros

pesquisadores com maior experiência. Ambas as problemáticas podiam ser superadas

apostando-se na criatividade e na capacidade crítica, postulando-se perguntas originais e

relevantes, cujas respostas sejam uma incógnita até o final da pesquisa.


2. Indiferença acadêmica

Nesta forma, os pesquisadores prestam atenção apenas nos dados que se ajustam às

suas predições. Aqueles resultados, observações de campo ou informações bibliográficas

contrárias ao que eles esperam são ignorados e excluídos da pesquisa. Esta cegueira

acadêmica supõe, erroneamente, que o que se descarta não existe. Neste caso, a vitória das

ideias sobre os dados se dá por um ato voluntário de omissão. Para superar este problema,

toda informação pertinente à pergunta que guia a pesquisa deveria ser incluída sem se

especular se esta apoia ou rejeita a ideia prévia que se tinha sobre o problema em estudo.

3. Acaso dirigido

Durante a amostragem dos dados, pode-se mudar facilmente o rumo do acaso até o

porto seguro das ideias. De forma mais ou menos inconsciente, um pesquisador pode escolher

árvores maiores, folhas menos herbivoradas, flores mais coloridas, formigas mais rápidas ou

parcelas localizadas em determinados locais, dependendo de como essas tendenciosidades

facilitem que os dados apoiem suas hipóteses. Metaforicamente, é como construir um cenário

de dimensões tão reduzidas para que se possa atuar apenas um argumento e logo aplaudir o

monólogo. Uma amostragem planejada antecipadamente e executada tal qual planejada pode

minimizar esta tendência de manipular a informação.

4. Amostragem (im)perfeita

A amostragem é a parte mais fraca da corda e é o que geralmente se corta primeiro

quando os resultados não sustentam o conhecimento que se supunha estar correto. Mas, de
forma paradoxal, se os resultados apoiam as ideias que guiaram a investigação, poucas vezes

se considera como possíveis fatores de tendência ao desenho amostral ou à coleta dos dados.

Em outras palavras, a mesma amostragem pode cair no esquecimento ou ser vítima de uma

autocrítica feroz, dependendo se os resultados apoiam os não as hipóteses propostas,

respectuvamente. Todo desenho amostral pode ser motivo de autocrítica, mas esta crítica

sempre deve ser independente dos resultados que se tenha obtido através desta amostragem.

5. Manipulação numérica

Este procedimento, lamentavelmente comum, se baseia no descarte ou na inclusão de dados

que fogem de padrão geral (dados raros, chamados de “outliers” em inglês) com o objetivo de

confirmar as ideias que se propõem. A decisão de eliminar ou deixar os dados raros dependerá

do efeito que sua presença ou ausência exercerá sobre as análises estatísticas. Por exemplo, se

se deseja provar que o peso da semente transportada depende do peso da formiga que a

transporta, pode-se manter (Figura 1A e B) ou eliminar (Figura 1C e D) os dados raros para

alcançar a significância estatística que apoie o pré-conceito sobre o sistema estudado. A

paixão pelas ideias tem promovido o sequestro seletivo dos dados. Diante deste tipo de caso,

planejas ambas as situações (tal como a análise com e sem os dados “raros”) e deixar que os

leitores decidam se acompanham (ou não) a interpretação do autor seria uma forma mais

honesta de comprovar as ideias que guiaram a pesquisa.


Figura 1. Exemplo simples de manipulação numérica. Os dados raros são seletivamente

incluídos (a → b) ou descartados (c ← d) apenas em função da obtenção da significância

estatística a hipótese proposta.

6. Inquisição estatística (torturar os dados até que eles confessem)

Neste processo, o pesquisador utiliza diferentes provas estatísticas para conseguir que

os resultados da sua análise se ajustem às suas predições. Os testes não são selecionados por

serem mais adequados, mas por reunirem a “virtude” de encontrar diferenças estatísticas

significativas (mas às vezes biologicamente insignificantes). As diferentes análises são

testadas com a tenacidade de quem cava buscando um tesouro escondido. Em outras palavras,

os mesmos dados são submetidos a diversos instrumentos de tortura (por exemplo, os


diferentes testes estatísticos) até que confessem o que o pesquisador deseja escutar.

Suponhamos que se pretenda testar que as vespas preferem as proteínas aos carboidratos para

se alimentar. Para isso, se realiza um experimento distribuindo ao azar 20 potes com iscas (10

de cada tipo) e se registra a quantidade de vespas que coletam alimento em cada pote, em um

dado tempo (Tabela 1). Dependendo de como se analisa esses dados, a ideia que se queria

testar será corroborada ou não. Se não se considera a variação entre repetições (tal como entre

cada pote) e se usam os totais para realizar uma análise de χ2, os resultados estatísticos

apoiarão a ideia prévia de que as vespas preferem proteínas. Se os dados são analisados

mediante um teste t, o resultado não será de acordo com a predição proposta e a ideia de uma

preferência por proteína deveria ser recusada (Tabela 1). Independentemente de a última

opção ser a mais correta porque incorpora a variação entre as unidades experimentais e evita o

problema de pseudoreplicação sacrificante (Hulbert, 1984), o pesquisador guiado pelo seu ego

escolheria a primeira opção porque esse resultado se ajusta mais ao seu pensamento. Existem

vaiáveis muito mais sofisticadas que este exemplo simples. Algumas incluem testes

estatísticos complexos ou modelos incompreensíveis para um leitor quando os mesmos dados

poderiam (e às vees até deveriam) ser analisados de forma mais simples (Murtaugh, 2007), ou

transformar os dados de forma tão intrincada até conseguir a significância estatística, ainda

que logo a sua interpretação biológica seja praticamente impossível. Esta forma de

submetimento é a mais sofisticada e requer certo conhecimento de estatística, pelo qual a

empregam, em geral, os pesquisadores mais experientes. Uma solução para esta péssima

prática acadêmica é estudar, consultar e escolher o método estatístico mais adequado à

pergunta que se realiza, ao desenho experimental e à natureza dos nossos dados “antes” de

aplicá-lo (e inclusive antes da coleta dos dados), e não trocar de análise porque os resultados

não se ajustam às predições.


