Você está na página 1de 99

ANTONIO CARLOS ROBERT MORAES

Departamento de Geografia, FFLCH, USP

Reitor: José Goldemberg


Vice-Reitor: Roberto leal Lobo e Salva Falho

Obra co-edttada com a


EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO A GENESE DA
Presidente: João Alexandre Barbosa
GEOGRAFIA MODERNA
Mm
o Comtssão Edttorial·

v_ Presidente: João Alexandre Barbosa Membros:


TOM Antonto Brtto da Cunha, José E Mindlin, Luiz
TOM Bernardo F. Clauzet e Oswaldo Paulo Forattint.
PlO(
c c

Yr

EDITORA HUCITEC
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
São Paulo, 1989
© 1987 de Amomo Carlos Robert Moraes. Direitos de publicação reservados pela
Editorade Humanismo. Ciência e Tecnologia "Hucilec.. Ltda. Rua Geórgia, SI
04SS9 São Paulo, Brasil. Telefone: (OI I) 241-0858.
Sumário

ISBN 85.271-0107-6
Fcn feitll o depósllo legal

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional Nota introdutória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13


(Câmara Braallelra do livro, SP, Brasil)
1 A particularidade histórica da Alemanha e a gênese da
Geografia moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Moraes. Ant~nio Car los Robert, 1954- A sistematização da Geografia moderna . . . . . . . . . . . . . 15
A gênese da geo graf ia moderna I Antonio Carlos A particularidade histórica do desenvolvimento do capi-
Robert Moraes. -- S~o Paulo : HUCITEC : Editora da talismo na Alemanha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Un1versidade de São Paulo, 1989. -- (Geograf1a. Teo-
rla e realidade ; v . 161 O pensamento alemão no século XIX . . . . . . . . . . . . . . . . 50
A Geografia na história da Alemanha . . . . . . . . . . . . . . . 66
ISBN 85-271-0107-6
2 A Geografia Física de Humboldt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
1 . Geograf1a - F1losofia 2. Geografia- Htst~ria
3 . Humbo ld t , Alexander von, 1769-1859 4. R1tter, Dados biográficos e bibliográficos de Humboldt . . . . . . 80
Ca r l, 1779-1858 I . Titulo. II. Série . Os fundamental> filosóficos do pensamento de Hum-
boldt.... ..... .. .. ................ ........... 87
Cosmologia e Geografia: a questão dos rótulos . . . . . . . . 98
O objeto e o método da Geografia segundo Humboldt .. 108
O posicionamento político e as concepções sociais de
89-1653 CDD-910 . 9 Humboldt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
- 910 . 01
Considerações sobre a Geografia de Humboldt........ 129
lndices para catálogo sistemático:
1 . Geograf~a moderna Filosofia 910.01 3 A Geografia Comparada de Ritter . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
2 . Geografia mod~rna : HistÓria 9 10 . 9 Dados biográficos e bibliográficos de Ritter . . . . . . . . . . 138
As bases filosóficas do pensamento de Ritter . . . . . . . . . 148
Teologia e Geografia: a questão do finalism o . . . . . . . . . 162
O objeto e o método da Geografia segundo Ritter. . . . . . 170
Sociedade e natureza na Geografia de Ritter. . . . . . . . . . 187
Considerações sobre a Geografia de Ritter . . . . . . . . . . . 198

Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203

1l
Nota Introdutória

Ü volume que ora publicamos apresenta parte do texto de


nossa dissertação de mestrado defendida no segundo semestre de
1983, no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. A pre-
sente edição traz parte do primeiro capítulo e, quase na íntegra
o segundo e terceiro, tendo sido suprimidos o quarto capítulo,
"Ratzel e a Antropogeografia", a Introdução, a Conclusão e os
itens iniciais referentes às dificuldades de periodizar e classificar
o conhecimento geográfico. Esta última discussão aparece num
texto que escrevemos posteriormente, "Epistemologia e Geogra-
fia", publicado na revista Orientação, n? 6 (Instituto de Geogra-
fia da USP, 1985). O capítulo sobre Ratzel serviu de base para a
redação do texto introdutório da coletânea a respeito desse autor,
que organizamos para a coleção ''Grandes Cientistas Sociais".
a convite do prof. Florestan Fernandes (Editora Ãtica, no prelo).
Assim, com a edição do presente volume completamos a divul-
gação dos resultados obtidos no trabalho de mestrado.
Por ser um livro dedicado a um público amplo, decidimos su-
primir nessa edição algumas avaliações por demais específicas
que tornavam a leitura muito árida. Pelo mesmo motivo tiramos
do texto as notas de identificação das inúmeras citações dos auto-
res analisados; a forma de exposição adotada (buscando utilizar
ao máximo as próprias palavras de Humboldt e Ritter) tornou sua
quantidade bastante elevada. Tais notas só interessariam ao leitor
especializado, e este pode buscar o texto original da dissertação
nas bibliotecas do Departamento de Geografia e do Centro de
Apoio à Pesquisa Histórica da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP, e da Associação dos Geógrafos Brasi-
leiros - núcleo São Paulo.

São Paulo, setembro de 1986.

13
Capítulo 1

A Particularidade Histórica
da Alemanha
e a Gênese da Geografia Moderna
A SISTEMATIZAÇÃO DA GEOGRAFIA MODERNA

Na literatura da história do pensamento geográfico é quase


unânime o estabelecimento do marco inicial da Geografia mo-
derna na publicação das obras de Alexandre von Humboldt e de
Karl Ritter. Não há controvérsias em colocá-los como os pioneiros
do processo de sistematização dessa disciplina; a discordância,
quando aparece, diz respeito à ênfase dada a um desses autores
em detrimento do outro. Humboldt e Ritter são. sem dúvida, os
pensadores que dão o impulso inicial à sistematização geográfica,
são eles que fornecem os primeiros delineamentos claros do do-
mínio dessa disciplina em sua acepção moderna, que elaboram as
primeira~ tentativas de lhe definir o objeto, que realizam as pri-
meiras padronizações conceituais, e constituirão o objeto do pre-
sente estudo.
Antes de iniciar a avaliação dos pressupostos históricos mais
genéricos, cabe fazer uma advertência: desse processo de sistema-
tização da Geografia, iniciado com a publicação das obras de
Humboldt e Ritter, não emerge uma Geografia sistemática, isto é,
um estudo voltacio para a compreensão de um fenômeno (ou
classe de fenômenos) particular. Emerge, isto sim. uma Geogra-
fia sistematizada que, apesar de assumir-se como campo autô-
nomo de conhecimento científico, não chega a formular uma pro-
posta de estudo sistemático, isolando um objeto especificamente
seu. Ao contrário, tal Geografia t<>.ma como eiemento de sua iden-
tificação esta característica assistemática, propondo como legiti-
mação de sua especificidade a diferenciação introduzida pela
perspectiva associativa ou sintética, que trabalha com uma varie-
dade enorme de fenômenos estudados. cada um, pelas mais dife-
rentes ciências. Esta advertência, mesmo sendo bastante simples,
incide sobre questão da maior relevância, pois o caráter não siste-

15
mático da Geografia proposta va1 trazer toda uma problemática história universaL Não seria o caso de relembrar aqui todos os
específica para o âmbito da discussão metodológica dessa disci- movimentos e significados históricos de tal processo, nem mesmo
plina. A necessidade de reafirmar continuamente sua autoridade de se discutir suas implicações no plano do desenvolvimento das
e identidade, e as dificuldades (muitas vezes lógicas) de realizar idéias, ou ainda de se tentar fazer uma pequena história do surgi-
essa tarefa, acompanharão a trajetória da Geografia moderna até
mento das ciências modernas; sobre esses assuntos existe rica e
a atualidade. Posta essa advertência, pode-se retornar ao eixo da
vasta bibliografia. Apenas tentar-se-á apontar, nas linhas seguin-
discussão, qual seja, os pressupostos históricos da Geografia mo-
derna. tes, algumas condições mais gerais que interessavam diretamente
ao surgimento da Geografia moderna. Frisa-se o diretamente,
As condições para a erupção da sistematização da Geografia
pois, no mais, a gênese de tal disciplina obedeceu a todas as de-
vão-se compondo num processo lento calcado em múltiplos con-
terminações que requereram as ciências modernas em seu con-
dicionantes, tanto histórico-estruturais, remetendo a um deter- junto.
minado grau de desenvolvimento material das sociedades. quanto
O pressuposto mais fundamental da Geografia moderna era o
vinculados à formulação de determinados postulados científicos e
conhecimento efetivo de todo o planeta, isto é, que o "mundo
filosóficos. A gênese da Geografia moderna necessitou, assim, de
uma série de condições históricas para poder objetivar-se. Essa conhecido" atingisse a total extensão da Terra. Assim, a condição
afirmação não encontrará, provavelmente, contraditares entre os de realização desse pressuposto calcava-se na constituição do es-
paço mundial de relações. A consciência da magnitude real da
que aceitam a tese da determinação histórica do pensamento hu-
superfície terrestre (em termos de sua forma, dimensão, subdivi-
mano, logo. da origem socialmente dada das formulações cientí- são e limites) representava o patamar mínimo para o afloramento
ficas. 1 Os pressupostos históricos do processo de sistematização da reflexão sistematizada sobre esse espaço concreto. Tal apreen-
da Geografia foram se objetivando no movimento de constituição são mais elaborada sobre a Terra requeria conhecimento fatual
do modo de produção capitalista. Assim. tal disciplina deve ser considerável estabelecido e a possibilidade da aferição empírica
vista como produto relativamente recente do desenvolvimento his- de uma visão de conjunto do globo. A objetivação dessas condi-
tórico da humanidade. As condições para sua gestação foram ge- ções começa a emergir com o início da expansão européia no qui-
radas no longo processo de transição do Feudalismo para o Capi- nhentismo. A descoberta e incorporação de novas terras, as pri-
talismo, processo esse que implicou o estabelecimento de uma
meiras viagens de circunavegação e as expedições exploradoras
vão propiciar o estabelecimento de uma representação realística
I Os fundamentos de tal concepção encontram-se originariamente formu- do planeta já em meados do século XVII. Os grandes descobri-
lados nas obras de Marx c Engels. autores que dizem: "A produção das idéias, mentos inauguram a possibilidade desse processo de constituição
de representações, da con~ciênc~a. está, de início, diretamente entrelaçada com do espaço mundial, que a expansão mercantil vai substantivar,
a allvidade material e com o intercâmbio material dos homens, como a lin- fazendo com que o ecúmeno passe, no decorrer de alguns séculos,
guagem da vida real. O representar, o pensar, o mtercâmbto espiritual dos ho- a abarcar toda a superfície terrestre. Até então, a possibilidade de
mens, aparecem aqui como emanação direta de sell comportamento material. O
consciência espacial do mundo limitava-se aos espaços restritos
mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da po·
lítlca, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc .. de um povo. Os ho-
das sociedades que empreendiam tal reflexão; a Geografia dos
me-ns são os produtores de suas representac;ões, de suas idétas, etc .. mas o~ ho· gregoslou dos árabes não poderia ir além do espaço de relações
mens rc:m. tal como se acham condicionados por um determmado desenvolvi- em que transitavam esses povos. O estabelecimento de uma eco-
mento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corre~ponde até nomia planetária e de um espaço de relações global. com a expan-
ch ~gar às suas formaçi'Jes mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coi- são da!> relações capitalistas de produção, é que vai alterar esse
sa ;io que o ~er consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real". quadro fragmentário. A possibilidade dessa consciência mundia-
ldeologra alemã. Gri;albo, São Paulo. 1977, pp. 3617. Sobre e~ta que~tão. ver lizada foi, sem dúvida, o patamar fundamental d;t sistematização
também a entrevista de Lukács. intitulada "Ser e consciência", em Holz. W., geográfica. A expansão marítima, os descobrimentos, a posterior
Kofler. L e '\bendroth, W. - Conversando com Lulc.ács. Paz e Terra. Rio de apropriação de novas áreas do globo, inscrevem-se como parte
Janeiro. 1969.
ativa do processo de transição do Feudalismo para o Capitalismo,
16
17
e manifestam um momento de alargamento do horizonte espacial dema. O acúmulo das descrições fornece base empírica para a
(e comercial sobretudo) europeu. comparação entre as áreas, núcleo germinador das indagações
A constituição da economia mundial implicava ir além da sim- associadas na sistematização geográfica. Na verdade, a Geografia
ples descoberta, remetendo, à necessária apropriação dos novos do século XVIII foi fundamentalmente a elaboração (padroni-
territórios, sua incorporação efetiva ao sistema produtivo do cen- zação, catalogação, classificação) desse material acumulado, e
tro difusor. Essa apropriação vai ocorrendo lentamente, desagre- representou a base imediata da emersào da sistematização geo-
gando os modos de vida locais e colocando essas novas áreas, gráfica.2 R. Figueira elabora uma expressão precisa ao dizer que
abrangidas pelo avanço, sob o domínio das relações de produção tal Geografia tentava "a reconstituição racional do espaço da
engendradas e regidas pelos interesses dos estados europeus. A aventura mercantil". 3
sedimentação dessa economia mundializada se faz com o progres- Além desse acúmulo de informações e do aprimoramento das
sivo estabelecimento de atividades produtivas nas novas terras, descrições subjacentes ao avanço da expansão mercantil, há outro
o que coloca os agentes de expansão em contato com realidades elemento, que se gesta associado aos mencionados, que deve ser
espaciais bastante distintas (com relação a seu quadro referencial lembrado. Trata-se do desenvolvimento dos meios de representa-
europeu) e diferenciadas entre si. Com o progresso da exploração ção cartográfica, que se constituem no instrumental, por excelên-
colonial, o levantamento de informações das particularidades en- cia, do trabalho do geógrafo. O avanço da linguagem da Carto-
contradas vai sendo executado de forma cada vez mais criteriosa e grafia ocorre calcado nas exigências práticas da intensificação das
detalhada; o avanço na apropriação dos territórios alimenta esse relações comerciais; era fundamental para a navegação estabe-
acervo, onde se vão avolumando os dados sobre numerosas áreas, lecer, da forma mais aproximada possível, a representação das
de condições naturais e populações totalmente diferenciadas. rotas e a localização das terras e dos portos. Também a amplia-
Nesse processo, o conhecimento do mundo passa a ser, mais do ção do tráfico terrestre, envolvendo distâncias maiores e trocas
que o !>imples saber da existência de outros territórios, um conhe- mais regulares, demandava esse aprimoramento. Finalmente, as
cimento efetivo das condições ali reinantts. À possibilidade de necessidades de conhecer a extensão real das colônias, assim
uma visão planetária na representação do mundo vem somar-se a como de lhe demarcar os limites, incidem sobre o desenvolvi-
formação de um cabedal de informações sobre lugares singulares mento da Cartografia. O uso dos mapas vai popularizar-se com a
localizados nos mais variados pontos da superfície da Terra. descoberta e aprimoramento das técnicas de impressão. Estas
A fcrmação desse cabedal é vista aqu1 como uma segunda con.- permitem a difusão das cartas, melhoradas pela aferição empírica
dição para o aparecimento da Geografia moderna. A condição de reiterada na intensificação das viagens. O instrumental cartográ-
sua realização ligava-se à inexorabilidade da expansão capitalista fico vai agregar-se, como meio privilegiado de representação, às
(expansão que está na essência mesma de tal modo de produção) técnicas de descrição, dando-lhes, já, uma tonalidade propria-
que, em seu avanço espacial, gerou a necessidade de conhecer e o mente geográfica nas crônicas dos viajantes naturalistas do sete-
conhecimento das várias partes do globo. O levantamento de in- centos. Assim, dos relatos ocasionais e intuitivos dos exploradores
formações avançava pari passu com o domínio e a sedimentação e aventureiros passa-se, com a evolução da própria empresa co-
das atividades produtivas nas colônias. Tanto o levantamento lonial, às descrições ordenadas e imbuídas do espírito objetivo
como a sua posterior catalogação vão sendo efetuados de modo das ciências modernas nascentes. Pode-se dizer que tal situação,
cada ve1 mais ordenado; basta pensar que das expedições explo- plenamente alcançada no século XVIII, é já o anteato imediato
radoras do ~éculo XV chega-se às expedições científicas do sé- do processo de sistematização da Geografia.
culo XV lll, todas financiadas diretamente pelas coroas euro-
péias. Também a fundação das sociedades geográficas e dos escri-
tórios coloniai~ atesta o interesse fundamental dos Estados por 2 Essa questão é bem discutida na obra de M . Quaini, A L'Onstruçào da
e~sa coleta de informações. Decorre desse interesse um rev1gora- geografia humana, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1985.
mento das descrições, que pela prática se vão aprimorando. fato 3 Figueira, R. -Geografia, ciência humana, Centro Editor da América
que é extremamente relevante para a irrupção da Geografia nH' Latina. Buenos A1res, 1978. Introdução, p 18.

18 19
Vê-se que os pressupostos gerais mais diretamente vinculados superação política das instituições feudais; isso implicou uma luta
à possibihdade de surgimento da concepção moderna de Geogra- ideológ1ca com o sistema de idéias que dava legitimidade a tais
fia se realizam no próprio processo de efetivação do domínio das instituições. Em função disso. o período de transição entre os dois
relações capitalistas. A possibilidade de conceber e de efetuar modos de produção apresentou um grande alargamento do hori-
uma representação ordenada de todo o planeta e a existência de zonte do pensamento humano. A necessidade, posta para os pen-
um cabedal de informações precisas sobre numerosos pontos da sadores burgueses, de superar as relações feudais levava ao esta-
superfície terrestre eram os imperativos elementares da sistema- belecimento de uma postura crítica frente ao existente e frente às
tização geográfica. Esses dois condicionantes articulavam a ques- interpretaçõe!> que sustentavam tal ordem. Uma postura crítica,
tão basilar dessa disciplina: a busca de uma relação teórica entre como se sabe. é o estímulo principal de qualquer avanço subs-
a unidade da superfície terrestre e a diversidade dos lugares. O tantivo do conhecimento. Além disso. o caráter hegemômco da
primeiro ponto remetia a uma consciência mundializada, e o se- proposta que veiculavam. que representava a instalação do novo.
gundo. à consciência de composições diferenciadas nas singulari- permitia que os intelectuais burgueses formulassem considera-
dades locais. Tais pressupostos estarão plenamente realizados em ções universais.4 Foi nesse ambiente que se forjaram as ciências
meados do século XVIII. Porém, a sistematização da Geografia modernas. como armas de combate ideológico da burguesia nas-
não flui mecanicamente da existência dessas condições materiais cente em busca da consolidação de seu projeto político. As condi-
para sua aparição. Tais condições eram pressupostos e não estí- ções para a eclosão do processo de sistematização da Geografia se
mulos diretos; além do mais, às necessidades práticas correspon- gestaram. como parte integrante, desse movimento. Um dos pon-
dia uma perspectiva igualmente prática de tratar os temas geo- . tos destacados de tal movimento ideológico residiu na afirmação
de uma concepção racionalista do mundo. A ordem feudal legiti-
gráficos. Não havia uma premência utilitária de se propor uma
Geografia para realizar os interesses em pauta, pois tais interesses ,. mava-se numa interpretação teológica do mundo, em que a essên-
já eram supridos, em termos imediatoS', pelo trabalho prático que cia dos fenômenos era vista como incogniscível. pois repousava na
se fazia sem o concurso deste rótulo. teleologia divina. Contrapondo-se a essa ordem, o pensamento
Para que a Geografia moderna viesse a ser formulada havia burguês vai valorizar as possibilidades da razão humana. Tal pos-
ainda necessidade de uma outra classe de condições, aquelas refe- tura já aparece no cerne das formulações mais progressistas dos
rentes diretamente à evolução das idéias. isto é, a discussão autô- filósofos da Renascença. Estes aceitavam a existência de uma or-
noma e unitária do temário geográfico deveria ser referendada dem na manifestação dos fenômenos, passível de ser apreendida
pelo pensamento filosófico e científico. Assim, existiriam uma pelo entendimento humano e de ser enunciada de forma sistema-
série de pressupostos intelectuais para a eclosão da Geografia mo- tizada . De explicações de fundo teológico, baseadas na crença da
derna. A simples existência dos pressupostos materiais não tece origem divina da ação dos eventos, passa-se para uma visão que
mecanicamente a explanação geográfica, sendo necessário um defende a observação sistemática em busca de constâncias, ritmos
determinado arcabouço lógico filosófico , já estabelecido, que pro- e relações entre os fenômenos. Tal passagem não se faz de ime-
piciasse a formulação dessas postulações. Neste caso, a condição diato, ao contrário, avança por formas conciliatórias exemplifi-
de realização passa a ser não apenas um desenvolvimento histó- cáveis na idéia do "impulso inicial" de Newton ou da "mão invi-
rico material. mas o desenvolvimento da história das idéias. Aqui , sível" de Adam Smith. De qualquer forma, tal trânsito represen-
a relação dialética entre a base material e a consciência mani- tou um progresso incrível do conhecimento humano. Justificava-
festa-se de forma mais mediatizada, diferenciando-se nas conjun- se a busca de uma explicação racional do mundo, nn bojo da qual
turas específicas e nas particularidades do desenvolvimento histó- se constituem as ciências modernas.
rico de cada país. Das ilações diretas do processo de constituição
do espaço mundializado, passa-se para o cenário de movimentos
mais específicos (ainda que nesse primeiro momento sejam discu- 4
Sobre este assunto pode·se con~ultnr· Lukács, G. - Marxismo ..- ll'!lrtu
tidos de modo genérico). da luerarura, Civilização Bra~ile1ra, Rio de Janeiro. 1968. ensaio. ''Marx e o
A afirmação do modo de produção capitalista demandava a problema da decadência ideológica".

20 21
O campo principal. sobre o qual incide a maioria das inda- suas formulações, um dos temas mais destacados do universo de
gaçõe!) das ciências nascentes. vai ser o dos fenômenos naturais. preocupações da Geografia moderna, qual seja: a questão da re-
As várias ciências dedicadas ao estudo da natureza conhecem um lação da sociedade com o território. Esse tema, de tradição no
desenvolvimento fantástico no decorrer dos séculos XVII e XVIII. pensamento político desde a Renascença, vai ocupar um papel de
Os avanços explicativos com relação aos fenômenos naturais ex- destaque nas formulações de vários pensadores da Ilustração. São
pressos na paisagem foram dos mais significativos. A Botânica, bastante conhecidas, por exemplo, as colocações de Montesquieu,
a Zoologíá e a Geologia sistematizam-se nesse período. alimen- relacionando as formas de relevo com a índole dos povos, ou as
tadas, em muito, pelas informações oriundas das novas terras. colocações de Rousseau, relacionando as formas de governo com
Apesar de se desenvolverem sobremaneira as pesquisas de fenô- a extensão dos territórios. O debate do temário geográfico, efe-
menos específicos, o pensamento desse período não isola os estu- tuado ao discutirem as questões centrais da sociedade, veste-se de
dos em compartimentos estanques. Ao contrário, a tônica sinté- uma legitimidade social,.ganhando força a justificativa de se pro-
tica e integradora domina a produção do conhecimento. Deveu-se por um estudo específico de tais preocupações. Não era apenas na
isto. em primeiro lugar, ao não-distanciamento entre Ciência e filosofia iluminista, porém, que os temas geográficos afloravam.
Filosofia. Tais formas de pensamento encontravam-se, nesse mo- Também as obras filosóficas de síntese, próprias do período, as
mento, intimamente entrelaçadas; na verdade, buscava-se o co- que expressavam grandes "sistemas filosóficos", vão dar guarida
nhecimento do mundo para municiar as argumentações especula- em seu seio aos temas da Geografia. A tematização de vários as-
tivas; a pesquisa empírica não era oposta à divagação abstrata, suntos, englobados posteriormente no âmbito dessa disciplina,
antes se integravam num discurso unitário. Por esse motivo, ra- aparece, por exemplo, nas páginas de Kant, de Hegel ou mesmo
zão e natureza também não eram antagônicas; ao contrário, con- de Corrtte, todos formuladores de grandes sistemas. Essas obras.
cebia-se a razão como natureza humana, reflexo no homem da que culminam com proposições éticas e políticas. tentam dar
harmonia natural. Buscava-se compreender a natureza para se conta de toda a realidade num discurso unitário e integrativo, não
compreender a natureza humana, de forma a ajustar a ela as ins- sendo estranhos a este saber enciclopédico alguns problemas no-
tituições sociais. Dessa forma, a visão sintética necessária para a dais do pensamento geográfico. Tais considerações aparecem
motivação política do processo se sobrepunha ao móvel mera- então como antecedentes filosóficos da sistematização geográfica,
mente utilitário do desenvolvimento de tecnologia, ao nível da fato que transparecerá na citação dos geógrafos pioneiros desse
manipulação dos fenômenos específicos. Isso implicou um incen- processo que se remetem amiúde a tais discussões, efetuadas no
tivo a propostas acadêmicas de disciplinas sintéticas. A História plano da Filosofia. para obterem legitimações para suas formula-
Natural, a Fisiologia. a Anatomia inscrevem-se entre estas tenta- ções. Existiu, assim, uma anterioridade de explicitação de algu-
tivas, às quais perfilar-se-á a própria Geografia. O desenvolvi- mas questões centrais da Geografia no nível filosófico, em relação
mento das ciências naturais sistemáticas e dessas ciências sinté- a seu estudo sistematizado e agrupado nesse rótulo científico.
ticas foram alimentadores diretos do processo de sistematização Poder-se-ia lembrar ainda algumas obras específicas de Filosofia
da Geografia. As primeiras forneceram-lhe conhecimentos orde- da História ou de Filosofia da Natureza que atuaram no mesmo
nados sobre os fenômenos singulares presentes em seu temário: sentido (basta pensar na produção de Herder entre as primeiras,
classificações, teorias particulares, etc. As segundas forneceram a e na de Schelling entre as segundas). De modo geral, a produção
possibilidade lógica de formulação de uma ciência não sistemá- filosófica do período (século XVII, XVIII e até meados do século
tica. Assim, a formulação explícita destas ciências constituiu-se XIX) referendou o temário geográfico, fornecendo uma base de
objetivamente em pressupostos da Geografia moderna. autoridade para propostas que veiculassem sua discussão unitária
A Geografia encontrou, porém, fora do campo das ciências da e integrada numa disciplina autônoma.
natureza, outras colocações impulsionadoras de sua sistematiza- Do que foi apresentado, sucintamente, pode-se depreender
ção. Ao nível do conhecimento filosófico propriamente dito. en- que no início do século XIX já se colocavam, ao nível do pensa-
contram-se várias vias de legitimação do debate dos temas geo- mento, uma série de condicionantes que permitiam o afloramento
gráficos. O pensamento iluminista, principalmente, releva, em da sistematização da Geografia. O desenvolvimento das ciências

22 23
naturais sistemáticas, tematizando os variados fenômenos da pai- relatos de viagens que imperavam sob este rótulo. N. Werneck
sagem, a existência de ciências sintéticas, visando fornecer expli- Sodré. autor que aponta bem este processo, diz: "Com o alastra-
cações de conjunto, e a legitimação filosófica das questões geo- mento das relações capitalistas e correspondente declínio do me-
gráficas (seja pela inserção de tais questões em sistemas amplos, dievalismo e com a revolução burguesa na Inglaterra e início do
seja pela explicitação de seu conteúdo político) propiciavam o processo que a efetivará na França nos fins do século XVIII, pode
surgimento da Geografia moderna. Seu temário já estava referen- ser aceita a convenção do encerramento do longo período inicial,
dado. assim como estavam dadas as possibilidades lógicas para preliminar, preparatório da Geografia, sua pré-história por assim
~ua formulação enquanto disciplina autônoma. Caberia ainda dizer" .5
apontar um último conjunto de formulações que impulsionaram Na verdade, os pressupostos históricos necessários para a eclo-
diretamente a irrupção da Geografia moderna ao trazer as ques- são da Geografia moderna representavam o "pano de fundo" de
tões de seu temário para a ordem do dia do debate científico do tal processo. Não desembocavam, porém, em si, diretamente no
século XIX: trata-se daquelas teses que veiculavam a proposta imperativo de uma proposta de sistematização. Eram condicio-
evolucionista. Tal conjunto foi gerado contemporaneamente ao nantes necessários para seu surgimento, mas não lhe determina-
processo de sistematização da Geografia e, sem dúvida, forneceu- vam diretamente a gênese. Em suma, quer-se dizer que a sistema-
lhe argumentos e bases de sustentação. As teorias evolucionistas tização geográfica não seria uma resultante mecânica da reali-
davam um destaque fundamental às questões que constituíam o zação de seus pressupostos. Havia necessidade, para que tal ocor-
temário geográfico {para se lembrar apenas um exemplo, pode-se resse, que existisse um impulso vital, para se pensar o temário
mencionar a problemática da influência do meio sobre a evolução geográfico na prática social de algum povo, que tivesse realizado
dos organismos, expressa com clareza por Lamarck); além disso, os pressupostos elencados (que houvesse participado do processo
apresentavam conceitos e teorias que auxiliavam diretamente na de sua realização) . Assim, aponta-se a necessidade de um estí-
ordenação desse temário {pense-se no conceito de meio ou de mulo social mais direto para a gênese da Geografia moderna.
organismo). Os principais autores do evolucionismo vão aparecer Nesse plano. o próprio desenrolar-se da história dessa disciplina
com destaque nas obras dos formuladores pioneiros da sistemati- jã indica com uma clareza meridiana o caminho a ser trilhado
zação geográfica; Lamarck, Haeckel e Darwin, entre outros, são pela investigação. A gênese do processo de sistematização da
figuras presentes nas páginas de Humboldt e Ritter. A teoria da Geografia possui uma origem bem particularizada expressa numa
adaptação dos organismos às condições externas, o conceito de nacionalidade bem específica. Tal processo foi obra do pensa-
associação de elementos, a apresentação do desenvolvimento mento alemão. Humboldt e Rirter eram prussianos, assim como
como estimulado pela diversidade ambiente, enfim toda a teori- quase todos os principais geógrafos do século XIX. Por essa ra-
zação desenvolvida pelos evolucionistas apontava para um sis- zão, o estímulo direto para a eclosão dessa disciplina deve ser bus-
tema de explicação do mundo onde a problemática geográfica cado na particularidade histórica do desenvolvimento do capita-
aparecia num lugar central e vital. lismo na Alemanha. É apenas na análise da especificidade desse
A articulação dos elementos apresentados se constitui na reali- país que se poderã apreender as razões que levaram esta socie-
zação das condições intelectuais para o surgimento da Geografia dade a valorizar a reflexão sobre o temãrio geográfico. É essa
moderna. Tais condições, que se configuram num ambiente cul· análise que se passa a expor no próximo item.
tural propício e capaz de engendrar tal formulação, também se
substantivam como uma face de processo de afirmação das rela·
ções capitalistas, qual seja, a da luta ideológica empreendida pelo
pensamento burguês em busca de hegemonia política. Observa·
se que, no findar do século XVIII, a malha de condições mate·
riais e intelectuais estava suficientemente tecida para engendrar
uma proposta de Geografia unitária e autônoma que buscasse 5 Sodré, N. W. -Introdução à geografia. Geografia e ideologia , Vozes,
uma explicação, indo além das nomenclaturas exaustivas e do~ Petrópolis. 1976, p. 25.

24 25
A PARTICULARIDADE HISTÓRICA DO DESENVOLVIMENTO DO
CAPITALISMO NA ALEMANHA tantiva. A perda da chancela religiosa, a partir das disputas dos
séculos XI e XII, vem reforçar ainda mais a fragilidade do poder
central. Segundo Ganshoff: "a 'questão das investiduras' reduziu_
O processo de constituição do Estado Nacional moderno. na Ale- consideravelmente a autoridade do rei sobre os bispos e compro-
manha, apresentou, em relação ao quadro europeu ocidental, meteu gravemente a própria estrutura da igreja imperial; quando,
um itinerário bastante singular. Basta observar que tal processo aproveitando-se desta mesma questão das investiduras, os mar-
só se efetivou no t'1ltimo quartel do século passado, mais especi- queses e os condes se transformaram quase completamente em
ficamente a 18 de janeiro de 1871. Até então, a Alemanha restou príncipes autônomos, conservando muito pouco do seu caráter de
como "o país eternamente inacabado" .6 Esse caráter tardio, e funcionários públicos, foi necessário encontrar outros elementos
toda a peculiaridade dele decorrente, do processo de unificação de apoio da autoridade real". Tais elementos foram buscados
nacional também implicou uma lentidão com respeito ao desen- num reforço significativo da estrutura institucional feudal, num
volvimento das relações capitalistas nesse país. G. Lukács, numa momento em que noutras regiões da Europa o processo de afir-
expressão sintética, afirma: "O destino, a tragédia do povo ale- mação dos Estados nacionais se desenvolvia num sentido inverso,
mão, consiste, falando em termos gerais, em haver chegado de- isto é, de reforço do poder central. Essa situação, ainda segundo
masiado tarde no processo de desenvolvimento da moderna bur- Ganshoff, tomou "difidlima, senão impossível, à coroa a consti-
guesia" .7 Este traço particularizador vai marcar profundamente tuição de um território próprio importante. A Alemanha feuda-
todos os planos da história da Alemanha, das relações econômi- lizava-se inteiramente; sabe-se que a realeza, com os Hohenstau-
cas, passando pela organização política, até as formas de pensa- fen e os seus sucessores, não conseguiu manter a seu serviço as
mento. É nele inclusive que residem as determinações históricas instituições públicas desta maneira transformadas: daí resulta-
específicas explicativas do afloramento pioneiro do processo de ram os principados territoriais donde saíram os estados alemães
sistematização do pensamento geográfico nesse país. Para bem da época moderna e contemporânea e, especialmente, os princi-
compreender a problemática da "miséria alemã", deve-se retro- pais dentre eles: Áustria, Prússia, Baviera, etc. " 8
ceder bastante no tempo, ao processo de desmembramento do É dentro dessa situação descrita que a Alemanha vai vivenciar
império carolíngio e à subseqüente formação do Sacro Império o período da expansão mercantil da Renascença e, principal-
Romano-Germânico. mente, da Reforma: desmembrada em unidades políticas pratica-
O Sacro Império Romano-Germânico, que se estabelece em mente autônomas. e articuladas apenas por laços tênues e for-
962 e que formalmente só é destruído em 1806 pela vitória napo- mais. L. Febvre, em seu estudo clássico sobre Luter'o, escreve: "A
leônica, na verdade representava mais um compromisso confede- Alemanha de 1517: terras férteis . recursos materiais poderosos,
rativo de defesa dos valores da cristandade frente às ameaças das cidades orgulhosas e esplêndidas, trabalho por todas as partes.
hordas asiáticas e do Islã, do que uma unidade nacional fede- iniciativa, riquezas; porém nenhuma unidade, nem moral nem
rada. Sua estruturação dava-se pela agregação de unidades polí- política"; e conclui: "A Alemanha era um país sem unidade: isto
ticas bastante autonomizadas e diversificadas, tendo por princi- é o essencial" .9 Em 1532. quando o imperador Carlos V promulga
pal elemento de aglutinação e legitimação da autoridade central a seu código penal conhecido como "Carolina". tentando padroni-
"igreja imperial". Assim, a autoridade real não se efetivava ple- zar as legislações absolutamente autônomas dos principados, a
namente, aparecendo, como o foi muitas vezes, mais honorífica Alemanha conta com mais de trezentos Estados-membros. A di-
(diplomática, com a coroa sendo ocupada por um rei estrangeiro versidade entre estes membros é também considerável: principa-
que atuava corno mediador nas disputas internas) do que subs-

8 Ganshof, F. L.- Que é o feudalismo?. Europa·América, L1sboa, 1968,


6 Kofler, L. - Contrzbuición a la historia de la sociedad burguesa, Amor- pp. 214 e 215.
rortu. Buenos Aires, 1974. p. 406.
9 Febvre. L. - Martín Lutero. Fondo de Cultura Económica, México.
7 Lukács. G . - E/ a.1ultn a la razón, Grijalbo, Barcelona. 1976. p. 2<l.
1956, pp. 95 e 96.

