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O CONCEITO DE MUDANÇA SOCIAL NO PENSAMENTO DE MARIA

ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ


Aline Marinho Lopes

A década de 1950 delimita um período de grande efervescência na vida social,


econômica e política brasileira, criando condições propícias para a expansão das
Ciências Sociais. As transformações associadas à industrialização geram expectativas
relativas às possibilidades de modernização efetiva do país, suscitando debates e
iniciativas importantes no meio intelectual, contribuindo para a criação de novas
instituições e para a produção e divulgação do conhecimento.
A temática da mudança social constituiu o fio condutor da produção sociológica
do período. A escolha de temas e enfoques mostra uma preocupação constante com os
problemas levantados pela transição de uma sociedade baseada numa economia
fundamentalmente agrária para uma sociedade na qual a produção industrial assume
preeminência sobre o conjunto da economia.
A partir de temas variados, Maria Isaura Pereira de Queiroz analisou a
organização e a dinâmica da sociedade rural, afastando-se dos caminhos usuais e
abrindo perspectivas originais. O trabalho tem por objetivo examinar e discutir de que
forma ela tratava o tema da mudança social no Brasil. Está dividido em quatro partes: a
primeira propõe recuperar a temática da mudança social na teoria sociológica,
enfatizando as teorias da modernização desenvolvidas nos anos 1950. A segunda
focaliza a relação entre o processo de mudança nas sociedades tradicionais e a
urbanização, a partir da teoria desenvolvida por Robert Redfield. A terceira parte
procura analisar de que forma a questão da mudança social e do desenvolvimento se
associava aos estudos sobre o meio agrário brasileiro, tomando como referência Um
retrato do Brasil, de Florestan Fernandes, e o Os parceiros do Rio Bonito, de Antônio
Cândido. Por fim, a última parte pretende examinar a contribuição específica dos
estudos de Maria Isaura Pereira de Queiroz para o entendimento do processo de
mudança no Brasil, destacando as peculiaridades do seu pensamento.
O conceito de mudança social na teoria sociológica

As transformações associadas ao advento da ordem moderna estão na base do


desenvolvimento da Sociologia. Assim, a questão da mudança constitui um tema central
na tradição sociológica, dando origem a diferentes interpretações, teorias e modelos.
Diversas análises a respeito da natureza da mudança social e da ordem moderna
convergiram em torno da questão da tradição e do seu lugar na vida social. Quer fosse
definida como o acúmulo de costumes antigos ou como a aceitação inquestionável de
símbolos e práticas do passado, a tradição era vista em oposição à vida social moderna.
O declínio de elementos tradicionais é considerado, com efeito, inerente à emergência
de forças sociais, econômicas e políticas modernas. Apesar de enfatizarem diferentes
aspectos, as análises concordavam, portanto, quanto ao fato de que a relativa
importância da tradição constituía um fator crucial de distinção entre as sociedades
modernas e pré-modernas.
A ênfase na tradição levou ao desenvolvimento das principais tipologias da
sociologia clássica. A distinção de Tönnies entre comunidade e sociedade, a de
Durkheim entre solidariedade mecânica e solidariedade orgânica e a análise de Weber
dos diversos tipos de dominação estão baseadas em uma concepção dicotômica, que
procura confrontar as características das sociedades tradicionais com as das sociedades
modernas.
Embora tenham surgido críticas a essas tipologias, elas dominaram as pesquisas
a este respeito, dando origem a um quadro que persistiu durante um longo período nas
ciências sociais. Neste quadro, a sociedade tradicional é retratada como estática,
caracterizando-se por uma baixa taxa de mobilidade, uma estrutura social rígida e pela
repetição de hábitos e costumes. Os agentes sociais praticam um número restrito de
atividades econômicas de baixa produtividade e ocupam posições estabelecidas e
transmitidas hereditariamente.
A sociedade moderna é caracterizada pela mudança contínua. Os agentes sociais
realizam atividades econômicas de alta produtividade e exercem funções diferenciadas a
partir de uma complexa divisão do trabalho, ocupando posições e status distintos de
acordo com tais funções. A estrutura social é flexível, marcada por uma alta taxa de
mobilidade e pelo princípio de igualdade entre os indivíduos. A organização política se
baseia na participação ampla das massas.
A emergência e a consolidação da abordagem funcionalista contribuíram para
enfraquecer o interesse pela natureza do processo histórico, privilegiando a análise da
organização e do funcionamento da sociedade em um determinado momento de sua
evolução. Assim, o funcionalismo foi identificado com uma espécie de recusa da
história e da mudança social.1
Após a Segunda Guerra Mundial, o surgimento de novas nações e as rápidas
transformações econômicas, políticas, sociais e culturais observadas nos países do
“Terceiro Mundo” deram origem a novos estudos que procuravam analisar os fatores de
mudança em diferentes tipos de sociedade. Nas décadas de 1940 e 1950 a questão da
modernização e do desenvolvimento tornou-se, desta forma, um foco central de
pesquisa nas ciências sociais.
Os estudos sobre modernização tenderam a enfatizar as distinções entre a
sociedade tradicional e a sociedade moderna, contribuindo para a consolidação do
enfoque dicotômico. Para Germani2 e Lerner3 a configuração da sociedade moderna está
atrelada ao progresso tecnológico iniciado com a Revolução Industrial, no século XVIII.
Assim, todas as sociedades das épocas anteriores e as do mundo contemporâneo que
ainda não se tecnificaram são tradicionais. A sociedade tradicional e a sociedade
moderna são vistas por Hagen4 e McClelland5 como estados, essencialmente, de
crescimento econômico, que podem ocorrer em diferentes épocas históricas.
Em que pesem as diferenças entre os autores, os dois tipos de sociedade eram
considerados como extremos opostos de um continuum. As diferentes sociedades eram
inseridas em escalas que variavam de um maior grau de tradicionalismo até um grau
maior de modernização, representando o início e o término de um processo de mudança.
Todas as sociedades estariam em algum ponto do continuum e poderiam, dadas certas
condições, mover-se do extremo tradicional ao moderno, identificado aos mais
adiantados países capitalistas do Ocidente. A história é vista como uma sucessão de
estágios pelos quais todas as sociedades podem passar. Assim, Tipps assinala que

