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Transtorno de Personalidade Antissocial e Criminalidade: pena ou tratamento?

Amanda Rocha Rachel


Elaborado: 28/03/2023 às 20:45
Enviado: 30/03/2023 às 10:00

No capítulo da Psicopatologia, um transtorno se destaca pelas implicações que pode


suscitar no campo da ciência jurídico-penal. Trata-se do transtorno de
personalidade antissocial (TPAS), cuja característica fundamental é a existência de
um padrão invasivo de desconsideração e violação aos direitos alheios. Esse
transtorno tem início na infância ou adolescência e continua ao longo da vida
adulta.

O aspecto central do transtorno de personalidade antissocial consiste na capacidade


de envolver outras pessoas em engodos e manipulações, e se manifesta a partir de um
padrão de comportamento típico, caracterizado pela repetição e persistência de
violação aos direitos de outras pessoas ou de regras sociais importantes, que, no
mais das vezes, incluem desde a agressão a pessoas ou animais, até a destruição de
propriedade, furtos, e outros comportamentos desviantes.

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), o


padrão de comportamento antissocial persiste ao longo da vida adulta e os
indivíduos portadores desse transtorno não conseguem se conformar às regras e
normas pertinentes ao comportamento dentro de parâmetros legais. Aponta-se como
sintoma mais importante do Transtorno de Personalidade Antissocial a completa
ausência de ansiedade ou sua manutenção em baixos níveis a partir de uma estratégia
de evitação ou controle dessa ansiedade ou de culpa. Em razão dessa característica,
os indivíduos com este transtorno tendem a ser impulsivos e passam a ter atitudes
temerárias, além de um padrão de intolerância à frustração que, por sua vez,
determina um padrão de agressão reativa. Além disso, costumam ser rotuladas como
hedonistas, apresentam superficialidade de sentimentos e carência de apegos
emocionais a outras pessoas. Não obstante este elenco de sintomas de humor,
apresentam-se bastante inteligentes e mantêm habilidades verbais e sociais bem
desenvolvidas. Do ponto de vista cognitivo, a principal observação a ser é feita é
que "a maioria das pessoas com Transtorno de Personalidade Antissocial parece
incapaz de beneficiar-se de punição" (HOLMES, 1999). Quando são punidas, a punição
não parece exercer nenhum efeito, independentemente de sua severidade. Outro
sintoma que merece destaque é o comportamento voltado à busca de sensações e, não
raro, portadores do transtorno de personalidade antissocial envolvem-se em
atividades ilícitas sem que haja um fim a atingir, agindo mais pela "aventura" que
por um propósito determinado. Não é difícil vislumbrar que tais comportamentos
determinam prejuízos emocionais e materiais a outras pessoas, na vida em sociedade.

Transpondo a problemática do transtorno de personalidade antissocial ao campo


jurídico, a questão que se impõe refere-se a qual tratamento deve-se dispensar ao
portador de tal transtorno autor de ilícito penal, porquanto se é certo que se o
mesmo, nessas circunstâncias, parece comportar-se dentro dos padrões do que se
convencionou chamar de normalidade, não é menos certo que seu comportamento é
significativamente condicionado pela sua patologia psiquiátrica. O impasse ganha
contornos interessantes se cogitado acerca de sua imputabilidade penal.

CP - Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940


Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com
esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Redução de pena
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em
virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou
retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
Menores de dezoito anos

É preciso, pois, especular acerca do que a lei considera como doença mental.
Delmanto (2002), afirma que a expressão inclui as moléstias mentais de qualquer
origem. Na mesma linha de raciocínio, Mirabete (2001), afirma que a expressão
inclui todas as alterações mórbidas à saúde mental, desde as de origem orgânica, às
tóxicas ou funcionais. De igual modo, Damásio de Jesus (1999), assevera que em se
tratando de um pressuposto biológico da inimputabilidade, a expressão abrange
diversos transtornos, aos quais definiu de maneira igualmente ampla, como psicoses,
esquizofrenia, loucura, histeria, paranoia. A partir dessas considerações, não
parece pairar dúvidas de que o Transtorno de Personalidade Antissocial estaria
incluído no âmbito da expressão "doença mental", embora não haja uma certa
alienação mental que talvez seja concebida ao se falar em doença mental, assim como
não seja tão evidente as manifestações da patologia, porquanto a sintomatologia do
transtorno já envolve comportamentos transgressores, costumeiramente confundidos
com o comportamento puramente criminoso, isto é, sem o componente patológico
determinante. Nessa perspectiva, o agente antissocial seria inimputável, ou, pelo
menos semi-imputável.