Tabela 1. Exemplo simples de inquisição estatística (ou como torturar os dados até que eles

confessem). Resultado de um experimento fictício pare verificar se as vespas preferem coletar

iscas de proteínas (P) ou de carboidratos (C). Cada umidade experimental (cada repetição)

consiste em um pote (com P ou C) distribuído ao azar (10 de cada tipo). Os números são as

quantidades de vespas por pote que coletaram isca em um dado tempo. A ideia proposta (a

preferência das vespas por proteínas) pode ser apoiada ou recusada dependendo do teste

estatístico utilizado (χ2 ou teste t, respectivamente).

Experimento Carboidrato Proteína

1 2 32

2 3 2

3 1 2

4 0 1

5 3 3

6 2 3

7 3 2

8 1 2

9 2 1

10 4 4

Totais 21 52

Média ± DP 2,1 ± 1,2 5,2 ± 9,5

t = 1,03 χ2 = 13,16

P = 0,32 P = 0,003

g.l. = 18 g.l. = 1
Estes mecanismos de manipulação da informação também podem espaço nos trabalhos de

pesquisadores que não se guiam só pelo seu ego. Por exemplo, podem ser produto de um

desenho ou análise inadequada. Em outras palavras, uma amostragem tendenciosa ou o uso

incorreto de ferramentas estatísticas podem estar relacionados à falta de experiência e/ou de

conhecimento. Neste caso, estamos diante de um pesquisador que comete erros. Por outro

lado, os mecanismos descritos também poderiam ser utilizados para melhorar a produtividade

científica de um pesquisador, já que os resultados que apoiam hipóteses são, geralmente, mais

fáceis de públicar que aquelas que as recusam (Rosenthal, 1979; Csada et al., 1996; Palmer,

1999; Farji-Brener, 2006). Neste caso, as tendencialidades são cometidas de maneira

consciente, mas o objetivo final do autor não necessariamente implicaria fortalecer seu amor

próprio. Seus objetivos podem ser a obtenção de uma bolsa de estudos ou um avanço na

carreira acadêmica através de uma maior taxa de publicação. Esses pesquisadores têm

semelhanças com “ególogos” quanto aos mecanismos, mas não necessariamente quanto aos

objetivos. Pesquisadores guiados pelo seu ego desejam "algo mais" que publicar: desejam ser

reconhecido intelectualmente. Neste sentido, suas publicações não são apenas um meio para

progredir academicamente, mas uma maneira de mostrar ao mundo a adequação de suas

idéias.

BUDISMO ECOLÓGICO?

Quase todos, em um maior ou menor grau, temos ego. Argumentar que os

pesquisadores que deviam ter ego, como proposto por algumas religiões orientais, parece um

pouco ingênuo e irreal. Uma alternativa é reconhecer o ego como um motor da atividade

científica, e tentar discipliná-lo e processá-lo para a criação honesta. Isto implica que devemos

aceitar o fracasso de uma idéia, se a evidência sugere assim, discriminar se os resultados são

tão poderosos para descartar a hipótese ou simplesmente não são capazes de testá-la de forma
eficaz, e desafiar o nosso ego para gerar novas idéias (no primeiro caso) ou para atingir uma

melhor concepção de amostragem (no segundo). Assim, o nosso ego pode deixar de funcionar

como um vidro que apenas reflete a informação útil para os nossos pré-conceitos, e ser

aproveitado como um motor superador e criativo.

Em nossa busca do conhecimento existem meios e fins. Neste artigo, eu tentei

descrever, através de descrições e metáforas extremas, como os meios e os fins podem ser

invertidos quando a paixão por uma idéia obscurece nossa objetividade científica. No

universo do ecólogo comum, as idéias devem ser um meio para descobrir o que os dados

sugerem sobre o funcionamento da natureza. Quando a ordem é invertida e os dados são

transformados em um mero meio para corroborar nosso pensamento, devemos fazer uma

pausa e refletir sobre o nosso comportamento como cientistas. E lembre-se que, para melhor

compreender o mundo que nos rodeia devemos ser escravos dos dados, não dos pressupostos

que nortearam a sua coleta.

AGRADECIMENTOS

Os comentário de W. Eberhard, E. Jobbágy e María Semmartin colaboraram muito

para melhorar uma versão preliminar deste manuscrito.

BIBLIOGRAFIA

CSADA, R; P JAMES & R ESPIE. 1996. The “file drawer problem” of non-significant

results: does it apply to biological research? Oikos 76:591-593.

FARJI-BRENER, AG. 2006. La (significativa) importancia biológica de la no-significancia

estadística. Ecología Austral 16:79-84.


GRAHAM, M. & P DAYTON. 2002. On the evolution of Ecological ideas: paradigms and

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HULBERT, S. 1984. Pseudorreplication and the design of ecological field experiments. Ecol.

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KUHN, TS. 1983. La estructura de las revoluciones científicas. Fondo de Cultura

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MURTAUGH, P. 2007. Simplicity and complexity in ecological data analysis. Ecology

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PALMER, AR. 1999. Detecting publication bias in meta-analyses: a case study of fluctuating

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ROSENTHAL, R. 1979. The “file drawer problem” and tolerance for null results. Psychol.

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