1
ROCHER, Guy. Le changement social. Paris: Éditions HMH, 1968, p. 9.
2
GERMANI, Gino. Política y Sociedad en una Época de Transición. Buenos Aires: Editorial Paidos,
1962.
3
LERNER, Daniel. The passing of traditional society. New York: The Free Press, 1958.
4
HAGEN, Everett. On the theory of social change. Homewood: The Donsey Press, 1962.
5
MCCLELLAND, David C. The achieving society. Princeton, New York: D. Van Nostrand Co., Inc.,
1961.
em nenhum lugar a influência da teoria evolucionista do século XIX é mais evidente que
aqui. Através do artifício de contrastes típico-ideais entre os atributos de tradição e
modernização, os teóricos da modernização fizeram pouco mais do que resumir com a
ajuda da variáveis-padrão de Parsons e alguma atualização etnográfica, os esforços
anteriores de homens como Maine, Tönnies, Durkheim, e outros na tradição
evolucionista para conceituar a transformação de sociedades em termos de uma transição
entre tipos polares da variedade status-contrato, Gemeinschaft-Gesellschaft.6

Na medida em que a evolução social era concebida como a passagem de um


estado tradicional para um moderno, a preocupação central dos estudos sobre
modernização era explicar como se dava a passagem de um estado para outro.
Eisenstadt7 ressalta, desta forma, que esses estudos engendraram uma importante
mudança em relação às análises da sociologia clássica, que tendiam a enfatizar as
características dos diferentes tipos de sociedade, privilegiando, ao contrário, o estudo
das condições de emergência da ordem social moderna e da possibilidade de que viesse
a se desenvolver em sociedades diversas.
Para Eisenstadt, o interesse crescente por questões políticas práticas contribuiu
para uma maior ênfase nos mecanismos e condições de mudança. Os teóricos da
modernização estavam preocupados, com efeito, em explicar a disparidade econômico-
social dos diferentes Estados, procurando determinar os fatores que permitiam que
algumas sociedades alcançassem sucesso nas atividades econômicas e desenvolvessem
técnicas altamente produtivas. Desta forma, o crescimento econômico assume grande
importância, permitindo distinguir a sociedade tradicional da moderna.
McClelland define a atitude responsável pelo crescimento econômico como uma
“motivação para o desempenho”, isto é, o desejo de realizar-se pessoalmente através de
uma atividade que permite atingir padrões de excelência. Para Hagen, a criatividade está
na base da inovação que, ao se dar no campo tecnológico, resultaria em crescimento
econômico. Lerner considera a personalidade empática, capaz de se colocar na situação
do outro e de operar num mundo em mudança, o elemento dinâmico constituinte do
crescimento.
Apesar de enfatizarem aspectos distintos na definição dos fatores responsáveis
pelo crescimento econômico, os autores chamam a atenção para a importância de

6
TIPPS, Dean C. “Modernization, theory and the comparative study of societies: a critical perspective”.
In: Comparative Studies in Society and History, vol. 15, n. 2, 1973, p. 204.
7
EISENSTADT, Shmuel. Tradition, change and modernity. New York: John Wiley and Sons, 1973.
características psicossociais que estão na origem dos comportamentos necessários ao
desenvolvimento. As atitudes e valores dos membros de diferentes sociedades são
vistos, com efeito, como a fonte principal de mudanças sociais e econômicas.
Ruben George Oliven8 assinala que o modelo subjacente a este tipo de
proposição constitui uma deturpação da obra clássica de Weber, A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo, cujo propósito foi o de analisar a influência de uma religião
específica no desenvolvimento do capitalismo em um período histórico definido. O
principal fator de mudança não seria econômico, mas cultural: a um determinismo
econômico, os teóricos da modernização contrapõem, portanto, um determinismo
cultural. Para McClelland “as idéias são de fato mais importantes para moldar a história
do que arranjos puramente materialistas. (...) São os valores, as motivações ou forças
psicológicas que determinam em última instância a taxa de desenvolvimento econômico
e social”.9
As atitudes tradicionais, contrárias à mudança, constituem, portanto, o único
obstáculo à modernização. O desenvolvimento é estreitamente relacionado, desta forma,
com a modernização de hábitos e comportamentos. A persistência de elementos
tradicionais dependeria, em larga medida, de uma posição de isolamento. Assim, a
difusão de valores modernos através dos meios de comunicação e de transportes e da
importação de bens materiais e de tecnologia seria um fator propiciador de
desenvolvimento. Para Hagen, o contato entre nações adiantadas e atrasadas provoca,
com efeito, o abalo da estrutura tradicional, levando à substituição das elites no poder e
contribuindo, deste modo, para impulsionar o processo de modernização.
Lia Machado10 chama a atenção para o fato de que os teóricos da modernização
estão preocupados, sobretudo, com a aceleração do processo de desenvolvimento,
defendendo o reforço e o incentivo de atitudes e comportamentos favoráveis. Eles
demonstram, desta forma, uma forte convicção em relação à inevitabilidade do
progresso. Assim, a tese da modernização postula um modelo a-histórico e linear de
mudança social, enfatizando o processo de homogeneização de indivíduos e sociedades.