26
27
dos, feudos eclesiásticos, reinos, cidades livres, etc. Tal diversi-
suas palavras: "As cidades ( ... ) são o orgulho da Alemanha. E
dade incide não só no tipo de organização política de cada uni-
também sua debilidade. Situadas em meio aos domínios princi-
dade, mas também em seu grau de identidade, na sua extensão pescos, perfuram-nos, desgarram-nos, limitam sua expansão, im-
territorial e no seu poderio militar. Além disso, essas unidades se
pedem-nos de se constituir fortemente. Podem estender-se elas
inter-relacionam através de acordos (associações, ordens e ligas)
próprias? Não. Federar-se? Tampouco. Em volta de suas mura-
que seccicmam a unidade maior. Enfim, é nesse quadro que a
lhas, o país todo: campos submetidos a um direito, cuja negação
Alemanha vai vivenciar a expansão mercantil, a Reforma e as
é o direito da cidade( ... ) Estas cidades são prisioneiras, conde-
guerras camponesas.
nadas ao isolamento, acossadas pelos príncipes e afastadas umas
Quanto ao primeiro ponto - o incremento mercantil que flo- das outras" .11 Vê-se que o desenvolvimento urbano, que noutros
resce por quase toda a Europa a partir do século XIV - observa- países europeus representou nesse período um elemento impul-
se que a Alemanha, ou, melhor dizendo, algumas regiões alemãs. sionador da unidade nacional, no caso alemão apenas complica
participam vivamente desse processo: é o caso das cidades do nor- mais o quadro fragmentário. Como observa Engels, a presença
te da Alemanha, que através da Hansa dominam o comércio do urbana atuava como elemento impeditivo da sedimentação de
mar do Norte e do Báltico, constituindo-se em uma unidade polí- uma federação de príncipes (pois, como visto, também contava
tica através da liga hanseãtica; é também o caso de muitas cida- com forças militares): "Essa democracia de nobres era impossível
des do vale do Reno, assim como de todas aquelas que se consti- na Alemanha do séC'ulo XVI. Impossível porque já existiam na
tuíam em entroncamentos de rotas comerciais. Tais cidades, atra- Alemanha grandes e poderosas cidades'' .12
vés do pagamento de tributos ou de direitos ou favores adquiridos Os dois outros movimentos sociais do século XVI, que influí-
(no que pesam significativamente seus efetivos militares), apare- ram decisivamente no destino da Alemanha, foram a Reforma e
cem no cenário político como cidades livres, portadoras de auto- as guerras camponesas. O primeiro deles, de contestação à auto-
nomia. L. Febvre faz uma arguta análise das conseqüências de tal ridade do papa, e, conseqüentemente, da Igreja católica, teve no
estatuto. Coloca ele em destaque, em primeiro lugar, o fato de território alemão um dos seus mais importantes focos de difusão e
inexistir uma capital ou uma cidade que se sobressaia no territó- num alemão um de seus mais destacados formuladores: Martinho
rio alemão: ao contrário, existe uma profusão de centros com a Lutero. A guerra camponesa, movimento mais amplo, de abran-
mesma importância e densidade, e mais, desagregados e muitas gência quase continental, se bem que temporalmente descontínuo
vezes competitivos entre si. Nas palavras de Febvre: "Vinte capi- de país a país, na verdade ·foi na Alemanha o desdobramento ra-
tais, cada uma com suas próprias instituições, suas indústrias, dical das propostas da Reforma; para usar a expressão de Engels:
suas artes, seu costume, seu espírito", e adiante: "As cidades ale- "O raio que Lutero lançara caiu no barril de pólvora. O povo
mãs são egoísmos furiosos em luta sem quartel contra outros alemão se pôs em movimento". Não cabe aqui penetrar na análise
egoísmos''. 10 Tal fato tem implicações políticas extremamente desses movimentos (a qual pode ser encontrada na bibliografia
amplas para o desdobramento posterior da história alemã, pois citada), apenas ressaltar suas nuanças e resultantes que interes-
esse localismo impediu a formação de uma vigorosa burguesia, sam ao desenvolvimento posterior da Alemanha. Nesse sentido, a
que se apresentasse à ação política como classe nacional. Conti- conclusão é a mesma: tanto a Reforma quanto as guerras campo-
nuando na avaliação de Febvre. há outro ponto bastante impor- nesas serviram para sedimentar a fragmentação alemã. A pri-
tante ali enfocado: trata-se da disparidade entre a realidade "mo- meira atua nesse sentido por semear a discórdia no seio dos domi-
derna" vivida por esses centros comerciais e o "atraso" feudal nantes alemães. à medida que os vários Estados posicionam-se
predominante na vida agrária dos territórios que os circundam. pró ou contra as idéias de Lutero. num processo que culmina com
Febvre chega a definir a vida citadina como "civilizações de oá- a guerra entre os príncipes "protestantes" e Carlos V, imperador
sis", tal a falta de conexão existente entre os dois mundos. Nas
li Idem- Ibidem , pp. 99 e 100.
12 Engels. F. - As guerras camponesas na Alemanha, Grijalbo. São Pau·
lO Idem- Ibidem. pp. 98 e 101. lo. 1977. p. 71

28 29
tória frente às forças progressistas (classes populares e burgue-
do Sacro-Império Romano-Germânico. A "paz de Augsburgo", sia). Em segundo lugar, o explicitar da capitulação da burguesia,
que põem fim ao conflito em 1555, implicou um fortalecimento que vai enterrar definitivamente os ideais progressistas e a possi-
da independência dos príncipes que, além de assegurarem a pro- bilidade mesmo de uma real revolução burguesa na Alemanha.
priedade das terras secularizadas da Igreja, conseguem a prerro- Lukács considera, por essa razão, a derrota das guerras campo-
gativa da liberdade de culto. Nesse processo de luta, alguns Es- nesas o "ponto de inflexão da história alemã''. Essa capitulação
tados vão afirmar-se, ou mesmo formar-se - como é o caso da da burguesia acompanhará decisivamente o futuro político da
Prússia, que é declarada reino hereditário por Alberto de Bran- Alemanha, marcando, de forma profunda, a via do desenvolvi-
denburgo em 1525, grão-mestre da Ordem Teutônica (formada mento das relações capitalistas nesse país. Em terceiro lugar, no
nas Cruzadas), que aderiu ao luteranismo e apossou-se dos bens que toca às classes populares, a derrota dos camponeses implicou
da ordem. Assim, da Reforma emergem os sujeitos que domina- um revigoramento das relações de servidão, que dá fôlego para
rão a política alemã no futuro. tais relações persistirem ainda por séculos em muitas regiões
Também as guerras camponesas atuaram nesse sentido de alemãs.
bombardear a unidade alemã e reforçar relativamente alguns de Assim, em termos genéricos, tanto o desenvolvimento comer-
seus membros. Como bem aponta Engels: "O principal efeito das cial e urbano quanto a Reforma e as guerras camponesas, que em
guerras camponesas foi aguçar e consolidar a divisão política da outros países da Europa atuaram no sentido da consolidação do
Alemanha, esta mesma divisão que havia sido a causa de seu fra- poder central e do Estado nacional, na Alemanha reforçaram a
casso" .13 Entretanto, como não deixa de mostrar o autor, na dis- fragmentação e a aristocracia feudal, revigorando relações sociais
cussão desse movimento a questão das classes sociais vem à tona típicas do feudalismo, como a servidão e a vassalagem. Tem-se
com um peso determinante. Enquanto a Reforma pode ser inse- aqui o traço particularizador da história alemã: os elementos por-
rida num amplo processo de arranjos e reajustes das classes domi- tadores da nova ordenação social desenvolvem-se sem eliminar,
nantes deste período de transição (ainda marcadamente ligadas à antes fortalecendo, estruturas próprias da antiga ordem. Nas pa-
ordem feudal, a saber, nobreza e clero), as guerras camponesas lavras de Kofler: "Isto significa que na Alemanha as forças feu-
inserem-se num movimento de ascensão e afirmação das novas dais conservam dentro da sociedade uma preponderância muito
relações mercantis. Assim, este movimento, com todas as media- maior que em qualquer outra parte; que sua vontade e espírito
ções que ele implicou, expunha-se mais claramente como um em- penetram em todos os interstícios da vida nacional, estabelecem
bate de classes, num sentido preparatório do estabelecimento de um monopólio exclusivo sobre o Estado, e toleram a economia
relações burguesas. Como já foi apontado, porém, a burguesia burguesa unicamente enquanto podem usá-la como instrumento
alemã era débil, imersa em seus interesses e horizontes locais, do regime político feudal''. Lukãcs apontou com clareza a relação
sem articulação nacional, vítima, ela mesma, da fragmentação e entre tal situação e o destino das guerras camponesas, ao dizer:
da dispersão. Engels vai creditar a esta debilidade, que se traduz "A revolução camponesa pretendeu fazer o que o Império era
em vacilação na luta, uma das causas da derrota da guerra cam- incapaz de realizar: a unificação da Alemanha, a liquidação das
ponesa. Ele vai ainda mostrar que esta dispersão se fez presente tendências centrífugas, absolutistas-feudais, cada vez mais acen-
no próprio desentrosamento, prático e de propósitos, entre as fi- tuadas. E a derrota dos camponeses acabou por revigorar, toda-
leiras populares. Engels também aponta, entre as causas da der- via, mais ainda, estas forças. O particularismo puramente feudal
rota, a falta de um centro geográfico que representasse o poder foi substituído por um feudalismo modernizado: os pequenos
real, cuja tomada desmembraria o conjunto do império (como foi príncipes, como vencedores e usufrutuários das lutas de classes,
o caso de Paris na Revolução Francesa). De todo modo, os efeitos foram os encarregados de estabilizar o desmembramento da Ale-
da derrota foram por demais claros e significativos: Em primeiro manha. E assim, como conseqüência da derrota da primeira
lugar , o fortalecimento dos príncipes que comandaram a reação, grande onda revolucionária (da Reforma e da guerra dos campo-
e que assim, além da vitória frente à Igreja, contabilizam uma vi- neses), do mesmo modo que a Itália por outras razões, a Alema-
nha viu-se convertida em um impotente conglomerado de peque-
13 Idem - Ibidem. p. 114.
31
30
nos Estados formalmente independentes e, como tal, em objeto finalidade mercantil, o que implica uma inserção dessa~ regiões
de disputa da política do mundo capitalista nesse tempo nascente. no comércio mundial, rompendo com a marginalização em que
das grandes monarquias absolutas" . Engels, enfocando mais até então se encontravam. Entretanto, se em termos externos
diretamente a questão do desenvolvimento mercantil. também ocorreu essa "modernização", em termos da estruturação interna
chega ao mesmo veredicto: "Enquanto que na França e na Ingla- das relações de produção assistiu-se a uma recrudescência de si-
terra o desenvolvimento do comércio e da indústria acarretou a tuações ti picas do feudalismo com a afirmação do processo conhe-
criação de interesses gerais no país inteiro, e com isso, a centrali- cido como ''a segunda servidão", 1s isto é, as relações de trabalho
zação política, a Alemanha não passou do agrupamento de inte- servis. que já se encontravam num processo de dissolução (com o
resses por províncias, em torno de centros puramente locais, o trabalhador agrícola se aproximando de uma típica Situação cam-
que trouxe consigo a fragmentação política que logo se estabili- ponesa), revigoram-se em face do afã comercial. A propriedade
zou pela exclusão da Alemanha do comércio mundial. À medida feudal manteve-se intacta, apenas agora produ7indo para o mer-
que decaía o Império puramente feudal. decompunha-se a união cado.
dos países e os grandes vassalos transformavam-se em príncipes Vê-se a conciliação de uma produção em moldes cap.italistas
quase independentes. As cidades livres e os cavaleiros do Império embasada em relações de produção pré-capitalistas: agricultura
formavam alianças e guerreavam entre si, ou contra os príncipes e comercial, latifúndio e servidão. Kofler, discutindo a evolução da
o imperador. O poder imperial começou a duvidar de sua própria Prússia que, juntamente com a Polônia, seriam exemplos claros
missão e vacilava entre os diferentes elementos constitutivos do da situação descrita, afirma: "Apesar de sua atividade comercial,
Império, perdendo paulatinamente toda a sua autoridade" .14 a nobreza prussiana seguiu sendo uma autêntica nobreza feudal
É nesse quadro de dispersão que os Estados alemães vão viven- primitiva, segundo um estilo essencialmente medieval, e o foi de
ciar os séculos seguintes, cada um trilhando caminhos próprios. maneira tanto mais pura, quanto no campo prussiano a servidão
As cidades comerciais vão sentir um refluxo de sua prosperidade, e as fainas obrigatórias chegaram tarde a seu apogeu e persisti-
com o movimento mercantil europeu migrando significativamente ram em formas diversas até meados do século XIX". 16 Assim, em
para a órbita do Mediterrâneo. A própria ausência de um Estado tais regiões, principalmente do leste alemão, observa-se de forma
central forte, que defendesse seus interesses, é um dos elementos meridiana o desenvolvimento de um processo de "modernização
de explicação do decréscimo do comércio alemão, num universo conservadora", para se utilizar a expressão de Barrington-Moore,
mercantil europeu basicamente monopolizado pelas coroas, atra- que estabelece um "feudalismo modernizado" cujo assentamento
vés das companhias nacionais. Também o particularismo, im- se prolongou até o século XIX. Restaria ainda mencionar, dentro
pondo barreiras alfandegárias internas entre os principados, atuou do quadro de diversidade dos caminhos de evolução histórica per-
impedindo o livre fluxo das mercadorias. Nos Estados alemães corridos pelos vários Estados alemães, aqueles cuja situação geo-
orientais, aqueles em que a estrutura feudal permanece mais gráfica tornou mais permeáveis às influências do desenvolvimento
intocada, a atividade econômica seguiu um caminho diferente. das nações européias ocidentais. Seria o caso, por exemplo, da
Estes Estados vão conhecer uma prosperidade econômica advinda Renânia, cuja proximidade com a França, os Países-Baixos e a
da mercantilização da produção agrícola. Tais regiões passam a Suíça. implicou o estabelecimento de laços, não só econômicos
desempenhar, no quadro europeu, uma função complementar de mas principalmente políticos e culturais, com esses países. Poder-
abastecimento alimentício dos centros mais desenvolvidos. que se ~e-ia dizer que tais regiões participaram mais vivamente da con-
reforça conforme vai avançando a atividade industrial nestes cen- temporaneidade da vanguarda européia do período. A atividade
tros. Vão se constituir assim em celeiros da Europa, áreas produ- mineradora e a relativa industrialização a ela subjacente seriam
toras de artigos primários. Isso vai redefinir a estrutura da produ- também elementos explicativos dessa situação particular no con-
ção agrária, que, em termos de destinação, passa a assumir uma
15 Ver· Dobb. M - Evolução do capitalismo. Zaha.r, Rio de Jane1ro.
1~ Kofler. L. - Ob. clt., p. 408: Lukács, G . - E/ asa/to a la raz6n , ob. JQ 74. pp. 56 e 5 7. Ver também Kofler, L. - Ob cn .. p. 409.
cit .. p 32 e Engels. F. - Ob. cit., p. 26. 11> Kofler, L - Ob. cit • p. 411

32 33

I--
texto alemão; assim como a função de "região-relée" no comércio como quanto ao poderio de cada posição, nos desdobramentos
com o ocidente. Enfim, a diversidade das situações vivenciadas seguintes do período napoleônico.
pelos diferentes Estados germânicos era bastante acentuada. Tal Antes de iniciar essa discussão é importante localizar-se clara-
diversidade reforçava a fragmentação nacional. mente o papel histórico do período napoleônico. Napoleão Bona-
E na situação descrita que a Alemanha vai vivenciar a Revo- parte centraliza o poder, que se havia diluído no processo revo-
lução Francesa e o período napoleônico. Tais acontecimentos, lucionário, objetivando um programa de ordenação do Estado e
como se sabe, tiveram repercussões continentais e, no caso ale- da sociedade no sentido dos interesses do domínio das relações
mão, fizeram aflorar as diferenças históricas acima mencionadas. capitalistas. De certo modo, representou a implementação dos
A reação dos alemães, frente à Revolução Francesa, variou bas- frutos da vitória de 1789, por exemplo n-a adequação do aparelho
tante regionalmente, em função dos distintos interesses e poderio de Estado às novas circunstâncias e funções. Assim, o período
das classes em cada membro do Império, que formalmente ainda napoleônico manifesta um momento de organização da sociedade
subsistia. A burguesia da Renânia e da Vestfália aclamou com da burguesia recém-instalada no poder. Nas palavras de Marx:
entusiasmo as transformações políticas que ocorriam na França, "Napoleão, por seu lado, criou, na França, as condições sem as
assim como a intelectualidade progressista em geral. Lukács fala quais não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar
que "importantes setores da vanguarda da intelectualidade bur- a propriedade territorial dividida e utilizar as forças produtivas
guesa" assumiram essa postura, citando as figuras de Kant, Her- industriais da nação que tinham sido libertadas; além das frontei-
der, Burger, Hegel e Hõlderlin, e completa dizendo que "certos ras da França ele varreu por toda parte as instalações feudais,
testemunhos da época, como, por exemplo, os relatos de viagem à medida que isso era necessário para dar à sociedade burguesa
de Goethe, demonstram que esse entusiasmo não se limitava, de da França um ambiente adequado e atual no continente eu-
modo algum, aos representantes mais destacados e conhecidos da ropeu'' .1&
burguesia, e sim que suas raízes penetravam em amplos setores Vê-se que o projeto napoleônico se antagonizava, em essência,
dessa classe". Entretanto, para a nobreza agrária das regiões com a estrutura política dominante nos Estados alemães mais
orientais, e, principalmente, para as monarquias absolutas mais poderosos militarmente, exatamente aqueles onde as sobrevi-
consolidadas e poderosas (Prússia e Áustria), o movimento fran- vências da ordem feudal eram mais vigorosas. Daí, a inevitabili-
cês foi visto como um eminente perigo que colocava em risco toda dade do confronto militar que oporia a França à Prússia e à Áus-
a ordem social (dominada por resquícios feudais) em que se assen- tria. Entretanto, como observa Lukács, "Napoleão logrou en-
tava o poder político nessas regiões. Tanto que esses Estados vão contrar partidários e aliados no ocidente e no sul da Alemanha, e
se unir na repressão aos possíveis desdobramentos da Revolução em parte também na Alemanha central (Saxônia)". Com essa
Francesa em territórios alemães. Nesse antagonismo, a fragíli- galvanização, Bonaparte conseguiu enterrar definitivamente a
dade política dos setores burgueses mostrou-se, mais uma vez, tênue aliança formal do Sacro Império, pois estabeleceu um novo
evidente; como observa Lukács: "o movimento democrático revo- laço exclusivo entre seus aliados: a "Confederação do Reno".
lucionário não pôde se estender sequer à parte mais desenvolvida Nessa unidade, Napoleão implementava reformas objetivas que
da Alemanha. ou seja, ao Ocidente. Quando Mogúncia aderiu à acabam por varrer totalmente os velhos resquícios feudais, e que
República francesa, encontrou-se completamente isolada e caiu vão ser um dos alicerces posteriores dos movimentos unicionistas.
nas mãos do exército austro-prussiano, sem que sua queda desper- É preciso assinalar, entretanto. como o faz Hobsbawn, que as
tasse o menor eco no resto da Alemanha" .H Essa situação tomou- guerras napoleônicas "produziram mudanças não só através das
se ainda mais clara, quanto à diferença de posicionamento assim conquistas francesas, mas também pela reação contra elas" ,19

17 Lukâcs, G. - E/ asa/to a la raz6n, ob. cit. , p. 34. O levante de Mo- 18 Marx, K. - Dezouo Brumário de Luls Bonaparte. Paz e Terra, Rio de
gúncia foi comandado por Georg Forster, filho de 1. R. Forster, autores que, Janeiro, 1974, p. 18.
como serâ visto. possuem relações com a Geografia e com os geógrafos, princi- 19 Hobsbawn, E. - Las revo/uci11nes burguesas. Guadarrama, Madri,
palmente com Humboldt 1Q76, pp. 153 e 167.

34 35
Esse autor analisa esse processo de "reforma por reação "' na Com a derrota definitiva de Napoleão em 1815, a lustória
Prússia, que em 1806 é fragoro~amente derrotada por Napoleão alemã vê revigorada sua tônica conciliadora e autoritária, com o
(sofrendo grande fragmentação e perda territorial) e que, em reforço daquele processo que Lênin denominou de "via junker"
1813, retoma à guerra. Lukác!.. apoiando-se em Engels, também de desenvolvimento do capitalismo. 21 O malogro. em termos de
sustenta que esse Estado vai conhecer uma "transformação do manutenção do domínio político, da empresa napoleônica repre-
absolutismo prussiano( ... ) em uma monarquia bonapartista'' ..JO sentou, numa escala continental, um avanço das forças da rea-
No bojo dessas transformações, a tese da necessidade da unifi- ção; basta pensar na restauração do governo dos Bourbons na
cação nacional também vai se reforçar no campo da reação ao França. que manifestou um claro recuo da própria burguesia
avanço francês. Nas regiões antinapoleônicas começou a tomar frente aos ideais democráticos de 1789. Observe-se que tal pro-
corpo nesse periodo um movimento romântico nacionalista. que cess<' ocorreu mesmo na França. país em que a burguesia havia
tentava na idealit.açào dos "traços alemães" construir uma Iden- sido "guia in~electual do periodo da llustração militante". em
tidade nacional que se opusesse à hegemonia francesa. Herdcr e que as relações de produção modernas estavam plenamente sedi-
Fichte. entre outros, poderiam ser definidos como eminentes mentadas, se bem que, por isso, "a Restauração se vê forçada
ideólogos de tal movimento. Lukác~ observa que, mesmo entre economicamente a aceitar socialmente o capitalismo" .22 Se tal
"os ideólogos progre~s1stas'', não aparecem grandes simpatias ocorreu num país de vanguarda, o que dizer da Alemanha, onde
pela "unificação napoleônica da Alemanha, pela liquidação dos os rc~quídos feudais eram ainda muito presentes? Na verdade, os
vestígios feudais a cargo da França". E'>tados alemães mais comprometidos com uma via progressista
O período napolcônico representou para a Alemanha uma de desenvolvimento do capitalismo, os integrantes da Confede-
explicitação de sua real situação: as diversidades vieram à tona. o ração do Reno, haviam sido derrotados. A coalizão que derru-
Império foi rompido, na prática, em sua unidade formal. a dis- hara Napoleão tinha caráter fundamentalmente aristocrático, e
persão expressou-se no real com as coligações excludentes e anta- realizou um rcordenamento político da Europa em moldes con-
gonizadas no conflito. Os Estados-membros da Confederação do ~oantes com os interesses das casas reais. No que toca aos Estados
Reno conhecem um desenvolvimento social e econômico que esta- alemàe:-.. a Prússia e a Áustria saem fortalecidas do conflito. Os
belece relações típicas capitalistas. A Prússia moderniz.a-se nou- interl'sse~ prussianos foram defendidos pela Inglaterra temerosa
tro sentido, acabando com o monopólio das corporações e libe- das pretensões francesas sobre territórios alemães. A Prússia re-
rando o comércio, porém sem conhecer uma alteração substancial cebe parte da Renânia, parte substancial da Polônia e da Sa-
na estrutura de poder; despótica, dominada pela aristocracia xônia, emergindo assim ao lado da Áustria como uma potência
junker. A Áustria toma consciência clara de seus interesses extra- política no contexto europeu. Existiu, assim, uma efetiva concen-
germânicos. Assim, ocorrem mudanças que. na verdade, vão tração àos Estados alemães: das 234 unidades políticas agregadas
acentuar as diferenças; nas palavras de Lukács: "como o poder no Sacro Império em 1797, passou-se a menos de quarenta no
de Napoleão não bastava para converter toda a Alemanha numa período pós-napoleônico. Além desse fortalecimento das grandes
dependência do Império francês , a única coisa que com ele se monarquias, deve-se mencionar que a restauração implicou um
conseguiU foi acentuar e aprofundar ainda mais o desmembra- retraimento ainda maior da já politicamente débil burguesia ale-
mento nacional''. Mesmo que por vias díspares. porém, a idéia da mã. Como comenta Hobsbawn : "Em muitas revoluções bur-
unidade nacional começa. pela primeira vez. a aparecer com cla- guesas subseqüentes [à Revolução Francesa], os liberais mode-
reza na história moderna da Alemanha. rados foram obrigados a retroceder ou a passar ao campo conser-
vador apenas iniciados os embates. Por isso. no século XIX en-
.10 Lukács. G - RealiStas ulemanes de/ s•!!ln XIX. Grijalbo, Barcelona
contramos (sobretudo na Alemanha) que esses liberais se sentem
1970. p 8 O termo bnnapartútu é utihtado por Marx ru> Dezmw Brumárir1 dr
Luís Bonaparte, não implicando um domínio militar francês sobre a Prú~~1a. O
uso dc~se termo, para dcnommnr uma forma cspccífrca de dominação auton- 21 Ver Lenin, W l. U.- E/ progrumu úJ:TUfiO de la sociuldenwcrúcia eTI
tária. foi também comagrado por M. Webcr: ver: f:.,sa1nt de meio/agia, Zahar lu pri111era r~volrtCIÓn rusu de 1905·7, Progre~o. Moscou. \ .cl .. pp. 27 e segs
Río de Janeiro. 1974. 22 Lukác~. G.- La novela lwt6rica. Era. Méxrco. 1966, pp. 17 e 25.

36 J,
pouco inclinados a iniciar revoluções por temer suas incalculáveis nômicas e sociais dos países-membros, que, ao contrário, prosse-
conseqüências, e preferem chegar a um compromisso com o rei e guiam em suas linhas evolutivas particulares. Nas palavras de
a aristocracia". Assim. as possibilidades de uma real revolução Hobsbawn: "Áustria, Prússia e a grei dos pequenos Estados ale-
burguesa na Alemanha se esvanecem. Por outro lado, porém, a mães espiavam-se uns aos outros dentro da Confederação Germâ-
idéia da unificação havia ganhado corpo, tanto nos setores pro- nica, ainda que a prioridade da Áustria fosse reconhecida. A mis-
gressistas, que viam na unidade nacional o caminho para a reali- são mais importante da Confederação era manter os pequenos
zação das aspirações democráticas, quanto nos próprios setores Estados fora da órbita francesa dentro da qual tendiam a gra-
conservadores, animadas por propósitos imperiais. vitar". A diversidade existente era significativa, tanto no que diz
É em meio a esse qoadro que a sorte da Alemanha, nas pró- respeito às idéias políticas, quanto no que toca às relações econô-
ximas décadas, é decidida no Congresso de Viena, em 1815. Aí micas. Em termos de política, conviviam dentro da confederação
toda a intrincada trama da diplomacia européia vem à tona: na desde a vanguarda radical da burguesia que coloca K. Marx
verdade, todas as grandes monarquias se temem, e, em função como editor da Gazeta Renana, até a aristocraciajunker gestora
disso, a Alemanha permanecerá desmembrada. A Prússia é con- de uma política absolutista, policial e semifeudal. Essa diferen-
templada com vários territórios (entre eles a rica região de Ruhr), ciação possuía expressão r~gional, mas, no geral. como observa
porém vê frustrada sua tentativa de capitanear a unificação ale- Hobsbawn, "Na Alemanha nenhum Estado de importância dei-
mã. A proposta prussiana que é assumida com reservas pela pró- xava de sentir hostilidade para com o liberalismo". Assim, os le-
pria aristocracia junker, foi derrubada pelo ministro austríaco vantes liberalizantes são todos espacialmente circunscritos, e fa-
Metternich. À Áustria, cujas anexações se voltaram para terri- cilmente reprimidos pelas forças da 1'eação (assim ocorreu em
tórios não germânicos (para os Bálcãs e a Itália especificamente) 1820 e 1832). Em termos econômicos, convivem atividades indus-
e que se estruturou como um Império à parte, não interessavam a triais e relações servis, também se manifestando essa distinção em
unificação e muito menos as pretensões hegemônicas da Prússia. uma base regional. Entretanto, vai-se forjando um dinamismo
É a proposta confederativa austríaca que sai vitoriosa no con- maior no comércio interno, processo que se desencadeara a partir
gresso, com o estabelecimento da "Confederação Germânica", do bloqueio continental napoleônico. Enfim, é nessa situação que
congregando trinta e nove Estados soberanos como membros. Na a Alemanha transitou a primeira metade do século XIX: desmem-
verdade, os laços de unidade continuavam bastante tênues e for- brada e sofrendo a disputa de hegemonia entre a Áustria e a Prús-
mais, pois cada membro mantinha sua identidade própria e uma sia. Em tal disputa, este último Estado toma a di'lnteira ao efe-
total autonomia jurídica de organização interna. Assim, alguns tivar uma união aduaneira, a "Zollverein", em 1834, que excluía
Estados da Alemanha do sul (Baviera, Bade Wurtemberg, entre os austríacos. Essa união foi, sem dúvida, um passo no sentido da
outros) convocam assembléias e promulgam constituições; ou- unificação, pois representava o fim dos entraves à circulação in-
tros, como a Prússia e a Áustria, mantêm a monarquia absoluta; terna e, conseqüentemente, o estreitamento dos laços comerciais
outros ainda, como os principados do norte (como Hanôver, entre os Estados-membros. Sobre esse processo, afirma Lukács:
Saxe, entre outros), tentam implantar situações intermediárias. "objetivamente assiste-se a um processo de incorporação da Ale·
Dessa maneira, a unidade nacional é absolutamente formal; manha ao capitalismo, com um lento, porém inevitável, cresci·
como observa Duroselle: "O Ato de Confederação, de 10 de junho mento da unificação aduaneira, base econômica da unidade
de 1815, que criou o 'Deutscher Bund', não era em nada uma alemã" .24
constituição, pois o seu órgão único, a Dieta Germânica, não era A vaga revolucionária européia de 1848 vai delinear com con-
eleito mas composto de plenipotenciários'' .23 tornos nítidos as possíveis vias de efetivação do processo de unifi-
Observa-se que o agrupar-se na confederação não implicava cação nacional da Alemanha. Nesse ano, assistiu-se em toda Eu-
qualquer aproximação efetiva entre as condições políticas, eco- ropa a levantes populares de inspiração democrática, que tiveram
nas lutas travadas em Paris sua expressão de vanguarda. Cabe
23 Durosellc, J. B. -A Europa de 1815 aos nossos dias. Pionetra, São
Paulo. 197ó, p 9. H Lukács, G. _:_ Realistas a/emanes de/ siglo XIX. ob. ctt. , p. 6.

38 39
e sobretudo em Viena e Berlim, onde ocorrem significativos le-
avaliar, mesmo que em !inhas gerais, o significado de tal movi- vantes. Também aqui as insurreições são derrotadas, apesar de
mento. Pode-se direr, de forma sintética, que as insurreições po- algumas conquistas parciais como a promulgação da constituição
pulares de 1848 representam o fim do "período heróico" da bur- austríaca elaborada pela assembléia, em substituição à outorgada
guesia, isto é, aquele em que essa classe se apresentava na cena pelo imperador. As particulares condições do desenvolvimento
política como revolucionária, propondo um projeto hegemônico das relações capitalistas na Alemanha vão redundar em que de-
para a sociedade. Inicia-se aí uma fase defensiva dessa classe, que terminadas conseqüências ocorram aqui com vigor ímpar. Em
passa a lutar pelo seu domínio, já estabelecido no plano econô- primeiro lugar, a capitulação da burguesia frente a seu próprio
mico pela plena maturação das relações capitalistas. Nas palavras ideário atinge proporção descomunal, se bem que consoante com
de Lukács: "As batalhas de junho do proletariado parisiense pro- sua mencionada debilidade politica. Como afirma Lukács: "O
duziram uma importante modificação na situação da burguesia. fracasso da Revolução de 1848 amortiza a luta da burguesia em
uma extraordinária aceleração do seu processo interno de modi- prol de uma revolução democrática, quer dizer, de uma radical
fícação orientado para a transformação da democracia revolucio- democratização da Alemanha; ou mais. poder-se-ia inclusive di-
nária em um liberalismo comprometido''; num outro trabalho zer que tal luta desaparece". O temor frente às ações populares
este mesmo autor conclui: ''A antiga democracia burguesa peri- aproxima os setores burgueses da proposta autoritária aristocrá-
clita e se desgasta continuamente depois de 1848 ( ... ) o libera- tica, e nesse processo esta classe abre mão de suas bandeiras clás-
lismo se transforma em um liberalismo nacional de caráter con- sicas e do próprio comando da política. Tal trajetória é bem
servador". 1\ssim, esse ano pode ser apontado como um marco na apontada por Kofler: "Não somente na Alemanha, mas também
história da sociedade burguesa, pois representa a explicitação do noutros países, o horror que inspira o proletariado sedicioso foi
conteúdo da luta de classes no modo de produção capitalista (En- fundamento das tradições da burguesia. Porém, em nenhuma par-
gels fala na "primeira grande batalha entre o proletariado e a te foi tão grande, como na Alemanha, a autonegação da bur·
burguesia"), 25 sua plena maturação pelo aparecimento em cena guesia". Por conseguinte, reforça-se a via das "transformações
de sua negação: o proletariado organizado enquanto "classe para pelo alto" na evolução da sociedade alemã. Porém, a revolução
si". Em todos os pontos em que edodiu, a insurreição foi derro- também ocasiona uma ampliação da própria ótica dos setores
tada. Como diz Hobsbawn, "as revoluções de 1848 surgiram e autoritários, que tomam consciência da necessidade de forjarem
quebraram-se como uma grande onda", porém deb:am atrás de si uma institucionalidade baseada num mínimo de consenso, enfim,
uma realidade renovada pela afirmação das forças políticas da de proporem uma política que, pelo menos formalmente, dia-
sociedade moderna. A própria derrota era reveladora, como logue com o conjunto da sociedade. Essa conseqüência é clara-
observou Marx: "Ao transformar a sua sepultura em berço da mente colocada por Hobsbawn, ao dizer: "Os defensores da or·
República burguesa, o proletariado obrigara esta, ao mesmo dem social precisaram aprender a política do povo. Esta foi a
tempo, a manifestar-se na sua forma pura como Estado, cujo fim maior inc,vação trazida pelas revoluções de 1848. Mesmo os mais
confessado é eternizar a dominação do capital e a escravidão do arqui-reacionários dos junkers prussianos descobriram, naquele
trabalho" .26 ano, que precisavam de um jornal que pudesse influenciar a 'opi·
A vaga revolucionária européia de 1848 vai manifestar-se em nião pública' - conceito em si próprio ligado ao liberalismo e
vários pontos da Confederação Germânica: no Saxe, na Baviera, incompatível com a hierarquia tradicional. O mais inteligente dos
arqui-reacionários prussianos de 1848, Otto von Bismarck (1815-
25 Idem - La novela histórica, ob. cit.. p . 207; Existencialismo ou mar·
1898), mais tarde demonstraria sua lúcida compreensão da natu·
xismo, LECH, São Paulo, 1979, p. 33 c Engels. F.- ''Prefácio à edição inglesa reza da política na sociedade burguesa e seu magistral domínio de
de 1888 do Manife~to comunista", em Marx, K. c: Engels, F. - Cartas filosó· suas técnicas". 27
ficas e outros escritos. Grijalbo, São Paulo, 1977. p. 73.
26 Hobsbawn, E. -A era do capital, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, 27 Lukács. G.- Realistas alemanes de/ siglo XIX , ob cit .. p . 7, Kofler.
p 43 e Marx. K. -As lutas de classe na França, em Marx. K. e Engels. F. - L. - Ob. ctt . p. 424 e Hob~bawn, E. -A era do capttal. ob. cit.. p. 45.
Textos. vol. 3, Ed. Sociats, São Paulo, p. 131.
41
40
No que toca diretamente ao processo de unificação, as resul- para a Europa Ocidental, propiciou uma passagem sem rupturas,
tantes acima apontadas da revolução articulam-se na solidifi- a nível político. do feudalismo para a inserção na economia mun-
cação de um bloco histórico reacionário, comandado pelos setores dial comandada pelo capitalismo nascente. A "modernização"
aristocráticos. que passam a dominar as iniciativas no sentido da fortaleceu a classe dos proprietários de terras: a aristocracia
unidade nacional. A necessidade de centralização do poder passa junker. Estes, com o controle da direção política e econômica da
a ser vista com maior clareza pelas diferentes classes do bloco sociedade, desenvolvem um aparelho estatal orientado em seus
dominante. A unificação, proposta presente no ideário revolucio- propósitos. A coesão em torno do Estado, militarizado e burocra-
nário, passa também a ser posta como um imperativo pelas forças tizado, foi o que proporcionou uma base de recuperação do país
da reação. Estas tentam redefinir o patriotismo revolucionário após a "guerra dos trinta anos". Na avaliação de Kofler: ''En-
contido na proposta de unificação num nacionalismo chauvinista quanto que a PQlônia seguiu sendo, até bem pouco tempo, um
contra-revolucionário; nessa proposta, os problemas sociais são país agrário, oriental, a Prússia, que não estava tão isolada como
escamoteados na questão nacional. De todo modo. o bloco reacio- a Polônia, buscou imitar os países ocidentais e superar a de-
nário sedimenta-se, tanto por um alargamento de visão política (a pressão em que havia caído após a guerra. Começou a germinar a
busca de uma hegemonia), quanto pelo espaço que se abre pela idéia de que o Estado prussiano poderia servir-se da indústria das
inexistência de contendores que possuíssem projetos alternativos. cidades, para efetuar sua reconstrução, de modo semelhante ao
Assim. com a capitulação burguesa, a preponderância dos setores que havia ocorrido em países vizinhos. A manufatura que nasceu
reacionários tornou-se absoluta; nas palavras de Lukács: "Os se- então estava orientada, não somente num sentido estatal egoísta
tores plebeus da Alemanha não tiveram, durante esse período, a neofeudal, como num sentido aristocrático prussiano; também o
força necessária para impor seus interesses pela via revolucio- mercantilismo prussiano recebeu o carãter bárbaro e medieval
nária. Deste modo, os progressos econômicos e sociais inevitáveis próprio da atitude da vida espiritual do feudalismo". Esse forta-
se fizeram ( ... ) como resultado das transações das classes domi- lecimento do Estado e o papel ativo da aristocracia feudal-abso-
nantes". No seio do bloco dominante, acirram-se as contradições lutista, "que se vê obrigada a intervir, ativamente e tomando as
entre a Áustria e a Prússia pela direção política desse processo. os rédeas, em apoio do desenvolvimento capitalista", é o que singu-
dois reinos buscando a hegemonia no interior da futura nação. lariza a Prússia no contexto da Confederação Germânica.29
Este fator, é, sem dúvida, a razão maior de a efetivação da uni- Aqui, o capitalismo assentou-se tendo por agente uma no-
dade alemã ainda se arrastar por mais algumas décadas. Como breza feudal e um Estado absolutista, gerando um arranjo conci-
afirma Hobsbawn: "A unificação da Alemanha levantava três liatório que articulava relações econômicas capitalistas com uma
questões: que a Alemanha exatamente era para ser unificada, estrutura de poder feudal. Se tal quadro é válido para toda a Ale-
como se jamais as duas maiores potências, que eram membros da manha, o destaque dado ao Estado particulariza a Prússia. O
Confederação Germânica, Prússia e Áustria, deveriam integrá-la, Estado apresentou-se aqui como manifestação da "vontade cole-
e o que iria acontecer com os numerosos outros principados, que tiva" da aristocracia junker, e que, por isso, dispunha de um
iam de médios reinos a pequenos territórios de ópera bufa" .28 Tal poder substantivo acima dos localismos. Um projeto imperial
disputa, como será visto, foi vencida pela Prússia. Assim, cabe embasava o poderio estatal, cujos imperativos se sobrepunham às
analisar algumas peculiaridades do desenvolvimento deste Estado "vontades individuais". Tal projeto expressou-se na expansão
para depois retomar a discussão sobre o processo de unificação territorial prussiana que, salvo breves períodos de retraimento
alemã. territorial, avançou num crescin1ento contínuo. Além de capita-
A Prússia aparece singularizada no contexto dos membros da near esse processo anexionista, com um eficiente aparelho mili-
Confederação Germânica. Seu papel de abastecedora de cereais, tar, o Estado também se apresentava como o "demiurgo do pro-

28 Lukács, G.- E/ asa/10 a {a razón. ob. cit., p. 44, Hobsbawn. E. -A 29 Kofler, L.- Ob. cit .. p . 413 e Lukâcs, G. -E/ asa/to a la raz6n, ob.
era do captta/ , ob. cit., p. 88. cit.. p. 38

42 43
gresso", fazendo uso da força para criar as cond1ções sociais para plano externo, Bismarck executa uma política agressiva de ane·
o desenvolvimento capitalista. Ao agir como impulsionador de xação que expande o território prussiano ao norte, envolvendo-se
processos, que as condições sociais reais aiuda não propiciavam, em vários conflitos; Hobsbawn fala das "guerras rápidas e deci-
coloca a burguesia a seu reboque, como dependente da ação es- sivas através das quais o Império alemão estabeleceu-se entre
tataL Além disso, a tônica absolutista e o uso cotidiano da vio- 1864 e 1871" . No plano interno, Bismarck realiza uma política de
lência sobre as massas garantem uma estabilidade total da estru- repressã.o às organizações populares, de minimização do tegisla·
tura da sociedade. É nessa situação que a Prússia vai vivenciar o tivo (ignorando o parlamento de maioria liberal), enfim uma ges-
século XIX, no qual, após um rápido recuo com a derrota para tão ditatorial do Estado. Per outro lado, incentiva a economia,
Napoleão em Jena (que propiciou um interregno liberal que. sem acelerando a ifldustrialização, estimulando a produção artesanal
mudar o essencial da estrutura de poder, moderniza um pouco (com a abolição total do controle das corporações), criando infra-
as feições institucionais do país), avança para uma situação de estrutura (como a construção de estradas de ferro). Finalmente,
potência: condição em que participa dos movimentos da diplo- em 1866, após um intrincado xadrez diplomático e militar, ocorre
macia européia, onde se posiciona sempre com as forças conser· a guerra austro-prussiana. Com a vitória da Prússia na batalha de
vadoras. Segundo Hobsbawn, a população da Prússia duplicou Sadowa, a sorte da unificação da Alemanha está definitivamente
entre 1800 e 1846, ocorrendo também, nesse período, um grande selada. -
desenvolvimento industriaJ..111 Na verdade, o processo de unificação da Alemanha, nos mo-
Este é o quadro da Prússia em meados do século XIX. quando mentos finais de sua consolidação, manifesta-se enquanto se dá
seu monarca, Frederico Guilherme IV. recusa a coroa da Ale- uma prussianização de toda a Alemanha. As características pre-
manha, que lhe é oferecida pela Assembléia de Frankfurte em se:ltes no desenvolvimento da Prússia são maximizadas e expan-
1849, e tenta articular uma ''união restrita" de soberanos em didas, a saber: a militarização, a onipresença do Estado e o con-
Olmutz no ano s~guinte. Tal propósito é barrado pela ação aus- troie político aristocrático. A capitulat;ão da burguesia e a macu-
tríaca, inaugurando um período de franco conflito entre os dois tenção dos privilégios da nobreza fundiária serão elementos deci-
reinos. Segundo Duroselle, existiam três possibilidades de unifi· sivos no de,,ir alemão; nas palavras de Lukács: "O caminho prus-
cação da Alemanha: A primeira, derrotada pela atitude acima siano de desenvolvimento da Alemanha traz consigo conseqüên-
mencionada do monarca prussiano de não aceitar um poder de cias diretas e imediatas. Este modo de nascer a unidade econô-
base popular, seria a união pela vontade popular representada mica do país fez com que, em amplos setores capitalistas, se ma-
pela Assembléia de Frankfurte; a segunda era a união em torno nifestasse. desde o primeiro momento, uma atitude de superesti-
da Áustria, incluindo os territórios não germânicos do império mação do Estado pmssiano, a tendência a compactuar constan·
austríaco, era a proposta da "Grande Alemanha"; a terceira era temente com a burocracia <;emifeudal, a perspectiva de que era
a união em torno da Prússia com a exclusão de todo o território possível fazer valer os interesses econômicos da burguesia em pa-
austríaco (mesmo o germânico), proposta conhecida como "Pe- cífica aliança com a monarquia prussiana''. Assim, o Estado
quena Alemanha". A classe dominante prussiana. cultora da ter· prussiano vai penetrando em todas as regiões da confederação,
ceira hipótese, começa a trabalhar para que o processo caminhe na subjugantlo as formas políticas existentes à sua lógica centJali-
direção desejada, aceitando o conflito com a Austria como inevi- Lador~. A submisão da sociedade ao Estado, a militarização das
táveL Assim, inicia uma ação visando este fim no plano dipio- relações hierárquicas, o sentimento servil de dever (em detri-
mático e militar. que se reforça quando, em 1862, seu represen- mento dos direitos da cidadania), o apego à ordem, a fossilização
tante máximo, Bismarck, assume o posto de primeiro-ministro. da estrutura social, enfim todos os elementos presentes no quadro
Este amplia a unidade aduaneira, reforça o aparelho militar e da vida prussiana são apresentadas como elementos da consti-
realiza uma política diplomática de isolamento da Áustria. No tuição da unidade nacional. Homogeneiza-se a Alemanha tendo
por parâmetro a realidade prussiana. Os setores progressistas,
principalmente a burguesia, capitulam frente a esse processo,
.lO Hobsbawn. E. - Las r.-voluciom'l burRuesas ob . cll . PP- 109. 302 e 308 abandonam suas bandeiras, apostando no Estado aristocrático,

