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Literatura / Poesia

Conheça 10 poemas
incríveis de Manoel de
Barros para crianças

Laura Aidar
Arte-educadora, fotógrafa e artista visual

A poesia de Manoel de Barros é feita de


singelezas e coisas "sem nome".

O escritor, que passou sua infância no


Pantanal, foi criado em meio à natureza. Por
conta disso, trouxe para seus textos todo
mistério dos bichos e plantas.

Sua escrita encanta pessoas de todas as


idades, tendo uma conexão, sobretudo, com o
universo infantil. O escritor consegue exibir de
forma imaginativa e sensível suas reflexões
sobre o mundo através das palavras.

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Selecionamos 10 poemas desse grande autor


para você ler para os pequenos.

1. Borboletas

Borboletas me convidaram a elas.


O privilégio insetal de ser uma borboleta
me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente
dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma
borboleta seria, com certeza,
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes
em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas
pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para
a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das
chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que
pude ver do ponto de vista de
uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.

Manoel de Barros publicou esse poema no livro


Ensaios fotográficos, lançado em 2000. Nele, o
escritor nos convida a imaginar o mundo
através do "olhar" das borboletas.

E como seria esse olhar? Segundo o autor seria


enxergar as coisas de uma forma "insetal". Essa
palavra não existe na língua portuguesa, é um
termo inventado e dá-se o nome de
neologismo a esse tipo de criação.

Manoel de Barros utiliza bastante esse recurso


em sua escrita para conseguir dar nome a
sensações que ainda não foram definidas.

Aqui, ele chega a algumas "conclusões" por


meio de seu olhar subjetivo e quase etéreo.
Podemos dizer que o autor, basicamente, exibe
uma inteligência e sabedoria da natureza
muito maior do que a dos seres humanos, que
se esquecem muitas vezes que são parte da
natureza.

2. O menino que carregava água


na peneira

Arte feita por bordadeiras de Minas Gerais, grupo Matizes


Dumont, que ilustra o livro Exercícios de ser criança

Tenho um livro sobre águas e meninos.


Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira


era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos
irmãos.

A mãe disse que era o mesmo


que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.


Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino


gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até
infinitos.

Com o tempo aquele menino


que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na
peneira.

Com o tempo descobriu que


escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu


que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.


Viu que podia fazer peraltagens com as
palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando


uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.


A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida
toda.

Você vai encher os vazios


com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus
despropósitos!

Esse lindo poema faz parte do livro Exercícios


de ser criança, publicado em 1999. Por meio do
texto, adentramos o universo psicológico,
fantástico, poético e absurdo de uma criança.

O menino que carregava água na peneira narra


as peraltagens de um garoto que gostava de
fazer coisas consideradas ilógicas, mas que
para ele tinham um outro significado. Para ele,
tais despropósitos eram parte de um sistema
maior e fantasioso de brincadeiras que o
ajudavam a compreender a vida.

No poema, percebemos a relação amorosa da


mãe com sua cria. Ela, a princípio, argumenta
que "carregar água na peneira" era algo sem
sentido, mas depois, se dá conta da potência
transformadora e imaginativa dessa ação.

A mãe então, incentiva o filho, que com o


passar do tempo também descobre a escrita.
Ela diz que o menino será um bom poeta e fará
diferença no mundo.

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Nesse poema, podemos considerar que, talvez,


o personagem seja o próprio autor, Manoel de
Barros.

3. Um bem-te-vi

O leve e macio
raio de sol
se põe no rio.
Faz arrebol…
Da árvore evola
amarelo, do alto
bem-te-vi-cartola
e, de um salto
pousa envergado
no bebedouro
a banhar seu louro
pelo enramado…
De arrepio, na cerca
já se abriu, e seca.

O poema em questão integra o livro


Compêndio para uso dos pássaros, lançado em
1999. Nesse texto, Manoel nos descreve uma
cena bucólica e bastante habitual de um bem-
te-vi a banhar-se em um fim de tarde.

O autor, por meio da palavras, nos conduz a


imaginar e contemplar um acontecimento
corriqueiro, mas incrivelmente belo.

Esse pequeno poema pode ser lido para as


crianças como um maneira de incentivar a
imaginação e valorização da natureza e das
coisas simples, nos colocando como
testemunhas das belezas do mundo.

4. Mundo pequeno I

O mundo meu é pequeno, Senhor.


Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e
suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão
comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no
incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa.
Ele me rã.
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para
inverter
os ocasos.

Mundo Pequeno está contido no Livro das


Ignorãças, de 1993. Mais uma vez, Manoel de
Barros nos convida, nesse poema, a conhecer
seu espaço, sua casa, seu quintal.

É um universo natural, cheio de simplicidade,


plantas e bichos, que o autor consegue
converter em um ambiente mágico, de
contemplação e até mesmo gratidão.

No texto, o personagem principal é o próprio


mundo. O menino em questão, se apresenta
amalgamado à natureza, e o autor depois
aparece também imerso nesse lugar, afetado
intensamente pela força criadora dos animais,
das águas e das árvores.

As crianças podem se identificar com o cenário


proposto e imaginar a avó, o menino e o velho,
figuras que podem trazer um resgate e
sugestão para uma infância simples e
descomplicada.