8
OLIVEN, Ruben, George. Urbanizaçao e mudança social no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.
9
Apud OLIVEN, Ruben George, Op. Cit., p. 34.
10
MACHADO, Lia Pinheiro. “Alcance e limites das teorias da modernização”. In: DURAND, José
Carlos Garcia & MACHADO, Lia Pinheiro (orgs.). Sociologia do desenvolvimento II. Rio de Janeiro:
Zahar, 1975.
Mudança social e urbanização

A modernidade está estreitamente relacionada ao processo de urbanização. Com


efeito, a teoria sociológica tem assinalado repetidamente o forte vínculo entre o
desenvolvimento do capitalismo, da divisão do trabalho e da racionalidade, de um lado,
e o crescimento das cidades, de outro. A teoria do continuum folk-urbano, por exemplo,
desenvolvida pelo antropólogo norte-americano Robert Redfield a partir de suas
pesquisas no México, estabeleceu a existência de variações contínuas entre sociedades
do tipo folk e sociedades urbanas11. Ele descreveu uma sociedade folk como sendo

pequena, isolada, analfabeta e homogênea, com um forte sentido de solidariedade grupal.


Os modos de viver estão convencionalizados naquele sistema coerente que chamamos de
‘cultura’. O comportamento é tradicional, espontâneo, acrítico e pessoal; não existe
legislação ou hábito de experimento e reflexão com fins intelectuais. O parentesco, seus
relacionamentos e instituições, são as categorias típicas de experiência e o grupo familial
é a unidade de ação. O sagrado prevalece sobre o secular; a economia é mais de status
que de mercado.12

Comparando diferentes pontos do seu continuum, Redfield sustenta que quanto


mais se passava do extremo folk para o urbano, menor seria o isolamento, maior a
heterogeneidade, mais complexa a divisão do trabalho, mais desenvolvida a economia
monetária, mais seculares os especialistas profissionais e menos eficazes no controle
social as instituições de parentesco. Correspondentemente, haveria maior dependência
de instituições de controle de ação impessoal, menor religiosidade, menor tendência a
encarar as doenças como resultantes da quebra de uma regra moral e maior liberdade de
ação e escolha individual.13
Para Redfield, o deslocamento em direção ao extremo urbano está associado aos
processos de secularização e individualização. A urbanização enfraqueceria os firmes
laços que integravam os homens em uma sociedade rural. A homogeneidade da
sociedade rural seria substituída, na sociedade urbana, por uma estrutura social
caracterizada por uma grande diversidade de papéis, ações e significados.

11
REDFIELD, Robert. The Folk Culture of Yucatan. Chicago: University Press of Chicago, 1941.
12
REDFIELD, Robert. “The Folk Society”. In: American Journal of Sociology, vol. 52, n. 4, 1947, p.
293.
13
REDFIELD, Robert. The Folk Culture of Yucatan, p. 25.
A passagem de um extremo para outro no continuum folk-urbano se daria em
função do aumento da heterogeneidade social e da possibilidade de interação que ocorre
quando a sociedade cresce. Do mesmo modo, a perda do isolamento causada pelo
contato com outra sociedade ou cultura também desencadearia este processo. Assim,
qualquer comunidade poderia ser localizada em um ponto determinado do continuum e,
dadas certas condições de densificação populacional e aumento de heterogeneidade,
qualquer grupo se moveria na direção do pólo urbano.
Embora pretendesse que seu modelo, baseado nas comunidades que estudou na
península de Yucatan, fosse uma construção de tipo ideal, Redfield ressaltou que outras
comunidades, localizadas de modo semelhante em outros lugares do mundo, poderiam
ser ordenadas de acordo com os mesmos princípios.

Vida rural e mudança social no Brasil

As teses desenvolvidas por Redfield exerceram uma forte influência na


sociologia dos problemas rurais no Brasil dos anos 1950. As mudanças sociais e
econômicas do país acentuavam o descompasso entre as grandes cidades modernas e o
meio rural, dando origem a um conjunto de pesquisas que procuravam avaliar o impacto
da industrialização nas populações agrárias, examinando a relação entre os aspectos
novos e tradicionais de sua organização social. O campo constituiu-se, portanto, num
objeto central de estudo, representando o tempo passado e permitindo, desta forma,
analisar suas conseqüências para o futuro.14
A perspectiva geral era a de superação do Brasil “arcaico” e de redução das
disparidades regionais. A temática do desenvolvimento vinha, desta forma, para a linha
de frente dos debates. Uma parte notável dos intelectuais brasileiros voltava-se, com
efeito, para o projeto de mudança social dirigida, trazendo para o cerne dos debates a
construção de uma sociedade de classes, secularizada, democrática, sujeita a uma ordem
burocrática, impessoal, legal. “Embora discordassem quanto à maneira de integrar o
Brasil ao conjunto das sociedades modernas, aceitavam este desafio como uma

14
VILLAS BÔAS, Gláucia. A vocação das Ciências Sociais (1945-1960): um estudo da sua produção em
livro. Tese de doutoramento em Sociologia. Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1992.
exigência histórica, política e intelectual”.15 A sociologia era, deste modo, definida
“enquanto um saber racional, equivalente a uma forma de consciência superior que
contribuiria para a realização, no Brasil, de nova etapa do processo civilizador”.16