45
44
definido por Kofler como : "A aliança da disciplina racional da
·•que haveria de compartilhar o poder com ela". O projeto im- maquinaria do lucro com a disciplina irracional da bota militar".
periallatente, que legitima a ditadura e seu caráter bélico, age Tragtenberg vai lembrar ainda um outro aspecto da questão; ao
como argamassa desse arranjo, promovendo o desenvolvimento afirmar: "Nos fins do século passado e início do século XX, pas-
econômico industrial. É nesse contexto que se inserem as guer- sa a Alemanha por um arranque industrial dirigido pela buro-
ras com a Dinamarca e a França. ambas de cunho imperia- cracia bismarckiana, pela estruturação de um proletariado com
lista, cujas vitórias solidificam a unidade alemã sob hegemonia consciência para si, e por uma burguesia dependente de sua asso-
prussiana. Assim é que, finalmente, em 1871. no próprio paço ciação com a classe junker temerosa das reivindicações operá-
de Versalhes, Guilherme I é coroado imperador da Alemanha, rias" .32 Assim, também o temor às massas impele os setores bur-
constituindo-se de fato a unificação nacional sob a égide da Prús- gueses para o bloco reacionário, tanto que-não ocorrem protestos
sia e de Bismarck: a prussianização fundindo a nacionalidade. quando, em 1879, Bismarck coloca o partido social-democrata na
Marx vai definir a Alemanha nacionalmente unificada como: ilegalidade. Em termos de uma política de massas, Bismarck arti-
"um despotismo militar salvaguardado por um biombo de for- cula a repressão com um caráter assistencialista do Estado, atra-
mas parlamentares, mesclado com doses de feudalismo, já in- vés de uma legislação social em moldes corporativos. Sinteti-
fluenciado por uma burguesia, e burocraticamente assentado". 31 zando, pode-se definir o quadro político interno alemão com as
Como aponta Lukács: "A existência da Prússia sempre consti- palavras de Kofler: "um Estado governado de forma ditatorial
tuiu, objetivamente, o maior obstáculo para a verdadeira unidade com a ajuda da burguesia".
nacional, e, sem dúvida, essa unidade se efetiva graças às baio- No plano externo, a situação alemã é contraditória com seu
netas prussianas". desenvolvimento econômico interno, principalmente pelo fato de
Essa Alemanha tardiamente constituída enquanto Estado na- este país não ter participado da partilha colonial. Assim, a Ale-
cional paga um alto tributo ao passado não superado. No plano manha não possuía, como as demais potências européias, um im-
interno, reforça-se o caráter despótico da dominação política: a pério colonial que lhe permitisse realizar uma acumulação adi-
institucionalidade é garantida pela violência institucionalizada cional, fora de seu território . Essa situação vai marcar profunda-
do Estado. O governo dos junkers reforça a estrutura social mente a evolução posterior da Alemanha, com o expansionismo
apoiada em privilégios estamentais e no monopólio da terra. O definindo-se como o objetivo latente do Estado e, pelo conse-
Estado, posto como mediação unificadora acima da sociedade, qüente caráter bélico, como um móvel de sustentação do desen-
penetra em todas as esferas da vida social, expandindo-se, buro- volvimento industrial do país. O militarismo exacerbado mantém
cratizando-se e centralizando cada vez mais o poder: o "bonapar- a taxa de crescimento do grande capital ligado à indústria mono-
tismo bismarckiano", para utilizar a expressão de Engels, seria o polista. Assim, a política exterior agressiva reforça o papel doEs-
exemplo concreto mais próximo do "leviatã" antevisto por Hob- tado e a organização policial da sociedade. Lukács diz que "nes-
bes. Além dos junkers, o projeto conservador bismarckiano gal- tas condições entra a Alemanha na época imperialista. Como se
vaniza o apoio social dos próprios setores burgueses, cujos repre- sabe, este movimento é acompanhado de um grande auge econô-
sentantes políticos diretos (os "liberais") eram olimpicamente mico, de uma extraordinária concentração do capital, etc. A Ale-
desprezados por Bismarck, que governava a despeito do parla- manha se constitui no Estado que marcha à frente do imperia-
mento, onde tais liberais possuíam formalmente a maioria. Como lismo na Europa, e, ao mesmo tempo, no Estado imperialista
observa Kofler: "O burguês médio alemão do século XIX, não mais agressivo e que pressiona de modo mais violento por uma
obstante suas fanfarronices materialistas e suas frases liberali- nova repartição do mundo". O desenvolvimento econômico
zantes, seguiu fiel a suas inclinações prussiano-conservadoras". alcançado nesse esquema é realmente considerável. Castronovo,
Além disso, a prosperidade econômica estimulava tal arranjo,

32 Kofler, L - Ob. cit., p. 431 e Tragtemberg, M. - Burocracl<l e ideo·


31 Marx, K.- Crftica do!l Programa de Gotha, Progresso. Moscou, 1977. logia. Ãtica, Sào Paulo. 1974, p 108; ver também pp 37/8.
p. 29.
47
46

L J
analisando a questão, afirma: "Na Alemanha, sem dúvida, as mais tarde, Berlim vai ser a sede da Conferência Colonial, que
sobrevivências estruturais e poiíticas de natureza feudal haviam fixa as normas de partilha da África; antes a Alemanha já havia
obstaculizado o arranque da revolução industrial( ... ) De fato, o instalado guarnições no Togo, no Camarões, no sudoeste africano
processo de industrialização na Alemanha se iniciaria muito ma1s e em algumas ilhas do Pacífico. De qualquer modo, a prioridade
tarde, por volta de 1850-1860, depois que a união aduaneira e a do:. interesses 1mperiais alemães concentra-se na própria Europa
construção das estradas de ferro tivessem aberto caminho; po- (orientação que em parte se altera com a demissão de Bismarck,
rém, em compensação, chegou à maturação no transcurso de em 1890). As anexações obtidas nas guerras com a Dinamarca e
poucos anos e com características fortemente monopolistas e cen- com a França, principalmente esta que brindou a Alemanha com
tralizadas; tanto que superou, já em 1880, em determinados se- as ricas regiões da Alsácia e Lorena, estimulou sobremaneira o
tores - da siderurgia à química - os níveis produtivos alcan- projeto imperial, imprimindo-o como o traço marcante da evo-
çados pela França" .33 Alguns dados são expressivos para ilustrar hiçâo histórica desse país na virada do século. No plano ideoló-
a intensidade desse processo de crescimento econômico: em 1877, gico triunfa o nacionalismo chauvinista.
ao atingir trinta mil quilômetros, a rede ferroviária da Alemanha É esta Alemanha que inicia o século XX, industrialmente de-
se torna a mais extensa da Europa; a população de Berlim cresce senvolvida, atrasada na estrutura agrária, firmemente estabele-
de 378 mil habitantes em 1849 para quase um milhão em 1875; só cida em termos militares entre as potências mundiais, com uma
na cidade de Colônia "o número de pessoas que viviam de renda e economia bastante dominada pelos grandes cartéis, sem colônias,
pagavam imposto sobre elas cresceu de 162 em 1854 para seis- com uma institucionalidade amparada na força, com um expan-
centos em 1874". 34 Enfim, a política exterior imperialista alimen- sionismo latente e um nacionalismo exacerbado. Na avaliação de
tava essa incrível expansão industrial, a qual agilizava um não Poulantzas : "Já aqui começa a desenhar-se claramente a fra-
menos vasto crescimento do mercado financeiro. queza da Alemanha como elo da cadeia imperialista. Essa fra-
Entretanto, tal desenvolvimento, em função mesmo de sua queza salienta-se do conjunto das contradições da formação so-
base política, não altera a situação agrária, ainda submetida a cial alemã, nas suas revelações com os outros países da cadeia
uma estrutura de produção onde dominam relações não capita- imperalista". 35 O desenvolvimento das contradições presentes vai
listas. Hobsbawn acentua esse traço, ao dizer que: "Até a década desembocar na guerra de 1914-1918, onde a Alemanha foi uma
. de 1870, as grandes cidades da Alemanha industrial, tais como das principais protagonistas. A derrota nesse conflito vai encerrar
Colônia e Dusseldorf, alimentavam-se com os mantimentos tra- esse primeiro período, imperial, da história da Alemanha consti-
zidos ao mercado semanal pelos camponeses das regiões circun- tuída enquanto Estado nacional. A esse período vai se seguir o
vizinhas". Tragtenberg alerta, com justeza, para o fato de esse interregno democrático da República de Weimar. 36 As particula-
desnível, entre produção industrial e produção agrícola, colocar a ridades apontadas vão seguir atuantes no processo histórico ale-
Alemanha como nação industrial porém importadora de ali- mão, sendo altamente explicativas do advento da ascensão do na-
mentos, trazendo à baila a necessidade de mais terras. Assim, zismo na Alemanha. Entretanto, tais períodos estão fora dos inte-
instala-se um círculo vicioso que tem no imperialismo sua mola resses do presente estudo; para os fins almejados interessam,
fundamental; daí toda a ideologia que será forjada em torno da obviamente, as determinações gerais da história alemã, mas com
questão da expansão territorial (que será analisada no item se- destaque para aquele intervalo que vai aproximadamente daRe-
guinte). Em termos práticos, além do expansionismo praticado •:,>lução Francesa no anteato da unificação. O substrato histórico
no próprio continente europeu, em 1882 o príncipe von Hohen-
lohe-Langenberg funda a Sociedade Colonial Alemã. Três anos
35 Poulantza;,. N. - Fascismo f! ditadura. Martrns Fontes. São Paulo.
1978. p. 31.
33 Lukács. G. - E/ asoltv a la razón. ob. cit. p. 54 e Castronovo, V. -
36 Sobre essa passagem e esse período, pode-se consultar: Gay, P. - A
La revoluctón mdustrial, Nova Terra, Bar~·elona, 1975, p. 88. cultura de Weimar. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1978 e Klein. C. - De los
34 Hol>sba"n, E. - A era do capital. ob. cit .. p. 247.
e>partoquistas a/ nazismo·la República de Weimnr. Península. Barcelona. 1970.

48 49
desse período já está apresentando. Cabe. então. passar para a situação advém daquilo que este autor denomina como o "duplo
análise no desenvolvimento das idéias na Alemanha do século presente" vivendado pelo pensamento alemão. Este, por um
XIX. lado, vivenda, em função de sua localização, a contemporanei-
dade européia no plano das idéias. Assim, defronta-se com as
questões e assuntos postos pela vanguarda do pensamento inglês
O PENSAMENTO ALEMÃO NO S~CULO XIX e francês. Por outro lado, vivenda um quadro social e político
alemão onde os resquícios do passado dominam a cena e sua pró-
pria possibilidade de transformação. Dessa maneira, o pensa-
A particularidade histórica do desenvolvimento do capitalismo na
mento alemão discorre sobre temas que não são os seus. Aquilo
Alemanha - seu caráter tardio e sua tônica conciliatória - vai
que para os pensadores ingleses aparece como questões emer-
marcar profundamente as formas de pensamento ali engen-
gentes da prática social, para os alemães se coloca como pro-
dradas. Seria impossível, no âmbito do presente trabaiho, pre-
blemas teóricos abstratos. Marx ironiza isso ao dizer: "Em polí-
tender apresentar um quadro completo do tema em foco; a biblio- tica os alemães pensaram o que os outros povos fizeram. A Ale-
grafia utilizada, de certa maneira, cumpre essa tarefa. Aqui inte- manha era sua consciência teórica". 38 É dentro deste contexto
ressa apontar os traços mais significativos da evolução intelectual que o pensamento alemão vai se defrontar com a Revolução fran-
alemã no século XIX, destacando aquelas questões e aqueles au- cesa e com o ideáriD iluminista.
tores que aparecem com maior peso na fundamentação filosófica Como foi observado no item anterior, a Revolução francesa é
de Humboldt e Ritter. Cabe ainda mencionar que a exposição, recebida ·com entusiasmo por amplos setores da intelectualidade
que será efetuada, é meramente indicativa, tentando-se apenas alemã. Entretanto, já o desdobramento político imediatamente
localizar as determinações mais gerais e os movimentos, concep- posterior, as guerras napoleônicas, não encontra essa receptivi-
ções e autores mais expressivos. Assim, o estudo não tem ne- dade e sim posições opositoras. A figura de Fichte ilustra bem tal
nhuma pretensão interpretativa, avançando com uma biblio- itinerário: aplaude a Revolução entusiasticamente em sua obra
grafia clássica e não exaustiva. Visto isso, pode-se passar para a Contribuições para a Retificação dos Juízos do Público sobre a
discussão do tema. Revolução Francesa, publicada em 1793, para, menos de vinte
A centralidade da problemática do pensamento alemão re- anos depois, em 1808, se colocar radicalmente contra a ação na-
pousa no descompasso entre as questões discutidas e a realidade poleônica em seus inflamados Discursos à Nação Alemã. Nesse
vivenciada, isto é, o pensamento alemão participava de uma dis- trânsito, do qual Fichte foi tomado apenas como exemplo, mas
cussão que não fluía da prática da sociedade alemã; o temário que na realidade atinge os principais representantes do pensa-
abordado não correspondia à realidade social existente; os pontos mento alemão do período, já aflora aquele que será um dos traços
enfocados não revelavam a situação real vivida. Enfim, a filosofia
marcantes desse pensamento: a questão da nacionalidade. Os fi-
alemã encaminhava seu debate num plano absolutamente ideal e
lósofos alemães, que não vivenciavam a existência do Estado na-
abstrato, pois argüía sobre situações que não existiam em sua
cional na prática, vão alocar o problema da unidade da nação no
realidade. Nas palavras de P. Arantes: "O presente político e so-
centro de suas preocupações. Tal postura acarreta um posiciona-
cial, de que se ocupa a teoria alemã não sendo também o seu,
mento de princípio em defesa da Alemanha e, em decorrência
impõe-lhe, visado assim, à distância, a formulação de conteúdos
disso, uma total falta de crítica frente à situação real do país.
de experiência, cuja urgência histórica não pode partilhar" Y Tal Essa situação ora era idealizada e elogiada como virtude da alma
alemã, ora era absolutamente desprezada por uma discussão que
trafegava num plano totalmente lógico, sempre em argüições que
37 Arantes. P. E -Idéia e ideologia. A propósito da crítica filosófica dos
anos 1840 (alguns esquemas), em Discurso. 6, Departamento de Filosofia da
FFLCH-USP. 1975. p. 27. Es~e autor ~ai dizer que "o cenáno alemão" está 38 Marx, K. - Crítica da filosoiia do direito rle Hegel- Introdução, em
"compreendido emre dois presentes". p. 33. Temas de Ciências Humanas, 2. LE\H, São Paulo. 1977. p. 7.

50 51
perseguiam saídas para a consolidação da identidade da nação: totalmente mesquinha, de vendeiros e artesões. E se a mesqui-
objetivo almejado tanto por Herder quanto por Hegel ou Fichte. nhez nacional é sempre em todas as partes repelente, na Ale-
Essa busca, como observa Lukács, permeará todo o pensamento manha resulta nauseante, já que aqui, com a ilusão de estar aci-
alemão do período enfocado: "A luta pela unidade nacional pre- ma da nacionalidade e de todos os interesses reais, ela se opõe
side, na verdade, todo o desenvolvimento político e ideológico da àquelas nacionalidades que confessam abertamente sua limitação
Alemanha no século XIX''. / nacional e sua fundamentação sobre interesses reais". 39
Esse traço particularista, de- apesar da sua não tematização A avaliação acima dispensa maiores comentários, pois coloca
direta- assumir as raízes locais, leva a uma singular leitura. por claramente a questão: o nacionalismo alemão não se apresenta,
parte dos alemães, da literatura iluminista. A filosofia da Ilus- pelo menos não por enquanto, com sua feição real, mas sim tra-
tração, que na França e na Inglaterra refletia processos sociais vestido numa roupagem abstrata universalizante. A afirmação de
emergentes, na Alemanha vai ser discutida como assunto "pura- Marx e Engels traz à tona, além da questão do nacionalismo, os
mente filosófico". Os ideais ilustrados, fundamentos do libera- outros dois pontos nodais: o falseamento retórico e a ética abs-
lismo político, quando não são diretamente combatidos (como trata. Esses componentes se articulam em toda a discussão do
ocorre, por exemplo, nas formulações de Herder e Novalis), são iluminismo efetuada pelos alemães. Discussão que, enfatize-se
bastante deturpados por uma leitura que sofre as limitações de mais uma vez, não fluía da prática da sociedade alemã; ao con-
possuir vínculos práticos estreitos com o absolutismo imperante. trário, vinha de fora, de temas importados. Kofler aponta bem
Apesar das diferenças internas encontradas entre os autores ale- essa questão ao dizer que a ilustração alemã foi reflexiva, daí o
mães no que toca à avaliação e à assimilação das formulações ilu- distanciamento do real que ela introduz em suas considerações.
ministas, alguns traços vão marcar tal discussão como um todo. Nas palavras desse autor: "No pensamento dos intelectuais ale-
Os dois elementos já apontados - descolamento entre temática e mães a ciência da natureza se transforma no contrário do que foi
realidade e defesa de uma identidade nacional - por exemplo. para os ideólogos franceses e ingleses da Ilustração - a base para
perpassam as diferentes posições implicando importantes carac- a transformação da realidade; converte-se em assunto puramente
terísticas deturpadoras. A ética nacionalista vai comprometer se- filosófico e estético. O racionalismo alemão do século XVIII não
riamente o universalismo e o cosmopolitismo contidos na pro- tem nada de original nem de revolucionário, repousa em fer-
posta ilustrada. A perspectiva doméstica localista, da qual. se- mentos românticos. Os melhores espíritos tendem a voltar as cos-
gundo Hobsbawn, apenas Kant escapa, faz com que esses pontos tas para a realidade ou bem dissolvê-la de modo idealista me-
permaneçam no discurso de uma forma meramente retórica. diante a especulação abstrata".
Marx e Engels, após realizarem uma extensa análise da filosofia Esse universalismo retórico, esse caráter faiscador da essência
alemã, afirmam ao final da Ideologia Alemã: "De novo tivemos do discurso e essa tônica abstrata, ao tratar as questões, mani-
/ ocasião de ver. nesse artigo, as concepções limitadamente nacio- festam-se com uma clareza ímpar naqueles autores que explici-
nais sobre as quais descansam o suposto universalismo e presu- tamente se contrapõem ao ideário da filosofia iluminista. Tais
mido cosmopolitismo dos alemães( ... ) Esse reino etéreo dos so- oposições concentram-se prioritariamente na escola romântica
nhos, o reino da 'essência do homem', é o que os alemães opõem alemã do final do século XVIII. Para muitos comentaristas, ori-
aos demais povos com imponente orgulho, como a meta e a ginar-se-ia nesses autores o nacionalismo autoritário que domi-
consumação de toda a história universal; em todos e cada um dos naria o país a partir da segunda metade do século passado. Sey-
campos, consideram suas imaginações como o juízo final e defi- ferth, por exemplo, diz: "As raizes desse nacionalismo estão con-
nitivo acerca dos fatos das outras nações, e, como em tudo lhes tidas na obra de alguns autores do romantismo alemão, não tanto
toca somente o papel de espectadores e de observadores, acre- pelo fato de terem sido realmente nacionalistas, mas porque seu
ditam estar autorizados a avaliar o mundo inteiro e a falar em
última instância sobre a história da Alemanha. Já tivemo~ repe-
tidas ocasiões para ver que essa inflamada e superabundante so· 39 Marx, K. e Engels, F - La rdeología alemarza, Grijalbo, Barcelona,
berba nacional corresponde, no terreno dos fatos, a uma prática 1974. p . SóS.

52 53
movimento literário foi marcado por uma busca de valores na
comunidade 'folk' medieval - ou seja, no passado legendário do
Sacro Império Romano-Germânico- e pela valorização da pai-
sagem, dos costumes e da língua alemã". Segundo ainda essa
l problemática do Estado. Segundo a autora, esse filósofo inaugura
a visão da sociedade como intermediária entre o indivíduo e o
Estado, e chega mesmo a formular originariamente o conceito de
··espaço vital" (que será retomado pela discussão geográfica do
autora, os mais eminentes representantes dessa glorificação do final do século XIX). )(
passado teriam sido: os irmãos Schlegel. Grimm, Novalis, Herder, A dominação francesa, entretanto, não apenas explícita politi-
Fichte e Schellíng e, com exceção de Fichte, os outros não teriam camente o nacionalismo dos românticos, mas, como foi mencio-
dado uma conotação política às suas formulações. Entretanto, nado, também suscita esse sentimento nos próprios círculos li-
R. Romano mostra outra faceta desses autores românticos: os berais que, como visto, possuíam uma tênue fundamentação. Tal
elementos autoritários contidos em seus discursos; por exemplo, atração poderia ser bem iluS(rada com o itinerário político-teórico
na natu'ralização apologética da guerra efetuada por Novalis e de Hegel, que ainda permanece com um juízo positivo de Napo-
Schlegel, ou em seus discursos de endeusamento do "Príncipe" .4(1 leão mesmo com a dominação, mas para assumir, mais tarde, a
Esse pensamento romântico, que teve uma de suas maiores idéia da Prússia como condutora dos destinos alemães. 42 Como
expressões no movimento "Sturm und Drung", possuía, como foi observado, esse liberalismo não recuperava as posturas mais
observa Kofler, um papel ideológico fundamental em seu antiilu- avançadas do iluminismo (o materialismo principalmente), antes
minismo, o de explicitar uma tentativa de "direção moral" da diluía o ideário político no idealismo, tornando seus postulados,
aristocracia, que, como foi visto na prática, dominava a socie- muitas vezes, meramente retóricos. Hobsbawn fala do "mode-
dade alemã. Os temas levantados por esse movimento permane- rado liberalismo alemão", afirmando: "os lugares-comuns liberais
ceram como uma via de discussão em toda a evolução posterior do - materialismo ou empirismo filosófico, Newton, análises carte-
pensamento alemão: a valorização da comunidade como unidade sianas, etc. - desagradavam muito à maior parte dos pensadores
fundamental da análise social, a busca de uma apreensão totali- alemães; ao contrário, o misticismo, o simbolismo e as vastas ge-
zadora, entre outras. No plano eminentemente político, esses neralizações sobre os conjuntos orgânicos os atraíam visivel-
autores buscaram argumentar no sentido da desqualificação da mente, talvez por uma reação nacionalista contra a cultura fran-
democracia, erigindo a hierarquia religiosa como modelo máximo cesa predominante no século XVIII, que intensificava o teuto-
de gestão da sociedade~esse particular, a figura de Herder me- nismo do pensamento alemão''. Esse liberalismo moderado refle-
rece destaque por sua singular modalidade de "idealismo teologi- tia, sem dúvida, a apontada debilidade da própria burguesia na
zante". 41 Esse autor que, como será visto, aparece como um dos Alemanha, incapaz de articular um projeto nacional. De todo
influenciadores dos primeiros geógrafos, desenvolveu o conceito modo, as transformações impetradas no período napoleônico dão
central de "espírito do povo" e definiu com clareza a idéia da uni- um alento aos horizontes liberais, pois, mesmo na Prússia, centro
dade nacional apoiada na identidade lingüística. Assim, a ótica nevrálgico também do pensamento alemão, ocorrem reformas
desses pioneiros românticos era a da nação e não a do Estado, e a modernizantes que, mesmo muito tênues, estimulam sua dis-
questão da unidade nacional não se convertia diretamente num cussão. É este um período de intenso debate, poder-se-ia dizer o
projeto político. Tal explicitação só vai ocorrer quando a invasão ápice da ''Filosofia clássica alemã", que gera um ambiente inte-
napoleônica acirra os ânimos nacionalistas, principalmente após lectual capaz de propiciar elaborações magistrais, como a obra de
a derrota de Jena. Fichte, segundo Seyferth, seria o autor que Hegel, Schelling, Schopenhauer, e Feuerbach, entre outros. Mais
mais claramente realiza essa passagem, ao colocar diretamente a uma vez a discussão se faz muito além do propiciado pela reali-
dade social aJemã, descolada das questões postas na prática so-
o40 Seyferth, G. - Nacionalismo e identidade étnica. F. C. C .. Florianó·
cial. O estímulo das transformações modernizantes resultou
polis, 1982. p. 13 e Romano. R. - Conservadonsmo românuco. Origem do numa resposta teórica que alarga o fosso entre pensamento e rea-
totalitarismo, Brasihense, São Paulo, 1981. pp. 67 e 99.
41 Kofler. L. - Historia y dtalectica, Amorrortu. Buenos Aires. 1974. p. 42 Ver Konder, L. - Hegel e a praxis, em Temas de Ciêncras Humanas,
23. 6, LECH. São Paulo, 1979

54 55
!idade. Falando desse período, Marx ironiza a "revolução sem
igual da Alemanha'' que teria ocorrido "no domínio do pensa-
mento puro".
1 seu seio, do próprio pensamento marxista. Este, insere-se numa
tradição radical bem sedimentada na Renânia e na Vestfália (que
se reforça no período napoleônico), movimento este que na ver-
Cabe, antes de prosseguir na análise da evolução do pensa- dade também se filia à filosofia clássica. notadamente à obra de
mento alemão, apresentar algúmas considerações a respeito das Hegel. As formulações desse filósofo vão sofrer, na geração ime-
formulações geradas nesse período (primeira metade do século diatamente posterior. duas leituras distintas, ambas elegendo-o
XIX). Seria desnecessário enfatizar a importância e o significado como o seu inspirador. O pensamento de Marx forma-se no inte-
dessa produção no cenário da história da Filosofia; o nome dos rior de uma dessas correntes- o hegelianismo de "esquerda", e
autores mencionados basta para se inteirar disso. Tal relevo, tem na superação (negação-assimilação) de seus postulados o seu
entretanto, poderia levantar a idéia de um possível paradoxo com ''salto de qualidade".
o que foi apresentado até aqui sobre a debilidade do iluminismo e Mas, voltando ao eixo da exposição, deve-se apontar que o
do liberalismo alemão. Se o pensamento filosófico deslizasse percurso efetuado pelo pensamento alemão, percurso não linear e
numa linha contínua evolutiva, seria, de fato, um paradoxo. Não não unitário. foi. na interpretação de Kofler, aquele entre o
é isso, porém, o que ocorre, pois o pensamento avança por mean- "idealismo subjetivista" e o "idealismo objetivo", cujo saldo mais
dros contraditórios, mediações, que só a dialética consegue des- significativo foi a possibilidade de romper com o principal limite
lindar. Assim, a debilidade (o caráter retórico) do pensamento do primeiro: "a renúncia - se bem que não confessada - à cog-
alemão foi o seu trunfo. O descolamento da realidade permitiu noscibilidade do mundo exterior". Entretanto, tal avanço não
conhecê-la melhor. P. Arantes, seguindo a análise de Marx, diz implicou uma secularização da filosofia alemã. uma aproximação
que "o descompasso da miséria alemã condena igualmente o com uma temática mais terrena. Ao contrário, conforme se estrei-
pensamento, nisto fiel ao duplo presente que a caracteriza, à Dia- tava na prática o espaço político dos sujeitos sociais mais avan-
lética, ou seja, à árdua tarefa de acertar o passo com as coisas e as çados (entre eles. os próprios liberais moderados), o pensamento
idéias que o cercam aquém e além-fronteira". Dessa forma, se- de vanguarda mergulhava num debate cada vez mais abstrato; a
gundo ele, a "inadequação das idéias" agiu como "força de sub- ponto de a temática central dos "jovens hegelianos" vir a ser a
versão"; as colocações liberais formais, ao serem postas como re- crítica da religião. Assim é que a crítica de Marx vai incidir com
tórica, revelaram aqui o que realmente eram: aparências, forma. radicalidade até mesmo sobre alguns autores, como Feuerbach,
Assim, "o duplo presente em que se compri.'Tie o anacronismo que já se colocavam numa posição gnosiológica materialista (o
alemão faz as vezes de filtro", a fraseologia possibilitando a que não implicava um rompimento com a perspectiva abstrata).
transparência. Arantes conclui que, pela "crítica da retórica", ao Falando desses autores da vanguarda (cujas formulações refuta
assumir-se como o que efetivamente é, "a fraseologia especulativa na Sagrada Família e na Ideologia Alemã), Marx diz: "A ne-
ganha em força explicativa". Hobsbawn, sem tal profundidade nhum desses filósofos ocorreu sequer perguntar pela relação entre
analítica, também aponta essa relação, ao afirmar: "Por outra a filosofia alemã e a realidade da Alemanha" .44
parte, desde o princípio, sua posição à margem da zona de impe-
tuoso avanço liberal-burguês, e talvez sua completa incapacidade Dessa maneira, o descompasso entre o pensamento e a reali-
para participar dele, fez os pensadores alemães muito mais cons- dade social se acentua, ao mesmo tempo em que, no plano prá-
tico, a reação avança seu domínio político, acumulando vitórias
cientes de seus limites e contradições". 43 Dessa maneira, são
no Congresso de Viena, e na repressão aos movimentos democrá-
essas condições especiais vivenciadas pelo ambiente intelectual
ticos de 1830 e 1848. Nesse processo, as regiões mais avançadas
alemão que propiciam uma explicação para o afloramento, em econômica e politicamente vão sendo subjugadas ·na órbita da
Prússia. O setor liberal acaba por se cindir: uma vertente capitu-
43 Arantes, P. E. - Ob. cit.. pp. 26, 31, 27 e 33, respectivamente e
Hobsbawn, E. - Las revoluciones burguesas. ob. cit., p. 445. Ver também
Arantes. P. E. -O partido da inteligência (notas sobre a Ideologia Alemã). em 44 Kofler, L. -Historio .v dialéctica, ob. cít., p. 15 e Marx, K. e Engels,
Almanaque. 9, Brasiliensc. São Paulo. 1979 F.- La ideologia a/emana. ob. cit .. p. 18.

56 57
lando abertamente, outra radicalizando-se, acabando por ser iso- sentimentos para com o Estado e a Pátria, um novo alento nacio-
lada e neutralizada politicamente (após 1848, os líderes mais nalista vem à tona, com uma roupagem claramente autoritária. É
eminentes do pensamento radical alemão estão todos no exílio). nesse período que ocorre a expansão dos traços prussianos: a
Pode-se denominar esse processo, como o faz Seyferth, de " fa- adoração ser.·il da ordem, o culto do sentimento do dever, a mili-
lência do pensamento liberal alemão", cujas causas podem ser tarização das entidades sociais, etc. Na avaliação de Lukács,
creditadas à debilidade de sua sustentação nas condições sociais nesse momento, além de "campo de batalha para os interesses
concretas vivenciadas no país e, dentro desta, a incapacidade da imperialistas", a Alemanha se torna também "polo de atração
débil burguesia e a inadequação do projeto liberal naquele con- das ideologias reacionárias". 47 O romantismo reacionário vai ser
texto. De toda forma, vivenda-se, após 1848. um pleno domínio retomado, assim como a leitura conservadora da obra de Hegel.
do pensamento conservador e do projeto autoritário. Marx, escre- Nessa vai ser buscada principalmente a discussão sobre o Estado,
vendo na própria época, diz: "Sim, a história da Alemanha gaba- ilustrando já o que será também uma tônica do pensamento do
se de um movimento pelo qual não passou nenhum povo do fir- período: a sujeição da sociedade ao Estado, na·análise da his-
mamento histórico, e nem passará depois dela. Nós, alemães, tória. Enquanto o nacionalismo do início do século pensava na
compartilhamos das restaurações das nações modernas sem que "união dos alemães", o ideal nacionalista em pauta propunha
tenhamos participado de suas revoluções", e concluiu que, por claramente a constituição de um "Estado Nacional". . f
isso, essa situação combina "os defeitos civilizados do mundo dos A dominância das teses conservadoras, além de recuperar al-
Estados modernos. cujas vantagens não possuímos, com os de- guns nódulos do pensamento autoritário alemão anterior, vem
feitos bárbaros do 'Ancien Régime' que possuímos em sua totali- agora associada com alguns novos traços ideológicos originários
dade".4" da situação de plena vigência da ordenação capitalista da vida
Esse avanço da restauração (que, na verdade, aqui nunca ha- econômica. O extraordinário crescimento da atividade industrial,
via perdido o poder) na Alemanha, em meados do século pas- na 2~ metade do século XIX, vai dar um vigor significativo a esses
sado, faz-se acompanhar dé uma total capitulação da burguesia traços. A ordem econômica capitalista consolidada demanda
frente a seus estandartes históricos de luta. Essa classe abre mão uma contrapartida superestrutura! que afirme a ordenação exis-
de qualquer tentativa de direção moral da sociedade, entregando tente, que veicule uma visão de positividade do real, enfim, con-
seus destinos ao comando da aristocracia. Para se ter idéia do cepções afirmativas que legitimem o quadro vigente. O "idea-
efeito de tal recuo no plano ideológico, basta dizer que até mesmo lismo transcendental" e o "romantismo clássico'', por sua pró-
as postulações clássicas do pensamento liberal sobre o "direito pria tônica abstrata, não propiciam tais qualidades. Daí o aflora-
natural" são abandonadas; isso aparece claramente, por exem- mento de novos elementos ideológicos, dentre eles uma posição
plo, nas colocações de Haller, um ideólogo desse período, que gnosiológica materialista. Porém, como aponta Kofler, trata-se
diz: "O Estado não se funda no direito, e sim na força". 46 Esse de um materialismo bastante peculiar, pragmático, utilitarista,
recuo político da burguesia, além de jogar a "pá de cal" sobre apologético da técnica e da ciência. Um materialismo de acen-
qualquer pretensão do liberalismo, vem acompanhado de uma tuada tendência naturalista e empirista, que possui pontos de
ampla "atrofia ideológica", que chega a atingir a consciência das forte paralelismo com o positivismo francês. De acordo com Ko-
massas, gerando, segundo Kofler, o caldo de cultura da "onda fler, o afloramento dessa posição vincular-se-ia com "o fato de
chauvinista" posterior. A burguesia passa a expressar elevados que a concepção rigida, dogmática- quer dizer, mecanicista da
história - absolve o alemão da responsabilidade ativa. democrá-
tica, e justifica o automatismo burocrático, que entende a história
45 Marx, K. - Crítica da filosofia do Direito de Hegel. Introdução, ob. como se ela transcorresse segundo uma 'legalidade natural' inde-
cit., pp. 3 e 10. No prefácio da primeira edição de O capital, Marx fala ; "Somos pendente da vontade".
atormentados pelos vivos e também pelos mortos". Ob. cit., livro I, vol. I, p. S.
46 Citado por Kofler, L. - Contribuici6n a la historio de la sociedad bur·
guesa, ob cit . p . 421. 47 Lukács, G. - Realistas a/emanes de/ siglo XIX. ob. cit . p. 10.

58 59
Essa nova postura filosófica vai buscar sua base de susten- tários em 1870, contra dez mil da França; além disso, a idéia da
tação, principalmente, na Filosofia da NatureLa que, além de unidade lingüística e de sua importância havia levado a uma
possuir uma tradição de debate na Alemanha. havia ~..cnheddo preocupação com a educação primária, que fazia com que as ta-
uma grande impulsão pelo incrível desenvolvimento das ciências xas de analfabetismo fossem aqui das mais baixas da Europa. 48
naturais nessa época. No passado, a tradição de debate sobre a Cabe aqui fazer um parêntese para destacar a situaçâo do in-
natureza havia-se pautado por uma forte tônica especulativa e telectual alemão e o papel das universidades nesse processo.
abstrata (em Goethe, Schiller e Schelling, por exemplo). Agora, Gramsci aponta a "supremacia político-intelectual dosjunkers"
frente aos novos interesses, tal debate reveste-se da "cientifici- como o elemento singularizador explicativo dessa questão: "Eles
dade" da História Natural. Ocorre, assim, algo que é comum à foram os intelectuais tradicionais dos industriais alemães, mas
maioria das correntes filosóficas desse período, e que encontra no com privilégios especiais e com uma forte consciência de ser um
positivismo comtiano sua expressão lapidar. a aproximação do grupo social independente, baseada sobre o fato de que detinham
debate filosófico dos resultados das ciências. Hobsbawn observa um notável poder econômico sobre a terra, mais 'produtiva' do
que as ciências sociais traziam questões inoportunas para os ale- que na Inglaterra. Osjurzkers prussianos assemelhavam-se a uma
mães, e que: "Pelo contrário, a história natural era simpática, casta sacerdotal-militar, que possui um quase-monopólio das
pois representava o caminho para a espontaneidade da verda- funções diretivo-organizativas na sociedade política, mas que
deira e incorruptível natureza ( ... ) O mesmo ocorreu na Ale- possui, ao mesmo tempo, uma base econômica própria e não de-
manha, onde o liberalismo clássico era débil: uma ideologia cien- pende da liberalidade do grupo econômico dominante" .49 Dessa
tífica rival da clássica, a filosofia natural, ganhou rápida popula- maneira, os quadros intelectuais alemães foram recrutados basi-
ridade". Essa filosofia da Natureza, na verdade, vinha em so- camente na aristocracia, o que implicava laços bastante estreitos
corro de toda uma argumentação ideoíógica que não se furtava, entre o poder e o saber e uma estrutura acadêmica fortemente
antes priorizava. o debate das questões sociais. Ela propiciava elitizada (Gramsci, citando Weber. alerta para a dificuldade,
uma interpretação naturalizante da história humana, que se ade- nesse quadro, da formação dt> quadros intelectuais democrático-
quava inteiramente aos interesses do projeto políttco dominante. burgueses). Hobsbawn também aponta essa relação: "Nos Es-
A concepção naturalista da história, como foi apontado, elimina tados alemães e na Rússia, os intelectuais romântico-reacionários
a possibilidade de ação ativa dos homens, sua colocação como - bastiões da reação monárquica, tiveram seu papel na política
"sujeito da sociedade", vai moldá-los tal como deveriam ser os como funcionários civis, redatores de manifestos e prCOlgramas e
súditos alemães- obedientes e fatalistas, seguindo as ordens dos inclusive como conselheiros pessoais". Esta proximidade, poder-
"naturalmente" bem dotados, sem se oporem ao "curso natural" se-ia dizer pessoal e de classe, entre a vida acadêmica e a gestão
dos acontecimentos. Também o militarismo, decorrente do expan- da política, possibilitava que a universidade em si aparecesse
sionismo latente do Estado alemão, é justificado por tal con- como distanciada das questões práticas. A ela cab!a executar seu
cepção. num argumento onde a..Geografia estará no centro das papel universalizador do pensamento, sem macular-se com os
atenções, pela naturalização da violência como atributo humano problemas terrenos e cumprindo uma função quase ornamental no
e da difusão como intrín~eca à natureza dos Estados. O natura- que toca a estes.
lismo ainda vai fornecer sustentação para legitimar a ideologia da Como foi dito, a idéia da coesão pela üngua e da unidade cul-
'·especificidade germânica". bastando lembrar a idéia das carac- tural dos alemães, dominante na época da fundação de várias de
terísticas "naturais" das raças. Tudo isso consagrando-se pela suas universidades, justificavam-nas plenamente. O mencionado
"apreensão racional e objetiva" da ''Ciência", num momento em caráter altamente abstrato das preocupações filosóficas, predo-
que o cientificismo domina todo o amhiente cultural europeu.
Deve-se lembrar que a Alemanha contava com todo um aparato 48 Hobsbawn, E. -lAs revoluciones burguesas, ob. cit.. p. 521 e A era
de transmissão do conhecimento que fornecia condições materiais do capital, ob. cit.. pp. 113 e 6213, respectivamente.
para o bom êxito de uma ampla difusão desse projeto ideológico: 49 Gramsci, A. -Os intelectuais e a organização do cultura, Civilização
apenas para ilustrar. a Alemanha possuía dezessete mil universi- Brasileira, Rio de JaneirO, 1979, p. 18.