De outro lado, é necessário salientar que o agente portador de transtorno de


personalidade antissocial não perde a capacidade de compreensão do caráter ilícito
de determinado comportamento transgressor. Todavia, por apresentar um comportamento
impulsivo, é possível conjeturar acerca da impossibilidade que essas pessoas
apresentam de comportar-se segundo esse entendimento. De qualquer forma, estaria
incluído na regra da inimputabilidade penal (ou semi-imputabilidade) estampada no
artigo 26 (ou no seu parágrafo único) do Código Penal, sendo possível raciocinar
acerca da sujeição do agente nessas condições a uma medida de segurança.

Há, portanto, três possibilidades de enquadramento do portador de Transtorno de


Personalidade Antissocial: considerá-lo inimputável, portanto, sujeito a uma medida
de segurança; considerá-lo semi-imputável, reduzindo-se a pena aplicada de um a
dois terços, a teor do parágrafo único do artigo 26 do Código Penal; ou considerá-
lo imputável e, portanto, plenamente capaz de suportar uma sanção corporal.
Vejamos cada uma das possibilidades.

Considerando-o enquanto inimputável, é necessário ponderar que as medidas de


segurança diferenciam-se das penas em razão de sua finalidade, destinando-se à cura
ou tratamento do inimputável autor de ilícito penal. O ordenamento jurídico-penal
brasileiro prevê duas espécies de medidas de segurança, conforme determinação do
artigo 96 do estatuto penal, quais sejam, a internação em hospital de custódia e
tratamento psiquiátrico e a sujeição a tratamento ambulatorial, cuja aplicação de
uma ou de outra espécie vincula-se à espécie de pena que seria imposta.

A partir da edição da lei nº 10.216/2001, que programou a reforma psiquiátrica


brasileira, a aplicação da internação compulsória em hospitais de tratamento e
custódia passou a ser (ou pelo menos deveria ser) a exceção, de rara aplicação,
enfatizando métodos não asilares de tratamento de pacientes psiquiátricos. Assim
sendo, não é absurdo pensar que o tratamento a ser dispensado neste caso seria
exatamente pautado na perspectiva trilhada pela reforma psiquiátrica. Mas, a
aplicação de uma sanção terapêutica importaria na cura ou adaptação do doente?

Há uma tendência em se considerar que as pessoas com Transtorno de Personalidade


Antissocial são difíceis ou impossíveis de tratar. Haveria pouca ou nenhuma
responsividade ao tratamento. Parece que o melhor a fazer é esperar que o
transtorno se desgaste ao longo da vida, o que, conforme se observa na literatura
especializada, ocorre por volta dos 30 a 40 anos de idade.
Considerando-se a imputabilidade penal do portador de Transtorno de Personalidade
Antissocial autor de ilícito penal, naturalmente tem-se como resposta estatal ao
seu comportamento desajustado a aplicação de uma pena. Aliás, em razão das
dificuldades em se diagnosticar o transtorno, os portadores tendem a ser muito mais
punidos. No entanto, a pena aparentemente possui um caráter de inadequação, pois
não viabiliza a readaptação do doente. Assim sendo, as penas mostram-se
ineficientes, sobretudo quando se reflete acerca das condições do sistema
carcerário da atualidade, o que poderia contribuir para maior degenerescência e
deformação da personalidade do agente.

Por fim, é possível enxergar o portador de TPAS sob o prisma da semi-


imputabilidade. Conforme os dispositivos legais relativos à matéria, o acusado,
nessas condições, seria julgado e, uma vez condenado, contaria com uma redução em
sua pena variando de um a dois terços. Observe-se que o indivíduo continuaria a ser
sujeito de uma pena corporal, embora diminuída em seu quantum. Assim sendo, a
crítica que se pode fazer é a mesma da situação anterior. A única diferença seria
em razão do lapso temporal, que, nesse caso, seria menor.

A dúvida persiste. E parece de difícil equacionamento. Porém, a temática não deixa


de ser um campo ideal de diálogo entre as ciências jurídicas e as ciências da
mente, para responder a demanda relativa a uma nova forma de considerar o homem em
sofrimento, mais compatível com sua complexidade.

REFERÊNCIAS:
DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

DSM-IV – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre:


Artes Médicas, 1995.

FRANÇA, Genival Veloso. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva,
1999.

HOLMES, David. S. Psicologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Código Penal interpretado. São Paulo: Atlas, 2002.

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