O antagonismo entre civilização e culturas de folk

Em Um retrato do Brasil, Florestan Fernandes analisa o processo de mudança


sociocultural das populações sertanejas a partir do relatório da viagem empreendida por
Júlio Paternostro, médico do Serviço de Febre Amarela da Fundação Rockefeller, ao
Vale do Tocantins, entre 1934 e 1938. Florestan chama a atenção para a imprecisão
geográfica dos termos litoral e sertão, que apareceriam, na verdade, como expressão de
um tipo de formação social em que o tempo - ou os contrastes entre as diversas fases
históricas de uma civilização - constitui variável mais significativa do que o espaço.
Ele enfatiza, desta forma, o tema da distância cultural, assinalando que “o
desenvolvimento sociocultural do Brasil não foi uniforme ou orgânico. Algumas
cidades acompanharam o ‘progresso’ da civilização, embora retardadamente;
transformaram-se hoje como São Paulo em metrópoles. Outras, quando não regrediram,
imobilizaram-se, estacionaram em seu processo sociocultural como as chamadas
‘cidades mortas’. (...) Estas formariam as ‘culturas de folk’”.17 Conformada pela
tradição, grande parte dos indivíduos levava, desta forma, a vida dos séculos XVIII ou
XIX.
Analisando as condições de vida no Vale do Tocantins, Florestan extrai do
relatório informações referentes à educação, à saúde e à organização do trabalho nas
populações rurais. Ele ressalta a incongruência das escolas em relação ao meio social,
que contribuiria para reforçar o fenômeno de “demora cultural”. No que se refere às
condições de saúde retratadas por Paternostro, chama a atenção para as relações entre a
medicina popular e a medicina científica. Elas seriam particularmente importantes no
“estudo dos padrões de comportamento de uma cultura de folk e mesmo de certo
aspectos da organização social e (...) úteis na análise dos motivos de aceitação ou

15
VILLAS BÔAS, Gláucia. “Entre a tradição e a contemporaneidade”. In: KOSMINSKY, Ethel (org.).
Agruras e prazeres de uma pesquisadora: ensaios sobre a sociologia de Maria Isaura Pereira de
Queiroz. Marília: UNESP Marília Publicações; São Paulo: FAPESP, 1999, p. 17.
16
VILLAS BÔAS, Gláucia. Mudança provocada: passado e futuro no pensamento sociológico
brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. FGV, p. 65.
17
FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 124.
rejeição de formas conhecidas de cura e tratamento de doenças”.18 Florestan observa
que os médicos também estavam vulneráveis aos efeitos da cultura de folk, dadas as
condições de isolamento em que permaneciam. Para o sociólogo, o texto de Paternostro
reúne dados importantes sobre as condições de vida e trabalho das populações
sertanejas, dando ênfase à predominância dos contratos verbais, à ausência de legislação
do trabalho e à baixa remuneração. A instabilidade demográfica de alguns povoados e o
nomadismo dos moradores são aspectos igualmente ressaltados.
Florestan chama a atenção, desta forma, para o rico material de estudo
representado por uma área que viveu relativo isolamento cultural e racial, durante um
longo período histórico. O relatório da viagem de Paternostro ao Tocantins permitia,
com efeito, aprofundar o conhecimento sobre o território nacional, retratando um
“Brasil distante de nossos olhos”, indicando a necessidade de um processo de mudança
“orientado e dirigido de alguma forma por técnicas sociais”. Ele destaca o papel das
ciências sociais no processo de transição para a vida moderna, ressaltando a importância
de trabalhos capazes de subsidiar “uma política de controle e orientação, na medida do
possível, dos processos sociais”.19
A modernização requeria recursos racionais de pensamento e ação e esbarrava
em obstáculos de natureza cultural. As condições em que se deu o desenvolvimento
demográfico, econômico e político do país colocaria, de fato, problemas específicos às
possibilidades de “mudança dirigida”. Assim, o antagonismo entre litoral e interior está
ligado, na perspectiva de Florestan Fernandes, à resistência à modernização. Maria
Arminda do Nascimento Arruda chama a atenção, nesse sentido, para o fato de que “(...)
o que marca indelevelmente a produção de Florestan e atesta a originalidade da sua
reflexão é a análise da transformação, mas, sobretudo, o relevo conferido aos entraves à
modernização brasileira. São os empecilhos que conferem o tom dominante da
discussão”20.

A perspectiva dominante nos estudos sobre modernização e desenvolvimento


afirmava, desta forma, a existência de um desequilíbrio entre as duas partes que
compõem o mundo brasileiro. A primeira, que se refere à dimensão da modernidade, é
litorânea, civilizada, racional. A segunda, que corresponde ao interior, é atrasada,

18
Ibid., p. 140.
19
Ibid., p. 164.
20
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. “Revisitar Florestan”. In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais. São Paulo: ANPOCS, n. 30, ano 11, 1996, p. 13.
tradicional, primitiva e pré-racional. As populações rurais são vistas, deste modo, como
partícipes de um modo de vida pré-capitalista e de um universo cultural comum.
A tese dualista, formulada pela primeira vez de modo elaborado por Euclides da
Cunha, exerceu, com efeito, um papel marcante nos textos produzidos durante o
período. Nísia Lima chama a atenção, deste modo, para a “continuidade e reelaboração
do tema dos contrastes entre litoral e interior: a idéia de simultaneidade de tempos
históricos – regiões do território brasileiro distantes entre si séculos em termos culturais
e de inserção no mundo ocidental”.21 A solução deste desequilíbrio, pregavam estas
análises, passava pela absorção ou pela liquidação do pólo reconhecido como atrasado.
A penetração de elementos urbanos no campo era, portanto, considerada como
um avanço benéfico para este. Admitia-se que, aumentando cada vez mais a penetração,
se perderiam as características peculiares à sociedade rural, que tenderia a se confundir
cada vez mais com a sociedade urbana e, portanto, a desaparecer. “Desta forma, tanto a
urbanização do meio rural quanto os processos de (...) desenvolvimento formariam um
conjunto orientado para a homogeneização cada vez maior de todas as sociedades
humanas ocidentais, convergindo para uma forma social semelhante”.22