60 61
minante na primeira metade do século XIX, tem, em tais insti- antagônicos que se articulam na apologia do projeto imperial. Da
tuições, seu locus perfeito. Esse distanciamento da instituição problemática da unificação Uá em superação), o debate passa a
universitária também é explicativo da possibilidade de germi- centrar-se na questão da expansão e do "espaço vital". A intelec-
nação em seu seio (durante os interregnos liberais) de formas ra- tualidade progressista capitula, encerrando o pensamento alemão
dicais do pensamento crítico, como, por exemplo, as formulações nos limites do pragmatismo - aceitação e engajamento no pro-
de Marx e Engels. Tais ebulições políticas da universidade aca- jeto autoritário - ou do subjetivismo - manifesto, por exemplo,
bavam, pelo distanciamento existente com a prática real da so- na alienação romântica- este denominado com sarcasmo por T.
ciedade, recebendo as limitações de um microcosmo, neutrali- Mann de "intimismo à sombra do poder". Nas palavras de Lu-
zadas enquanto ações intramuros (como provam os desdobra- kács: "Só restou o dilema entre- a submissão servil ao sistema de
mentos dos movimentos da década de 1820-30). Tal clima de Bismarck e uma postura de solitária e grotesca extravagância".
afastamento, entretanto, aliado a condições materiais de trabalho Esse processo vivenciado pelo pensamento e pela universidade
altamente benéficas , propiciou um desenvolvimento significativo alemã - de aproximar-se das questões práticas e do óebate dos
da pesquisa básica alemã, notadamente no domínio das ciências temas políticos - vai intensificar-se após a unificação nacional,
naturais. O crescimento industrial de meados do século passado em 1871. O triunfo da prussianização consolida-o. A universi-
vem incentivar ainda mais esse processo. Acentua-se retorica- dade alemã se torna cada vez mais um aparelho ideológico do Es-
mente o caráter distanciado do trabalho acadêmico, ao mesmo tado, e o intelectual alemão cada vez mais um apologeta. Fer-
tempo que se intensifica a introdução de temas políticos no âm- menta-se aqui o nacionalismo chauvinista, que virá à tona nas
bito desses trabalhos. 50 décadas seguintes. Para tanto, importam-se e difundem-se as
É nesse processo de transformação que se encontra a universi- obras dos principais autores reacionários. Os historiadores deter-
dade alemã no momento exatamente anterior à unificação: uma ministas e autoritários como Taine e Buckle conhecem ampla di-
eqüidistância formal dos problemas práticos (que não impedia fusão. A assimilação das teses racistas foi de intensidade ímpãr na
sistemáticas "caças às bruxas" entre docentes e discentes), um Alemanha do final do século. A transformação dos conflitos fron-
grande desenvolvimento das ciências naturais especializadas, teiriços em uma "guerra racial" , realizada pelo discurso oficial
uma tradição especulativa com grandes traços românticos e abs- prussiano, demonstra cabalmente o que foi afirmado. 51 As teses
tratos (portadores de um alto potencial irracionalista), uma li- racistas adequavam-se perfeitamente aos princípios e intenções
gação umbilical com os detentores do poder do Estado (em vias da "Kulturkampf" (luta cultural), a aguerrida política cultural
de se explicitar). A hierarquização da estrutura universitária her- de Bismarck. Esta propunha-se a combater o universalismo da
dada fazia com que a própria expansão de seus quadros ocorresse Igreja Católica, destacando e desenvolvendo os traços do "ca-
sob rígidos mecanismos de controle e cooptação. É nesse am- ráter genuinamente alemão". A luta com a Igreja justificava-se
biente que se desenrola o avanço da postura cientificista. Cienti- pela divisão que mais punha em risco a unidade alemã: a entre
ficismo que traz em seu bojo o projeto de tornar a universidade católicos e protestantes, os primeiros representados pelos estados
um claro aparelho de criação e difusão de teses legitimadoras da do sul (a maior força de oposição a Bismarck). A ''Kulturkampf"
proposta imperial prussiana. Para tanto, mantendo a retórica da extrapolou, entretanto, em muito esse seu universo inicial de pro-
objetividade e da neutralidade (próprias do cientificismo), esti- pósitos, pois encontrava na realidade social alemã todos os requi-
mulam-se todos oc; traços ideológicos presentes que interessem sitos neces~ários à sua propagação. As mencionadas teorizações
àqueles desígnios práticos. Nesse processo associa-se pragma- românticas de idealização da "alma alemã" manifestam-se revi-
tismo e especulação, cientificismo empirista e irracionalismo, goradas pelos índices do crescimento econômico e político-terri-
conservadorismo e milenarismo radical. Juntam-se, enfim, traços torial.
A valorização das "características genuinamente germânicas"
50 J. D. Berna! analisa com detalhe esta evasão da responsabilidade social
do cientista. Ver Historio socwl de la ciencia. vol. I. Peninsula, Barcelona, 1973, 51 Ver Marx. K. - La guerra ctvil en Francw , Progres~o. Moscou. 1977.
pp. 438 '9. p 33.

62 63
havia sido a argamassa ideológica do processo de unificação, e rioridade física dos alemães e incentivador dos "clubes de ginás-
tais característica!> exaltavam os aspectos mais atrasados do qua- tica'' (na verdade organizações paramilitart:s. que se propagam
dro social alemão. Nas palavra~ de Lukács: "Um obstáculo de muito na Alemanha), que ape!>ar de escrever no início do século,
origem ideológica com 4ue tropeça a formação de tradições de- tem nessas derradeiras décadas do século XIX a grande difusão
mocráticas na Alemanha foi o falseamento, em grandes pro- de suas idéias. M. van den Bruck, em O Terceiro Reich veicula
porções e cada vez mais acentuado, da história alemã. Tratava-se críticas às formas de representação democráticas, exaltando
da idealização e da germanização dos aspectos mais retardatários como elemento redentor os traços autoritários da vida social
do desenvolvimento da Alt>manha; quer dizer. de uma historio- alemã. Er.fim. esta é a ideologia que acaba por se tornar hege-
grafia que se dedica' a a exaltar como o mais glorioso e o que mônica na Alemanha do final do -;éculo passado.
melhor se enquadrava com a alma alemã, aquilo que constituía Aos autores que não.se enquadram nesta vertente restou pou-
precisamente o caráter mais atrasado da trajetória do país". co espaço de ação. M. Lõwy defende a idéia de que estes refu-
Assim, a "Kulturkampf" integra-se como veículo privilegiado giaram-<;e num "anticapitalismo romântico". são suas as pa-
dessa ideologia germanista. que tl!m na universidade um dos seus laHas: "Se o fenômeno da 'mtelligent~ia' anticapitahsta é mais
centros de difusão. Glorifica-se a comunidade, endeusa-se o Es- ou menos unhersal na Europa na passagem do século. é na Ale-
tado. concebe-se- a história como uma luta entre as nações (natu- manha que ele se manifesta com uma acuidade particular. Por
ralizando a guerra); e, em meio a esse universo ideológico, erige- que precisamente na Alemanha?'Uma das razões é, sem dúvida,
se o mito da "superioridade ariana" e seu "destino manifesto". , a tradição anticapitalista romântica fortemente enraizada entre
buscando encobrir a situação real de atraso político com uma os intelectuais alemães a partir do começo do século XIX" .s2
aura mítica das "qualídades intrínsecas ao espírito do povo ale- Segundo ainda este autor, Schopenhauer e Nietzsche foram os
mão". Aqui. racismo, nacionalismo, romantismo e misticismo se elos de ligação entre o romantismo do início do século e o anti-
unem sob o traço comum do irracionalismo. Autores como Düh- capitalismo crítico do final, e a universidade fo1 o "foco ideoló-
ring e Treitschke pontificam na universidade, produzindo libelos gico anticapitalista". A produção de Nietzsche, segundo ele, con-
de exaltação da guerra e do Estado autoritário, num discurso ao teria uma "dupla vi~ão'', fornecendo elementos para o pensa-
mesmo tempo romântico e cientificista. Vale a pena elencar al- mento crítico e o consenador. Lõwy não deixa de mencionar que
guns trechos deste último autor; com a palavra Treitschke: "O tal postura anticapitalista não se opunha à ideologia dominante.
Estado que não é capaz de formar e manter uma organização antes fornecia-lhe munição como, por exemplo, ao debater a opo-
externa de suas atividades civilizadoras merece morrer'', "Aris- sição cultura-civilização. Na verdade, para ele, o anticapitalismo
tocracia é uma lei da natureza ( ... ) cada sociedade, por sua natu- originar-se-i~ do "traumatismo dos mandarins acadêmicos ale-
reza real, produz uma aristocracia{ ... ). As massas permanecem mães" (como já visto uma quase casta) frente ao "desenvolvi-
sempre as mas!oas. Não há cultura sem os seus servos". "A mo- mento industrial que os desaloja". Assim, este é um movimento
narquia é natural{ ... ) e faz um apelo ao entendimento popular basicamente acadêmico, que tem no "espírito de resignação" sua
( ... )a idéia de uma pátria unida está incorporada, para nós, na principal resultante, que se espelhou com clareza na nascente
pessoa do venerável Imperador( ...). Este homem é a Alemanha: Sociologia alemã: no pessimismo de F. Tõnnies e no ceticismo de
não existe contrad1ção nisto". ··o judaísmo internacional, oculto M. Weber.
pelas máscaras de diferentes nacionalidades, é uma influência A posição assumida pela social-democracia na guerra de 1914
desintegradora". "O hipócrita povo inglês, com a Bíblia numa ilustra exemplarmente o alcance atingido pelo nacionalismo
das mãos e um cachimbo de ópio na outra, não possui qualidades chauvinista e agressivo no pensamento alemão do início do século
redentoras. Os ingleses têm um espírito comercial, um amor ao XX, pois a sujeição a ele por parte da direção dos sociais-demo-
dinheiro que matou qualquer sentimento de honra, ou qualquer
distinção entre o que é certo e errado". Os traços apontados apa-
recem aqui com uma clareza meridiana. Também poderia ser Sl Lowy, M. - Para uma socwlogia do> inll!ltc/uUI~ revolucio•lários.
lembrado o historiador F. L. Jahn. o formulador da tese da supe- I ECH. São Paulo, 1979, p. 9.

64 65
cratas revela que tal ideologia penetrou mesmo naqueles movi-
Como foi visto, a questão que comanda todo o desenvolvi·
mentos que se antagonizavam estruturalmente com as forças so-
ciais que a haviam engendrado. 53 Seria possível, dessa forma, mento intelectual da Alemanha no século XIX é a da unidade
falar, num sentido absoluto, de uma hegemonia do nacionalismo nacional; tal questão já estava bem formulada ao iniciar esse sé-
chauvinista. Não há como negar o fato de essa ideologia haver culo, e recebeu várias propostas de solução no seu transcorrer. Na
obtido apoio de massas. As teses da riqueza nacional e do destino interpretação aqui defendida, a sistematização da Geografia in-
alemão chegam a conquistar o próprio proletariado, aparecendo tegrar-se-ia no bojo dessas tentativas teóricas de equacionamento
e discussão dessa questão. Tal interpretação não é, de forma ne·
na eclosão da guerra de 1914 como um verdadeiro consenso na-
nhuma, original; vários autores já a expuseram. J. Gottmann,
cional. Germinam-se aqui as condições ideológicas que propi-
por exemplo, afirma de modo incisivo: "É na Alemanha que se
ciarão, nas décadas seguintes, o afloramento da proposta nazista.
deve buscar as discussões mais ardentes -sobre as relações entre a
Tal processo transcende, porém, o universo do presente estudo. Geografia e a organização política ao final do século XVIII.
...- Aqui tentou-se apenas apresentar alguns traços gerais da evo-
Campo de batalha entre os exércitos franceses e as coalizões mo-
lução do pensamento alemão no século XIX, de modo a pro-
nárquicas, dividida entre novos ideais e as antigas fórmulas rei-
piciar uma melhor compreensão das condições que explicariam o
vindicaáas pelos soberanos prussianos do século XVIII, a Ale·
porquê da eclosão do processo de sistematização da Geografia manha busca sua via, sua organização política e territorial está
especificamente nesse país. Algumas correntes e alguns autores longe de satisfazer os espíritos. A filosofia de Kant revelou os
mencionados serão retomados ao se discutir sua influência ou fi. fatos locais e os intelectuais alemães não negligenciaram a he·
liação nas obras de Humboldt e Ritter, que serão analisadas a rança dos geógrafos que o país produziu na Renascença. Ao se
seguir.
instalar a doutrina francesa dos limites naturais, a Alemanha
procurou na carta complicada da Europa Central os pontos de
apoio de uma doutrina nacional. Fichte reclamou para os povos
A GEOGRAFIA NA HISTORIA DA ALEMANHA
um direito natural a certos espaços". M Vê-se que Gottmann deli-
mita bem o problema da relação entre a situação alemã e o te·
Os nexos entre a particularidade histórica da Alemanha e o aflo- mário geográfico. De fato, ·muitos dos temas postos por esse pro-
ramento do processo de sistematização do pensamento geográfico cesso de sistematização como precipuamente geográficos são, na
nesse país, após a exposição efetuada, evidenciam-se com cla- verdade, problemas cruciais que se colocavam para a sociedade
reza. Existem alguns laços entre o temário dessa disciplina e inte- alemã ainda não unificada. Entre esses temas, que se remetem
todos ao problema da realização da unidade nacional, poder-se-ia
resses políticos colocados na prática da sociedade alemã, cuja
lembrar: a disparidade e a falta de articulação entre as várias
identidade fala por si mesma. Assim, parte-se aqui do principio
regiões de fala alemã, cada uma organizando-se enquanto Estado
de que é a existência que determina a consciência, e que, de uma
autônomo e possuindo dinâmica social autônoma; a ausência de
forma muito mais mediatizada, o pensamento científico (e com
uma centralidade geográfica organizadora do espaço alemão,
maior proximidade as ciências humanas) tem seus temas e teorias
cujo único vinculo é a comunidade lingüística; a existência de
fluindo da prática social. Aceita-se, dessa maneira, a formulação disputas fronteiriças com países não germânicos, etc. Todos esses
de Marx de que "as teorias vêm da realidade para os livros, e não problemas colocavam a questão do espaço nacional no centro do
o inverso". Cabe aqui explicitar, então, essas mediações e esses
debate da sociedade alemã; a definição da identidade, a delimi-
nexos entre o surgimento da Geografia modem·a e a prática da tação da "área dos alemães", enfim toda a justificativa da pro-
sociedade alemã no período em que ocorre essa gênese. posta de unificação assim o demandava. Havia, portanto, um es-

53 Ver Hobsbawn. 'E. - Hist6na do marxismo, vols. I e 11. Paz e Terra,


Sol Gottmann, J. - lA politique des états er leur géographie , Armand
Rio de Jane1ro, 1982.
Colin, Paris, J952 n J6.

66 67
tímulo para o estudo e a discussão dos temas geográficos no seio nas um /ocus acadêmico para tal discussão, mas também sua
da sociedade alemã. Assim, do mesmo modo que a Sociologia consagração pela autoridade da ciência e ainda muniçõel. para a
aflorou enquanto ciência autônoma na França. "país onde, mai~ argumentação (em termos de informações e teorias). Nesse sen-
do que em qualquer outro lugar, as lutas de classe sempre foram tido, a figura de Ritter destaca-se da de Humboldt. pela criação
levadas à decisão final", 55 a Geografia, enquanto ciência autô- de teses mais diretamente utilizáveis pelo debate político e pelos
noma, haveria de sur-gir na Alemanha. onde a que::.tào espacial ou interesses legitimadores da estratégia prussiana. De todo modo,
territorial se colocava no centro dos problemas da sociedade. também as colocações de Humboldt possuíam tais possibilidades,
As formulações de Humboldt e Riller, produzidas basica- notadamente na questão da identificação da unidade nacional
mente entre 1800 e 1840. inserem-se no quadro de legitimação pela língua. Enquanto o pensamento de Ritter pode ser enqua-
científica das primeiras propostas efetivas de constituição da uni- drado na vertente mais autoritária e conservadora presente no
ficação nacional.' Daí o apreço dos dois autores por Herder e a quadro político alemão (a dos anti-iluministas), o de Humboldt
proximidade de ambos com o movimento •·sturm und Drang". apresenta. especificamente na postura política, uma tonalidade
baluartes da concepção de identidade cultural dos alemães pela liberal (se bem que um liberalismo de barão prussiano) talvez
língua. Isso não quer dizer que Humboldt e Ritter tenham sido decorrente de sua influência francesa. Assim, mesmo que de \
ideólogo~ do projeto unificador ou mesmo porta-vozes diretos forma mais ou menos incisiva. as formulações dos iniciadores da / \
dessa proposta. O que se quer dizer é que as teoriLaçôe~ desses sistematização da Geografia participam do ambiente cultural e
pioneiros da Geografia expressavam questões e argumentos que do círculo de pensadores que propuseram as teorias que emba-
trariam lu7 a essa problemática. que embasavam num plano cien- saram a proposta unificadora.
tífico sua discussão pela sociedade. que. enfim. a legitima~am. O A própria acolhida das colocações de Humboldt e Ritter, na /
fato de os dois autores serem prussianos empresta um vigor ainda sociedade alemã, expressa no prestígio e nas posições acadêmicas
maior às determinações da situação alemã sobre suas formu- por eles desfrutadas. revela a ressonância dos temas aí tratados.
lações. Como visto. é na Prússia, nesse período. que se mani- Ritter foi instrutor da Academia Militar de Berlim, Humboldt,
festam os mais fortes sentimentos de "germanismo", em opo-,il,:ão na sua condição de nobre, participa mais intimamente da gestão
à presença napoleônica gestam-se algumas das mais articulada~ do poder, chegando a ser conselheiro do rei da Prússia. Tais si-
teorizações quanto à problemática da unidade alemã (basta pen- tuações institucionais revelam o próprio referendum do Estado a
sar na obra de Hegel ou de Fichte). Os autores que efetuam e~sa seus trabalhos. Tais posições ocupadas não implicaram, porém,
produção estão presentes nas avaliações de Humboldt e Ritter. um atrelamento de suas perspectivas científicas às questões prá-
alguns privavam de suas relações pessoais (o caso de Hegel com ticas ou políticas. Ao contrário, ambos revelam exemplarmente
Ritter ou de Goethe com Humboldt, e dos dois com os Forster). aquele caráter abstrato do pensamento alemão da primeira me-
outros os influenciam diretamente (o caso de Schelling, por tade do século XIX. O pensamento de Humboldt, que se encontra
exemplo). Isso vem reforçar a interpretação defendida. mais próximo e vinculado ao poder, na verdade possui um caráter
Entretanto, novamente se frisa a existência de mediações entre ainda mais abstrato do que o de Ritter. Este insere-se numa tra-
as formulações destes geógrafos e uma proposta política de uni- dição teológica, aquele possui acentuados traços românticos.
ficação. Tanto é assim que não se encontra em suas obras mais Mesmo assim. por diferentes vias e sob estilos de marcada iden-
que algumas passagens rápidas sobre a questão alemã em si tidade regressista ou conservadora, os dois autores são porta-
mesma. O que aparece aí é a tematizaçào do espaço terrestre, vozes do movimento progressista no contexto da sociedade alemã,
suas características, variações, acidentes, ocupações humanas. qual seja: a afirmação das condições para a expansão e sedimen-
etc. E essa tematização em si representava alicerces para uma tação das relações capitalistas. Esse conteúdo progressista. que
discussão mais direta da problemática alemã, fornecia não ape- se acentua frente ao quadro social real da Alemanha e da Prúss1a,
expressa-se claramente pela aceitação de suas idéias em todo con-
55 Engels. F. -Prefácio à terceira edição alemã de Oezotlt> Brumárir>de tinente europeu P. George aponta com sagacidade este conteúdo
Luí~ BnnapartP. ob. cit . p. 12. afirmativo do capitalismo contido na Geografia nascente: "No

68 69
século XIX, a obra teórica de Humboldt e Ritter encontra reper-
cussão excepcional. numa época em que iam sendo difundidas 1 ficação, de conduzi-la de forma política, é, em parte, responsável
pelo relativo ocaso por que passa tal debate em meados desse sé-
em todas as grandes capitais sociedades de geografia, patroci- culo, após a morte de Humboldt e Ritter. Mesmo sem a vitalidade
nadas pelos governos e pela burguesia mercantil, que se lançava inicial, a Alemanha continua, porém, sendo a pátria do processo
com empenho apaixonado à colheita de informações suscetíveis de sistematização da Geografia, que nessa fase vai vivenciar um
de guiar a política de partilha do mundo e de atrair para a aven- momento de ajustes internos: exploração de subcampos (é um
tura os contingentes imprescindíveis à conquista e à exploração. período de desenvolvimento da Geomorfologia, da Climatologia,
Buscam os sábios conferir à Geografia foros de ciência dentro da etc.), levantamentos e estudos empíricos (de aplicação das pro-
concepção racionalista do conhecimento".56 postas de Humboldt e Ritter). aprofundamento teórico (por
No contexto alemão, onde afirmação do capitalismo e afir- exemplo a leitura crítica de Ritter por Peschel), padronização te-
mação da unificação são faces de um mesmo processo, as formu- mática e conceitual (onde se sobressai a figura de Richthofen).
lações de Humboldt e Ritter adquirem ênfase ainda maior. Nova- etc. Os estudos regionais sobre a Alemanha se multiplicam, assim
mente se frisa que esses autores não eram também arautos do como as cátedras de Geografia e os institutos de pesquisaP
capitalismo, apenas aponta-se que suas obras se inseriam num Também no ensino básico a Geografia é valorizada, para não se
movimento de afirmação de idéias que emergiam no bojo da dinâ- falar das academias militares. Na verdade, apesar da lacuna teó-
mica ideológica gerada pelo avanço dessas relações de produção. rica deixada por Humboldt e Ritter (e da não continuidade direta
Tal dinâmica trazia já uma valorização da ciência, posta como de uma discussão posta no nível de amplidão que eles conse-
instância capaz de legitimar os projetos sociais. Esse traço emerge guiram), a Geografia prossegue desenvolvendo-se e sedimen-
com clareza na produção dos autores analisados, e se constitui, tando-se na Alemanha. Isso decorre, sem dúvida, do fato de as
na verdade, no nexo mais expressivo entre suas obras e a prática condições que impulsionaram sua gênese permanecerem inalte-
política da Alemanha. Tanto Humboldt quanto Ritter produ- radas, no fundamental, até o advento da efetiva unificação
ziram trabalhos minuciosos de ordenação científica. Ritter rea- alemã. Conforme se vai delineando claramente a solução desse
liza toda uma padronização conceitual que interessa, não apenas processo, a problemática espacial vai de novo emergindo com vi-
à Geografia (cuja primeira formulação sistemática de objeto e gor central no debate da sociedade alemã; agora apetrechada
método foi obra sua), mas a qualquer descrição da Terra. Hum- com uma Geografia já em avançado processo de sistematização.
boldt produz normas, conceitos e classificações que interessam a Isso implica a possibilidade do afloramento de novas sínteses.
um conjunto bastante vasto de ciências; além da Geografia, seu A efetivação da unidade alemã em 1871 não redundou na
nome ocupa uma posição de destaque na evolução da Botânica, superação da problemática espacial pela sociedade da nascente
da Geologia e da Cartografia, entre outras. Assim, vê-se que tais nação; ao contrário, vai reforçá-la e redefini-la pela inclusão de
autores trazem já o trânsito para o cientificismo, porém a tônica novos elementos. Como foi visto, o Estado nacional recém-cons-
abstrata de seus escritos dá a suas produções um caráter algo tituído, apesar da intensificação dos fluxos comerciais internos,
ambíguo (que será analisado nos capítulos seguintes). De todo ainda apresenta uma profunda disparidade regional; algumas de
modo, no que interessa diretamente à prática social alemã, as suas regiões são polarizaffils por metrópoles estrangeiras. A au-
formulações desses autores servem para dar status de ciência ao sência de um centro nacional também permanece, apesar doses-
debate da unificação, e principalmente de sua problemática es- forços de, através da articulação das estradas de ferro, dotar Ber·
pacial. lim de tal função centralizadora. Assim, mesmo com a unificação
A discussão dessa problemática, que se arrasta até o processo nacional o localismo ainda se mantém presente na vida da Ale-
final de unificação, alimenta em grande parte o debate geográfico manha. Além desse traço histórico marcante, que apontava para
no decorrer do século XIX. O fato de as soluções de força se so-
breporem às tentativas de dar supremacia a uma proposta de uni- 57 No final do século XIX existiram na Alemanha trmta e duas cátedras.
de Geografia nas universidades e vinte e dois institutos de pesquisa dedicados a
56 George, P.- Os métodos da geografia. D;f,.l São Paulo, 1972. p. 17. essa disciplina Cl. Sodré, N. W. - Ob cit., p. 86.

70 71
problemas postos pela temática da Geografia, emerge agora, com menos no que toca à Geografia, pela linguagem "objetiva e for-
a unificação, outra classe de problemas que também incidiam no malista'' do cientificismo positivista. Ratzel traduz exemplar-
debate dessa disciplina. Trata-se das questões postas pela men- mente este processo. O projeto bismarckiano demandava uma
cionada situação alemã de "elo débil na cadeia imperialista", isto ciência normativa da ação, pragmática e afirmativa, isto é, posi-
é. toda a problemática do expansionismo latente. A Geografia vai tiva. As formulações de Ratzel obedecem a esse fim. Entretanto,
ocupar papel destacado na legitimação da proposta expansio- apesar da tematização direta das questões políticas, o próprio
nista. A importância dessa disciplina frente ao contexto analisado cientificismo demanda um certo afastamento aparente dos inte-
repousa, diretamente, na potencialidade prática e ideológica resses práticos, uma "neutralidade" garantidora do caráter "ob-
contida em seu temário. As questões do domínio do espaço, dos jetivo" do conhecimento produzido. No caso do pensamento ale-
recursos naturais e sua relação com o desenvolvimento econô- mão, tal distanciamento formal será menos sutil em função mes-
mico. das fronteiras , das raças, entre outras, fluem diretamente mo dos traços autoritários da própria unificação e da ausência de
da situação prática vivenciada pela sociedade alemã. A valori- uma tradição liberal consistente. Mesmo assim, para garantir sua
zação da Geografia no período alimenta-se da premência social própria eficácia ideológica, as formulações de interesse do projeto
(na ética e na práxis dos dominantes) da discussão sobre o es- alemão deveriam cobrir-se com uma aura de universalidade .
paço. Além dó mister da justificativa ideológica da expansão, Assim, Ratzel não é diretamente um propagandista da política
propiciada exemplarmente pelo debate dos temas geográficos, imperial. poderia talvez ser definido como um ideólogo de tal po-
havia ainda necessidades práticas de manipulação dos conheci- lítica (no sentido preciso do termo ideólogo, aquela função que
mentos referentes a porções do globo terrestre demandadas para Gramsci denomina de "grande intelectual"). A tematização do
a orientação da conquista militar e da exploração econômica. expansionismo é abertamente formulada por Ratzel, porém é
Assim, colocavam-se novamente na Alemanha um conjunto de discutida num plano universal, onde emerge a artimanha do ar-
condições que estimulavam a discussão dos temas espaciais, pro- gumento de sua justificação: a naturalização, a expansão posta
piciando a emergência de novas sínteses no âmbito da Geografia. como característica natural da história dos povos .
Essa síntese ampliadora da discussão geogrãfica vem aflorar A assimilação do positivismo permitia a utilização de tal arti-
com a obra de Ratzel. publicada basicamente entre 1870 e 1900. manha consagrada por esta concepção. A unificação realizada
Como se pode observar, este autor vivenda diretamente o período prescindia da busca de uma identidade nacional pela cultura,
de constituição do Segundo Reich, a era bismarckiana. Refle- pela língua, enfim pelas idéias: tal unidade era dada agora. na
tindo bem o clima ideológico da época, seus trabalhos vão expli- prática, pelo Estado. Assim, das necessidades de uma temati-
citar mais a relação entre o discurso geográfico e o poder, a tema- zação especulativa e abstrata sobre o espaço transita-se para os
tização direta das questões políticas aparece com destaque (basta_ imperativos colocados pela dominação material do espaço. Nesse
ver a elaboração explícita de uma Geografia Política). Isso fica trânsito. o discurso filosófico especulativo e o discurso literário já
evidenciado no fato de Ratzel introduzir no temário dessa disci- não bastam (se bem que permaneçam com uma função ideológica
plina a problemática social, ao se propor, pioneiramente, pro- importante); urge elaborar uma sustentação ideológica mais inci-
duzir uma Geografia do Homem. Como foi visto, o período bis- siva, mais "científica". Na Geografia tal trânsito poderia ser
marckiano se singulariza por um acirramento do nacionalismo apontado na passagem da tematízaçao do espaço para a temati-
e, associado a este. uma apresentação clara de um projeto impe- zação do território, efetuada por Ratzel. Essa diferença acom-
rial. A cooptação direta da autoridade científica, num momento panha a substituição da ótica da unidade da nação para a ótica
de pleno domínio do cientificismo em toda Europa, para imple- da unidade do Estado, vivenciada pelo pensamento e, na prática,
mentar tal projeto foi, como visto, uma tônica do período. Nesse pela sociedade alemã no período. O naturalismo, que justificará a
processo foram recuperadas as teorias da tradição filosófica alemã própria proeminência do Estado, surgirá como um grande ci-
que interessavam aos objetivos prussianos, porém tais teorias fo- mento da constelação ideológica subjacente ao desenvolvimento
ram articuladas por uma influência dominante do positivismo. O da proposta imperial prussiana. Naturalizam-se as características
tom romântico e especulativo foi claramente substituído, pelo do quadro social da Alemanha, fazendo-as passar por decor-

72 73
rências de atributos específicos germânicos advindos da raça. que colocavam a questão espacial (logo, o temário dessa disci·
Naturalizam-se o autoritarismo e o uso institucional da força no plina) no centro do debate político. Tal importância advinda da
processo. político, reinante no quadro alemão, ao se justificar a fragmentação nacional vivenciada pelos alemães e do caráter tar-
violência como componente normal da "natureza humana" (a di- dio de sua unificação. A discussão geográfica no século XIX
fusão significativa das teses de Spencer é elucidativa dessa ques-
avançou, alimentando e sendo alimentada, dentro desse processo
tão). Naturaliza-se a própria política exterior expansionista, com de unificação, e foi obra de pensadores alemães. A justificativa
o uso de uma concepção evolutiva da história, posta como tendo dessas afirmações pede o concurso de uma análise mais detalhada
por motor a "luta das nações"; nesse particular a Geografia des- dos principais representantes desse movimento genético da Geo-
ponta com excepcional peso ao discutir, por exemplo, a proble-
grafia moderna: Humboldt, Ritter e Ratzel. A análise dos dois
mática do "espaço vital". Todos esses argumentos se articulam primeiros é empreendida nos capítulos seguintes. 58
na ideologia nacionalista do "destino alemão", da "glorificação
do Reich", da "superioridade ariana". Aqui, na finalidade de
popularização, mistura-se o cientificismo legitimador com o estilo
romântico de elevada penetração popular.
- A Geografia vai participar de todo esse processo de forjar uma
"consciência nacional", constituindo-se em importante instru-
mento de criação e veiculação dessa ideologia dominante, seja ao
legitimar seu móvel principal - a expansão, seja ao alimentar
outros nódulos da mitologia reacionária. A função da Geografia,
porém, não vai ser apenas de justificação ideológica; há outra fa-
ceta, utilitária, operacional no plano econômico, que trata de for-
necer conhecimentos para a atividade industrial, ou comercial.
Temas como o da localização industrial, o da organização das
redes de cidades ou da articulação da estrutura produtiva no
campo (que vão aflorar, basicamente, nesse periodo) atuam nesse
sentido. Tais discussões, mesmo que efetuadas sem o rótulo explí-
cito de Geografia, vão interessar sobremaneira o desenvolvimento
futuro dessa disciplina. Basta pensar nas formulações de von
Thunen, um aristocrata junker que elabora uma teorização, tão
cara à Geografia, sobre a organização espacial da agricultura, a
partir de sua vivência de fazendeiro. Também o desenvolvimento
de alguns campos específicos da Geografia Física se dá escoimado
dessa relação direta com a atividade econômica, expressa, por
exemplo, na ligação entre a Geomorfologia e a atividade mine-
radora. Seja na faceta mais ideologizante, seja na faceta mais
pragmática ou tecnológica, a evolução do pensamento geográfico
avança calcada nas condições estimulantes postas pelo quadro
vivenciado pela sociedade alemã.
/ Sintetizando o que foi apresentado, reafirma-se a idéia de que
o afloramento do processo de sistematização da Geografia, espe-
58 Sobre a obra de Ratzel ver Moraes. A. C. R. (introduçlo e seleçio de
cificamente na Alemanha, ocorreu em virtude das condições par- textos) - Friedrich Ratzel, coleçlo "Grandes Cientistas Sociais", Ática, Slo
ticulares de desenvolvimento das relações capitalistas nesse país, Paulo, no prelo.

74 75
Capítulo 2

A Geografia Física de Humboldt

-
E quase-unânime. entre os historiadores do pensamento geo-
gráfico. a aceitação do papel pioneiro de Alexandre von Hum-
boldt, ao lado de Carl Ritter, no processo de sistematização dessa
disciplina. Para L. Febvre. por exemplo, esses autores são os
"formadores" da Geografia, ou como diz, '·pelo esforço pre-
cursor de um A. Humboldt. o autor de Cosmos. e de um C. Rít-
ti!r'' essa disciplina ''assegurava seus métodos, definia um objeto
próprio e tomava consciência de sua autonomia". Para R. Clo-
zier, Humboldt e Ritter são os "fundadores da Geografia Mo-
derna".1 A. Meynier também acata essa colocação, assim como
P. Clava!, que diz: "Estamos de acordo que se busquem as pri-
meiras formulações sistemáticas da Geografia em Humboldt e
Ritter. Isto foi o que assegurou a glória duradoura desses dois
precursores". 2 M . LeLannou sustenta que a concepção exphca-
tiva e genérica, isto é, a que relaciona os fatos, inicia-se com esses
autores. Essa posição também é defendida por J. Brunhes, que os
coloca como iniciadores da Geografia explicativa, diferenciada da

I Febvre, L. - Ob. cit., p. 26 e CJ,nier. R. - Etapas da geografia , Eu·


ropa-América. Lisboa. 1957, p. 81. Diz este autor: "Graças a Humboldt e Ritter
ficam estabelecidos os princípios da Geografia Moderna: I?) determmar a coor-
denação. as conexões ~uperficiais entre Ós três estados da matéria. para exphcá-
Jos traçando de no~ o o encadeamento dos fatos e precisando o ponto de sua evo-
lução; 2:') localizar os fenõmenos . mostrar sua extensão, colocá-los no seu qua-
dro espacial" ( p. 82).
2 Ver Meynier, A. - Ob. cit., cap. I e Clava! P. - Ob. c1t .. p. 29. Em
outro texto este último autor volla a afirmar: "Todc. mundo está de acordo em
assinalar o papel pwnetro de Humboldt e Rítter'' (Clava!. P. e Nardy, J.·P. -
Pour !e cinquantenaire de la mort de Paul VidaJ de La Blache, Cahier de Géo-
graphie de Besançan. 16, Annales littéraires de l'Univewté de Besançon, 93,
Les Belles Lettres, Paris, 1968, p. 31).

77
anterior, puramente descritiva.-' Mesmo geógrafos de concepções timo diz: "Alexandre von Humboldt, denominado com justiça o
tão diferenciadas como M. Chisholm e Y. Lacoste, apesar de ava- pai da Geografia Científica, foi também o primeiro autor relati-
liações distintas, estão de acordo quanto ao papel pioneiro desses vamente moderno a dedicar atenção à lógica de seus conceitos".~
autores.4 Este breve painel já justifica a afirmação inicial. É in- Não cabe entrar aqui na polêmica sobre o peso relativo na compa-
questionável que a obra humboldtiana é um marco na evolução ração entre a influência da obra de Humboldt e a de Ritter na
do pensamento geográfico. sistematização da Geografia; Cabe apenas ressaltar o papel, em
Alguns autores dão mesmo a primazia absoluta, nesse pro- termos absolutos, das formulações humboldtianas na consti-
cesso de sistematização da Geografia, à figura de Humboldt. É o tuição dessa Geografia denominada por alguns de Moderna, Ex-
caso, por exemplo, de C. Vallaux, que o considera a figura cen- plicativa ou mesmo Científica.
tral desse processo. Sobre a abordagem explicativa diz clara- A presença das formulações de Humboldt no desenvolvimento
mente: "Talvez nem pensassem os geógrafos ainda em fazê-la , se posterior da Geografia é assunto incontroverso. Freqüentemente,
não tivessem o impulso inicial decisivo dado pelo genial Hum- o peso de suas colocações é lembrado para legitimar as mais va-
boldt, do qual todos·os geógrafos, desde há cem anos, são mais ou riadas propostas. Vida! de LaBlar:che, por exemplo, vai evocá-lo
menos os continuadores e os herdeiros" .5 Parece ser também o como inspiração ao desenvolver o "princípio da unidade ter-
caso, não com tanta ênfase. de M. Sorre e F. Schaefer; este úl- restre". Também J. Brunhes, quando discute a idéia de "con-
junto terrestre" ao elaborar o seu "princípio da conexão". C.
3 Le Lannou, M. - lA géographie humame, Flammarion. Pari~. 1949, Vallaux chama a sua autoridade ao afirmar que a previsão é a
pp 15/ 6 "Foi neccs~ário chegar o século XIX para se assistir ao verdadeiro finalidade última das ciências. Enfim, a influência humboldtiana
renascimento da Geografia na Europa. No princípiO do útuno século. dois ho- é por demais variada e evidente. Pode ser identificada de ime-
mens expuseram à plena luz as concepções diretrizes desta parte da Geografia diato em Richtofen, Hettner, Sauer e Harstshorne, entre outros.
que seria a Geografia Física e a que seria a Geograf1a Humana: um fo1 o grande Este último autor vai assumi-la explicitamente: "Podemos es-
sáb10, observador e inovador Alexandre Humboldt ( ... }e outro, mais um histo- capar aos problemas do determinismo, seguindo a lição de Hum-
nador e filósofo ( ... ) Karl Ritter" (Brunhes, J. Geografia humana, Juventud. boldt, e considerar os diversos aspectos e elementos da superfície
Barcelona, 1948. p. 25.
da Terra sem procurar separá-los de um e outro lado dessa linha
4 Chisholm afirma ser "indubitável que aos geógrafos alemães do século
arbitrária e abstrata (a que separa os fenômenos em naturais e
XIX devemos a formalização do trabalho geográfico como uma disciplina que
agora chamamos de Geografia". Diz ainda: "1:: sempre bom reg1strar com prc·
humanos)". Os exemplos poderiam suceder-se, reforçando a afir-
cisão a localizaçãc de cabos e baías, rios e cidades, mas, pergunta-se, como é mação inicial.
que estes lugares se paret·em? Nas tentativas sistemáticas de responder a esta A produção humboldtiana é, sem dúvida, referência funda-
questão. dois nomes destacaram-se: Alexandre von Humboldl e Carl Ritter" mental no panorama do pensamento geográfico. Antes de pene-
(Geografia: evolução ou revolução. Interciência, Rio de Janeiro. 1979, pp. 7 e 17 trar na análise de suas propostas, cabe apresentar algumas infor-
respectivamente. Yves Lacoste afirma: "Ê na Alemanha do século XIX. onde se mações sobre a vida e a obra desse pensador.
propaga o papel unificador e organizador da Prússia, que se forma a Geografia
moderna. enquanto saber científico ou discurso universitãrio. Certamente. as
preocupações de seus fundadores, Humboldt e Ritter, visam o conjunto do globo
e numerosa~ situações regionais· eles são os primeiros, com efeito, a mostrar que
se devem articular as descrições racionais de uma parte do espaço com a do con-
junto do planeta. umndo ass1m as duas abordagens que, desde a Antigüidade, 6 Ver Sorre, M. - Ob. cit. e também Schaefer. F. - O excepcionalismo
estavam separadas ... " (A geografia, em Chatelet, F. (org.) - H1st6ria da filo· na geografia: um estudo metodológico, em Boletim Cari?ca de Geografia, nú·
sofia, vol. 7. "A filosofia das ciências humanas··. Zahar. Rio de Janeiro, 1974, mero especial "Metodologia em geografia". Rio de Janeiro, 1976, p. 10. A po·
p 246). sicão de Schaefer é, todavia, mais atenuada, pois ele reconhece o papel desem·
5 Valiaux, C. - Ob. cit., p. 13. Griffith Taylor diz mesmo que Ritter fo1 penhado por Ritter. tmile l...evasseur coloca também uma certa primazia, ao di·
"apenas um discípulo de Humboldt" (citado por Hartshorne, R. - Prop6sitos e zer: "Alexandre von Humboldt é o primeiro a vislumbrar a Geog:afia com uma
natureza da geografia, Hucitec, São Paulo, 1978, p. 67). larga visão" (citado em Clava!, P. e Nardy. J.-P. - Ob. cit., p . 69).