5. Bernardo é quase uma árvore

Bernardo é quase uma árvore


Silêncio dele é tão alto que os
passarinhos ouvem
de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos
de trabalho;
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte
usando três
Fios de teias de aranha. A coisa fica bem
esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza
com a sua
Incompletude?)

No Livro das Ignorãças, de 1993, Manoel de


Barros incluiu o poema Bernardo é quase uma
árvore. Nele, o personagem Bernardo carrega
uma intimidade tão grande com a natureza e
um senso de percepção do todo, que é quase
como se ele próprio se transformasse em
árvore.

Manoel traça uma relação fecunda entre o


trabalho e a contemplação, dando a
importância devida ao ócio criativo e à
sabedoria adquirida do contato com as coisas
naturais.

No poema, temos a sensação de que o


personagem é uma criança. Entretanto, na
realidade, Bernardo era um funcionário da
fazenda de Manoel. Um homem simples do
campo que conhecia estreitamente os rios, os
horizontes, o amanhecer e os passarinhos.

6. A menina avoada

Foi na fazenda de meu pai antigamente


Eu teria dois anos; meu irmão, nove.

Meu irmão pregava no caixote


duas rodas de lata de goiabada.
A gente ia viajar.

As rodas ficavam cambaias debaixo do


caixote:
Uma olhava para a outra.
Na hora de caminhar
as rodas se abriam para o lado de fora.
De forma que o carro se arrastava no
chão.
Eu ia pousada dentro do caixote
com as perninhas encolhidas.
Imitava estar viajando.

Meu irmão puxava o caixote


por uma corda de embira.
Mas o carro era diz-que puxado por dois
bois.

Eu comandava os bois:
- Puxa, Maravilha!
- Avança, Redomão!
Meu irmão falava
que eu tomasse cuidado
porque Redomão era coiceiro.

As cigarras derretiam a tarde com seus


cantos.
Meu irmão desejava alcançar logo a
cidade -
Porque ele tinha uma namorada lá.
A namorada do meu irmão dava febre no
corpo dele.
Isso ele contava.

No caminho, antes, a gente precisava


de atravessar um rio inventado.
Na travessia o carro afundou
e os bois morreram afogados.
Eu não morri porque o rio era inventado.

Sempre a gente só chegava no fim do


quintal
E meu irmão nunca via a namorada dele -
Que diz-que dava febre em seu corpo."

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A menina avoada compõe o livro Exercícios de


ser criança, publicado em 1999. Ao ler esse
poema, viajamos juntos com a menina e seu
irmão e adentramos as memórias de sua
primeira infância.

Aqui, é narrada uma brincadeira imaginativa


em que a menininha é conduzida em um
caixote por seu irmão mais velho. O poeta
consegue compor uma cena de divertimento
infantil ao retratar o imaginário das crianças,
que vivem verdadeiras aventuras em seus
mundos interiores, mas na realidade estavam
apenas atravessando o quintal de casa.

Manoel de Barros eleva, com esse poema, a


capacidade criativa das crianças a um outro
patamar. O escritor exibe também o
sentimento amoroso de forma ingênua, com
uma beleza sutil, através da namorada do
irmão.

7. O fazedor de amanhecer

Sou leso em tratagens com máquina.


Tenho desapetite para inventar coisas
prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no
sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das
indústrias
automobilísticas pelo Platinado de
Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.

Nesse poema, publicado no livro O fazedor de


amanhecer, em 2011, o poeta subverte o
sentido das palavras e exibe orgulhoso seu
dom para coisas "inúteis".

Ele nos conta que suas únicas "invenções"


foram objetos fantasiosos para fins igualmente
utópicos. Manoel consegue conciliar o caráter
prático de ferramentas e máquinas com uma
aura imaginativa e considerada supérflua.

Entretanto, a importância que o autor dá para


essas inutilidades é tão grande que considera
elogioso ser intitulado como "idiota" nessa
sociedade.

8. O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus


silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um
formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus
silêncios.

Poema extraído de Memórias Inventadas: As


Infâncias de de Manoel de Barros, de 2008. O
apanhador de desperdícios exibe um poeta que
tem como característica "colecionar" as coisas
sem importância.

Ele valoriza essas coisas, considerando


osacontecimentos banais da natureza como
verdadeiras riquezas. Assim, rejeita a
tecnologia em prol dos animais, plantas e
elementos orgânicos.

Outro ponto importante do texto versa sobre a


preciocidade do silêncio, tão raro nos grandes
centros urbanos. Aqui, ele exibe sua intenção
de fazer das palavras ferramentas para dizer o
"indizível", criando nos leitores um espaço
interno de contemplação da existência.

9. Deus disse

Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:


Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.

O poema em questão consta no projeto A


biblioteca de Manoel de Barros, coleção com
todas as obras do poeta, lançado em 2013.

No texto, o autor manipula as palavras,


trazendo novos significados e surpreendendo o
leitor ao aliar sensações díspares em uma
mesma frase, como no caso de "escutar o
perfume dos rios". Manoel utiliza-se bastante
desse recurso de sinestesia em suas obras.

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O poema se aproxima do universo das


crianças, pois sugere fantasiosas cenas que o
aproximam da natureza, tendo uma relação
até mesmo com brincadeiras, como no verso
"sei botar cílios nos silêncios".

10. Exercícios de ser criança

exercícios de ser criança

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