Cultura rústica e modernização

A análise de Antônio Cândido difere em larga medida da visão que associa as


populações do interior ao tema das “resistências à mudança sociocultural”, presente nos
trabalhos de Florestan Fernandes. Em Os Parceiros do Rio Bonito, Antônio Cândido
discute as transformações no estilo de vida e padrões de sociabilidade das classes baixas
rurais do interior de São Paulo, relacionando-as às mudanças associadas aos processos
de urbanização e industrialização. O conceito de cultura rústica baliza a análise do
autor, “indicando o que é, no Brasil, o universo das culturas tradicionais do campo; as
que resultaram do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por
transferência e modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contato
com o aborígine”.23

21
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da
identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan, IUPERJ, 1999, p. 156.
22
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. “Dialética do rural e do urbano: exemplos brasileiros”. In: BLAY,
Eva Alterman (org.). A luta pelo espaço: textos de sociologia urbana. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 26.
23
CÂNDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas Cidades, 1971, p. 20.
Antônio Cândido mantém um importante diálogo com Robert Redfield, tomando
como referência o conceito de “folk culture” para formular a noção de “cultura rústica”.
Ele discorda, no entanto, da aplicação direta do termo para caracterizar a realidade
específica das populações rurais no Brasil. “Nesse sentido, aceita o ‘valor heurístico’ da
teoria de Redfield e descarta seu ‘valor taxonômico’”.24
Antônio Cândido vincula a cultura caipira à existência nômade, associada ao
processo de conquista dos sertões. Com efeito, “a expansão geográfica dos paulistas,
nos séculos XVI, XVII e XVIII, resultou não apenas na incorporação do território às
terras da Coroa portuguesa na América, mas na definição de certos tipos de cultura e
vida social, condicionados em grande parte por aquele grande fenômeno de
mobilidade”.25 A cultura caipira revela, desta forma, formas de sociabilidade e
sobrevivência caracterizadas por soluções mínimas. Assim, Antônio Cândido chama a
atenção para a sua rusticidade, que repercutiria na sua cultura material e psicológica.
“(...) Na habitação, na dieta, no caráter do caipira, gravou-se para sempre o provisório
da aventura”.26 O “mínimo social” possibilitou o estabelecimento de um equilíbrio
ecológico, constituindo um recurso para adequar as necessidades de sobrevivência à
falta de técnicas capazes de proporcionar rendimento maior da terra. Ele condicionou,
por outro lado, uma economia naturalmente fechada, configurando “uma vida social
marcada pelo isolamento, a independência, o alheamento às mudanças sociais”.27
O bairro constitui a estrutura fundamental da sociabilidade caipira, “consistindo
no agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo
sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas
atividades mágico-religiosas”.28
A caracterização do bairro como unidade básica da sociedade caipira é uma
crítica à excessiva generalidade do conceito de “comunidade”, que orientou, por
exemplo, as pesquisas de Pierson, em Cruz das Almas e de Wagley, em Amazon town.
Antônio Cândido destaca a importância dos estudos de comunidade, chamando a
atenção para o fato de que a pesquisa de campo permitia fornecer um amplo
conhecimento das culturas camponesas. Ele se opõe, no entanto, à fluidez do conceito
de “comunidade”, que cobria uma realidade diferente em cada trabalho, e sugere que os

24
JACKSON, Luiz Carlos. Op. Cit., p. 92.
25
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p. 35.
26
Ibid., p. 37.
27
Ibid., p. 29.
28
Ibid., p. 62.
estudos sobre sociedades rústicas no Brasil devem partir de sua unidade básica, os
grupos de vizinhança que em São Paulo e adjacências recebem o nome de “bairro”.
Antônio Cândido aponta para o fato de que o processo de transição da economia
de subsistência para a economia capitalista provoca alterações profundas no padrão de
sociabilidade configurado pelo bairro, implicando na perda das relações vicinais. Para
Antônio Cândido, a cultura caipira “não foi feita para o progresso, a sua mudança é o
seu fim, porque está baseada em tipos tão precários de ajustamento ecológico e social,
que a alteração destes provoca a derrocada das formas de cultura por eles
condicionada”.29 O avanço da civilização urbana acarretaria, deste modo, o
desaparecimento progressivo da cultura tradicional caipira.

O olhar de Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre o mundo rural

A análise de Antônio Cândido exerceu uma influência decisiva na obra de Maria


Isaura Pereira de Queiroz e do seu grupo, reunido no Centro de Estudos Rurais e
Urbanos (CERU), criado em 1964. Tal influência é comprovada pelos trabalhos
realizados nos anos sessenta, que procuraram aprofundar o conhecimento sobre os
“bairros” paulistas e verificar a hipótese de Antônio Cândido acerca da desorganização
progressiva da sociedade caipira.
Em Bairros Rurais Paulistas, Maria Isaura apresenta os resultados de pesquisas
realizadas sob sua coordenação em quatro localidades diferentes do Estado de São
Paulo. O método comparativo permite apontar a existência de dois tipos de bairros.
“Efetivamente, há os bairros formados de camponeses (isto é, cujos cultivadores estão
presos a uma agricultura de subsistência, completada por uma atividade subsidiária que
aumenta os recursos da família) e há os bairros de agricultores ou pecuaristas (composto
de roceiros entrosados já numa economia comercializada, mas conservando como
atividade subsidiária a roça, de que tiram seu passado cotidiano)”.30 Assim, Maria
Isaura elege como fundamento primordial de definição dos bairros o tipo especifico de
relações sociais e de relações de trabalho, deixando o aspecto econômico em segundo
plano.