78 79
DADOS BJOGRÃFICOS E BIBLIOGRÂF!COS DE HUMBOLDT que este Uunto com o pai J. R. Forster) havia participado da se-
gunda expedição de Cook. Em 1790 excursiona com Forster pela
Europa (Inglaterra, Bélgica, Holanda e França), levantando da-
Alexandre von Humboldt nasceu no seio de uma família aristo- dos para um estudo sobre a mineralogia do Reno. É provável que
crática, em 14 de setembro de 1769, na cidade de Berlim, no tenha havido infiuência de Forster sobre Humboldt quanto à
reino da Prússia. Seu pai era barão e oficial do exército prussiano, metodologia da observação de campo, pois esse autor e seu pai
tendo sido chamber/ain de Frederico II. Sua mãe era a baronesa foram grandes inovadores nessa matéria. Talvez também haja in-
de Hollwede. Em função mesmo de sua origem social, a formação fluência de Forster na postura política liberal de Humboldt, à
escolar inicial de Humboldt foi esmerada. Teve na infância, como medida que esse autor foi bastante progressista no contexto polí-
tutor, J. H. Campe, pedagogo ilustre que, posteriormente, foi tico alemão." De todo modo, Humboldt assume o peso de Forster
ministro da Educação da Prússia. Esse tutor era adepto das teo- em sua formação ao colocá-lo como "o distinto mestre e amigo cujo
rias pedagógicas de J.-J Rousseau, bastante progressistas para o nome não pronuncio jamais sem um sentimento de sincera gra-
contexto da época, e tornou-as familiares de seus tutelados.' tidão".
Assim. as idéias de observação direta da natureza e de excursões Nos anos de 1790 e 1791 freqüenta a Academia Comercial de
como a melhor forma de aprendizado (defendidas por Rousseau Hamburgo, onde amplia seus conhecimentos econômicos e esta-
em sua obra Emílio) não foram e~tranhas à formação de Hum- tísticos. Transfere-se em seguida para a escola de Minas de Fri-
boldt. Esse fato talvez explique seu interesse precoce pela Botâ- burgo, onde estuda Geologia com A. Wemer, e trava contato com
nica e pelas viagens, à medida que essa linha pedagógica foi man- L. von Buch. Nesse período realiza pesquisas sobre a flora sub-
tidapor seu segundo tutor, C. Kunth. Esse interesse foi externado terrânea, cujos resultados são apresentados num trabalho publi-
pelo próprio Humboldt. no primeiro capítulo do Viagem a Regiões cado em 1793. Esse estudo, juntamente com outro sobre as for-
Equinociais. Diz ele: ''Desde minha primeira juventude me senti mações basálticas do Reno (que fora publicado em 1790), ga-
com uma viva inclinação e ardente tlesejo de fazer uma viagem às rantem relativo prestígio ao jovem cientista. Em 1792, Humboldt
regiões remotas e pouco visitadas pelos europeus( ... ) Não era o de- deixa a escola de Friburgo e aceita um cargo oficial no Depar-
sejo da agitação nem da vida errante o que me animava, mas o de tamento de Minas da Prússia. Esse emprego lhe permite realizar
ver e observar de perto a natureza selvagem ( ... ) e a esperança de viagens pela Alemanha, recolhendo observações geológicas e bo-
recolher alguns fatos úteis ao progresso das ciências·· . 8 tânicas. Permanece nesse trabalho até 1796.10 Durante esse pe-
A formação universitária de Humboldt também foi rica e va- ríodo são constantes suas viagens a Jena para visitar o irmão Gui-
riada. Em 1787 estuda Economia Política na Universidade de lherme, aí estabelecido. A Universidade de Jena é então um dos
Frankfurt-am-Oder, curso que freqüenta apenas por alguns me- centros culturais mais ativos da Alemanha. Nessas estadas Hum-
ses. Transfere-se em seguida para Gotinga, onde estuda Ciências
Naturais. Nesta cidade trava contato com Blumenbach, Goethe, 9 Sobre os Forster, \·er Tatham, G. - A geografia do século XIX, em Bo-
G . Forster. entre outros pensadores. Ê aluno de Heyne, o qual letim Geográfico. 17. CNG-IBGE, Rio de Janeiro, 1959, pp. 204/S. Sobre a pos-
desenvolveu seu interesse pela Arqueologia e pela Etnografia. O tura política diz Leandro Konder, comentando a repercussão da Revolução
Franc~sa na Alemanha: "Uns poucos intelectuais alemães tentaram pôr em prá-
contato com Forster vem acentuar seu gosto pelas viagens, posto
tica os princípios revolucionários (por exemplo, George Forster), mas fracas-
saram" (Hegel e a praxis, ob. cit., p . 3).
7 Humboldt faz apenas breves alusões às idéias de Rousseau em suas obras to Há alguns dados biográficos, principalmente quanto às datas, contro·
consultadas. Ver Quodros da 1,1acureza, Jackson. Rio de Janeiro, vol. I, 1952, p. versos entre os comentaristas: Jean Tulard. por exemplo, fala em 1797 como o
31 e Cosmo~. Gtde etJ. Baudry. Paris, 1~6. \'OL II. p. 74 ano do desligamento de Humboldt do serviço público (ver L 'Aménque espagnole
8 Humboldt. citado em Stevens·Middleton, R. L. - La obra de Alexar~der e•z 1800 vue par wz savant alemand, Calman·lévy, Paris. 1965). No geral, pro-
von Humboldt en Méxicu, Instituto Panamcricano de Geografia y Historia. pu· curamos seguir os dados fornecidos pela biografia citada de Stevens Middleton
bltcação n? 22, Méxtco, 1956, p. 12. Ver também uma carta de Humboldt pata (que nos pareceu a melhor fundamentada), porém sempre cotejando-os com ou-
A. Pictct citada nessa obra. p. 11. tras obras.

80 81
ooldt vai estreitar suas relações com Goethe e com Schiller, publi- quisa e locomoção, colocando o aparato público colonial a ser-
cando alguns artigos no jornal Die Horen (As Horas), dirigido por viço dos viajantes.
este último. Um desses artigos, "O Gênio Ródio" editado em A 5 de junho de 1799, Humboldt e Bonpland partem de La
1795, será posteriormente incluído com um adendo em seu livro Corufia com destino a Havana, a bordo do "Pizarro''. Depois de
Quadros da Natureza. A relação com esses autores, que no caso uma escala nas Canárias, onde visitam o pico de Tenerife, desem-
de Goethe será mantida por toda a sua vida, reforça em Hum- barcam nas costas da Venezuela. Durante o resto do ano de 1799
boldt a preocupação com a Estética enquanto forma de apreensão e no ano seguinte viajam pela Amazônia, percorrendo a bacia do
do real, ponto de singular importância em suas concepções meto- Orinoco e do rio Negro. No final do ano de 1800 chegam à ilha de
dológicas, como veremos adiante. É possível indagar também da Cuba, onde permanecem três me~es. Durante os anos de 1801 e
influência desses contatos no reforço à concepção política liberal 1802, Humboldt e Bonpland viajam pelos Andes. No início do
de Humboldt, visto ser Goethe um pensador progressista que ano seguinte, desembarcam em Acapulco, viajando pelo México
elogia a Revolução Francesa e a obra napoleônica.11 até o final de março de 1804. Nesta data, partem para Havana e
Em 1797, após o falecimento de sua mãe e deixando seus bens daí para Filadélfia. Em Washington , hospedam-se com o presi-
sob a guarda de Kunth, Humboldt parte para Paris, onde havia dente Jefferson na Casa Branca. Em agosto de 1804 chegam a
estado em missão diplomática em 1795. Paris nesta época é, sem Bordéus, finalizando uma estada de cinco anos na América. Ê ni'f
dúvida, o centro do mundo científico europeu. Humboldt assiste elaboração dos dados aí recolhidos que Humboldt inicia sua pro-
a um curso de Ciências no Instituto de França, e freqüenta assi- dução p:-opriamente geográfica, pois seus trabalhos anteriores
duamente a Escola Politécnica, o Observatório e o Museum. dizem respeito à Física, à Química, à Botânica e à Geologia. No
Trava contato com Berthollet, Fourcroy, Lalande, Cuvier, Gay·· agrupamento e na apresentação das observações americanas co-
Lussac, Vauquelin e Arago, entre o_utros. Publica vários artigos meça a se desenvolver aquela concepção que dará a Humboldt
nos Annales de Chimie no decorrer dos anos de 1797 e 1798. Po- papel destacado na evolução do pensamento geográfico. Hart-
rém. v objetivo de viajar para regiões longínquas já estava estabe- shorne fala na "de todo importante viagem à América" . 12 Apenas
lecido. Na vinda para a França, já havia excursionado com Bush para finalizar, cabe mencionar que a Coroa portuguesa proibiu a
pelos Alpes (Suíça e Áustria), testando o uso de instrumentos entrada de Humboldt nas terras brasileiras, o que explica a ausên-
como o sextante e o barômetro. Frustram-se as primeiras tenta- cia desta grande porção da América do Sul em seu itinerário.
tivas de deixar a Europa: a viagem de circunavegação que o Dire- De volta a Europa, Humboldt passa alguns meses em Paris,
tório desejava realizar. sob o coma.'ldo do capitão Baudin, não se preparando a publicação de seu relato de viagens. e fazendo con-
realizou em função da não-liberação de verbas; e a viagem a., ferências que atraem um grande público. Em 1805 viaja com
norte da África, programada pelo cônsul sueco em Paris, não se Gay-Lussac pela Itália, visitando o Vesúvio com Bush e Simón
realiza em função de acidente com o navio (nessa viagem Hum- Bolívar. Humboldt havia conhecido este último em Paris, onde
boldt se propunha a unir-se ao exército de Napoleão em cam- Bolívar se encontrava estudando, mantendo com ele uma relação
panh.a no Egito). Nesses dois episódios já se faz acompanhar da- epistolar, quando de sua volta à América. Fica uma temporada
quele que será seu parceiro na viagem à América: o botânico em Roma, onde seu irmão Guilherme representa o governo da
Aimé Bonpland. Esta última empresa leva-os até Marselha, de Prússia junto ao Vaticano. Ao final desse ano, retoma a Berlim,
onde, uma vez sabendo-a frustrada, partem numa excursão para onde trava contato com Ritter. Obtém do rei da Prússia, do qual
a Espanha. Em Madri, através do barão de Forrei, ministro da se torna conselheiro, permissão para residir em Paris, estada que
Saxônia e estudioso da Mineralogia, conseguem permissão para se prolongará por vinte anos. Nesta cidade, torna-se membro da
visitar e estudar América espanhola. A carta de permissão expe- Academia de Ciências. Seu companheiro Bonpland é nomeado
dida pelo ministro de Assuntos Estrangeiros da Espanha, dom
Mariano Luís de Urquijo, garantia amplas liberdades de pes- 12 Harhhorne. citado em Ste,·en'>-Middlcton. R - Ob. cit., p. 29 Clava!
afirma que '" ~om Humboldt os relato~ de viagem se tornam geográftcos·· (La
li Ver Lukács. G. - Goethe y su época . GriJalbo, Barcelona, 1968. pe11.1t'e ~o~.:o~o~raphiqttP. i~:rrodttclion ú MJII hisl<>m! . SEDES. Paris. 1972. p. 23).

82 83
por Napoleão diretor do jardim botânico de Malmaison e recebe Humboldt. De 1806 a 1826 publica em média mai~ de três es- t
uma substancial pensão do governo. Tais fatos demonstram o ...r tudo<; por anu. abrangendo diversos campos da investigação cien-
prestígio dos viajantes junto à sociedade científica e ao impe- tífica. Edita também váriol> atlas . Em meados de 22. planeja re-
rador. Humboldt e Bonpland fazem doação de parte de sua co- torna; ao México, porém o rei da Prússia. do qual Humboidt era
leção de espécies vegetais catalogadas ao Museu de Paris. Esses pensionista (a essa altura de sua vida as viagem e as ediçõe~; já
anos e os seguintes são vívidos na elaboração dos dados coletados. haviam dilapidado todo seu patrimônio). negou-lhe permi~são
A partir mesmo de 1805, começam a ser divulgados na monu- p&ra efetuar é:t \'iagem. alegando a necessidade de sua presença
mental obra Viagem às Regiões Equinociais do Novo Conti- como conselheiro. Os chamados do monarca são crescentes. tanto
nente . 13 Vários autores colaboram nessa tarefa, além de Bonp- é que em 1826 Humboldt é chamado de volta a Berlim, onde se
land, Deluc, Jacquin, Ingenhousz, Lalande, Delambre, LaPlace, torna membro da câmara de Fredenco Guilherme IV. Em 1828
Pictet, Arago, Biot, LaMetterie, Gay-Lussac, Thénard, Berthol- realin um ciclo de coníerências nesta cidade, de grande reper-
let, Fourcroy, Vauquelin. Lamarck, Cuvier, Duméril. Saint- cussão. As anotações dessas conferências fornecem a base da-
Hilaire, Edwards, Jussier, Decandolle, Just, Hauy, Brongiat, quela que será sua obra definitiva: o Cosmos. Por todo o ano
Defrance, Beaumont, Guizot e Gerard. Vê-se, dessa forma, que a seguinte viaja pela Ásia em companhia do naturalista Ehremberg
empresa humboldtiana mobilizou a nata dos naturalistas resi- e do químico Gustave Rose, a convite do c7ar Nicolau I. Visita os
dentes em Paris. Esses autores representavam os mais expressivos Urais e a parte ocidental da Rússia 1siática. O objetivo da viagem
nomes de um leque de disciplinas que ia da Física à Economia é realizar estudos sobre o magnetismo terrestre. porém Ht:mboldt
Política. Indiretamente, seja em tarefas específicas (catalogação realiza também importantes observações geológicas e climatoló-
das plantas por Wildenow e Kunth, dos animais por Latreille e gicas. Em 1830, vamos encontrá-10 novamente em Paris. em mis-
Valenciennes, cálculos astronômicos por Oltmanns), seja por são oficial, como representante da Prússia no reconhecimento do
orientações teóricas (Ritter na Geografia, Guilherme von Hum- governo de LLIÍS Filipe.
boldt em Filologia, Bush em Geologia e Goethe em Filosofia), "' De volta à Prússia. Humboldt permanece trabalhando na re-
vários outros autores se agregam a essa empresa. Daí a afirmação · dação do Cosmos. Participa intensamente da vida cultural euro- :>t
de Clava!. comentando o incrível desenvolvimento de vários cam- péia. Organiza um congresso de Geografia em Berlim , polemiza
pos do conhecimento científico (e de várias ciências conexas à com Lam<J;ti:le, e mantém volumosa correspondência. Falece em
Geografia) nas primeiras décadas do século XIX: "A obra de Potsdam a 6 de maio de 1859, aos 89 anos de idade. Estava ter-
Humboldt foi uma síntese de todas estas tendências": minando o quinto volume de sua síntese Cosmos.
Além dessa atividade, Humboldt também desenvolvia um tra- Um exame do conjunto da obra humboldtiana permite en-
balho diplomático para o governo prussiano. e continuava suas quadrar este pensador na história de diferentes disciplinas aca-
pesquisas em várias ciência!> sistemáticas. Em 1818, acompanha dêmicas. O caráter enciclopédico de sua produção liga-o à evo-
o rei da Prússia em viagem à Inglaterra, em 1822, ao congresso de lucão dos conceitos, teorias e conhecimentos empíricos da Astro-
Verona. Em 1810, havia recusado convite para assumir o cargo nomia, da Física e da Química. Em algumas disciplinas suas for-
de ministro da Instrução Pública da Prússia. Dois anos antes pu- mulações encontram-se mesmo em posição destacada: tal é o caso
blicara a primeira de suas sínteses- Quadros da Natureza. As- da Botânica, da Geologia e, principalmente, da Geografia. Nesta
sim, todo esse período na França é de intenso trabalho para disciplina, como já observamos, a obra de Humboldt é aceita
unanimemente como marco de nova etapa do pensamento geográ-
IJ Aqui surge alguma polêmica. Stevcn~-Middleton cita trinta volumes.
fico. No presente trabalho. que não pretende ser um estudo
falando que o últtmo foi editado em 1834; Tulard cita doze. datando o último de exaustivo, a análise limitar-se-á aos escritos precipuamente geo-
11!69 (editado. assim. postumamenie). Penna fala de vinte e quatro volumes. gráficos de Humboldi. A seleção das obras que preencham es~e
com o último sendo ed1tado em 1837 (ver Penna. O. S. O. - Alexandre de requisito não é matéria incontroversa, como será visto em outro
Humboldt: noções bibliográficas à \ua obra. em Reviffa Brasileira de Geowajl"a, tópico. Entretanto, a incidência de algumas é por demais evi-
ano 22, 4. CNG-IBGE. Rio de J aneiro. 19S9 dente. A obra explicitamente geográfica de Humboldt está no

84 85
Político sobre a Ilha de Cuba. Neste, a exposição segue os se-
centro de toda sua produção. Isso se dá em função mesmo de sua guintes tópicos: 1. Posição e Aspectos Físicos da Ilha de Cuba.
concepção de disciplina de síntese, um elo entre os estudos siste- Observações astronômicas; 2. Extensão. Clima. Costas. Divisão
máticos, ou- na expressão de Schaefer- a postura "excepcio- territorial; 3. População; 4. Agricultura; S. Comércio; 6. Fi-
nalista". nanças; 7. Da Escravidão. A outra obra também obedece, grosso
Publicado em 1808, tendo simultaneamente uma edição alemã modo, à mesma seqüência de assuntos. 15 A seqüência de tópicos
e uma francesa, o Quadros da Natureza pode ser considerado a desenvolvida por Humboldt firmar-se-á quase como uma receita
primeira formulação humboldtiana interessando à Geografia. l( para as monografias geográficas posteriores.
Seu livro Ensaio sobre a Geografia das Plantas, editado em 1805
como volume XXVII do Viagem às Regiões Equinociais, apesar Estas são as informações sumárias sobre a vida de Humboldt e
do título, é uma obra que interessaria mais ao desenvolvimento a discriminação das obras que, a nosso ver, permitirão com-
da Botânica do que ao da Geografia, dado seu enfoque altamente preender seu pensamento e sua proposta de Geografia.
especializado. Já o Quadros da Natureza aborda uma multiplici-
dade de elementos, articulando a unidade do estudo não na visão
sistemática, mas na base espacial. Os dois volumes deste livro OS FUNDAMENTOS FILOSOFICOS DO PENSAMENTO DE HUMBOLDT
apresentam um conjunto de ensaios, cada um dotado de auto-
nomia.'4 Esta é, sem dúvida, a primeira síntese da obra hum-
boldtiana. As formulações de Humboldt não apresentam uma filiação filo-
A segunda síntese de Humboldt é igualmente uma obra que sófica unitária, passível de ser enquadrada de forma clara dentro
interessa à Geografia; trata-se daquele trabalho que consumiu os de uma corrente de pensamento. Nota-se nesse autor, ao con-
( derradeiros anos de sua vida: Cosmos. Ensaio de Descrição Física I( trário, uma pluralidade de orientações, às vezes mesmo de linhas
do Mundo. Q primeiro volume do Cosmos L foi _pu_P!içaQQ em aparentemente conflitantes. A elucidação das influências filosó-
1 _!M.5.. No ano da morte de Humboldt já haviam sido editados ficas de seu pensamento é matéria das mais controversas.
quatro volumes; o quinto veio ao público em 1862. Trata-se. no Um primeiro nível de determinação do pensamento hum-
caso, da edição original alemã; a francesa começa a sair já a par- boldtiano, responsável em parte por essa pluralidade de influ-
tir de 1848. Este é, claramente, o livro fundamental do pensa- ências, pode ser detectado na época e na sociedade vivenciada por~
mento humboldtiano. Nele estão expressas todas as concepções este autor. A passagem do século XVIII para o XIX encerra um
basilares de seu autor, que o considera explicitamente uma conti- período de pleno florescimento de vários campos do conheci-
nuação ampliada do Quadros da Natureza. O Cosmos é uma obra mento científico, notadamente da investigação dos fenômenos
de fôlego, a expressão máxima da produção humboldtiana. naturais. Esses avanços se dão de forma concatenada, com os
Além destes livros, um trabalho sobre as idéias geográficas de cientistas de diferentes campos mantendo contatos entre si. É um
Humboldt não poderia deixar de analisar alguns de seus estudos período áureo das academias e dos institutos, onde o ideal enci-
regionais, pois, afinal, grande parte da sua celebridade advém de clopédico domina o panorama científico. Além disso, a pesquisa
seu labor empírico. E, mais, parte substancial de sua influência
na Geografia posterior efetuar-se-á através destes estudos empí- IS O Ensaio Político Sobre o Remo da Nova Espanha apresenta os se·
ricos. Em 1811, Humboldt editou o Ensaio Político sobre o Reino guintes capítulos: Introdução Geográfica; Análise Raciocinada do Atlas da Nova
de Nova Espanha, que saiu como os volumes XXV e XXVI do Espanha; Considerações Gerais Acerca da Extensão e o Aspecto Fístco do Reino
Viagem às Regiões Equinoczais. Em 1826, é publicado o Ensaio da Nova Espanha; Influência da Configuração do Solo no Clima. Agricultura.
Comércio e na Defesa Militar do Pais: População Geral da Nova Espanha: Di·
14 Os ensaios são o~ seguintes· Estepes e Desertos; Cataratas do Orenoco: vi~ão dos Habitantes em Castas; Estatística Particular das Intendências que
Vida Noturna dos Animais nas Florestas do Novo Mundo: Da Fisionomta das Compõem o Reino da Nova Es.panha: Sua Extensão Territorial e Sua População;
Plantas; Estrutura e Modo de Ação dos Vulcões nas Diversas Regtões da Terra: Estado da Agricultura da Nova República; Estado das Manufaturas e do Co·
A Força Vital ou o Gênio Ródio, A Planície de Cajamarca. Antiga Residéncta do mércio da Nova Espanha, Rendas do Estado: Defesa Militar.
Inca Ataualpa.
87
86
t:ientífica desenvolvia-se em estreita relaçiio com a reflexão filosó- Humboldt é um dos elementos nodais para sua caracterização. A
fica. o que ampliava o universo do debate e as preocupações de / pa~sagcm de um plano a outro de discussão é, sem dúvida, brusca
cada pesquisador- No piano da Filosofia, as relações entre os nas suas formulações, bastando observar o fosso existente entre
pensadores eram também cstrettas. A produção humboldtiana é os volumes um e dois do Cosmos, ou de capítulo a capítulo no
bem urna amostra dessas características: uma incrível diversidade Quadros da Natureza (voltaremos a esse ponto no item referente à
de campos de investigação e uma preocupação sintética, uma proposta humboldtiana para o método da Geografia). De toda
obra que vai desde descrições de campo até reflexões filosóficas forma, o empirismo rígido é absolutamente estranho às formu-
de alto ntvcl de abstração. M. Sorre considera Humboldt um en- lações de Humboldt. Apesar de sua tônica naturalista, estão aí
ciclopedista. definição, ambora não errada. que não dá conta da presentes preocupações bastante abstratas respaldadas em sólida
complexidade da sua filiação filosófica. erudição filosófica. Os principais filósofos desde a Antiguidade
Ainda nesse nível de determinações, há que se ressaltar os Clássica são citados e discutidos (de Platão a Leibniz), e também
condicionantes e!>pecíficos da sociedade alemã, apontados no ca- os historiadores e os literatos (de Homero a Shakespeare). Há,
pítulo anterior- A vivência de uma contemporaneidade européia desse modo. uma substância que diferencia o pensamento hum-
no plano das idéias com a base social de uma Alemanha ainda boldtiano do empirismo que, infelizmente, dominará boa parte
feudalizada vai matizar n pensamento alemão com um traço da Geografia posterior.
acentuado de abstração e uma forte atração para as questões ló- Em termos de uma filiação direta a um autor, muitos geó-
gicas e metodológicas. Essa determinação histórica do pensamento grafos vão defender uma continuidade entre as formulações de
alemão da primeira metade do século XIX, se bem que presente, Humboldt e o pensamento kantiano. M. Quaini, entre outros.
tem sua manifestação atenuada nas formulações de Humboidt, acata essa relação ao comentar o alheamento da Geografia em re-
dado seu longo contato com o ambiente intelectual francês. lação à obra de Marx: "Quando não foram influenciados exclusi-
Outro condicionante que poderia atuar nos fundamentos filo- vamente pela escola positivista de Ratzel, das duas tradições
sóficos do pensamento de Humboldt é a influência de sua própria alemãs pré-Ratzel, preferiram a de Kant-Humboldt, deixando
experiência de vida. Como foi observado. ele foi um viajante, um quase que totalmente à margem a de Ritter-Hegel, provavelmente
homem acostumado ao trabalho de campo, cujo prestígio adveio porque esta última teria obrigado os geógrafos a entrar em con-
em grande parte de obras de levantamento e catalogação sistemá- tato com Marx" . Também R. Hartshorne defende a continuidade
~ica de variados fenômenos. Essa sólida vivência de viajante natu- Kant-Humboldt, colocando-a como formadora da corrente majo-
ralista poderia atraí-lo para a senda do empirismo. Entretanto, ritária do pensamento geográfico. O estabelecimento, porém,
apesar do respaldo empírico de sua produção intelectual. o pen- dessa filiação direta também encontra adversários. F. Schaefer é
samento humboldtiano jamais estreita seu horizonte de inda- um deles, por exemplo. Em seu famoso artigo sobre metodo-
gações. jamais abre mão de ilações de nível bastante abstrato. Ao logia, contesta essa filiação e afirma taxativamente: "Humboldt,
contrário. Humboldt critica explicitamente "as pretensões exage- curiosamente. nem cita Kant nem participa de suas opiniões" .17
radas do empirismo". I~to não quer dizer também que ele fosse Mesmo que não se aceite a continuidade direta entre os dois pen-
um apologista da espccuhtção. Numa passagem do Quadros da sadores, essa afirmação de Schaefer nem parece vir de um aútor
Natureza sua posição transparece com clareza meridiana. quando com seu prestígio e rigor. Um simples exame das formulações
diz: "A verdadeira ciência não tem ponto de partida tomado. e humboldtianas revela várias menções às obras de Kant. No vo-
está tão longe de um sensualismo que nada vê at:-ác; dos fatos ...,. lume dois do Quadros da Natureza, discutindo a hereditariedade,
como de uma metafísica que vive das quimeras" .'{• A convivência Humboldt diz: "Kant tinha dito bem que a formação de um ser
entre a pesquisa empírica e a reflexão filosófica no pensamento de
J 7 Quami. M . -Marxismo e geografia, ob. ett .. p. 148; Hartshorne. R.
- The Concept of Geography as a Science [rom Kant and Humboldt to Hettner.
16 Humboldt, A.- Cosmos. ob cu .. \OI I. p -::;e Q11adro$ da ttatllrt":a
em Annals of Alsocwuon of Amenca;z Geographers, 48, A. A. G . . Wa~hington,
oh Cii..\OI.Jf.p.JIJ.
l9SR e Schaefrer. F. - Ob. <.it . p. 19.

88
89
~

novo é uma epigênese; que o produto presente vai tirar todos os técnica de Paris, cujas aulas cm1stituíram-se no livro Curso de
seus elementos dos fatores do passado". No volume primeiro do Filosofia Positiva. Este falo não é mencionado por nenhum dos
Cosmos, ao discutir a classificação das ciências naturais, faz ou- biógrafos de Humboldt consultados. Comte. porém. faz alusão ao
tro elogio explícito: "Emanuel Kant, do pequeno número de filó- fato: d1z ele no prefácio do volume I daquela obra: '·Alexandre de
sofos que não foram até aqui acusados de incredulidade, marcou Humboldt. de Blainville e Poinsot. membros da Academia de
os limites das explicações físicas com rara sagacidade, no seu cé· Ciências, que seguiram com interesse a exposição de minhas
lebre Ensaio sobre a Teoria e a Construção dos Céus, publicado idéias ( ... )''. 21 Apesar desse fato, que demonstra que Humboldt
em Koeninsberg. em 1755". No mesmo livro, ao discutir as dife-
tinha conhecimento de algumas idéias comtianas. a influência
renças entre a Física e a Química, Humboldt se remete à obra de
desse não é sensível na leitura de suas obras. Talvez fosse possível
Kant Fundamentos Metafísicos da Ciência da Natureza . 1& Vê-se
buscar algum paralelismo na idéia de humanidade destes autores.
que a afirmação schaeferiana é fatualmente incorreta. G. Ta-
Entretanto, tal tema está desenvolvido mais nas obras de maturi-
tham vai levantar outros elementos de contestação à posição de
dade de Com te (a Política Positiva e o Catecismo Posittvista) do que
Schaeffer, ao colocar que Humboldt foi aluno de Marcus Herz,
no Curso de Filosofia Positiva. De todo modo, é possível afirmar
"ardente discípulo de Kant" em 1785, e que seu irmão Guilherme
que não há uma influência positivista expressiva no pensamento
era conhecedor profundo do pensamento do filósofo. Assim, é
humboldtiano. A sua posição. já apresentada, quanto ao empi-
evidente que Humboldt conhecia as formulações kantianas. Se
rismo. tão caro a Com te. reforça esta avaliação.
estas são diretamente as bases de seu pensamento, é uma questão
difícil (que pediria análise mais detalhada dos dois autores). No Se for para identificar uma influência filosófica dominante nas
concepções de Humboldt, esta residirá, sem dúvida, em sua
nível da presente pesquisa é possível afirmar que a influência
época e em sua própria sociedade. É o idealismo de Schelling e o
kantiana não seria a única manifestada na obra de Humboldt.
romantismo de Goethe que afloram com maior vigor na con-
Caberia ainda levantar se tal influência viria das formulações fi·
cepção humboldtiana. Em menor grau, é também sensível a in-
losóficas ou das eminentemente geográficas de Kant, visto não
fluência de Schiller e de Hegel. Há de se ressaltar que Schaefer
haver unidade absoluta entre elas. 1q A análise efetuada permite
identificou claramente essas influências dominantes. 22 São estes
identificar também a presença de Kant na base filosófica das for-
mulações humboldtianas. os autores, que através de uma relação constante e direta, mar-
cam profundamente o pensamento de Humboldt. Schelling influi
Alguns autores vão relacionar a obra de Kant mais com as for-
principalmente em sua concepção de natureza, na idéia de har-
mulações de Ritter. É o caso de M. Santos. que identifica em
Humboldt uma influência direta de Augusto Comte, apoiado na monia dos seres naturais. É autor que freqüenta assiduamente as
avaliação de Mehedinti. 20 Esta identificação não encontra susten- páginas de Humboldt, em citações afirmativas e elogiosas. Por
tação em citações de Humboldt. Na análise efetuada, não foi en- exemplo, numa passagem do Cosmos, discutindo a relação entre
contrada nenhuma menção à obra de Comte. Entretanto, Hum- as sensações e o intelecto, cita Schelling: "A natureza não é uma
boldt assistiu a um curso minist~ado por Comte na escoía Poli- massa inerte; ela é, para aquele que sabe penetrar em sua su-
blime grandeza, a força criadora do universo, força primitiva e
18 Humboldt, A. - Quadros da natureza, ob. cit. , vol. 11. p. 315. Cos· eterna, que se agita sem cessar, engendrando em seu próprio ser
mo.\ . ob. cit., vol. I, p. 37 e lb1dem, vol. I. p. 445. nota 22. tudo que existe, morre e renasce". Observa ainda, em outro tre-
19 Kani não rclacJona sua obra geográfica com as discU\~ões sobre o es- cho: ''A natureza, como disse Schelling. é o sagrado e primitivo
paço apresentadas na Crítica da Razão Pura A expos1ção do pensamento geo- poder criador que evolui e produz todas as coisas, tirando-as de si
gr:ífico de Kant pode ;er obtida na obra já citada de Tatham (pp. 205 a 207).
Uma crítica da separação entre ra.~:ão e experiência na obra kantiana pode ;er 11 Comte. A. - Cours de phifosophie positive, vol. I. Amhropos. Pam.
encontrada em Quaim, M.- Marxismo e geografia, ob. c1t.. pp. 26 a 28. 1971 . p. XI.
20 Ver Santos. M. -Por uma geografia nova. Hucltec, São Paulo, 1978.
22 Diz Schaeffer. "Humboldt era, afinal. um líder do movimento român-
p 29. nota 3. Ver também Mehedinti. S - La géographie comparée. em Anna·
tico, um contemporâneo de Herder e Schellmg, e tinha, na juventude. abraçado
fl!s de Géo~raphie 49. Armand Colin, Pari~. 1901. p. 9 o panteísmo de Goethe'' (Ob. Cit. , p. 23).

90
91
mesma" .23 Por estes exemplos, vê-se o quanto Humboldt acata as sões centrais. Por exemplo, ao tratar da questão da variedade dos
com·epções schellinguianas. Sua posição quanto a uma ontologia seres naturais, fala do "problema da metamorfose, que Goethe
da natureza advém basicamente desse autor. A~sim , há um peso tratou com uma sagacidade superior, e que nasce da necessidade
considerável, pois estes pontos são centrais na proposta hum- que nós experimentamos de reduzir as formas vitais a um pe-
boldtiana. Sobre o pensamento de Schelling, Lukács vai defini-lo queno número de tipos fundamentais". Enfim, as alusões a for-
como "o representante mais eminente( ... ) do irracionalismo ro- mulações de Goethe são numerosas nas páginas de Humboldt,
mântico do início Jo século XIX" .24 principalmente em duas obras citadas com insistência: Aforismos
É interessante notar que Humboldt também vai citar Hegel ao sobre as Ciências e Aforismos sobrP a Natureza. No Quadros da
discutir o mundo exterior e seu reflexo interior. Diz: "Os fenô- Natureza, elogia o como um dos autores que "descreveram com
menos exteriores, coloca Hegel em sua Filosofia da História , são verdade inimitável o caráter das diversas regiões". O pensamento
de alguma forma traduzidos em nossas representações internas. de Goethe está no centro da concepção de mundo de Humboldt. É
O mundo objetivo, pensado por nós, em nós refletido, está sub- dele que advém sua gnosiologia (que releva a apreensão estética
metido às formas eternas e necessárias de nosso ser intelectual. A do real) , sua idéia de unidde e de movimento, e seu ideal de
atividade do espírito se exerce sobre os elementos que lhe são ciência. Quanto a este últ~mo pomo, cita uma frase de Goethe para
fornecidos pela observação sensível". Na verdade, na historio· justificar seus objetivos teóricos: "Unificar a Filosofia. a Poesi.1 e
grafia do pensamento geográfico este filósofo é identificado mais a Física" .21 Desta influência decorre um grande traço romântico
com Ritter (assim avaliam M. Santos e Quaini, apontando inter- na!> formulações humboldtianas, mas também uma postura pro-
influências entre eles, notadamente quanto à categoria da totali- gressista e uma amplitude de perspectiva que o impele para além
dade). Entretanto, Humboldt também coloca a necessidade de es· do utilitarismo e do pragmatismo.
tudar o " grande todo" .25 Enfim. as formulações hegelianas estão Ainda ao nível dessas influências contemporâneas, e alemãs,
presentes no pensamento de Humboldt. porém com incidência resta apontar a figura de Schiller. Esse autor, bastante ligado a
menor do que a idéias de Schelling. Schelling, Hegel e principalmente Goethe. também é mencionado
Outro autor que emerge como uma int1uência significativa nos escritos de Humboldt. ·Logo no capítulo primeiro do volume
(talvez com um peso maior que Schelling) no pensamento de dois do Cosmos, faz uma longa citação de Schiller sobre a arte
Humboldt é, sem dúvida, Goethe. Esta influência é até assumida grega e sua relação com o meio natural vivenciado por aquele
explicitamente por Humboldt, como, por exemplo, numa pas- povo. Numa outra passagem coloca-o Uunto com Goethe e Rous-
sagem de uma carta para Caroline von Wolzogem: "De todas seau) entre os autores que entenderam o "sentimento harmônico
minhas peregrinações impressionou-me a poderosa influência que liga a natureza às emoções humanas". No primeiro volume.
exercida sobre mim pela sociedade de Jena, de como através de ao discutir o conhecimento. diz, citando Schiller: '·O homem se
minha associação com Goethe, minhas considerações sobre a na- esforça para encontrar, como diz em nossa lingua o poeta imor·
tureza exaltaram-se, vendo-me possuído de novas sensações per- tal, 'o pólo imutável na eterna flutuação das coisas criadas'".
ceptivas". 26 A autoridade do autor do Fausto vai ser evocada com Vê-se que Humboldt tinha em alta estima a produção schilleriana.
freqüência nos escritos h;.~mboldtianos, quase sempre em discus· As influências identificadas, de Schelling, Hegel, Goethe e
Schiller, são, a nosso ver, as essenciais na fundamentação filosó-
2.1 Schclling citado por Humholdt, A. -Cosmos, ob. cit., vol. I, p. 46 e fica do pensamento de Humboldt. Na verdade, os autores men-
Humboldt, ci1aclc• por Orti?. F - lntroduçiio. em Humbolclt, A - Ensayo po· cionados, apesar das divergências existentes entre eles podem ser
/!t•cu sobre la isla de Cuba. Arch1vo Nacional de Cuba. Havana. 1960, p. 61. englobados num mesmo movimento filosófico: o idealismo ale-
2~ Lnk:í.c\. G. - O irracionalismo: fenômeno internacional do período mão pós-kantiano do final do século XVIII. Existem em suas
unpenali.;ta. em l:.srudov Socuus. S. Rio de Janeiro, 1959, p. t-3. obras pontos de contato que lhes dão unidade. Assim, é possível
25 Humboldt. A -Cosmos. ob. CJI.. vol. I. p. 76 e Ibidem, vol. I. p . 80 falar na influência de uma corrente sobre o pensamento de Hum-
26 Citado por Tatham, G. - Ob. cit .. p. 218. Segundo este autor, a 1déia
de umdade de Humboldt era ·'muito ma.s esténca do que teleológica, e ma1s
\emelhanie ao concello de Goethe dn que de R11ter e Hegel" ( 21 8). 27 Huml:loldt. A. - Cosmos . ob. cit .. vol. 11, p . 84.

92 93
boldt. englobando todo!. e~ses autores. Ao nível mais de detalhe. à medida que começamos a penetrar em seus segredos". "Quan-
as presenças de Goethe e de Schelling seriam as mais sensíveis. do o homem interroga a Natureza com sua penetrante curiosi-
Porém, haveria uma determinação geral. que possibilita localizar dade, ou mede na imaginação os vastos espaços da criação orgâ-
o pensamento humboldtiano com o idealismo pós-kantiano. Em nica. a mais poderosa e mais profunda de quantas emoções expe-
algumas posições assumidas por Humboldt isto é por demats evi- rimenta é o sentimento da plenitude da vida espalhada universal-
dente. Por exemplo, em sua valorização da Estética. enquanto mente".
campo da Filosofia pas!>Ível de forne~er uma teoria da intuição. Várias outras manifestações da filiação de Humboldt ao idea-
logo explicativa da relação sujeito-objeto. Na~ ~uas palavras: '' ;\ lismo alemão pós-kantiano poderiam ser apontadas em sua idéia
ciência é o espírito aplicado à Natureza. mas o mundo exterior só de unidade, em sua concepção de movimento, em sua definição
passa a existir para nós nu momento em que. pela vida da in- de progresso científico, em sua valorização da linguagem. etc.
tuição. !>e reflete em nosso interior". Essa teoria do conhecimento Esta filiação é também explicativa do traço de romantismo con-
faz com que Humboldt. assim como Goethe e os demais citados, tido nas formulações humboldtianas. Esse traço domina total-
valorizem sobremaneira a arte. uma atividade humana que. dada mente seu estilo ilustrado exemplarmente na seguinte passagem:
sua característica subjetiva e abstrata. estaria mais habilitada "Muitas vezes a impressão que nos causa a vista da natureza,
para falar das "analogias misteriosas e das harmomas morais que deve-se menos ao próprio caráter da região do que ao dia em que
ligam o homem ao mundo exterior". De" c-se lembrar que os nos aparecem as montanhas e planuras aclaradas pelo azul trans-
quatro filósofos mencionados escreveram obras versando sobre a parente dos céus, ou veladas pelas nuvens que flutuam perto da
estética, e dois devem seu pre!.tígio mais à sua produção literána. superfície da terra. Do mesmo modo, as descrições da natureza
Humboldt diz que a arte "familianza os homen~ com a variedade impressionam-nos tanto mais vivamente, quanto mais em har-
Jo mundo e lhe~ faz sentir mais vivamente o concerto harmo- monia com a nossa sensibilidade; porque o mundo físico se reflete
nioso da Natureza".~H Daí sua preocupação no Co:.mos em dis- no mais íntimo do nosso ser, em toda a sua verdade. Tudo quanto
cutir a pintura e a literatura descritivas atravé~ da história. dá caráter individual a uma paisagem: o contorno das montanhas
Outro ponto que identifica bem a filiação de Humboldt ~ sua que limitam o horizonte num longínquo indeciso. a escuridão dos

X concepção de natureza, encarada como uma entidade unitárhL_


(quase supra-real) dotada de hnahdade. Diz ele: '"A Natureza
considerada por meio da razão, isto é, submetida em ~eu con-
bosques de pinheiros, a corrente que se escapa de entre as selvas e
bate com estrépito nas róchas suspensas, cada uma dessas coisas
tem exi!>tido, em todos os tempos, em misteriosas relações com a
junto ao trabalho do pensamento. é a unidade na diver'\idade dos vida íntima do homem. Nesta harmonia baseiam-se os mais no-
fenômenos, a harmonia entre as coisas criadas, que diferem se- bres gozos que a natureza nos oferece". Vê-se que o traço do
gundo a~ formas, a própria constituição e as força~ que as ani- romantismo é bastante marc~do, reforçando a filiação de Hum-
mam; é um todo animado por um sopro de vida''. Essa concepção boldt ao idealismo alemão pós-kantiano.
leva a uma postura quase religiosa. de contemplação e adoração Ainda ao nível das influências presentes no pensamento hum-
da Natureza. Tal posição encontrou sua expressão plena na Filo- boldtiano, cabe mencionar a Filosofia grega da Antiguidade clás-
sofia da Natureza de Sche!ling, porém é. em grau variado, f9.:_ sica. As obras de Humboldt expressam um conhecimento consi-
f!l.U_ITI_a_to_do o idealismo alemão do período~ Diz Humboldt: "A derável da matéria. Entre os vários autores citados. destaca-se,
·-Natureza não perde seu encanto e a atração de seu poder mágico sem dúvida, a figura de Aristóteles, que aparece em posição de
relevo em suas análises. Humboldt tem as formulações do Esta-
28 Idem- Cosmos. ob. L'tl .. \'OI. 11. p. 107. Numa outra pas~agcm. dir girita em alta conta, como demonstra o seguinte trecho: "Du-
"O,, mesmo modo que, na~ elc1ada\ esferas do pens,lJncntn c do 'entuncnto. na rante séculos, até a aparição memorável de Aristóteles, os fenô-
Filoso!ta. na poesia e nas belas-artes. o pnmeiro !tm de todo estudo é um objeto menos não haviam sido objeto de uma observação penetrante,
interior. o de empregar e fecundar a inteligência. o termo ao qual devem tender eles continuavam submetidos ao arbítrio das idéias, ao capricho
todas as ciências, é o descobrimento das lets. do pnncípto de untdade que se rc· de adivinhações confu~as. e de hipóteses contraditórias". Numa
vela na vtda universal" (Ibidem, \OI . I. p. 64).
outra passagem. coloca o método aristotélico como ''b,ase mais

94 95
segura da certeza científica: o método no qual. tendendo sempre guidor da filosofia raciOnalista" .30 Parece-nos exagerada a ênfase
a generalizar as idéias. se apresentam a cada passo exemplos para dada por Ortiz à influência iluminista. Existem, efetivamente. na
a comprovação. de modo a penetrar nos pormcnore!> mais parti· obra de Humboldt menções a Rousseau e mesmo a D'Aiamb~rt,
cu!ares dos fenômenos" assim como elementos efetivos de antidogmatismo, logo. uma
Outro filósofo grego elogiado por Humboldt foi Platão. Coloca postura anticlerical em termos de ciência, própria do Iluminismo.
que a leitura de suas obras "deixa ver um sentimento profundo da Também no plano das concepções políticas Humboldt foi um de-
grandcz.t do mundo''. Entretanto. sua incidência não é cvmpa· fensor do ideário da Ilustração: o liberalismo, os direitos do ci-
rável à da obra aristotélica. Comparável e talvez até superior a dadão, o livre pensamento, etc. (essas questões serão retomadas
esta é a influência pitagórica encontrada nas formulações hum- ao discutirmos as concepções sociais de Humboldt, no item V
boldtianas. Pitágoras e outros autores de sua escola são citados deste capítulo). Humboldt, entretanto. não assimila as propo-
com significativa freqüênc:a. Humboldt credita a essa escola filo- sições teóricas mais avançadas dos filósofos da Ilustração: o ma-
,ófica e a esse autor a paternidade precoce do conçeito de Los- terialismo e a postura crítica. Pense-se a distância de sua con-
mos. definido pelos pitagóricos como "ordem que ieina no uni- cepção de harmonia das formulações de Diderot, que recomen-
verso". Diz claramente: "No simbolismo matemático de Pitá- dava ''desconfiar de todas as teorias da ordem" . Ou de sua pro-
goras e de seus discípulos. nas suas considerações sobre o número posta com a de Rousseau, que via a "contemplação da natureza"
e a forma, se descobre uma filosofia da medida e da harmonia. como insuficiente, colocando o contato com os habitantes como
I::sta escola ( ... ) coloca a base sobre a qual se desenvolvem as "um prazer maior que a admiração estética da paisagem''. Vê-se ~·
ciências experiment<tis". É em função deste apreço que Hum· que Humboldt nâo poderia ser considerado como filiado direta-
boldt, ao escrever o trabalho "A Força Vital ou o Gênio Ródio'', mente ao Iluminismo, o que não quer dizer que em seu pensa-
defende suas opiniões. colocando-as. num recurso metafórico, mento não existam elementos de relação com este movimento.
nas palavras do tilósofo pitagórico Epica1mo. 29 Esse estudo é Seria esse o quadro, não exaustivo, dos fundamento~ filosó-
todo estruturado em metáforas, podendo mesmo ser entendido ficos da obra humboldtiana. As várias influências e condicio-
como uma fábula de conteúdo filosófico, de agradável leitura. nantes apontadas combinam-se e articulam-se, unindo, às vezes,
Numa outra passagem, Humboldt elogia o pensamento pitagó- concl!pçõcs bastante diferenciadas . A influência dominante é,
rico, destacando a figura de Aristarco que, do mesmo modo que sem dúvida, a do idealismo alemão pós-kantiano. que se constitui
Aristóteles, ter-se-ia aprofundado "com o mesmo sucesso no na espinha dorsal de toda a sua fundamentação filosófica, o que
mundo das abstrações e no mundo das realidades materiais". permite filiá-lo a essa escola. Seu pensamento articula a postura
Caberia ainda mencionar a presença do pensamento ilumi- romântica com rigor descritivo. minúcia no levantamento empí-
nista na obra de Humboldt. Para alguns autores, como Sorre e rico e famialiaridade com a experiência e a medição mais usuais
Ortiz, sua incidência é significativa. Este último afirma que numa postura cientificista. Assim, seu romantismo está mesclado
Humboldt "refletiu sempre a ideologia do iluminismo( ... ) her· com uma significativa dose de pragmatismo. Figueira aponta esse
deiro da Enciclopédia, divulgador da experiência científica rigo- caráter dual ao defini-lo como "porta-voz da razão positiva e da
rosa, crítico da escolástica e dos preconceitos doutrinários e se- não-razão romântica" .3 ~
Finalizando este tópico, pode-se repetir a avaliação de P. Cla-
va!, que, ao se defrontar com a questão enfocada, conclui: ·'No
29 Ne,te ensaiO Humboldt apresenta uma fábula sobre o srgnificado de um plano episremológico, a obra de Humboldt não é represcntável
quadril. vindo de Rútles. pertencente ao Poedlum de Srracu~a. ~uja compreen· por uma só cadeia de influências, mas por várias entre elas. esta-
~ão deseja o tirano Oicnísio Dcpors de \'árias tcntati,.as mlmtíferas dê cxphcar o
belecendo relações de nível superior". ~2 Entretanto, há de se res-
· Gênio Róáio'' (título do quadro). bu~cam no leito de nwrte o filósofo Epi·
ca;mo Ess.: desv~nda o significado da alegoria. como sendo uma representação
da força vital dr, nnturen. f:picarmo !01 um hlósofn pitHgf,ric'l que viV•!u 11.1 Si· JO OrtíL., F. - Ob. crt., p. Sll.
dha aproximadamente e11tre os ano~ SOO c 440 a.C ·. que teria rnfluencado Pia· li Figueira, R.- Ob. ctt . p. 19.
tào Jl Cla\al, P. e Nardy, J ·P. - Ob. crt.. p. 53.

96 97
saltar a filiação ao idealismo alemão, e a~ influências diretas sig- Geografia. Ora são suas monografias descritivas, ora seus estudos
nificativa~ de Schelling e Goethc. de cla!>sificação sistemática. O quadro é, enfim, extremamente
diversificado. A citada polêmica entre Schaefer e Hanshorne
serve para ilustrar bem esta situação.
COSMOLOGIA E GEOGRAf-IA· A QUI::.STÀO DOS ROTULOS Fred Schaefer, um defensor da proposta de que a Geografia
deve definir-se como estudo sistemático de uma classe de fenô-
menos específicos. se insurge contra as colocações de Rlchard
A localização clara das formulações precipuamente geográficas, Hartshorne, que propõe a Geografia como um campo de estudo
em meio à produção enciclopédica de Humboldt, é matéria das excepcional. que se define por um método cuja especificidade é a
mais polêmicas, no âmbito da discussão metodológica da Geo- abordagem não sistemática. À medida que Hartshorne evoca a
grafia. Esse tema aflora, por exemplo, no centro do debate autoridade das formulações de Humboldt, creditando a este e a
Schaefer-Hartshorne em torno da questão do excepcionalismo. Kant a paternidade dessa linha de orientação, Schaefer é levado a
As avaliações díspares advêm, em primeiro lugar, do já apontado avaliar o problema da identificação do conteúdo geográfico da
caráter enciclopédico e variado da obra humboldtiana, que pro- produção humboldtiana. Aí, vai desenvolver uma interpretação
pícia múltiplas leituras. Nela coexiste uma variedade de dis- '· bastante singular. Schaefer entende que as formulações de Kant
cussões que interessariam ao debate geográfico. Nesse leque de designadas com o rótulo de Geografia na verdade não estão refe-
formulações, os vários geógrafos têm buscado elementos de sus- ridas ao que posteriormente se concebe como objeto dessa disci-
tentação para suas propostas. Desta forma, na maioria das inter- plina. Para ele, Kant concebeu a Geografia "exclusivamente
pretações, a avaliação do conteúdo geográfico de sua produção como um catálogo do arranjo e distribuição de características
vai ser identificado de acordo com as definições atuais do objeto taxonômicas". No caso de Humboldt, Schaefer diferencia sua con-
geográfico assumidas pelos comentaristas. Assim, é em função das cepção geográfica da cosmológica; assim o Cosmos não seria um
concepções defendidas que se vai privilegiar este ou aquele seg- estudo interessando a Geografia. Em suas próprias palavras:
mento da obra humboldtiana. Tal situação assenta-se além do "Portanto, o que ele (Kant) formulou não era bem o esquema
caráter enciclopédico apontado, em alguns outros fatores de metodológico do que agora chamamos de Geografia mas, em ter-
complexidade. Em primeiro lugar, deve-se lembrar que a convi- mos desusadamente abstratos. o padrão das cosmologias então
vência entre os níveis empíricos e teóricos no interior de sua pro- em voga, cuja história literária remonta à Idade Média. Cosmos,
dução ocorre de forma desconexa: assim, cada sorte de trabalho de Humboldt, é o último e. em função de seus méritos estilísticos,
(as descrições, as experiências de laboratório, as classificações, as o mais famoso espécime desse gênero literário. Deste modo, es-
teorizações. as divagações filosóficas) possui uma autonomia que quece-se que o próprio Humboldt, em outros trabalhos, fez uma
permite sua evocação, para justificar procedimentos e perspec- distinção bem nítida entre a descrição cosmológica, de um lado, e
tivas das mais variadas. Em segundo lugar, e agravando a ques- a Geografia de outro. Infelizmente, o encanto literário do Cosmos
tão, há de se considerar o aspecto, mencioaado por Clava!, de obscureceu esse fato" .33 Esta citação não deixa dúvida quanto ao
Humboldt não trabalhar na escala das disciplinas acadêmicas, o juízo de Schaefer. Para ele, Humboldt diferenciara, de modo
que torna raras as considerações de punho próprio quanto à deli- explícito, a Cosmologia da Geografia, dando a esta um status de
mitação de seus campos de estudo ou mesmo quanto à questão da ciência e concebendo a primeira .-:orno uma espécie de arte.J 4
classificação das ciências. Assim. para tornar mais complexa a
questão, os escritos de Humboldt não possuem um caráter nor- 33 Schaeffer. F. - Ob. cit.. p. 22 .
mativo explícito. Em vista de todos estes fatores, pode-se avaliar 34 D1z Schaelfer: ""ele (Humboldt) considerava o seu Cosmos antes uma
o quão difícil é separar as formulações precipuamente geográficas peça literária do que uma contribuição à ciência"" (Ibidem. p. 23) E amda:
no corpo da produção de Humboldt. Os comentaristas têm defen- ""embora cons1deras~e ter a Cosmologia o ..eu lugar próprio. nào o confundiu
dido as identificações mais variadas. Ora são os escritos mais abs- com o que ele reconheceu mudamente como a Ciência da Geografia"' (Ibidem.
tratos e filosóficos que são apresentados como sua proposta de p. 24).

98 99
Infelizmente, Schaefer não espectfica quais trabalhos de Hum- boidt foi "Geografia Física··, assim como o foi por Kant. e que essa
boldt \'eiculam esta-. constderações, pois a análise empreendida era uma divisão da Cosmografia (a outra sena a Astronomia).
destaca trechos que levam a uma avaliação díspar. como será que vi!)a um conhecimento genérico. DiL. ele ~obre o adjt>tivo "fí-
visto adiante. Outra questão a \e notar, quanto à mterpretação sica": "Humboldt esforçou-se por explicar que o empregava para
schaeferiana. diz respetto ao fato de esse autor se referir sempre a denotar uma ciência de leis. como a Física, e que ')Ua Geografia
"cosmologia", ao passo que Humboldt fala em ''cosmografia". Fí:.ica era diretamente compará\-el à Geo~rafia Geral de Vare-
Tal detalhe semântico pode implicar graves con<;eqüências. pois ntus, a qual hoje denominamos Geografia Sbtemática ·•. Como se
Humboldt define bem a "Co!.mografia" (englobando explictta- vê, Hartshorne está preocupado em demonstrar que o termo é
mente nela a Geografia) como uma "descrição física do mundo". empregado por Humboldt "com uma conotação diferente da que
e em alguns momentos fala sobre a "doutrina do Cosmos··. dando depots adquiriu". Tanto é essa sua preocupação principal que
a entender que seria uma reflexão efetuada sobre esta descrição, numa outra passagem reafirma: "Sobreveio maior confusão pelo
algo mais abstrato e .filosófico; em outras passagens nomeia a iato de 4ue certos estudiosos, que surgiram depois (de Varenius),
"Cosmografia" como "ciência do Co!>mo!~''. De todo modo. a in- notadamente Kant e Humboldt, substituíram a palavra Geral
terpretação de Schaefer parece bastante forçada. Vejamo!> o que pela palavra física (de Física), e classificaram todos os estudos
diz o alvo das critical>. eenerícos. neles incluídos os que versam sobre o homem, no cam-
Hartshorne vincula as formulações de Humboldt às de Kant, e po da Geografia Física". A citação de uma outra passagem re-
nelas identifica a gênese da corrente majoritária do pensamento força o juízo: '·Humboldt distinguiu, em sua Geografia Física, o
geográfico. Concebe a produção humboldtiana como um todo, reino da Natureza, no qual o homem estava incluído como o seu
sem penetrar na avaliação de !>ua diversidade interna. Entre- mais aperfeiçoado organismo. e o reino do intelecto ou da arte,
tanto. diferencia a elaboração empírica da teórica. definindo am- embo;a reconhecesse que a distinção era irreal em certo sentido.
bas como Geografia. e identificando esta com a Cosmografia. Em Conquanto seus estudos sobre área!> incluíssem a consideração de
suas palavras: "Humboldt parece haver considerado os estudos problemas morais e estéticos 1... ). ele não incluiu tais conside-
genéricos ( ... ) como um nível de estudos científicos mais elevado rações em sua Geografia Física" _;s Assim. a~ preocu.E_ações de
que a análise e a interpretação de áreas mdtviduais. O trabalho Hartshorne dirigem-se no sentido de mostrar que a proposta
global de Geografia Geral (como parte integrante da Cosmo- humboldtiana é unitária e generalizadora. que não incorria no
grafia). com o qual pretendia coroar sua carreira. o Cosmos. re- · dualismo física-humana. nem opunha os estudos particulares aos
presenta uma contribuição relativamente restrita. até mesmo nos gerai!>. Ele defende que Humboldt colocou explicitamente esta
dias em que \Í\eu, ao passo que os estudos que empreendeu proposta no rótulo Geografia Física, entendida como uma divisão
acerca de áreas particulares, nas quais realizou trabalho de cam- da Cosmografia.
po, permanecem dotado!~ de valor duradouro" Hartshorne aceita A leitura das obras de Humboldt parece dar razão às colo-
tanto a produção empínca como a teórica como geográficas, coe- cações de Hartshorne. Porém, antes de penetrar em sua expo-
rente com sua própria propo~ta que defende a necessidade de sição. cabe apresentar a opinião de outros comentanstas. Stevens-
uma Geografia "Nomotética" e uma "ldiográfica". Não discute, Midleton, por exemplo, considera que a obra humboldtiana pos·
porém, a relação entre ele~ na obra de Humboldt, sendo de novo suiu uma ''confusão metodológica intradisciplinána'' dada por
coerente à medida que a explicitação da relação entre estes níveis "finalidades filosófica~" em algumas colocações c por ''rinali-
da pesquisa (o levantamento e a generalização) é também um dos dades pragmáticas" em outra:..36 Aceita, porém, que estes níveis
pontos vago~ de sua proposta. Assim, a avaliação hartshorniana. se combinam. e os engloba dentro do domímo geográfico. Mostra
ao tomar a obra de Humboldt como um todo, não identifica com que Humboldt diferenciou a Geograria Física c a Geografia "pro-
maior clare.la qua1s trabalhos inc1diram mais na Geografia pos-
terior. Vai embrenhar-se numa di~cu~são nominalista, nesta dei- J5 Hart~horne. K. - PropÚlilos e narurezu da I(I'IJI/m/tu . ob. nt.. p. IStJ.
xando claro que considera o C(lsmos uma obra de Geografia. 72. I 06 e 73. re,pectl\amcntc
Hart'>horne vai destacar que o termo empregado por Hum- 11> Ver Sto::ven~· M1ddleton. R -· Ob. m .. p. 20J.

100 101
pnamenle dita .. ; em suas palavras: " O estudo da Geografia Fí-
sica. tal como delimitado na introdução do Cosmos , é uma geo- Geognosia, que discutia a distribuição espacial". Tathan aceita
grafia sistemática de relações, pois os fatos próprios da geografia que é muito clara na obra humboldtiana a distinção entre o "Sis-
o autor os relega ao que chama de 'geografia propriamente dita' e tema da Natureza'', que classifica por analogia, e a "Ciência da.
na obra mencionada se ocupa das relações, o que denomina de distribuição espacial". que "considera os corpos organizados de
'mútua dependência' dos fenômenos". Stevens-Middleton fala da acordo com as zonas de habitação". Humboldt apresentaria esta
"natureza inter-relacionada" da Geografia de Humboldt. enten- distinção, discutindo a relação entre a "Botânica Descritiva" e a
dendo-a como simultaneamente uma ciência da paisagem. uma "Geografia das Plantas". Enfim, P. Clava! vai adotar uma po-
ciência da distribuição. uma ciência das relações e uma ciência sição mais cautelosa, colocando que Humboldt mais "localizava a
corográfica. Observa que no Cosmos "tentou fazer uma geografia Geografia ao colocá-la num conjunto de relações com as outras
sistemática". e reconhece o "Ensaio Político sobre o Reino da ciências", do que propriamente definia o seu objeto. Já R. AI-
Nma Espanha'' como uma "obra protótipo da Geografia Re- magia vê um caráter " metodológico normativo" na obra de Hum-
gional Moderna". Destaca. entretanto, que a busca de relações se boldt.18 Este quadro demonstra a variabilidade das avaliações
sobressai no conjunto, em suas palavras: " O estudo das relações é quanto às formulações explicitamente geográficas de Humboldt e
um dos objetos da Geografia. talvez o objeto ou motivo principal suas influências na evolução do pensamento geográfico.
de toda obra e ainda da vida mesmo de Humboldt " . Assim. para
Stevens-Middleton. a obra humboldtiana contém a própria diver-
É, sem dúvida, na Introdução do Cosmos, que Humboldt vai \
discutir, de forma mais clara, esta questão. Diz ele, explicita-
"({\
sidade da Geografia em termos de campos de investigação e de mente: "As denominações Descrição Física do Mundo, ou Física ~- l)'t/
perspectivas de abordagem. Identifica estudos cartográficos, geo- do Mundo, de que eu me uso indiferentemente, são fundadas
lógicos, climatológicos. biogeográficos e de Geografia Humana sobre aquelas de Descrição Física da Terra, ou Física do Globo,
(nesta se destacando a análise econômica). assim como trabalhos quer dizer Geografia Física. já há longo tempo em uso". Em se-
regionais. genéricos e sistemáticos. E. mais, avalia essa diversi- guida, reafirma: "Se, desdehá muito tempo, os nomes das ciên-
dade como positiva, ao dizer· "Felizmente, Humboldt não esteve cias não se acercaram de seu verdadeiro significado lingüístico, a
atormentado por supostas barreiras epistemológicas··. Esse autor obra que eu publiquei deve ter por título Cosmografia, dividida
também vai reconhecer que as formulações empíncas de Hum- em Uranografia e Geografia'' . E diz ainda: "A parte terrestre da
boldt foram as que mais influenciaram a Geografia postenor. daí física do mundo. para a qual conservei conscientemente a antiga
defini-lo como "fundador da Geografia Regional Moderna". .,-- denominação muito expressiva de Geografia Física.( ... )" .39 Vê-se
Apenas para ilustrar mais a variedade das interpretações, vale que a posição de Humboldt é claríssima: a Geografia Física é a
mencionar as avaliações de alguns outros comentaristas. M. Sorre parte terrestre da Cosmografia, e o Cosmos é assumida mente um
estudo geográfico. Humboldt especifica ainda mais o que entende , V'~

r I?/p '
coloca Humboldl como o fundador da "Geografia Regional Na-
tural''. J. Dresch vai defini-lo como aquele que fundou as bases por tal estudo: ·• A ciência do Cosmos não é uma agregação enci- \ l)vvl"
da "Geografia Física". G. Tatham afirma que "Humboldt em- clopédica do~ resultados mais gerais e mais importantes forne-
prestou método e forma à Geografia Sistemática'' Y Este último cidos pelos estudos especiais ( .. .) aspira conhecer a ação sim ui- ·
autor parece concordar com a interpretação de Hartshorne; diz tânea e o vasto encadeamento das forças que animam o uni-
ele que Já no Flora Friburgensis Humboldt ''focalizou rapida- verso". Assim, a Geografia Física não é um compêndio dos fenô-
mente os limites das várias ciências, fazendo a discriminação en· menos terrestres~nciclopédia espacializada . das ciências
tre Fisiografia (ciências naturais sistemáticas), Hi~tóna Natural, il-aturãi0 uma ciên-cia de síntese, que busca relações, analogias
onde era dada ênfase ao desenvolvimento das coisas no tempo, e ~tre p.rocesSõs, cwe visa identificar conexões e encadeamentos
universais. Diz ele: "Distinguir os materiais dessemelhantes, os
J 7 Ver Sorre. M. - Ob. cit .. Drcsch, J. - Reflexões w bre a {; f!vgrafiu.
A\socia.;-1\o do~ Geógrafos Brasile1ros. São Paulo. 1981. p. 7 c ratham. G. - 38 Clava!, P. e Nardy, J. -P. - Ob. cit.. p . 54 Almagia é Citado e criticado
Ob cit.. p 219. por Quaini, M.- La cosrruzione del/a geografia umanu, ob. c1t. , p. 17.
J9 Humboldt. A. - CosrnuJ . ob. cit.. vol. I, pp. 67 e 65. respeeli\'amente.
102
~~ \"1\ t ·~. 103
O~v""-~ S.[""" h-~
\ 1\Jc..- ' "'--""- I

r~~Llv. ,L. I yL~\


.
c4.
--~

\.A.~ cL. cL
rrabai!Jos que não visam o mesmo resultado, separar as apreen- dados empíricos. apesar de considerados, entram no processo
sões gerais das observações isoladas, é o único meio de dar uni- como mera matéria bruta para a reflexão. Dessa forma. o geó-
dade de composição à Física do Mundo". Assim, a Geografia Fí- grafo deveria unir à formação sistemática variada uma sensi-
sica ou Física do Globo, ou Descrição Física da Terra, trabalha bilidade de artista; somente com esta combinação seria possível
com fenômenos variados, .!!_~ma per1.pectiva sintética. A busca da atingir a perspectiva sintética nece!>sária para a explicação das
síntese, da ''mútua dependência dos fenômenos", faz com que a " conexões universais". Diz Humboldt: "Podemos dar às des-
abordagem ·da Geografia seja diferente de outras ciências siste· crições da natureza os contornos claros e todo o rigor da ciência,
máticas , hi um toque do qualitativo, um dado de intuição e inter· sem desprovê-las do sopro vivificante da imaginação".
pretação que a aproximam de disciplinas como a História. Há Há de se assinal ar que Humboldt não limita o espectro dos
peso interpretativo, uma valorização do papel do sujeito do co· seus estudos geográficos à Geografia Física. Entende esta como o
nhecimento, que ultrapassa a perspectiva empírica e verificadora mais elevado nível das preocupações geográficas. uma real ciência
das ciências sistemáticas. As palavra s de Humboldt parecem sus- com leis e teorias próprias . Porém, ele vai falar também de outras
tentar mais a avaliação de Hartshorne. geografias . mais específicas, como. por exemplo: uma Geografia
Ao nível das intenções explicitn.mente expressas não há o que das Plantas, uma Geografia dos Animais, uma Geografia dos
discutir. Humboldt escreve o Cosmos como um livro de Geografia Vulcões. etc. Quanto às duas primeira!., diz Humboldt: "A Geo-
Física; pelo menos o primeiro volume dessa obra é totalmente de· / grafia das Plantas e dos Animais pode ser encarada do ponto de
dicado a essa disciplina. Para ele, como foi visto, a Geografia vi-;ta da variedade e do número relativo das formas típicas; ela
Física é a parte terrestre da Cosmografia, esta é uma tentativa pesquisa também o modo de distribuição no espaço dos gêneros e
sintética de descrever a realidade, abordando as conexões entre os das espécies. Ela pode ainda ser estudada por relação ao número
fenômenos. Para fazer esta síntese, a Geografia Física necessita ir de indivíduos de que cada espécie se compõe sobre uma superfície
além do mero empirismo, ultrapassar a postura analítica das dada''. Vê-se que Humboldt entende a existência de níveis mais
ciências sistemáticas . Porém, sempre apoiada e jogando com os particulares da il1Vestigaçào geográfica. logo Geografias mais sis-
dados dessas; daí a exigência de o cosmógrafo possuir llm conhe- temáticas abordando classes de fenômenos mais específicos. Es-
cimento enciclopédico. Humboldt é bastante explícito quanto a tas seriam um nível inrerrriediário entre as ciências sistemáticas
essas questões, como, por exemplo, ao colocar: "A Física do particulares e a Geografia Física. que organizaria o quadro da
Mundo. que eu comt ço a expor, não tem a pretensão de se elevar dist ribuição espacial dos fenômenos na superfície terrestre e daria
às perigosas abstrações de uma ciência puramente racional da a caracterização. em termos de determinada classe de fenômenos,
natureza; é uma Geografia Física reunida à descrição dos espaços num lugar delimitado. Seriam, nesse sentido, uma preordenação
celestes e dos corpos que preenchem esses espaços. Estranho às dos dados sistemáticos para posterior uso na elaboração da Geo-
profundeza<> da filosofia puramente especulativa, meu ensaio so- grafia Física. Apesar de Humboldt não explicitar esta opinião,
bre o Cosmos é a contemplação do universo. fundada sobre um tem-se como lógica a possibilidade de existência de várias destas
empirismo raciocinado, quer dizer sobre o coniunto dos fatos re· geografias especiais ou ''sistemáticas". f
gistrado<; pela ciência, e submetidos às operações do entendi- Humboldt também faz menção à Geografia Comparada, en-
mento que compara e combina''. Vê-se que. para Humboldt, a teudendo-a como um estudo distinto e autônomo com relação à
Geografia Física é claramente diferenciada tanto das ciências sis- Geografia Física. Diz ele explicitamente, ao discutir os limites da
temáticas quanto da filosofia pura . A prc·posta , ao contrário. é a segunda : "É para de<>tacar o caráter próprio, o caráter de inde-
da realização de uma perspectiva intermediária entre esses dois pendência da Descrição Física do Mundo, e para indicar, ao
níveis do conhecimento : o "empirismo raciocinado". Tal pro- mesmo tempo. a natureza de suas relações com a Física Geral.
posta, que será retomada ao se discutir as formulações metodo- com a História Natural Descritiva. a Geologia e a Geografia Com·
lógicas de Humboldt, é embasada em sua teoria do conhecimento parada, que eu vou me limitar de início ... ". Infelizmente, em sua
que, como foi visto, assenta-se no idealismo romântico. Nesse, o exposição não aparece discutido o que ele entendia por campo de
papel do sujeito é realçado por uma via da apreensão estética, os r f studo da Geogr_~fia ~~arada . Entretanto. Humbo1dt identi-

jrue~wnc4 ·:ci1!1.~D~ r~ ~ú·r· ~, ~·.1.•.•·. :· -I~~ Il


104 lOS
j
Biblioteca • nJ, ·~•'l. lo~ 1.1..•\llo
Inst i tuto de Geociànctos
· · - • •• n t'\1'\ ' ,.,.~ ~"' ........... - .... ..
fica, claramente, esta modalidade do estudo geográfico na obra denominadas de Ensaio Púlítico, parece que com essa denomi-
de Ritter, ao dizer: "As grandes considerações da Geografia nação Humboldt quis acentuar a priorização de uma problemá-
Comparada só começaram a ter solidez e visão de conjunto com a tica mais humana e social. Uma Geografia do homem ou da so-
aparição dessa admirável obra (Estudos da Terra nas Suas Re- ciedade abordando um lugar específico, uma Geografia regional
lações com a Nature=a e com a História do Homem) onde C. Rit- descritiva focada sobre os estabelecimentos humanos. Bem dis-
ter. tão marcadamente, caracterizou a fisionomia de nosso globo, tante, assim, de sua proposta de Geografia Física, onde o homem
e mostrou a influência de sua configuração exterior, tanto sobre aparece como um elemento a mais de uma análise que prioriza a
os fenômenos físicos que se operam sobre sua superfície, quanto natureza. Dizer até que ponto estes estudos representariam para
sobre as migrações dos povos, suas leis. seus meios e todos os Humboldt a "Geografia propriamente dita" (como insinua Ste-
principais fenômenos históricos dos quais ela é o teatro". Numa vens-Middleton), ou uma "Geografia especial sistemática" refe-
outra passagem reafirma: "Estava reservado ao nosso tempo e à rida ao homem (como se poderia inferir das análises de Schaeffer),
minha pátria ver traçado por C. Ritter o quadro da Geografia ou ainda uma Geografia regional ou idiográfica é questão cuja
-· Comparada em toda sua extensão e na sua íntima relação com a resposta demandaria uma análise mais acurada. Aqui o que se
história do homem". 40 Afora estas colocações, as obras anali- pode apontar é que, na denominação Ensaio Político. Humboldt
sadas não apresentam outras considerações sobre a especificidade levou em conta também a destinação da obra. Ele concebia esses
da Geografia Comparada. Dá para inferir que ela também tra- estudos como subsídios para a ação do poder público. Stevens-
balha numa perspectiva sintética, mas diferente da Geografia Fí- Middleton aponta na produção humboldtiana a existência de
sica. talvez mais descritiva. Resta apontar que a postura hum- propósitos filosóficos e de propósitos pragmáticos que se entre-
boldtiana apresentada referencia a afirmação inicial quanto ao laçam nos vários t:>studos. Sua avaliação é correta ao dizer: "A
fato de a Geografia Física. para ele, não cobrir todo o espectro do finalidade com que Humboldt escreveu o 'Ensaio Político' ( ... ) foi
pensamento geográfico. Finalmente caberia mencionar que assinaladamente pragmática". Quanto aos demais estudos empí·
Humboldt faz ainda algumas alusões ocasionais à Geografia Uni- ricos. regionais, parece evidente que Humboldt os considerava
versal, entendida no sentido de um compêndio geral descritivo geográficos, daí a inserção de alguns destes trabalhos no Quadros
sobre o globo. da Natureza. uma obra, como visto. explicitamente de Geografia.
Ainda ao nível desta discussão sobre os rótulos e seus signifi- Entretaiito, deve-se assinalar que Humboldt os considerava um
cados, cabe assinalar o fato de Humboldt não denominar explici- tipo de estudo distinto da Geografia Física, uma espécie de etapa
tamente de Geografia seus estudos empíricos regionais. Os dois anterior da pesquisa geográfica.
mais famosos desses estudos. o referente à Nova Espanha e o Desta forma, coexistem nas formulações de Humboldt dife-
sobre a Ilha de Cuba, são enquadrados no rótulo de Ensaio Polí· rentes Geografias, com interesses, métodos e objetivos distintos.
tico. Outros trabalhos são colocados sob o título de "notas". Essa diversidade de abordagens numa me~ma disciplina leva a se
"observações·· e "viagem", ou mesmo apenas pelo nome do local pensar na proposta de C. Vallaux, que defendia a existência não
estudado (por exemplo "A Planície de Cajamarca"). Num levan· de uma Geografia, mas de "ciências geográficas". Na verdade,
tamento bibliográfico rigoroso da produção humboldtiana, ape· apesar de Humboldt apontar alguns tipos de abordagens da Geo-
nas um estudo sobre as Güianas carrega o título de Geografia (ver grafia, ele realiza suas form"Jiações em duas vertentes principais:
o trabalho citado de Penna). Isto é, sem dúvida, um fato interes- Uma. expressa no Cosmos e no Quadros da Natureza, denomi-
sante, à medida que muitos comentaristas, como visto, reputam a nada de Geografia Física, apesar de ser proposta como uma "des-
produção empírica de Humboldt como a mais geográfica ou como crição da terra", possui um caráter acentuadamente teórico.
a que mais influenciou a Geografia posterior. Quanto às obras Outra, expressa nos "Ensaios Políticos", não rotulada de forma
explícita na Geografia, de forte conteúdo empírico. Como já foi
40 Nesta passagem. Humboldt fala também da divisão da Geografia por exposto, esses dois níveis do pensamento são exclusivos e pouco
Varenius entre Geral e Espec1al. e esta em Absoluta (dedicada à parte terrestre) concatenados na obra humboldtiana, cada um dotado, de auto·
c Relativa (dedicada à parte celeste) 11 Geografia Geral seria a Comparada nomia de investigação e apresentação dos resultados. Assim, suas

106 107
influências na Geografia posterior puderam ser variadas, pois ma, tica claro que as conexões (poderíamos pensar nos termos
oriundas de partes distintas de sua obra. Se, no plano da Geo- "combinações" de Cholley ou "integrações'' de Hartshorne) são
grafia Física, Humbo!dt propõe buscar as conexões dos fenô- em si universo da investigação geográfica. Ê de tal perspectha
menos e chegar a leis universais, nos "Ensaios Políticos" apre- (própria da Geografia) que Humboldt fala, ao elogiar "a ter.-
senta uma descrição seqüencial dos fenômenos abordados . sem dência fecunda do espírito grego", em buscar "a ligação comum
chegar além da caracterização da área . Essas duas posturas infor- dos elementos esparsos, de agrupar em grandes massas as apreen-
maram propostas distintas. Há de se ressalta; que a influência da sões sobre o mundo e as relações que apresentam as diversas par-
produção empírica foi mais significativa. Ao tomar-<>e a proposta tes da Natureza". Do que foi dito. pode-se depreender que a Geo-
de procedimento e organização da pesquisa e da exposição con· grafia é para ele uma ciência de relações, cujo objeto engloba
tida nos "Ensaios Políticos", c comparando-a com as formu- fenômenos que isoladam·ente são estudados por ouuas disci-
iações posteriores da Geografia Regional vê-se que o fundamental plinas. Esse tratamento do diverso, buscando seus liames, seria a
do esquema humboldtiano é mantido. O que de fato confirmaria caracteristica própria do pensamento geográfico. Nesse sentido, é
Humboldt como um fundador da Geografia regional moderna. correta a afirmativa de N. W. Sodré sobre o autor: "Ao estabe-
Nesse sentido, suas concepções estariam contidas, por exemplo, lecer as relações dos fenômenos ou processos de que as obser-
na obra de P. Vidal de La Blache. Por outro lado, são pro- vações são meros sinais e manifestações Humboldt começou a fa-
postas da produ~·ão teórica de Humboldt que vão informar Hett- zer Geografia".
ner e Hartshorne, autores que também evocam uma filiação de Ele não busca, porém, uma enumeração exaustiva das re-
suas perspectivas às deste antnr. lações possíveis. Uma segunda diretriz orienta a análise das co-
nexões: o critério da constância. Cabe, nas palavras de Humboldt,
"retratar com vivacidade uma parte. ao menos, daquilo que o
O OBJETO E O MÉTODO DA GEOGRAFIA SEGUNDO HUMBOLDT espírito do homem percebe de geral, de constante, de eterno, en-
tre as aparentes flutuações dos fenômenos do univer-.o". Assim,
importa o dado constante. o que aponta a causalidade e a univer-
Como foi comentado, a obra de Humboldt não possui um ca- salidade, o passível de elucidar uma lei. Humboldt é bastante
ráter normativo explícito. Po1 isso. são-lhe estranhas as defi- explícito quanto a esse ponto ao dizer: "O objeto final de uma
nições, as delimitações claras. enfim tudo aquilo que é próprio Geografia Física é. sem dúvida, reconhecer a unidade na imensa
dos trabalhos normativo<>. Isso dificulta a análise do problema variedade dos fenômenos. descobrir, pelo livre exercício do pen-
enfocado . As considerações sobre o objeto e o método da Geo- 'I samento e combinando as observações. a constância dos fenô-
grafia estão difusas no interior de sua obra, o plano de expo- menos em meio às suas v<triações aparentes. Se na exposição da
sição de suas idéias é comandado pela própria apresentação do parte terrestre do Cosmos deve-se descer a fatos muito especiais, é
objeto e não por formulações teóricas a seu respeito ou da meto- só para recordar a conexâ.o que têm as leis da distribuição real
dologia para estudá-lo. Deve-se ressaltar que a discus:-.ão estará dos seres no espaço com as leis de classificação ideal por fa -
limitada à Geografia Física, a única definida com maior dareza mílias naturais, por analogia de organização interna e de evo-
por Humboldt. lução progressiva··. Vê-se que o objeto geográfico não diz respeito
Humboldt deixa claro qne a Geografia é uma ciência sintética. ao único e sim à universalidade, o que colocaria a Geografia como
CUJO objeto não é nenhuma classe específica de fenômenos e sim ciência sintética (não sistemática), porém nomotética. A Geo-
us conexões entre os fenômenos os mais variados, que se mani- grafia de Humboldt não é um estudo de singularidades locais. A
festam na superfície da Terra. Assim. o objeto primeiro dessa:( análise das combinações locais (diríamos hoje regionais) su bor-
disciplir.a é "o conhecimento da conexão das forças da Natureza, dina-se à busca de leis, de conexões universais apreendidas pela
o sentimento íntimo de sua dependêncta mútua''. Numa outra regularidade, pela constância nas manifestações.
passagem diz que ela "aspira conhecer a ação simultânea e o vas- O terceiro elemento da tríade ontológica da Geografia hum-
to encadeamento das forças que animam o universo". Desta for- boldtiana é a idéia de unidade. da Natureza e da Tem~. pois o

108 109
estudo das conexões e das constâncias deve levar a sua melhor obra, articulando-a com a Cosmografia, vendo a ''unidade ter-
compreensão. É este o móvel último das preocupações de Hum- restre" como manifestação da unidade da natureza. Esta subor-
boldt. Diz ele: "A natureza, considerada racionalmente, isto é, dinação categórica fica clara quando Humboldt coloca: "O que é
submetida em seu conjunto ao trabalho do pensamento, é a uni- preciso à Natureza para renovar inteiramente a face da Terra?
dade na diversidade dos fen0menos. a harmonia entre as coisas Não tem necessidade senão do tempo, que não tem limites". En-
criadas distintas em suas formas, em sua constituição própria, e fim, a idéia de·unidade é central em Humboldt; esta seria a essên-
pelas forças que as animam; é o Todo penetrado por um sopro de cia da investigação geográfica e da própna preocupação da ciên-
vida. O resultado mais importante de um estudo racional da na- cia e da filosofia. No caso da Geografia, o todo considerado é a
tureza é conhecer a unidade e a harmonia nessa imensa diversi- superfície da Terra, buscando na unidade terrestre a manife!>-
dade de coisas e forças ( ... )". Assim, a compreensão das co- tação da ordem e da harmoni~ da natureza.
nexões, dos encadeamentos e das leis direcionam para a busca da Com todos os perigos provenientes do empobrecimento das de-
unidade da natureza. e nela a essência, a "força vital". A unidade finições, poder-se-ia dizer que o objeto da Geografia para Hum-
seria o princípio explicativo mais abrangente da realidade, a meta boldt são as conexões constantes entre os fenômenos da superffcie
ou a culminância de todo o conhecimento humano. Os meios de terrestre. à medida que estas conexões apontam para a unidade
sua compreensão seriam: o "livre esforço da razão" e as "desco- da Terra e da natureza. As relações, a constância e a unidade
bertas parciais". Desse modo, a busca da unidade da natureza articulam-se na concepção humboldtiana do objeto geográfico.
seria a finalidade suprema da ciência, constituindo-se numa em- Tal concepção coloca a Geografia como ciência sintética, que tra-
presa inesgotável; nas palavras de Humboldt: ''Por efeito da li· balha com relações entre fenômenos diversificados, com vistas,
gação íntima que une todos os fenômenos da Natureza, o campo porém, ao estabelecimento de leis, logo, como uma ciência nomo-
material da investigação se alarga à medida que avançamos, e tética (empregando a expressão de Rickert). Pa::a realizar este
que o limite do horizonte recua incessantemente frente ao obser- objetivo será necessário articular a observação e a reflexão, a indi-
vado". Vê-se que Humboldt defende o caráter progressivo do co- vidualidade e a universalidade, o todo e as partes, a diversidade e
nhecimento e a inesgotabilidade do real. Cada nova descobtrta a unidade.
enriqueceria a compreensão do todo, da unidade da natureza. As conexões entre os fenômenos da natureza Se dão em qua-
Observa Humboldt que "no início da civilização humana to- dros espaciab particulares; as relações, assim, devem ser bus-
dos os fenômenos pareciam isolados" , e que a "discórdia dos ele- cadas em realidades locais. Humboldt propõe que o estudo deve
mentos, este antigo preconceito do espírito humano em suas pri- caminhar com a decomposição, pela análise, "da individualidade
meiras intuições, desaparece à medida que as ciências estendem das formas e a diversidade das forças". Diz ele, falando da des-
seu império". Numa outra passagem, reafirma essa idéia: "Na crição da Natureza: "É preciso manter incessantemente esta ten-
descrição da natureza, como na crítica histórica, os fatos perma- dência. ou para se compenetrar melhor dos fenômenos ou para
neceram isolados durante muito tempo, até que se logrou a ven- escolher, ao pintá-los. a expressão mais característica. O meio
tura, à custa de muitos esforços, de os reunir em grupo. consti- mais apropriado de realizar esse fim consiste em que o obser-
tuindo um todo". Assim, a unidade seria um dado do próprio vador, aquele que sentiu pessoalmente a impressão, descreve-a
real, manifestando-se em diferenciadas escalas e encadeamentos. singelamente. e circunscreva e particularize o lugar e as circuns-
Em suas palavras: ··os elementos mantêm o seu equilíbrio na ma- tâncias a que se liga a narração". Desta forma, Humbold tem em
téria animada porque são ali partes de um todo( ... ) no organismo alta conta a análise e descrição das individualidades locais. Ele
tudo é ao mesmo tempo meio e fim". Um nível privilegiado de apresenta claramente que são as conexões que determinam o ca-
manifestação da unidade seria a superfície da Terra. Esta repre- ráter do lugar, como, por exemplo, ao dizer: "Assim corno sere-
senta o todo mais próximo ao homem, animado pelas forças da conhece nos indivíduos isolados uma fisionomia distinta, e a Bo-
natureza. Assim, um quadro privilegiado da observação e da re- tânica e a Geologia descritivas, tomadas em sentido mais estrito,
flexão, cuja análise faz avançar a compreensão da unidade da se ocupam em dividir em grupos os animais e as plantas, segundo
natureza. É por isso que Humboldt prioriza a Geografia em sua a analogia das suas formas, assim também existe uma fisionomia