29
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p. 61.
30
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Bairros rurais paulistas: dinâmica das relações bairro rural-
cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1973, p. 123.
Além de investigar a estrutura interna dos bairros estudados, a pesquisa
coordenada pela autora privilegiou as relações estabelecidas com as sedes dos
municípios a que pertencem e com as regiões correspondentes. Maria Isaura se opõe,
desta forma, à tese do isolamento dos bairros rurais. Enquanto na análise de Antônio
Cândido o bairro tende ao isolamento, Maria Isaura ressalta o contato persistente com a
sociedade abrangente. Com efeito, “camponeses e agricultores plantam para si e para
negociar; seus negócios levam-nos à sede do município, a outras zonas, a cidades
grandes, e tais viagens têm periodicidade e regularidade”.31 A economia constitui,
portanto, um importante fator de integração dos sitiantes numa determinada região,
obrigando-os a saírem do circulo restrito do seu bairro.
A sobrevivência do caipira depende, portanto, da relação que estabelece com a
sociedade global. Maria Isaura aponta para uma gama de diferentes possibilidades, a
partir do contato com a cidade. Reportando-se, por exemplo, ao estudo de Lia Fukui
sobre o bairro de Laranjeiras, no Sertão de Itapecerica, ela observa que, até a década de
1930, os sitiantes mantinham contatos regulares com a cidade de São Paulo,
abastecendo-a de gêneros e adquirindo ali o que não produziam. A sua economia de
pequenas lavouras dos sitiantes da localidade era complementar à economia urbana.
Eles participavam, dessa forma, de um mercado que foi se restringindo à medida que
crescia a metrópole. Os antigos sitiantes passaram progressivamente a ter como
atividade básica a extração de carvão, vendido a intermediários dos quais passam a
comprar gêneros básicos para sua subsistência. O rompimento das relações com a
cidade de São Paulo acarretou uma drástica redução no nível de vida dos habitantes do
bairro, levando à degradação da vida sócio-cultural e ao desaparecimento de elementos
folclóricos.
Assim, a conservação da organização tradicional não está ligada ao isolamento
dos sitiantes em relação à cidade. “Pelo contrário, o isolamento leva à destruição do
gênero de vida caipira, que requer, para persistir, contatos constantes embora periódicos
com a vizinhança, com as capelas, com as cidades”.32 Para Maria Isaura, a manutenção
dos padrões de sociabilidade e de cultura dos bairros rurais está relacionada a um tipo
determinado de equilíbrio com a vida urbana e a vida regional.
Maria Isaura se opõe, desta forma, à tese de que as zonas rurais localizadas
próximas de zonas citadinas se modernizariam mais depressa do que as zonas

31
Ibid., p. 129/130.
32
Ibid., p. 114.
periféricas. Com efeito, Taubaté, cidade em vias de rápido desenvolvimento e
industrialização, coexiste com uma zona rural de baixo nível econômico. Maria Isaura
assinala que o fato de os sitiantes poderem se servir da cidade para uma série de
atividades contribui para tornar mais lento o processo de modificação. Ela ressalta, desta
forma, que “a elevação do índice de urbanização num município não significa que
naquela área tenha desaparecido a civilização caipira (...)”.33
Para Maria Isaura o exemplo do bairro do Taquari, no município de Leme,
contribui para demonstrar que a existência de uma grande cidade não constitui um fator
essencial de desenvolvimento para a área rural imediatamente próxima. Com efeito, o
baixo grau de desenvolvimento e industrialização de Leme contrasta com o bom nível
econômico alcançado pelos sitiantes de Taquari. Maria Isaura chama a atenção para o
fato de que a própria falta de desenvolvimento da sede do município faz com que os
habitantes do bairro de Taquari sejam obrigados a se evadir deste, entrando em contato
com outras zonas rurais e urbanas diferentes, agindo, portanto, como fator de
desenvolvimento e de enriquecimento cultural. “A integração de um bairro como o
Taquari numa região mais ampla e bem desenvolvida indica que este fator não é
promotor de desorganização para o grupo de vizinhança; pelo contrário, permitindo um
bom nível para a existência no mesmo, do ponto de vista econômico, age como fator de
continuidade para o bairro”.34
As pesquisas de Maria Isaura também colocam em evidência o dinamismo da
cultura rústica, mostrando a possibilidade de mudanças na atividade econômica e de
mecanização do processo de trabalho sem que seja abandonada a cultura caipira. Com
efeito, agricultores que já adotavam processos produtivos modernos reproduzem as
relações sociais que os vinculam a um espaço local e que definem e a sociabilidade
tradicional. Ela chama a atenção, desta forma, para o fato de que a identidade social dos
sitiantes não se esgota nas suas praticas econômicas e, embora interdependentes, os
aspectos econômicos e sociais não marcham necessariamente no mesmo ritmo.
Assim os bairros rurais não são grupos estagnados; “em seu interior há
mudanças, que não dependem de fatores externos, mas decorrem de um movimento
interior que lhes é próprio”.35 Maria Isaura assinala que a dinâmica do mundo rural

33
Ibid., p. 29.
34
Ibid., p. 52.
35
Ibid., p. 141.
reflete em parte o movimento da sociedade global que o circunda, apontado, contudo,
para o fato de que

esta age muito mais como uma fornecedora de novos modelos e de sugestões diferentes
das antigas, do que como uma força impositiva que obriga à mudança ou determina
transformações. A sociedade global oferece novos padrões de comportamento aos
sitiantes, alternativas diversas das antigas, mas não existe ainda nenhum mecanismo
organizado que os force a segui-los; são ainda livres de escolher o caminho que querem
palmilhar.36

Maria Isaura ressalta, desta forma, a complexidade do processo de


transformação do modo de vida dos pequenos produtores em função do processo de
urbanização, apontando para diferentes possibilidades de participação na economia e na
vida social modernas.

Dentre os estudos que Maria Isaura realizou sobre o Brasil rural sobressaem os
trabalhos sobre o messianismo.37 A pesquisadora classifica os movimentos messiânicos
enquanto categoria sociológica, discriminando seus tipos diferenciados. O critério de
classificação utilizado se refere à relação com a sociedade em que surge. Assim, para
Maria Isaura os movimentos messiânicos aparecem sempre associados a sociedades
regidas pelo sistema de parentesco ou de linhagens. Sociedades tradicionais em
mudança, em que o sistema econômico passava a coexistir e a competir com o sistema
de linhagens, constituíam terreno preferencial para a irrupção de movimentos
messiânicos. Isolado ou coexistindo com o econômico, o sistema de linhagens enquanto
elemento ordenador das relações sociais constitui, portanto, uma condição necessária
para a emergência de tais manifestações.
Para que irrompessem, os movimentos messiânicos requeriam ainda que aquelas
sociedades estivessem passando por momentos de crise capazes de colocar em risco a
existência tradicional. Os períodos críticos podem estar associados a situações de
anomia ou de mudança social. As crises anômicas estão ligadas à configuração interna
das sociedades, desorganizadas em decorrência da ruptura entre os valores e normas e as

36
Ibid., p. 141.
37
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Omega,
1976.
práticas efetivas. As crises de mudança corresponderiam à emergência de novos
arranjos estruturais, exógenos à sociedade tradicional, e dela comprometedores.
No primeiro caso, a reação messiânica seria conservadora, na medida em que
procurava resgatar os valores tradicionais, ou no máximo, reformista, pois acabava
sempre por propor uma nova organização dos arranjos tradicionais. No segundo caso,
seriam movimentos de transformação social, confrontando a ordem social vista como
opressora e, no limite, movimentos revolucionários. Assim, trata-se, no primeiro caso,
de uma crise ao plano da organização social, já que a estrutura não estaria em questão,
enquanto, no segundo, a crise se configuraria enquanto estrutural.
Para Maria Isaura, os movimentos messiânicos expressam o dinamismo das
sociedades tradicionais, demonstrando, com efeito, que as populações rurais são capazes
de reagir aos seus problemas, procurando soluções compatíveis com sua visão de
mundo. Maria Isaura se contrapõe, desta forma, às análises que estereotipam os
sertanejos como conformistas ou fatalistas, chamando a atenção para o fato de que as
religiões primitivas encerram mitos capazes de motivar a ação concreta e direcioná-la
em sentido inovador.
Assim, a sociedade rústica não seria necessariamente estagnada. Os movimentos
messiânicos são vistos, com efeito, como reações a processos dinâmicos que ocorrem
em seu interior, e não como reações diretas a pressões externas. Ela se opõe, portanto, à
tese, consagrada sob a inspiração de Euclides da Cunha, de que tais movimentos
constituem uma reação dos grupos sertanejos à imposição dos valores de progresso
originários do litoral.
Para Maria Isaura, a visão dos messias como refratários ao progresso decorria
em grande parte da imagem que se cristalizou de Antônio Conselheiro e de suas
atividades no povoado de Canudos. Em muitos casos (do que seria exemplar a atuação
do Padre Cícero em Juazeiro), a ação dos líderes religiosos poderia, na verdade,
promover surtos de progresso econômico.
Tais considerações dizem respeito, contudo, à atividade econômica, pois, no que
se refere aos padrões de comportamento social, os movimentos messiânicos seriam
fundamentalmente conservadores. “O fato de, ao mesmo tempo, terem os movimentos
messiânicos promovido o progresso econômico e a restauração tradicional de valores e
padrões, está a indicar que os dois setores são passíveis de dissociação e de seguirem,
pelo menos até certo ponto, desenvolvimento divergentes”.38
Maria Isaura também chama a atenção para a ambigüidade inerente às
comunidades messiânicas. Com efeito, movimentos messiânicos nascidos como uma
reação à mudança podem, ao acomodar-se, contribuir para o processo transformador.
Por outro lado, os movimentos que reagem contra a desorganização anômica, buscando
o restabelecimento da ordem tradicional, não deixam de introduzir inovações na
organização social.
Maria Isaura analisa as implicações desta ambigüidade no que se refere à
concepção de tempo nas sociedades tradicionais, visto como cíclico e repetitivo, em
contraposição ao tempo linear e irreversível do homem moderno. As duas concepções
estão presentes nos movimentos messiânicos. Por um lado, seu ritmo de
desenvolvimento evidencia o seu caráter cíclico, com a formação da lenda e expectativa
messiânica, a vinda do messias e a organização de sua comunidade, a dissolução da
mesma, seguida por nova espera e reinício. Por outro, seu objetivo é justamente o de
evoluir na direção de um final definitivo, rompendo-se a cadeias dos ciclos infindáveis
com a constituição da cidade santa, prenúncio do reino do messias. Os movimentos
messiânicos são, desta forma, ao mesmo tempo cíclicos e lineares, conservadores e
inovadores. Suas ambigüidades os situam concomitantemente no tradicional e no
moderno.