110 111
natural que pertence exclusivamente a cada região da Terra ( ... )
As expressões 'natureza suíça' ou 'céu da Itália'( ... ) na~>ceram do vel teórico, esses dois planos se relacionam, o lugar como a reali-
zação da natureza toda. A investigação geográfica sendo então um
sentimento confuso dos caractere::. próprio a tal ou qua: região
eterno desiocar-se entre os dois planos.
( ... )Todas as formações são comuns a todas as regiões e por toda
parte apresentam igual estrutura ( ... ) Os pinheiros e os carvalhos Ao colocar como objeto de estudo da Geografia as conexões
cercam da mesma forma os flancos das montanhas na Suécia e na entre os fenômenos, apreendidas nas individualidades iocais, en-
parte mais meridional do México; ma<;, não obstante a seme- quanto manifestações da unidade da natureza. Humboldt neces-
lhança das formas e apesar das árvores apresentarem isolada- sita dotá-la de um instrumental metodológico ágil e múltiplo. Na
mente iguai!> contornos. tomadas no conjunto apresentam. to- verdade, na proposta humboldtiana, objeto e método não são se-
parados na exposição. O itinerário entre a análise de individuali-
davia, caráter completamente distinto (. .. )"; o mesmo seria vá-
dade e a generalização traduz-se, ao nível do método, num jogo
lido para as rochas, para o clima. etc. Aqui. a Ge~grafia de Hum-
entre observação-descrição e reflexão-teorização. Aqui, a teoria
boldt incorpora a perspectiva corográfica, que trabalha com múl-
liplos fenômenos, bu!>cando suas combinações locais. Este des- do conhecimento, que lhe dá fundamentos. tem um papel desta-
taque áa relação fica ainda mais claro quando Humboldt coloca cado. Os diferenciados níveis de abordagem, implicam. no nível
que não se deve definir a flora de uma região pela espécie predo- metodológico, uma ampla variedade de procedimentos. Resta sa-
minante, mas pda combinação das espécies. lientar que as proposições metodológicas são secundárias, ao nos-
Há de se assinalar be:n, entretanto, que a análise das indivi- so ver, em relação àquelas ontológicas no interior da proposta de
Humboldt
dualidades se subordina, na proposta humboldtiana, à busca da
generalidade. Assim, o único é apenas um caminho para um co- ' O método da Geografia, na concepção de Humboldt, deve ar-
nhecimento mais elevado. Humboldt é explícito quanto a esse ticular a observação dos fenômenos e sua descrição com a re-
ponto: "Quando o espírito se propõe conseguir dominar o mundo flexão e a possibilidade teórica que demanda seu objeto. Sua pro-
material, quer dizer. o conjunto dos fenômenos físicos, quando posta vai tentar dar conta desse itinerário entre o levantamento
ele tenta reter no domínio do seu pensamento a natureza inteira empírico e a Filosofia da Natureza, que buc;ca abranger todos os
com a rica plenitude de sua vida ( ... )os !imites de seu horizonte se procedimentos e campos de investigação da Geografia. A obser-
desfazem no longínquo e, das altur<lS a que ele se eleva. as indi- vação é o princípio de todo o processo cognitivo, a objetividade do
vidualidades só lhe aparecem agrupadas por massas''. Dessa mundo exterior não sendo negada por Humboldt. Adverte. po-
forma, interessam as relações contidas nos lugares singulares. e rém: "A contemplação do mundo c a generalização das idéias não
as relações e os 'encadeamentos entre os lugares. Diz Humboldt: necessitam apenas repousar sobre uma grande massa de obser-
"Um dos resultados da Geografia Geral que melhor compensa os vações, faltam-lhes espíritos abertos ao avanço". E diz ainda
esforços que custa. consiste em ligar a constituição física de re- mais: "A simples acumulação das observações de detalhes sem
giões separadas por vastos intervalos'' . Dessa maneira, sua Geo- relações entre elas, sem gP.neralização das idéias, pode conduzir,
grafia é também uma ciência da distribuição, que avali.t as mani- sem dúvida, a um preconceito profundamente invertido. à per-
festações dos variados fenômenos no espaço. visando às suas rc· suasão de que o estudo das ciências exatas deve necessariamente
gularidades. Sempre atenta, porém, à riqueza e diversidade local frear o sentimento e diminuir os nobres prazeres da contem-
d:\ natureza, como se conclui da seguinte observação: "Uma sim· plação" . Pode-se caracterizar Humboldt de tudo, menos de ser
plicidade deveras sedutora tinha conseguido agradar a muitos es· um empirista. A observação é apenas o primeiro passo no pro-
píritos que pensam que a regularidade de classificação deveri.t cesso do conhecimento, o trabalho maior da ciência começa a
ex1~tir em todas as coisas da Natureza tão bem arrumadas como partir daí, nas palavras de Humholdt: "submeter aos esforços do
nos arm á rios de um museu". Vê-se uma vJsão rica da rcalirlade. pensamento , às conquistas da inteligência, o que foi recolhido
que articula a clivcn.idade e a regularidade. a indivtdualidade e a pela observação'' .41 Entretanto, como já foi mencionado, ele se
generalidade. O objeto da Geografta para Humboldt abarca a
41 l...osmos , vol. I. p. 4. Numa outra pa~sagem. o autor coloca "A cJénc-Ja
escala d0s lugarc~ e du Terra cotllo um t0do. E. pelo me no~ ao ní ·
~ó começa p.ua o homem no momento em que o espíritv ~e apropria ctà matená.

l12
113
coloca contra a mera especulação, o estudo deve parttr da obser-
vação do mundo empírico, e a partir daí abstrair (ir da diversi- uo processo cognitivo. Em termos da Geografia, essa intuição se
dade e d~ individ1..1alidade para a unidade e a universalidade). traduz como impressão da paisagem pelo investigador. Este, ao
Argumenta Humboldt que "tudo aquilo que diz respeito às indi- observar numa visão de conjunto uma certa localidade, recebe
vidualidades acidentais, a essência variável da realidade, que se uma impressão subjetiva desse todo, que, combinada com as
manifestá na forma dos seres e no agrupamento dos corpos, ou na observações (parciais e sistemáticas) de campo, fornece as bases de
luta dos homens contra os elementos e dos povos entre si, não sua explicação. Há, dessa forma, uma articulação entre o subje-
pode ser construído racionalmetne, deduzido de idéias apenas". tivamente percebido (a "impressão'') e o sistematicamente obser-
vado (mensurado, classificado), com a explicação fluindo desse
Assim, a observação é o momento inicial e indispensável do co-
jogo. A percepção integral da paisagem é quase que uma ava-
nhecimento, que inclusive na proposta humboldtiana encontra-se
liação estética, com grande peso da subjetividade e do sentimento
bem demarcado. Diz ele: "É necessário distinguir entre a dispo-
(logo na primeira página do Cosmos, Humboldt coloca que a na-
sição do observador, seu estado de espírito durante a observação,
tureza é o reino da liberdade e que, para entendê-la, o pensa-
e o engrandecimento ulterior do observado, que é fruto da inves-
tigação e do trabalho do pensamento". mento tem de ser livre). O estudo deve caminhar da "inspiração"
'para a "evidência de verdade positiva", assim substantivar a im-
O segundo momento do método proposto por Humboldt é a pressão com os dados recolhidos pela investigação sistemática.
elaboração teórica do material levantado com vistas à generali- Tal proposta é passível de ser formulada em função da teoria do
zação. Nas palavras do autor: "Aquilo que foi conquistado pela conhecimento assumida por Humboldt que, como visto, não in-
observação ou pela via das experiências conduz, pela análise e compatibiliza "mundo de intelecto" e "mundo sensível"; ao con-
pela indução. à descoberta de leis empíricas"; e completa: "A trário, defende uma correspondência quase total entre eles. Para
exposição de um conjunto de fatos observados e combinados en- Humboldt, a · causalidade oa natureza introduz o nexo funda-
tre si não exclui o desejo de agrupar os fenômenos segundo seus mental entre a razão e o mundo exterior, pois possui uma objeti-
encadeamentos racionais. de generalizar aquilo que é suscetível vidade externa ao sujeito do conhecimento; só é apreendida, po-
na massa de observações particulares, de chegar à descoberta de rém, quando filtrada pela subjetividade deste. A natureza, vista
leis". Assim, esse segundo momento é um trabalho de indução e como existência que engloba o próprio homem, para ser compre-
de comparação. basicamente. É aqui que se explicitariam as co- endida deve ser reconstruída pelo intelecto. Daí o conhecimento,
nexões, as relações, os elementos constantes, os encadeamentos. para ele, ser a ''inteligência aplicada aos objetos sensíveis". A
as analogias, as manifestações da unidade, enfim as leis. A teoria causalidade é, assim, uma inerência da natureza e um "cons-
do conhecimento exposta, que fundamenta as concepções de tructo" do investigador. A proposta de método de Humboldt
Humboldt ao defender a correspondência entre a razão e o mun- substantiva-se na explicitação desse itinerário.
do empírico. vai fornecer a justificativa de convivência entre o -hO método da Geografia, segundo Humboldt, parte da obser-
levantamento e a elaboração em sua proposta de método. Diz vação da paisagem. Essa contemplação da natureza transmite
Humboldt: "Tudo quanto tende a reproduzir a verdade da natu- uma sensação ao sujeito, que encontra correspondência com suas
reza dá nova vida à linguagem, quer se trata de descrever a im- representações interiores. O sujeito, pela observação filtrada por
pressão sensível produzida em nós pelo mundo exterior. quer os sua subjetividade, "percebe" o todo, seus encadeamentos. Con-
nossos sentimentos e as profundidades em que se agita o nosso forme coloca Humboldt, essas impressões "contêm o pressenti-
pensamento". mento da ordem e das leis, que nascem, sem o sabermos, do sim-
Como foi observado em item anterior, a teoria do conheci- ples contato com a natureza". Esta seria a sua idéia da unidade
mento que informa Humboldt privilegia sobremaneira a intuição entre razão e experiência, que torna possível a existência da ciên-
cia. En1 suas palavras: "Pelas misteriosas relações que existem
entre os diferentes tipos de organização, as formas vegetais exó-
quando ele submete a massa de ~xperiências às combtnações racJOn.tis" (Ibidem,
vol. I. p. 76).
ticas se apresentam ao pensamento como que enfeitadas pelas
imagens trazidas da infância. É assim que a afinidade elas sen-
114
115
sações conduz ao mesmo objetivo que atende mais tarde à com- vação)''. Assim, a indução domina a elaboração dos dados, logo
paração laboriosa dos fatos, à persuasão íntima de que um único os juízos devem fluir diretamente da observação. As conexões de-
e indestrutível nódulo encadeie a natureza inteira. A tentativa de vem ser estabelecidas na descrição do quadro local, a explicação
decompor em seus elementos diversos a magia do mundo físico é da individualidade local sendo ao mesmo tempo o conhecimento
cheia de temeridade, pois a grande característica de uma pai- das conexões universais entre os fenômenos. Simultaneamente ao
sagem e de toda cena grandiosa da natureza depende da simi- aprofundamento desse estudo, a imestigaçào geográfica, na pro-
litude das idéias e dos sentimentos que se encontram ativados posta de Humboldt, deve, continuamente, proceder a compa-
no observador. A potência da natureza se revela, por assim di- rações. Os fenômenos, os processos, os encadeamentos e as co-
zer. na conexão das impressões, nesta unidade de emoções e de nexões identificadas devem ser confrontados com manifestações ~
efeitos que se produz em qualquer um com apenas um olhar". similares em outras partes do globo. O método comparativo é '
Assim. haveria uma regularidade nas impressões, um pressen- também fundamental na proposta humboldtiana, isso apesar de
timento "mágico" da unidade da natureza. Daí o apreço de esse método ser mais utilizado do que defendido nas suas formu-
Humboldt pela apreensão estética, a que melhor traduziu este lações.42 Na verdade, boa parte das páginas das obras analisadas
sentimento.
dizem respeito a comparações entre as manifestações de determi-
A proposta de método de Humboldt não se detém. entretanto,
nado fenômeno (por exemplo, os vulcões) no espaço terrestre, ou
neste plano das impressões subjetivas. A partir delas, o pesqui-
de determinada correlação de fenômenos (por exemplo, vege-
sador deve debruçar-se sobre o material empírico levantado a res-
tação e clima). Mesmo em suas monografias descritivas não é
peito da realidade em foco, aplicando nesse material o esforço do
raro, ao abordar um fenômeno , tecer considerações sobre sua
espírito "que compara e combina". E aqui a objetividade da aná·
ocorrência em outras localidades do planeta. Assim, a compa-
lise comanda. O pesquisador deve corporificar sua impressão
ração articula-se com a própria descrição em sua prática de pes-
com informações substantivas sobre os elementos da paisagem
quisa. Tal momento do trabalho não aparece, entretanto, expli-
enfocada. Para tanto, lança mão dos levantamentos (identifica- citado com clareza· em suas formulações metodológicas.
tórios) fornecidos pelos estudos especiais e das teorias elaboradas
É a todo esse itinerário que Humboldt denomina de "empi-
pelas ciências sistemáticas. Juntamente com a impressão, esses rismo raciocinado", um método que combina a observação, a
elementos constituem o material do trabalho geográfico. Poder- medição e a descrição com a elaboração indutiva, a comparação e
se-ia indagar até que ponto os vários planos da Geografia não a generalização num procedimento de pesquisa que articula di-
constituíram níveis distintos de tratamento desses dados. O pes· versidade e unidade (assim estudos sistemáticos e sintéticos), e
quisador se defronta, enfim, com elementos e fenômenos va- individualidade e universalidade (assim a escala local e a global),
riados, tentando apontar seus encadeamentos e relações no qua-
e ainda a subjetividade e a objetividade (assim as impressões e os
dro local. Aqui o levantamento sistemático cruza-se com a visão dados empíricos). Essa proposta de método culminaria com age-
sensorial dó conjunto; aquilo que foi percebido é objetivamente neralização, o estabelecimento de leis da distribuição e combi-
analisado, as conexões pressentidas deverão passar pela experi- nação espacial dos fenômenos da superfície da Terra. Além disso,
mentação. Tudo isso fundindo-se na descrição da paisagem. Em o itinerário da pesquisa geográfica deixaria em sua execução di-
todo este momento da investigação geográfica os procedimentos
ferenciados resultados parciais (levantamentos, classificações,
indutivos dominam. Humboldt fala da ciência do Cosmos como
descrições locais, teorias sobre a distribuição de fenômenos espe-
"ainda uma ciência da indução", que necessita "buscar os seus
elementos na descrição animada dos corpos orgânicos( ... ) desen-
volvendo-se com o exemplo da vida universal, no meio dos di- 42 Essa posição é defendida por Tatham. Di1 ele: "Humboldt demons-
versos acidentes da superfície terrestre, nas condições da pai- trou, muito mais cla ramente do que Ritter, o valor do método comparativo. de
sagem e do lugar onde a natureza os colocou". Em outra pas- tal forma que este último lhe atnbuiu a formulação da Geografia Comparada"
(Tat ham , G. - Ob. cit. . 217). Também C'laval defende esta idéia ao colocar que
sagem elogia o "método da indução, o único que se pôde aplicar
a concepção de Humboldt é a ' ·dedu~·ão das leis por comparação das relações"
seriamente na generalização dos resultados obtidos (pela obser- (em Clava). P. e Nardy. J.-P. - Ob cu .. p. SJ)

116
117
cíficos, etc.) em si mesmos bastante relevantes. Esta é, enfim, a pressentimento que uma previsão. Ela não remete à dedução,
proposta metodológica de Humboldt, expressa de forma difusa mas à intuição" .43
em sua obra.
Cabe salientar que Humboldt. a nosso ver, não consegue rea-
' A unificação das concepções de objeto e de método define a liz.ar essa proposta em seus estudos substantivos. Seu:- trabalhos
Geografia na proposta humboldtiana. Esta é, sem dúvida, uma
monográficos são demasiadamente descritivos. não chegando se-
ciência de síntese, que aborda fenômenos diversificados buscando quer a delinear esboços de generalizações. Além disso. apresen·
relações. Essas relações têm por base a superfície terrestre, palco tam um plano de exposição tópico, isto é, uma lógica seqüencial
de observações da Geografia. Para estudar as relações, o geógrafo parcelada. onde as várias classes de fenômenos vão sendo abor·
deverá estar munido dos levantamentos que identificam os fenô- dadas em capítulos estanques. Assim, a perspectiva sintética não
menos presentes na área enfocada; para a correta ·avaliação des- aflora. e o máximo que aparece são relações duais entre fenô-
tes é necessário, além da classificação taxonômica, a comparação menos de elevada e sensível correlação (por exemplo. relevo e es-
de sua manifestação em outros pontos do globo. Aqui elaboram- trutura geológica ou clima e vegetação). É interessante reafirmar
se estudos sistemáticos e de distribuição de fenômenos especí- que a metodologia e os objetivos desses trabalhos empíricos repre·
ficos. O feixe de relações define a individualidade da área estu- sentam talvez uma herança maior da obra humboldt1ana para a
dada. Para chegar ao seu estabelecimento, o pesquisador articula Geografia postenor do que suas formulações de maior carga nor-
a visão de conjunto e a impressão subjetiva daí advinda, com as mativa. quanto ao objeto e ao método de tal disciplina. Dessa
medições de campo, chegando pela via da intuição e da indução forma. suas monografias realizam apenas um nível primário e
(no tratamento dos dados) a compreender a unidade da área elementar de sua proposta; não e!>tão em contradição com esta,
abordada. Aqui elaboram-se monografias regionais sintéticas e porém distam muito dos horizontes almejados. Também no corpo
descritivas, realçando as relações dos fenômenos. O conjunto lo· de suas obras principais estes horizontes não se realizam plena-
cal pode ser comparado com estudos similares realizados para mente. Uma análise do conteúdo substantivo do Quadros da Na·
outras áreas, identificando-se as regularidades. Esta fase do tra- tureza e do primeiro volume do Cosmos (a parte igualmente deno-
balho prepara o material para a etapa subseqüente: a teorização. minada Quadros da Natureza), frustra a espectativa levantada
Esta é uma pura elaboração do pensamento (talvez uma filosofia pelos escritos metodológicos. O nível de síntese é aqui. sem dú-
da natureza com base empírica), que retoma as sensações intui- vida, mai:, elevado; entretanto. ainda limita-se a um conjunto
tivas (as "impressões") e o material elaborado nas etapas ante· pouco numeroso de fenômenos. As generalizações também são
riores, buscando nesse arsenal as leis universais. Estas expressa- escassas. e de alcance limitado. na maioria das vezes dizem res-
riam a unidade da Terra e a da natureza. Todo esse edifício tem peito a um só fenômeno (como o magnetismo terrestre, por exem-
seu fundamento na teoria do conhecimento que informa Hum- plo). O que domina nesses trabalhos são as comparações. geral-
boldt. Esta reconhece que ··as forças do universo estão subme· mente de fenômenos específicos. apresentadas de forma isolada e
tidas a leis'': aceita. assim, a racionalidade inerente na natureza, seqüencial. Dessa maneira. a concepção de Geografia de Hum·
porém assevera que a causalidade não flui da observação direta, boldt resta como uma proposta não efetivada em sua obra. Poder·
do mero trato dos dados empíricos e assim defende que "o estudo se-iam entender os esforços teóricos de Hettner e Hartshorne
deve ir além do mundo visível, pela investigação, pelo pensa- como tentativas de torná-la exeqüível.~
mento". Essa teoria do conhecimento é parte essencial da formu- No que diz respeito ao papel atribuído ao homem e à socie-
lação humboldtiana, e, enquanto tal, é difundida junto com sua
proposta de Geografia, sem que, muitas vezes, os geógrafos pos-
teriores tenham consciência de suas implicações. A carga irracio- 41 Vallaux. C. - Ub. cu .. p .. ~1 Este autor cita a inturçào do própno

nalista contida no privilégio da intuição é retomada. por exem· Humholdt quanto ao futuro grand rosn do~ Estados Unidos. feita no inicio do
pio, nas formulações de C. Vallaux, que chama a autoridade de século XIX, quando o desenvolvimento desse pah ainda não havia ocorrido.
44 A nosso ver, estes autores compreenderam corretamente a concepção de
Humboldt para propor: "Na verdade. previsão em Geografia não
ObJeto e método formulada por Humboldt. concordaram com ela, e tentaram
deverá seguir uma forma rigorosa e dedutiva. Ela é mais um desem•ol"ê-la

11R
119
dade, a proposta de Humboldt coloca a Geografia como estudo O POSICIONAMENTO POLÍTICO E AS CONCEPÇOES SOCIAIS DE
da natureza referida à superfície da Terra. O humano aparece, HUMBOLDT
assim. como apenas um elemento a mais do quadro natural terres-
tre. Em suas palavras: "O aspecto geral da Terra, que tentei deli-
near, estaria incompleto se eu não me aventurasse a traçar uma Pode-se começar a avaliação do pensamento político social de
das mais marcantes características da raça humana, considerada Humboldt afirmando que este autor, apesar de ser um aristo-
com relação às gradações físicas - com a distribuição geográfica crata. foi um exemplar representante da "fase heróica'' do pen-
dos tipos contemporâneos - com a influência exercida sobre os samento burguês. Ele vivenciou o momento histórico em que a
homens pelas forças da natureza, e a recíproca ação, posto que burguesia aparecia no quadro social europeu como a classe que
mais fraca, que ele, por sua vez, exerce sobre as forças naturais. portava um projeto hegemônico de transformação da ordem so-
Dependente do solo, embora em menor escala do que os animais cial vigente, isto é, como a classe que formulava um projeto polí-
e as plantas, e dos processos metereológicos atmosféricos dos tico de alteração das instituições existentes. No bojo desse pro-
quais se encontra rodeado - escapando mais rapidamente ao cesso, o pensamento burguês formula. através de seus represen-
controle das forças naturais pela vivacidade de espírito e o adian- tantes. páginas de inegável qualidade e conteúdo. Elabora pro-
tamento da cultura intelectual. e menos por sua extraordinária postas e articula raciocínios que vão somar-se ao patrimônio cul-
capacidade de adaptar-se a todos os climas - o homem, em toda tural da humanidade como contribuições das mais significativas.
parte, torna-se mais intimamente associado com a vida terrestre''. A burguesia no ataque, visando destruir a velha ordem social.
Vê-se, desse modo, que não há uma perspectiva antropocêntrica estimula o pensamento crítico, investe contra as verdades consue-
na proposta humboldtiana. A análise do homem interessa à me- tudinárias e contra os dogmatismos. O pensamento iluminista é,
dida que este, "cidadão do mundo". tem uma presença marcante sem dúvida, uma das mais fecundas manifestações desse movi-
na vida do planeta. Na amplitude das conexões buscadas, o ho- mento. Escorado na prática social da nação francesa, que realiza
mem é um dos elementos inter-relacionados. 45 Enfim, uma Geo- •/ a mais radical revolução burguesa, elabora as formulaçoes mais
grafia Humana não é perceptível nas suas formulações. A análise avançadas no plano social e político. Humboldt, apesar de ser um
dos assentamentos humanos e da dinâmica social estão fora do autor alemão, expressa o ideário da Ilustração.
âmbito de sua proposta geográfica, é talvez o que queira exprimir Um primeiro traço marcante do pensamento iluminista é a fé
ao dizer: "Um quadro físico da Terra se detém no limite onde na razão, isto é. a idéia de que o desenvolvimento intelectual da
começa a esfera da inteligência". sociedade levaria à melhoria geral do estado social e ao aprimo-
Sintetizando, pode·se dizer que a Geografia de Humboldt é ramento das instituições políticas. Pensa-se a história como um
um estudo da Natureza, que engloba a humanidade enquanto progressivo domínio da natureza pelo pensamento, visando ins·
espécie ativa. Suas formulações sociais estão fora do universo de taurar uma ordem social que recupere os direitos naturais do ho-
estudos por ele preconizado para esta disciplina. mem, identificados pela via da razão e do conhecimento. Assim,
o pensamento iluminista não opõe a razão à natureza, antes arti-
cula-as numa perspectiva evolutiva da história. Humboldt ex-
prime com clareza meridiana estes pontos de vista. Fala do saber
como "jóia do homem e direito indestrutível da humanidade", e
elogia a afirmação de Bacon de que "o poder das sociedades é a
inteligência". Para ele, o ''engrandecimento das idéias'' leva ã
''melhoria do estado social", pois o conhecimento tem uma in-
45 Para se ter uma idéia da amplitude da perspecllva delend1da por Hum- fluência ''moral e intelectual em todas as classes da sociedade
boldt basta dizer que ele afirmava que o homem se relaciona com os materiais civil". A própria defesa do conceito de humanidade revela bem as
celestes através da luz e da força da gravidade. Ver Cosmos. ob. cit.. vol. I. p. concepções iluministas de Humboldt; para ele, esta é "a raiz co-
60. mum do princípio da liberdade individual e da liberdade política.

120 121
pela convicção da igual legitimidade de todos os seres que com- gime, processo em que sua estratégia foi a afirmação da raciona ·
põem a raça humana"; e acrescenta noutra passagem: "A huma- !idade do mundo, a possibilidade de uma explicação da realidade
nidade como uma família ( ... ) marchando num mesmo sentido, o como afirmação da capacidade de os homens aprimorarem suas
livre desenvolvimento das forças morais ( ... ) o móvel supremo da instituições políticas pela vida da razão. Para tornar essa estra-
sociabilidade". 46 Vê-se a idéia da progressividade histórica tendo tégia eficaz, era necessário insurgir contra os dogmatismos, pre-
por condutor o conhecimento. conceitos e proibições, afirmando peremptoriamente a maior li-
Há uma inter-relação fecunda, na visão humboldtiana, entre berdade de reflexão e expressão. Isto fica evidente numa pas-
a política, a ciência, a arte e a filosofia. de enriquecimento mú- sagem onde Humboldt relaciona o conhecimento e o poder, di-
tuo. Ele afirma, por exemplo, que "o sentimento das artes" zendo: "A proximidade dos príncipes retira sempre, até nos espí-
avança "com o estabelecimento de instituiçÕes livres", e que o de· ritos mais firmes, um tanto do vigor e da independência".
senvolvimento da ciência "aumenta a riqueza nacional". Ou, É em função dessa postura que Humboldt formula juízos con-
numa formulação ainda mais explícita: "Onde, sob a égide de trários ao pensamento religioso, revelando um certo anticlerica-
instituições livres e de uma sábia legistação, os germes da civili-
lismo também muito característico do pensamento iluminista.
zação putleram se de-;envolver plenamente, não há uma rivali- Logo na introdução do Cosmos ele tece acirradas críticas aos "pre-
dade entre as criações do espírito". Mesmo em trechos de des-
conceitos dogmáticos ( ... ) alimentados por uma visão mística".
crições empíricas é possível encontrar afirmações que explicitam
Tal crítica contemporânea não o impede de, na avaliação histó-
concepções sociais de Humboldt, como por exemplo: "Ao norte,
rica, falar da "influência benéfica do Cristianismo", que propi-
entre a cadeia da Venezuela e o mar das Antilhas, encontram- ciou a "reabilitação das classes inferiores"; e de destacar que, no
se, em curtos intenralos, cidades industriosas e campos cultivados
plano do pensamento, o cristianismo levantou a idéia da "uni-
com esmero. Há já muito tempo que o sentimento da arte, o es- dade da espécie humana". Humboldt elogia, entretanto, os pro-
tudo. da ciência e o nobre amor da liberdade politica despertaram
testantes, definindo-os como "mais liberais" na luta da ciência
nesta regiões". Enfim. a ligação do conhecimento com a prática contra as idéias religiosas, e define a Reforma como "prelúdio
social e a fé na razão são elementos presentes nas formulações das grandes revoluções políticas". No que toca à avaliação de até
sociais de Humboldt, assim como as idéias de progresso e evo- que ponto vai a ruptura de Humboldt C{)m o pensamento reli-
lução-aprimoramento. Diz ele: "A humanidade chegou progres- gioso, reina alguma polêmica. Ortiz considera Humboldt "ateu e
sivamente à possessão intelectual de uma grande parte do uni- materialista", um critico radical da religião. Já Tatham, apoiado
verso " .
em depoimentos de L. Agassiz e T. S. Fay, refuta a acusação de
Quanto à liberdade de pensamento, Humboldt apresenta po- ateísmo. •7 Na leitu;a da obra humboldtiana pode-se apreender a
sições muito explícitas. Diz ele: "A liberdade mental é ainda mais critica já mencionada, das barreiras religiosas ao pleno desenvol-
difícil de se adquinr que a liberdade política ( ... ) As tendências vimento do pensamento. Não há elementos, entretanto, que de-
contrárias a uma absoluta liberdade de pensamento, que pre- finam claramente seu ateísmo, pois são comuns em seus escritos
tendem proibir a entrada num setor qualquer do conhecimento, termos como "fruto da criação", "coisa criada", etc. Quanto ao
são injuriosas e nocivas até mesmo para os conceitos que querem materialismo, Humboldt é explicitamente contrário a esta pos-
afastar da investigação cie.ntífica". Vê-se claramente expressa a tura gnosiológica; elogiando o evolucionismo, comenta: "Não há
postura ilustrada: cabe explicar o mundo, dar, assim, livre curso ( ... )nenhum laço forçado entre a teoria de Darwin e o materia-
ao pensamento e à crítica; todos os entraves a este livre-pensar lismo, que considerasse a história do mundo vivo como uma su-
são obstáculos objetivos ao progresso da humanidade. Tal pos- cessão anárquica de causas e de efeitos. sem escolha, sem direção
tura. como visto, assentava-se na necessidade histórica da bur- e sem fim"; antes já havia colocado: "A teoria de Darwin não
guesia de deslegitimar a sustentação ideológica do Antigo Re- exclui a fin~ll;r\ade da Natureza". Alguns autores falam n" •tm

46 Idem - lbJrlern. •oi. 11 pp 360/ 1. p . 242 c vol. I. p. 431. • 7 Ortiz. F. - Ob c1t.. pp. 58/ 60 e Talham, G - Ob. cit., p. 218.

122
123
panteísmo de Humboldt. Tal avaliação exigina, enfim, uma aná- ser comandado pela razão, inclusive entende o seu "Ensato Polí-
lise mais aprofundada, fugmdo ao âmbito do presente trabalho. tico" como um subsídio à resolução do problema. Diz ele: "Esta
No plano mais estritamente político, as concepções de Hum- investigação dos fatos, quase minuciosa, parece necessária em
boldt localizam-no como adepto do ideário do liberalismo. Ele um momento em que, por um lado, o entusiasmo que nos inclina
define explicitamente a liberdade individual como o princípio a uma credulidade benévola. e por outro lado, as paixões de ódio
cuJa perda "faz obstáculo ao progresso intelectual da humani- dos que vêem como inoportuna a segurança das novas repúblicas,
dade e ao desem•olvimento da vida social". Esta posição de Hum- I dão motivo às concepções mais vagas e errôneas"
boldt fica claríssima em sua intransigente condenação do escra- A citação acima apresentada demonstra um outro traço pro- ,
vismo colonial. Stevens-Middleton considera-o um "inimigo mili- gressista do posicionamento politico de Humboldt: sua simpatia ,
tante da escravidão". A sustentação desta opinião encontra fartas à libertação das colônias americanas. Já foi mencionada sua rela-
colocações na obra humboldtiana. Ele fala do tráfico negreiro ção com Simón Bolívar. e mesmo seu desejo de fixar-se no Mé-
como "um comércio infame"; diz: "A escravidão é. sem dúvida, o xico. Em várias formulações Humboldt expressa uma avaliação
maior de todos os males que afligem a humanidade": reafirma crítica com relação ao colonialismo. Diz ele, por exemplo: "Os
noutra passagem: "Conservei, ao deixar a América, o mesmo progressos da ciência do mundo foram adquiridos ao preço de
horror à escravidão que possuía na Europa". e critica os ''sofistas todas as violências e de todas as crueldades que os conquistado-
que querem atenuar a existência da escravidão". As passagens res, ditos civilizadores. trouxeram de um lado a outro da Terra".
são inúmeras. Humboldt condena a escravidão por princípio. Diz Em outra passagem, afirma: "Provera Deus, que em todas as
ele: "O injusto le\a consigo o germe da destruição", e reforça: partes do Novo Continente, se tivessem conservado os nomes dos
"Nos países de escravos, onde um hábito de há muito tempo in- homens que, em vez de ensangüentarem o solo com as conquistas,
clina a legitimar as instituições mais contrárias à justiça, não se depositaram nele as primeiras sementes dos cereais" .49 Humboldt
pode contar com uma influência dos conhecimentos, do cultivo protesta com veemência contra a destruição dos monumentos
da razão( ... )''. incas, e defende com firmeza a liberdade das populações indíge-
Em sua monografia cubana, Humboldt argumenta: "A ilha de nas americanas. E conclui: "O bem-estar dos brancos está inti-
Cuba pode livrar-se melhor que as demais Antilhas do naufrágio mamente ligado com o da raça bronzeada( ... ) e não haverá feli-
comum (a horrível catástrofe de São Domingos), porque conta cidade duradoura na América sem que esta raça ( ... ) chegue a
com 455 mil homens livres, não sendo os escravos mais que 260 participar de todos os benefícios que são conseqüência dos pro-
mil, e pode preparar gradualmente a abolição da escravidão, va- gressos da civilização e do aperfeiçoamento da ordem social". Vê-
lendo-se para isso de medidas humanas e prudentes". Defende a se que Humboldt não apenas é simpático à causa da indepen-
necessidade de se proibir o tráfico negreiro, de se incrementar a dência das colônias americanas, como articula a resolução da
colonização com braços livres, e, através de "um acordo livre en- questão nacional com a abolição da escravatura.
tre proprietários", chegar à abolição total, "uma verdadeira me- -...,.1 Resta avaliar as concepções de Humboldt quanto ao racismo,
lhoria da classe servil deve abarcar a posição total, moral e física o etnocentrismo e o determinismo natural, para melhor entender
do homem" .48 Humboldt sugere explicitamente transformar o es- seu posicionamento político e social. No que tange ao primeiro
cra-.o num parceiro ou dar-lhe liberdade após quinze anos de tra- ponto, ele se exprime de forma absolutamente incontroversa, di-
balho. Diz que isso é possível em Cuba, dada a existência de uma zendo: "Ao sustentar a unidade da espécie humana. quero recha-
classe letrada, passível, assim, de "libertar-se dos entraves que çar a desagradável pretensão de que existem raças superiores e
detêm as melhorias da prosperidade colonial''; diz que o sistema inferiores", e, avançando no segundo ponto, acrescenta: "A his-
colonial, tal como estabelecido, baseia-se na ''mimizade das clas- tória não reconhece povos originários ou um berço fundamental
ses", logo tem a rebelião como um potencial real. Humboldt re- da civilização". Assim, vê-se que Humboldt não reconhece dife-
conhece que todo esse processo de abolição da escravatura deva
49 Cosmos. ob. c1t . vol. TI. p. 359 e QuadrO f da natureza. ob. cit. ,, vol. I.
48 Ft~Jayo políttco sobrl' la isla dl! Cuba, ob. cit. p. 163 p tôO

124 125
renciações de base biológica entre os homens, propugnando. ao Resta analisar o posicionamento de Humboldt frente às ques-
contrário, a unidade natural da espécie humana e o desenvolvi- tões que lhe eram mais próximas, por exemplo o problema da
mento ml.iltilinear da humanidade. Isto não implica que ele não / unidade alemã. Também nesse plano Humboldt enquadra-se na
aceite diferentes graus ou estágios de desenvolvimento entre os órbita do pensamento progressista, mostrando-se consciente da
povos, ou mesmo traços culturais distintos entre estes. Afinal. problemática alemã- fato que não passa despercebido à arguta
como foi visto, Humboldt defende uma concepção evolutiva e análise de G. Lukács; diz ele, ao analisar o pensamento da época:
aprimoradora da história. Apenas, credita corretamente estas di- "O marco do destino, por assim dizer, é para a Alemanha o ano
ferenciações dos povos à esfera da cultura. Por exemplo, ao falar de 1525, ano da grande guerra germânica dos camponeses. Ale-
sobre os índios otomacos da floresta amazônica. diz: "As povoa- xandre von Humboldt se deu conta de que este era o ponto de
ções vizinhas, colocadas no último grau da escala da civilização, inflexão, a partir do qual a evolução alemã tomou caminhos tene-
andam nuas, vivem em tribos errantes( ... )''; numa outra passa- brosos. Enquanto as derrotas das grandes sublevações. na França
gem, fala das sociedades da floresta que "estranham a agricultura, e na Inglaterra, não cortam a linha evolutiva progressista destes
comem formigas, goma e terra; são as fezes da espécie humana"; países, a derrota camponesa produziu na Alemanha uma catás-
e ainda numa outra, afirma: ''São estes índios selvagens a quem trofe, cujas conseqüências iam ser perceptíveis durante sécuios".
repugna toda a cultura". Desta forma, para Humboldt existe Num outro trabalho, o mesmo comentarista afirma: "Um homem
uma escala evolutiva. As sociedades manifestariam diferentes que tinha tão pouco de extremista radical como Alexandre von
graus de cultura, e diferentes ritmos de desenvolvimento: "As Humboldt o dizia já há uns cem anos: 'A Alemanha equivocou
nações que conservam os antigos meios e instituições complexas seu caminho com a derrota da guerra dos camponeses, e a ele há
invariáveis como a China( ... ) são estacionárias na via das ciên- de retornar para encontrar o rumo certo, o que foi sucedendo
cias e das artes industriais"; e acrescenta: ''As migrações e o co· desde então foi uma conseqüência necessária'" .5 1
mércio são as causas que mais atuam no desenvolvimento dos Como já foi mencionado, Humboldt pertence à geração que
povos"; concluindo noutra passagem: "O estado de selvageria, primeiro coloca a questão da revolução burguesa na Alemanha,
efeito natural do isolamento". Haveria, assim, por razões ímpa- geração que vivencia a contemporaneidade do pensamento euro-
res, povos estacionários num baixíssimo grau de cultura, outros peu (no caso de Humboldt uma vivência direta na estadia de
estacionários em organizações rígidas, e povos ativos, moventes, trinta anos em Paris) numa Alemanha que permanece à margem
mesmo que com pouco aprimoramento cultural. dos progressos sociais europeus, geração que coloca a questão da
Entre as causas que atuam na .evolução das sociedades huma- unidade nacional, enfim que defende o desenvolvimento das rela-
nas, Humboldt inclui as condições naturais do espaço onde estas ções capitalistas, criticando os entraves feudais. Quanto ao des-
estão localizadas na superfície da Terra. Diz ele: "Todo acidente / compasso alemão. Humboldt comenta: "Uma avaliação igual de
do solo imprime um traço particular ao estado social do povo que todos os ramos da ciência, matemáticas, físicas e naturais, é ne-
o habita"; e reafirma: "As configurações espaciais fazem nascer cessária numa época em que a riqueza matetial das nações e sua
necessidades que estimulam a atividade das populações". Não prosperidade crescente estão principalmente fundadas num em-
apresenta, entretanto, a nosso ver. formulações deterministas, prego mais engenhoso e mais racional das produções e das forças
entende mais esta ação das condições naturais numa concepção da natureza. Basta dar uma rápida olhada no estado atual da Eu-
próxima à do possibilismo, é o que se depreende da seguinte afir- ropa para reconhecer que em meio aos povos que rivalizam na
mação: "Nos sítios em que a configuração do solo opõe ao homem disputa das artes industriais, o isolamento e a lentidão têm indu-
obstáculos poderosos. a forca cresce com valor nas raças em- bitavelmente por efeito o total aniquilamento da riqueza nacio-
preendedoras''. 50
temperadas são "as mats favoráveis ao desenvoh•imento intelectual" (Ibidem,
vol. I, p. 16.3). Reafirma esse JUÍLO no Cosmos. ob. cn .. vol. I. p. IS
50 Quadros da natureza, ob. cit.. vol 11. p . 213. Mesmo a>~llll Humboldt Si Lukács, G. - Goethe y .\u época. ob. ctl.. p 54 e El asal1o u la razân .
faz algumas ahrmaçõe~ di~cutíveis . como. por exemplo. ao dtzer que a\ regir.>es ob. ctt.. p. 611. respectivamente