Em O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios, Maria


Isaura procura desvendar a lógica da dominação política no Brasil, enfatizando os seus
fundamentos sociais e econômicos. Para Maria Isaura, o coronelismo se estrutura a
partir dos grupos de parentela. As parentelas constituem tipos sui generis de família,
que se formam não só por laços consangüíneos como por alianças e pelos laços
sobrenaturais que legitimavam o compadrio. Os seus membros podiam ocupar posições
distintas, de acordo com os seus bens de fortuna.
As sociedades de parentelas caracterizavam-se por fortes laços de dependência
entre seus membros, revelando notável solidariedade vertical, necessariamente
hierarquizada e fundada em relações pessoais. Para Maria Isaura, o coronelismo é deste
modo definido pela relação de posse que os homens tinham uns com outros. O coronel

38
Ibid., p. 327.
constituía, com efeito, uma “espécie de elemento sócio-econômico polarizador, que
servia de ponto de referência para se conhecer a distribuição dos indivíduos no espaço
social”. “A pergunta: Quem é você? Recebia invariavelmente a resposta: Sou gente do
coronel Fulano”. A expressão revela toda a trama social que subjaz ao coronelismo,
delimitando posições e formas de participação na estrutura econômica, social e política.
Maria Isaura chama a atenção, no entanto, para o fato de que nas sociedades de
parentelas o voto fazia parte de um sistema complexo de trocas recíprocas, em que a
barganha política tornava-se possível. Os indivíduos não procuravam eleger o mais
capacitado para exercer funções de mando, mas desejavam trocar o voto por um
benefício. Assim, o eleitorado não ficava inteiramente submisso às relações pessoais, de
caráter autoritário, nem às ameaças de coerção, que também existiam, mas estava
integrado em um sistema de dom e contradom, cabendo-lhes avaliar as vantagens e
desvantagens da troca que realizava e fazer uma escolha. Maria Isaura assinala que a
barganha ocorria de forma diferenciada, de acordo com os graus de hierarquia, a relação
com os cabos eleitorais e o poder dos coronéis. Ela distingue, deste modo, diversas
situações. Nas regiões onde havia vários coronéis disputando o poder, por exemplo, as
possibilidades de barganha eram maiores.
Os estudos sobre dominação política se concentravam, em geral, nas áreas
litorâneas de monocultura de exportação, limitando-se a analisar os grandes
proprietários e os seus subordinados. Valorizando a “experiência vivida” dos grupos
particulares, Maria Isaura chama a atenção para a diversidade de comportamentos
políticos de acordo com distinções econômicas e sociais. Assim, nas zonas de
monocultura de exportação ou de grandes criadores, caracterizadas por uma
estratificação social mais diferenciada e rígida, a dominação política do coronel era
mais direta e violenta. Nas zonas de sitiantes, a estrutura social tendia, contudo, para
uma configuração mais igualitária.
Maria Isaura chama a atenção, desta forma, para o fato de que “o entendimento
do sistema moderno de representação política dependia de análise fina da multiplicidade
das relações sociais, grupos e estilos de vida, não sendo possível generalizar a existência
do voto de cabresto com base em uma concepção ‘binária’ da sociedade, que
pressupunha incapacidade de discernimento de eleitores pobres, ignorantes e
submissos”.39

39
VILLAS BÔAS, Op. Cit., p. 147.
A análise de Maria Isaura contribui, desta forma, para desmistificar a imagem
mais corriqueira do coronel e de seu eleitorado, baseada na idéia de um sistema imposto
exclusivamente pela autoridade e pelo poder econômico do chefe. Sem deixar de lado as
condicionantes e variáveis estruturais, Maria Isaura chama a atenção para as
possibilidades e limites da ação individual no coronelismo. Ela introduz, desta forma, a
dimensão da agência, enfatizando o caráter ativo da conduta humana.40 O uso do voto
como “posse”, permitindo uma barganha política, mostra de que modo as relações de
dominação política podem dar margem a diferentes respostas por parte dos indivíduos e
grupos sociais e não apenas restringir e controlar o escopo de suas ações. Maria Isaura
contrapõe-se, desta forma, à visão de que as relações sociais se impõem como forças
estranhas aos atores, escapando-lhes à compreensão e ao controle.

Uma das contribuições mais significativas da obra de Maria Isaura é, portanto, a


revisão de inúmeros argumentos reiterados no estudo das populações do interior do
Brasil. Seus trabalhos indicam, de fato, a necessidade de visão mais matizada a respeito
da oposição entre um país moderno no litoral e um país refratário à modernização no
sertão. Tendo por base ampla pesquisa histórica, Maria Isaura critica, desta forma, as
interpretações dualistas sobre a estrutura agrária no Brasil, mostrando que elementos
tradicionais e modernos não se opunham necessariamente. Ela chama a atenção, com
efeito, para uma associação constante entre continuidade e mudança.
Maria Isaura se contrapõe, desta forma, a uma concepção evolucionista de
história, ressaltando que a mudança não caminhava na linha reta do progresso. Para
Maria Isaura, as transformações resultantes dos processos globais não se traduzem por
uma uniformização da sociedade, pondo fim às particularidades dos diferentes espaços e
grupos sociais. Um dos traços mais marcantes de sua obra consiste, com efeito, no
privilégio atribuído à busca de uma individualidade cultural própria da sociedade
brasileira, rejeitando a adoção a priori de um modelo ideal de modernidade como
referência obrigatória para o seu exame.

40
Cf. BOTELHO, André. “Seqüências de uma sociologia política brasileira”. In: Dados, Rio de Janeiro,
vol. 50, n.1, 2007.

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