126 127
~ .
na!". Uma crítica explícita aos resquícios feudais pode ser apreen- entretanto, elementos para se julgar - como afirma Ortiz - que
d ida na seguinte afirmação: "O melhoramento dos cultivos en- Humboldt fosse um republicano.
tregues a mãos livres e em propriedades de menor extensão. o
estado florescente das artes mecânicas livres dos encargos que
CONSIDERAÇÕES SOBRE A GEOGRAFIA DE HUMBOLDT
lhes opunha o espírito das corporações, o comércio engrandecido
e vivificado pela multiplicidade dos meios de contato entre os
povos, tais são os resultados gloriosos dos progressos intelectuais
e do aperfeiçoamento das instituições políticas nas quais este pro- Fazendo uma avaliação sintética do que foi apresentado, conclui-
gresso se reflete. O quadro da história moderna é, nesse sentido, se que a obra de Humboldt expressa de fato, pioneiramente, al-
capaz de convencer os mais incrédulos". Nesta afirmação estão gumas das concep,ões e juizos que ser~o centrais em todas as
levantadas todas as transformações que o desenvolvimento do argumentações das propostas posteriores da Geografia. A idéia
capitalismo na Alemanha demandava para se realizar de uma de ciência de relações. sintética e necessariamente não-sistemá-
forma progressista: o fim dos privilégios feudais sobre a terra, tica, aparece aí já claramente formulada. Tal idéia reaparecerá
uma reforma agrária com a criação de um campesinato livre. o como dominante nas correntes majoritárias do pensamento geo-
fim das limitações corporativas, com o livre desenvolvimento da gráfico tradicional. Humboldt tece, assim, uma formulação que
atividade manufaturcira. Humboldt critica, de forma veemente. visa justificar o fato de a Geografia estudar fenômenos díspares,
as relações de produção nào capitalistas: a servidão, a corporação estudados cada um pelas diferentes ciências sistemáticas. E,
de ofício e a escravidão. Nas obras analisadas, entretanto, não há mais, argumenta que tal abordagem dá 1dentidade a essa disci-
nenhuma menção explícita à situação alemã. As posições hum- plina. Essa linha de argumentação permanecerá como o leito cen-
.boldtianas aparecem em argumentações não diretamente vincu- tral por onde correm as colocações legitimadoras da autoridade e
ladas a esse tema; por exemplo, o elogio das vantagens e da neces- da autonomia do conhecimento geográfico. A herança hum-
sidade da unidade política aparece com vigor numa análise do boldtiana não se limita, entretanto, a haver inaugurado esta via
Egito antigo e noutra sobre os incas. 52 Esta postura favorável à de discussão da identidade da Geografia. Muitos outros princí-
unificação nacional da Alemanha também aparece quando Hum- pios e argumentos, reiterados amiúde pelos geógrafos posteriores,
boldt enfatiza a importância e a necessidade da língua nacional originaram-se de suas formulações. No corpo do presente capí-
para ''uma pátria que busca a concentração de suas forças na tulo vários deles foram expostos; cabe aqui ressaltar alguns dos
unidade intelectual" . mais expressivos.
Finalizando este item, cabe salientar que os textos analisados A opinião a respeito da relação da Geografia com a História,
não permitiram uma avaliação mais clara da opinião de H um- por exemplo, é uma destas formulações que se perpetuaram, em
boldt acerca dos regimes políticos propriamente ditos. Observa- diferentes fórmulas, na evolução do pensamento geográfico tradi-
ram-se, pelos dados biográficos, suas relações estreitas e cordiais cional. A idéia de o passado estar presente na paisagem, ou a da
com a monarquia prussiana, da qual foi um súdito obediente e visão sempre contemporânea do geógrafo, ou a da abordagem
um funcionário eficaz (como embaixador e conselheiro). Por retrospectiva, ou ainda a conhecida colocação da Geografia como
outro lado, suas relações com Napoleão Bonaparte também eram a "história do presente", são todas argumentações que aparecem
cordiais (este não apenas facilitou o trabalho de Humboldt na desenvolvidas nas páginas de Humboldt. Também a posição de
França, como contratou seu companheiro de viagem à América, entender o caráter dos lugares, ou, em outras palavras, as indivi-
A. Bonpland), ass1m como com Thomas Jefferson e Simón Bolí- dualidades locais, como fruto da forma de conexão entre os fenô-
var. Como foi visto também, sua simpatia pela causa da indepen- menos ali presentes, pode ser apresentada como exemplificação
dência das colônias americanas era claramente expressa. Não há, do afirmado. Também a definição da Geografia como estudo da
paisagem e a visão do homem como um elemento ativo desta,
52 Cv.w ws . ob. l il . 'oi 11 . p. 200 c Quadros da natureza. ob. cit.. vol. 11 ,
idéias bastante recorrentes na Geografia tradicional, podem ser
p . 213. respecth•amcm<-. originariamente creditadas à lavra de Humboldt. O mesmo pode

128 129
ser dito para o combalido argumento de ser a Geografia uma os Ensaios Políticos que estão fora do âmbito dessa disciplina.
ciência empírica, "pautada na observação direta". tantas vezes A avaliação dessa questão é dificultada por uma insólita situação:
repetido pelo pensamento tradicional. Humboldt, apesar de não as obras explicitamente consideradas por Humboldt geográficas
ser um empirista, afirma a posição acima mencionada, se bem tiveram, na prática, menor influência sobre a discussão geográ-
que de forma muito menos absoiuta do que a dos geógrafos poste- fica posterior do que aqueles trabalho~ redigtdos sem o intuito de
riores. Como foi visto. para ele a observação deve combinar-se interessar a essa disciplina. Constata-se. assim, que o que não era
com a "impressão" e a indução com a "intuição"; mesmo assim, Geografia atuou mais sobre esta do que o que era, pelo menos ao
porém, sua proposta coloca-se como um "empirismo racioci- se aceitar a intencionalidade do autor. Isto não quer dizer que
nado" . nenhum autor tenha tomado as colocações teóricas de Humboldt
Caberia ainda mencionar a discussão humboldtiana da escala como inspiradoras de suas formulações; a!> propostas de Hettner e
da pesquisa geográfica. A visão de que o estudo deve abarcar os de Hartshorne estão aí para provar o contrário. Considera-se.
quadros espaciais particulares capazes de serem individualizados apenas, que a sua influência majoritária exerceu-se pelas coloca-
foi muitas vezes defendida após sua formulação por Humboldt. ções empíricas. Poder-se-ia detectar, por exemplo, uma filiação
O argumento de se estudar o local para se compreender o global, humboldtiana no pensamento de Vida! de LaBiache, existente
apesar de nunca substantívado (como ocorre na própria obra de nesse sentido. Cabe relembrar, nessa discussão. que Humboldt
Humboldt). foi várias vezes repetido na!> propostas metodológicas não consegue realizar suas metas, formuladas num plano teórico,
da Geografia tradicional. Acredita-se que o apresentado basta nos seus trabalhos empíricos. A clivagem existente entre os dois
para referendar o juizo emitido a respeito do pioneirismo de níveis é, sem dúvida, um elemento de seccionamento das corren-
Humboldt na formulação de muitas posições e argumentos que tes geográficas que buscam inspiração na obra humboldtiana.
seriam dominantes no debate geográfico posterior. É exatamente essa diversidade interna de propósitos que sin-
A assimilação posterior da herança das formulações de Hum- gulariza a concepção de Humboldt frente às propostas de Geo-
boldt não ocorreu, entretanto, de forma unívoca e sua mfluência grafia de seus filiados . A Geografia de Humboldt, pelas artima-
não se deu num processo linear. Como já foi observado, propostas nhas oferecidas pela teoria do conhecimento que informa seu ra-
bastante diferenciadas e muitas vezes antagônicas buscam uma ciocínio, propõe-se sintética, regional e generalizadora ao mesmo
filiação às suas formulações. A variedade e amplitude da obra tempo. não incidindo na perda de um desses propósitos. caracte-
humboldtiana é, sem dú,·ida, um elemento explicativo de tal si- rística das propostas posteriores. A concepção de Hartshorne.
tuação. Nela convivem não apenas campos extremamente varia- para ser generaliL.adora, abdica da perspectiva regtonal e sinté-
dos de preocupação, mas também planos diferenciados de análise tica; a Geografia nomotética é temática. e a idiográfica (regional
e de teorização. Assim, há uma diversidade de temas e de níveis e smtética) não generaliza. Vida! de LaBiache propõe uma Geo-
de abordagem que possibilitam, individualmente, a alimentação grafia sintética e regional, mas também abdica da generalização.
de propostas distintas de trabalho. Algumas partes da obra de Schaeffer. que, diferentemente de Vida!, busca na obra empírica
Humboldt abrt>m possibilidades para trabalhos empíricos e des- de Humboldt uma Geografia sistemática (assim, numa leitura
critivos. outras para digressões filosóficas; algumas abordagens também diferente de Hettner e Hartshorne, que buscam tal Geo-
tmpreendidas abrem possibilidades para perspectivas sistemá- grafia generalizadora no Cosmos - para Hettner os Ensaios não
tica!>. outras regionais. Enfim, há objetivamente condições para eram Geografia). para defender uma perspectiva regional e gené-
múltiplas filiações. conforme se privilegiem determinados estudos rica também abre mão da característica sintética, propondo a
humboldtianos. Geografia como ciência social. Enftm. quer-se destacar que Hum-
A questão acima aludida, das múltiplas assimilações do pen- boldt consegue em sua proposta um alto grau de "coerência".
!>amento de Humboldt, manife!>ta-se com clareza na polêmica, sem cair em dualismos. 1 ai coerência, porém, é puramente ló-
já exposta, a respeito da delimitação das formulações especifica- gka. pois não realizada em estudos substantivos. aparecendo em
mente geográficas no interior deste. Como foi visto, para alguns termos preci~os como um objetivo almeJado, como um propósno
autores o Cosmos não é uma obra de Geografia. para outros são a ser alcançado. Na verdade. pode-se considerar que tal meta teó-

130 131
rica . formulada por Humboldt. constituiu-se num elemento esti- após a sua morte. Mesmo estes não se colocam. nem são coloca-
mulador da reflexão geográfica posterior. sendo também. assim, dos pelos comentaristas, como seguidores diretos de Humboldt.
uma parte substancial de sua herança intelectual. Não foram Deve·se, entretanto, reafirmar que sua influência foi das mais
poucos os geógrafos, no âmbito do pensamento tradicional. que penetrantes, aparecendo nas mais significativas correntes da Geo-
reafirmaram estes propósitos humboldtianos (de claros contornos grafia tradicional. Pode-se, em função disso, dizer que, ao mesmo
enciclopédicos), e que brandiram, para justificar a sua não-reali- tempo que difusa, foi sua herança quase que generalizada. Dessa
zação em termos práticos. o argumento de ser a Geografia uma forma, referenda-se plenamente sua localização como um dos
ciência ''jovem" ainda em formação. pioneiros sistematizadores da Geografia moderna.
Uma avaliação mais profunda do abrangente universo de pes-
quisa. atribuído por Humboldt ao conhecimento geográfico, re-
vela que sua coerência interna (a própria possibilidade de sua for-
mulação) repousa diretamente na teoria do conhecimento que in-
forma esse autor. São as concepções de unidade e de causalidade.
principalmente. que fornecem as argumentações que sustentam a
proposta humboldtiana. A identidade assumida entre razão (o
mundo do intelecto) e o mundo exterior, contida no cerne de tais
concepções, é que propicia a lógica (a coerência) daquelas colo-
cações. As relações entre os níveis empírico e teórico, entre a ob-
servação e a reflexão, entre a escala local e a global, entre o sinté-
tico e o sistemático, entre a indução e a intuição, todo o conteúdo. 1
enfim, das formulações humboldtianas interessando estes proble-
mas, que são nodais na justificação de sua proposta de Geografia,
assentam-se nesta posição gnosiológica. Portanto. os geógrafos
posteriores, ao assumirem tal proposta, acolhem, mesmo que
inconscientemente, elementos e problemas oriundos dessa posi-
ção. Como foi visto, a teoria do conhecimento que informa Hum-
boldt baseia-se primordialmente nas formulações de Goethe e de
Schelling, que são assimiladas sem uma discussão explícita, pois
não são tomadas diretamente e sim embutidas como fundamen-
tos na sua proposta de Geografia. Esta, talvez, seja uma via para
a compreensão do dilema da Geografia tradicional: tentar justi-
ficar e operacionalizar com um instrumental positivista uma pro-
posta assentada num fundamento não positivista {pelo contrário,
informada pela teoria do conhecimento que, ao contrário do
positivismo. valoriza bastante o papel da subjetividade no pro-
cesso cognitivo).
Finalizando, resta apenas ressaltar que Humboldt. apesar de
sua influência significativa na Geografia posterior. não deixa dis-
cípulos diretos. isto é, não funda uma "escola'' dessa disciplina.
A filiação a seu pensamento se deu de forma difusa. Alguns de
seus mais significativos seguidoreo; (pensa·se aqui em Vida! de
LaBiache, Hettner e Hartshorne) escreveram muitas décadas
133
132
Capítulo 3

A Geografia Comparada de Ritter

Como foi mencionado no início do capítulo anterior, Carl Rit-


ter divide com Humboldt o papel pioneiro no processo de siste-
matização da Geografia. Apenas para reforçar aquilo que foi defi-
nido como um ponto de unanimidade na historiografia do pensa-
mento geográfico, pode-se apelar para a seguinte afirmação de
Dresch: "O aparecimento da Geografia como ciência moderna"
data do século XIX, mais da segunda metade do que da primeira.
Por isso mesmo, Humboldt e Ritter são considerados seus funda-
dores. O primeiro lançou as bases da Geografia Física e o se-
gundo, historiador e filósofo, ainda que de estatura científica me-
nor, exerceu influência bem mais profunda". Nessa afirmação já
transpareceo elemento que djvide as opiniões dos comentaristas
da história da Geografia: o peso relativo dado a cada um dos dois
precursores no desdobramento posterior dessa disciplina. Dresch
destaca a figura de Ritter, em detrimento da de Humboldt. Tal
também é a posição de Clava!, que argumenta haver este autor
formulado ''a historicidade dos seres geográficos ( ... ) a ele cabe o
mérito de haver caracterizado a ciência geográfica como campo
de análises e de sínteses profundas"; num outro livro, expres-
sando-se de forma ainda mais explícita. diz: "A Geografia Clás-
sica adere à postura de Ritter. Apesar das aparências, deve muito
pouco a Humboldt". Outro comentarista que concorda com esta
posição é Penck; segundo Sodré, "Penck definiu Ritter como
aquele que havia dado à Geografia seu aspecto sistemático".' En-
fim, os exemplos daqueles que priorizam a influência ritteriana
poderiam suceder-se. Aqui cabe reforçar sua presença marcante
na sistematização geográfica.

I Dresch, J.- Ob cn. , p. 7; Clava!. P. e Nardy, J.-P.- Ob. cit., p. 54:


Clava!, P.- Evo/ución de la geografia humana , ob. cit .. p 12 e Sodré, N. W.-
Ob. cit.. p 35

135
Em termos de influências diretas na Geografia posterior, a humboldtiana. E. ainda em termo~ comparativos, a obra ritte-
obra de Ritter apresenta talvez um peso mais importante que a de riana. apesar de igualmente extensa é. sem dúvida, menos diver-
Humboldt. Toda a investigação geográfica que assenta seu foco sificada que a de Humboldt, o que também facilita sua interpre-
essencial de interesse na relação homem-natureza reconhece-o tação.
como um parâmetro, um inspirador, ou mesmo o formulador ori- Se. do que foi dito. pode-se depreender que a avaliação da
ginal. Assim, na análise de F. Ratzel, por exemplo, é Ritter que Geografia de Ritter é. aparentemente, mais fácil de ser realizada
vai figurar como o pioneiro da sistematização. Diz ele: "A Geo- do que a efetuada sobre Humboldt. há, entretanto, um fator que
grafia. principalmente depois de sua renovação, efetuada por torna esta empresa muito mais difícil. Trata-se do acesso à pro-
obra de Carl Ritter. abraçou com grande amor o anttgo problema dução ritteriana. que se revelou extremamente difícil. A única
filosófico das relações recíprocas existentes entre a natureza e a tradução encontrada em língua latina das obras de Ritter foi a
humanidade". Assinale-se que apenas por intermédio de Ratzel a coletânea de seus artigos metodológicos, organizada por G. Ni-
difusão das idéias ritterianasjá foi bastante ampla, à medida que colas-Obadia.J As demais traduções de sua obra são todas do sé-
este autor inaugura o principal debate de toda a Geografia tradi- culo passado (a inglesa, de W. Gage. de 1861-5. é considerada
cional. Entretanto, a influência ritteriana não se limita a essa via. não confiável por Hartshorne). e não foram encontradas. Mesmo
Segundo Claval. toda a Geografia russa articula-se a partir de a bibliografia que comenta a produção ritteriana é quase toda em
suas propostas, através de seu aluno Semenov Tyan-Shanskiy. língua alemã (os artigos em outros idiomas não atingem uma de-
Também Elisée Reclus foi aluno de Ritter, tendo traduzido al- zena). Enfim, foi este um obstáculo real ao aprofundamento da
guns de seus artigos para o francês, o que revelaria outra linha de análise empreendida.
influência. A tradução de suas obras para o inglês, ainda em mea- Tal obstáculo é duplicado pelas contradiçõe~ internas da obra
dos do século XIX, revela o alcance de suas formulações. Final- ritteriana, apontadas. entre outros. por fatham: "É difícil fazer
mente, no plano do pensamento alemão, são as propostas ritte- uma clara exposição do contato de Rittcr com a Geografia. em
rianas que alimentam o debate metodológico da Geografia no de- virtude de sua volumosa obra carecer, muitas vezes, de clareza e
correr do século passado, mesmo que por uma via refutativa (que, pre'cisão de expres:-ão. Os seus primeiros trabalhos regi~tram po-
sem dúvida, assimila boa parte das proposições), como nos escri- ~ição inequívoca. mas à medida que suas idéias foram se desen-
tos de O. Peschel. 2 volvendo, a pureza básica dos princípios tornou-se nebulosa, os
Desse modo. não há como negar o papel pioneiro de Ritter na conceitos metodológicos se complicaram e. por vezes. ficaram até
sistematização da Geografia, seja isoladamente (com uma signi- em desacordo com as experiências adotadas no Geografia Com-
ficância ímpar), seja ao lado de Humboldt, como um baluarte na parada ( .. ) É agora opinião unânime que a posição de Ritter não
evolução desta disciplina. E aqui já se pode apontar um ponto de pode ser definida por intermédio da consulta a qualquer trabalho
diferenciação entre os dois autores: o nome de Ritter, ao centrá- I de metodologia. nem por me10 de seus trabalhos conjuntos sobre
rio do de Humboldt, vincula-se pura e exclusivamente ao pensa- esse assunto, porém, tão-somente. pelo levantamento integral de
mento geográfico; toda a sua produção intelectual está voltada sua obra. Tal opinião parece bem fundamentada, tendo em vista
para este campo do conhecimento. Ainda no plano das diferenças o fato de que as idéias de Ritter se mantinham em contínua evo-
em relação a Humboldt, pode-se assinalar o fato de Ritter dedi- lução, e tudo indica que ele próprio jamais comiderou terem as
car-se explicitamente à ordenação da Geografia, usando esse ró- mesmas recebido a sua forma final". 4 Assim, o risco da interpre-
tulo com realce em todas as suas obras. Seu trabalho tem, assim . tação que ~e rú exposta é bastante alto. Nossa análise restringir-
um conteúdo normativo claro e as~umido, o que restringe o nível se-á a esses estudos metodológicos: sua limitação é a de possível-
de rolêrnicas na aval iação de sua produção, em comparação à
J Ritte r, C. -lnt roduction a la géographicgénéralecomparée. lntroduction
2 Ratzel, F. - Ob. cit.. p. 13 e Claval. P. - Evoluc•ón de la geografia et notes de G Nicolas-Obadia. Annales Lmératres de l'univers tté de Besançon.
l~~tmana. oh. C!l.. p. 35. nota 69 Sobre a< formulações de O. Pese hei e sua relação Caluen dP Géograplue de Bes<m{'on. 22, Le~ Belles Lcttres. Pans. 1974
com Hitter. ver Mehedmli. S. - Ob. l'lt. 4 ratham , G.- Ob. cit . p. 20ó. '

136 137
mente apreender apenas uma faceta da obra desse pensador; o por terras estrangeiras assim despertado era ainda mais aguçado
contraponto de sua produção empírica não será feilo. Por essa ( ... ) pelo desenho de mapas. Um ensinamento dessa ordem era
ra1ão, não poderá colocar juízos tão detalhados e categóricos, quase o ideal para um geógrafo". Essa concepção de ensino teve
como os referentes à produção de Humboldt. De todo modo. feita profunda influência no pensamento ritteriano. acentuada por
essa ressalva, pode-se partir para a interpretação, entendendo-a suas relações posteriores com Pestalozzi. Em Schnepfenthal, es-
como exploratória. tuda com C. G. Sazmann e J. C. F. Gutsmuths. O primeiro
inicia-o nos conhecimentos de Botânica e Mineralogia. O se-
gundo, pedagogo, identifica e estimula seu interesse precoce pela
DADOS BIOGRÁFICOS E BIBLIOGRÁFICOS DE RITTER
Geografia, fato atestado em suas anotações; diz Gutsmuths. em
1787: "Carl está no bom càminho para ser um dia professor de
Geografia". e reafirma, dois anos depois: "A Geografia segue
Carl Ritter nasceu a 7 de agosto de 1779, em Quedlingub, na Sa- sendo sua matéria preferida e, à medida que podemos julgar, ele
xônia, sendo, assim, conterrâneo e quase contemporâneo de será capaz um dia de fazer muitas coisas nesse domínio". Assim.
Humboldt. Porém, ao contrário deste, sua origem de classe não a formação inicial de Ritter, ao contrário da de Humboldt, já foi
era a aristocracia; seu pai, Friedrich Wilhelm Ritter. pertencia a orientada no sentido da disciplina à qual seu nome seria vincu-
uma família burguesa de funcionários e intelectuais.s Sua mãe, lado. Ele tinha plena consciência do peso desses ensinamentos em
Elisabeth Dorothea, era filha de um tecelão. Apesar dessa origem seu trabalho posterior, tanto que, numa passagem , discutindo o
social, como será visto. Ritter aproxima-se, assume e trabalha uso da Cartografia pela Geografia Física, elogia seu antigo pro-
com a classe aristocrata, tornando-se defensor do regime monár- fessor, dizendo: "Foi Gutsmuths que tão bem colocou sobre a
quico e ascendendo à corte prussiana. Em 1784, seu pai falece. natureza das cartas geográficas e dos conhecimentos que sua aná-
e quatro anos depois sua mãe contrai matrimônio com o pastor lise pode nos propor em particular".
Heirich Zerrenner, constituindo família bastante numerosa (nove Em 1796, ingressa na Universidade de H alie, onde estuda Mo-
filhos). O peso do ambiente familiar na formação de Ritter pode ral, Física, Química, Estatística e História. Seus estudos são pa-
ser avaliado pela profunda influência religiosa em seu pensa- ' gos pelo banqueiro Hollweg mediante um contrato, para que pos-
mento. teriormente se torne preceptor de seus filhos. Em Halle, Ritter
assiste a cursos de literatura grega e história romana com F. A.
A formação escolar de Ritter inicia-se no colégio de Schnep-
fenthal, localizado na extremidade da floresta de Thuringe, nos Wolf, um estudioso da obra de Platão (considerado introdutor do
arredores de Gotha, onde ingressa como bolsista em 1787. Essa neoplatonismo na Alemanha), que exerce profunda influência
escola tinha uma proposta de ensino baseada nos princípios de- sobre seu pensamento. É através de Wolf que Ritter toma contato
fendidos por J. J. Rousseau e pelo pedagogo suíço H. Pestalozzi. com os autores clássicos que, como será visto. influenciam sobre-
Tal proposta visava desenvolver o interesse do aluno pelo estudo maneira suas concepções. Em 1798 Ritter. então com dezenove
anos, inicia seu trabalho de preceptor da família Bethmann-Holl-
da natureza, treinando-lhe a observação através de excursões pelo
campo. Sobre ela diz Tatham: "Insistia-se , também, sobre as re- weg, poderoso$ banqueiros de Franckfurte-Sobre-o-Meno. em-
lações e~paciais. Os estudantes aprendiam a observar a relação prego no qual permanecerá por vinte anos. É nessa condição que
prepara sua primeira obra. Europa, Quadros Geográficos. Histó·
das coisas com a vizinhança imediata: a escola, depois o pátio da
e~cola. em seguida a região do lar, os limites da área iam-se gra-
ricos e Estatíslicos: o primeiro volume vem a público em 1804 e o
dativamente expandindo até abarcar o mundo inteiro. O interesse segundo. em 1807. No ano anterior a este último publica também
uma série de seis cartas da Europa, acompanhadas de um texto
de metodologia. Todos estes trabalhos são muito bem acolhidos
S C! Nicolas.Obadia. G - Biographie de Carl Ritter. em Ritter. C.- Ob. pela crítica. sendo iniciada sua tradução para o francês por C.
ciL C I:wal também reafirma a origem "modesta de Ritter" (ver E1•ohtctón de la Malte-Brun. Durante esse período assiste a cur~os de Anatomia e
}ii'Oitfll/ía 11111/IUIIU. ob Cll. p ..D) Fisiologia Comparada na Universidade de Gotinga . com J. F.

138 139
Blumenbach, travando aí contato com as teorias de Lineu. Buf- trava contato pessoal, pela primeira vez, com Humboldt. 6 Nesse
fon e Cuvier. Estas teorias forneceram o substrato essencial do- período estuda particularmente a filosofia grega, lendo com afin-
método geográfico formulado por Ritter. Em Gotinga, onde tam· co as obras de Sócrates e Platão. No ano seguinte, viaja pela Ho-
bém lecionava nessa época J. G. Forster, estabelece uma pro- landa. e. nos seguintes, pela Suíça e Itália. Em 1812 assiste. em
funda relação com o botânico Hoffmann. Deve-se relembrar nesse Genebra. a um curso sobre história e literatura dos povos medi-
ponto que, cerca de vinte anos antes, Humboldt também freqüen- terrâneos com Sismondi, e de Física e Química com Pictet (nova-
tou esta universidade, relacionando-se bastante com, pelo menos , mente o encontro com um companheiro de Humboldt). Nesse
dois dos autores mencionados: Blumenbach e Forster. Tal fato já mesmo ano é nomeado professor na Universidade de Gotinga ,
aponta elementos de convergência na formação dos pioneiros sis- onde ministra cursos de Botâmca, Mineralogia e Geognosia.
tematizadores da Geografia.
Aproveita esse período para elaborar o material da Geografia.
Em 1807, Ritter viaja para a Suíça. onde trava contato direto Comparada. passando boa parte do tempo na biblioteca da uni-
com H. Pestalozzi no Instituto de Yverdon. Para todos os comen- versidade. Cabe assinalar, como faz Clava!, que a observação em-
taristas, a influência desse autor é central no pensamento ritte- pírica pouco influi na elaboração teórica de Ritter. Diz. esse au-
riano. Para Pesta lozzi, o concreto é a base de todo o conheci- tor: "Sem dúvida. e diferente de Humboldt. as viagens e estudos
mento e, assim, o aprendizado deve buscar seu material no pró- de primeira mão não foram a origem do importante lugar que
prio meio que envolve o aluno; dessa forma, a contemplação e a Ritter ocupa na história das idéias geográficas. Ele nunca utilízou
representação da paisagem seriam os procedimentos fundamen- suas viagens de maneira direta nos cursos que ministrou. Inte-
tais do processo pedagógico. Uma tal proposta estimula bastante ressou-se essencialmente pela Geografia do Oriente Médio, da
os temas próprios ã Geografia, sejam as excursões e as observa- Ásia e da Ãfric!'l. por onde não havia viajado. O que conta de suas
ções de campo, seja o uso de mapas e outras representações grá- viagens em sua correspondência são itinerános bastante áridos ,
ficas. Estas idéias causam uma influência profunda no pensa- nos quais o país nunca vive nem a paisagem se anima. Foram
mento de Ritter; influência consciente e assumida, conforme ex- comparadas duas cartas quase contemporâneas que narram uma
presa Vulliemin: "É a Pestalozzi que Ritter vai remontar a im- viagem ao vale do Ádige, uma de Goethe e outra de Ritter. Quem
pulsão primeira de seu espírito e a principal parte daquilo que há indiscutivelmente tem uma visão geográfica é Goethe. Ritter não
de melhor em sua obra". Quarenta anos depois de sua estada em parece interessar-se pela paisagem ·•. 7 Assim, sua atividade teó-
Yverdon, nós o vemos declarar com felicidade: " 'Pestalozz.i' - rica constitui-se fundamentalmente numa ordenação do material
diz ele - 'não sabia mais de Geografia do que uma criança sabe existente. uma recopilação dos levantamentos dentro de uma se-
na escola primária; não foi com ele que aprendi nada dessa ciên- qüência lógica, com os conceitos padronizados, aferindo os dados
cia; entretanto, foi escutando-o que senti surgir em mim o ins- e confrontando-os com as teorias sistemáticas. Sua atividade é,
tinto dos métodos naturais; foi ele quem me abriu a visão e que , desse modo. um trabalho de "gabinete". Será esse trabalho que
me definiu o que fazer'". Esta afirmação é reforçada quando se expressará na Geografia Comparada.
observa que o primeiro volume do Geografia Comparada foi dedi- Em 1815, a primeira versão dessa sua obra principal está
cado a Pestalozzi (conjuntamente com Gutsmuths). Ritter re- pronta. e Ritter se desloca para Berlim à procura de editor. O
toma a Yverdon em 1809 e 1813 e, em 1818, quando o instituto primeiro volume dessa edição original, contendo a introdução
passa por profunda crise, é-lhe oferecida sua direção, que, entre- teórico-metodológica, vem a público em 1817: o segundo sai no
tanto, recusa. Nestas estadas, mantém estreita relação com To-
bler. que é professor de Geografia em Yverdon e desenvolve um
método apoiado em informaçC.le!> sinóticas, que é assimilado por
~ Quanto a este p<lnto. há polêmica entre os comentaris ta\. N. W Sodré
Ritter. A influência de Pestaloz7i na obra ritteriana será reto-
e G Tatham colocam seu tngresso no Ginás1o de Franrkfune e.m 1819 (cf. Sodré.
mada ao se discutirem as bases filosóficas de seu pensamento.
N W. - Ob. cit.. p. 3.3 e Tatham , G - Ob. Clt .. p. 208). Sodré di1 que o en·
Ainda em 1807, retoma a Franckfurte, onde é nomeado pro- contro entre os dois autores ocorreu em 1828 (ob. cit.. p. 34).
fe~sor de Geografia e História do ginásio local. Ne~sa c1dade. 7 Cl3val. P - T:•·oluoón de la geog.-afíallllnwna . ob ci t , p. 34.

140 141
ano seguinte. BEm 1819, Ritter retorna ao ginásio de Franckfurte visto a seguir, é muito importante na evolução do pensamento
e. nesse mesmo ano, casa-se com Lili Kramer. Em 1820, a convite ritteriano. Em 1828, Ritter funda a revista Gesellschaft fur Erd·
Cle Guilherme Humboldt, torna-se professor da Escola MilHar de kunde, em cuja direção permanece até morrer.
Berlim e, logo após, da universidade dessa cidade prussiana. Na Nessa época, Carl Ritter já está consagrado academicamente,
Universidade de Berlim ele será o primeiro professor da recém- gozando de grande prestígio no ambiente intelectual europeu.
criada cátedra de Geografia, cargo que ficará vago por alguns Nesta condição é introduzido na corte prussiana. tornando-se
anos, após a sua morte. Ainda nesse ano publica um ensaio sobre mesmo um dos preceptores dos príncipes de Hohenzollern. De-
a Geografia de Heródoto. Em função de sua doc.ência na escola senvolve intensa amizade com o príncipe herdeiro, o futuro mo-
militar, onde ensina Geografia e Estatística, Ritter é obrigado a narca Frederico Guilherme IV da Prússia. Durante os anos suces-
inserir-se na discussão sobre o aspecto prático do saber geográ- sivos, Ritter dedica-se à redação da Gef:Jgrafia Comparada, a ex-
fico, que animava o debate da Geografia alemã de então. De um cursões ao campo e à docência. Os volumes de sua obra vêm a
lado posicionavam-se os que a propunham como ciência política público regularmente: em 1832 o segundo, em 33 o terceiro, em
de finalidades utilitárias, cuja unidade de estudo seria dada pelas 34 o quarto, até o oitavo em 1838 (os anteriores eram todos dedi-
divisões administrativas, de outro, a corrente que propunha a cados à Ásia, este inicia a análise do Oriente Médio); a partir daí,
Geografia como ciência pura e erudita, cuja unidade de estudo os volumes adquirem uma regularidade bienal no máximo, que se
seria dada dirêtamente pela realidade da natureza - as bacias mantém até o derradeiro, em 1859, ano do falecimento de Ritter.
hidrográficas. Nessa discussão, na .qual não assume posição, Além dessa obra, ele publica artigos teórico-metodológicos e es-
Ritter vai desenvolver suas concepções quanto ao papel da me- tudos regionais mais específicos (como, por e:/(emplo, um sobre a
dição na investigação geográfica. As posturas de Ritter quanto à colonização da Nova Zelândia). Em termos das viagens, seu raio
Geografia utilitária e a "Reine Geographie" serão retomadas de ação limita-se à Europa, onde excursiona seguidamente pela
noutro item.
França, Suíça, Itália, Holanda e pela própria Alemanha, visi-
Em 1822, é editado o primeiro volume da versão definitiva tando detalhadamente os Alpes e o vale do Reno. Finalmente,
do Geografia Geral Comparada, sua principal obra, na qual merece destaque sua atividade docente.
Ritter trabalhou até o fim de seus dias (o Yolume de número deze- O primeiro dado a se destacar na avaliação da atividade do-
nove foi editado em 1859, ano de seu falecimento). Este volume cente de Ritter é a amplitude de seu quadro de alunos, tanto no
contém a introdução teórica da edição anterior e é dedicado à que tange às nacionalidades, quanto no que toca aos posiciona-
análise da África. Essa obra obtém grande repercussão nos meios mentos políticos. Em ambos os casos, o que impera é uma enor-
acadêmicos europeus, sendo traduzida para o francês (1835), me diversidade. Logo ao iniciar seus cursos, em 1823-24, teve por
o inglês (1842) e para o russo (1859), ainda durante a vida de aluno Henri Druey, considerado o "pai da pátria" no Vaud (can-
Ritter. Este fato lhe acarreta grande prestígio universitário, tor- tão suíço de ascendência francesa).q Como já foi mencionado,
nando seus cursos bastante concorridos. Nesse mesmo ano de o explorador Tyan-Shanskiy assistiu aos seus cursos, sendo um
1822, Ritter é nomeado membro da Academia de Ciências da dos responsáveis pela difusão de suas idéias em seu país, a Rús-
Prússia e, três anos depois. chega ao ápice da carreira universi- sia . É interessante assinalar, com respeito a essa difusão, o fato
tária alemã, tornando-se professor titular (ordinário) da Univer- apontado por Clava!: "Ocorre que foi através dos geógrafos rus-
sidade de Berlim. Em 1827, estreita seu contato com Humboldt, sos que a lição de Humboldt e Ritter chegou até nós'' . Ainda ao
que havia fixado residência nesta cidade. Essa relação, como será nível da abrangência das nacionalidades. devem ser lembrados
seus discípulos. o inglês W. L. Gage (que traduziu suas obras na
8 Aqui também há polêm1ca. G. Tatham e N. W. Sodré indicam 1807 como Inglaterra) e Arnold Guyot, que se tornou proressor na Univer-
o ano da primeira edição dessa obra (ver Tatham. G. - Ob. cit., p. 208 e Sodré,
N. W. - Ob. cJt.. p . 33). Os dados citados apótam-se no mencionado trabalho de 9 Drucy fo1 um defensor do ideá rio l1beral e um político militante. Sobre ~ua
G Nicolas-Obadia. sem dúvida o mais minucioso, e que apresenta uma bibho- v1da , 'er Grand díct1nnnairp lllltl'l!rsal du X!Xbne. vol. VI. Laruu~~e. Paris, 1876.
graf,a exaust1va de Ritter (ver ob. cit . p 24J e ~eguinte!.) p. 1301.

142
143
sidade de Princeton. introduzindo as idéias ritterianas no:. Esta-
dos Unidos. Falando desses autores. Nicolas-Obadia argumenta lim, ficou vaga''. De todo modo, se de suas formulações não sai.
que foi através deles que "seu misticismo (de Ritter) e sua con- através de seus alunos diretos. uma linha de continuidade do pen-
cepção quase messiânica da história universal influenciaram con- samento geográfico, por outro lado o alcance de seus cursos (e.
sideravelmente os geógrafos anglo-saxões". portanto. de suas preocupações) abarca uma ampla gama de mte-
ressados. Nicolas-Obadia menciona o fato de Ritter ensinar pe-) /'
Ainda no plano da Geografia, outro autor fundamental que
rante platéias de trezentos a quatrocentos alunos, e que suas con-
assistiu a seus cursos foi o grande geógrafo francês Elisée Reclus.
ferênctas na Academia de Ciências também atraíam grande pú-
Este, apesar do posicionamento politico díspar do de Ritter (Re- blico.
clus era um anarquista militante, tendo sido membro da I Inter-
nacional; Ritter era um monarquista convicto, íntimo da aristo- Apenas para finalizar esse ponto, resta colocar o fato de que
cracia prussiana), assumiu muitas de suas formulações geográ- Ritter contou entre seus alunos, no semestre de verão de 1839,
ficas, tendo sido o tradutor para o francês de um dos principais com a presença de Karl Marx, na época estudante da Universi-
ensaios teóricos da obra ritteriana. Reclus é explicito em sua ava- dade de Berlim. Essa singular relação é comentada por A. Cornu,
liação da figura de seu professor: "Ele retirou a Geografia do um conceituado biógrafo de Marx. Diz ele: "Renovando o estudo
miserável caminho das nomenclaturas, nos fez estudar com espí- da Geografia. que vinha tendo, até então, caráter essencialmente
rito a história da Terra e dos astros, nos apresentou como dogma descritivo, K. Ritter, inspirando-se na filosofia de Schelling, con-
imutável a vida de nosso globo. Graças a ele, sabemos que os ~iderava as diferentes partes do mundo como organismos vivos
continentes, os planaltos, os rios são dispostos, não ao acaso, mas ( ... ) Ainda que sendo profundamente idealista pela sua concep-
em virtude de leis do movimento, leis eternas ( ... )"; em outra ção geral de mundo e de história, nas quais vta a expressão da
passagem, define-o como um homem "possuído pelo demônio da vontade ·divina, ele resgata de sua doutrina, pela correlação que
ciência ( ... ) dotado de uma audácia heróica·', ao levantar ques- estabelece entre a evolução humana e o meio natural, os linea-
tões talvez irrespondíveis. Vê-se que Reclus devota grande admi- mentos de uma concepção materialista de mundo: e podemos
ração ao trabalho de Ritter, apesar de, em suas palavras, "levan- pensar que seus cursos tiveram influência sobre K. Marx, no
tar ressalvas respeitosamente a algumas idéias místicas que não movimento que o levou do idealismo hegeliano ao materialismo
interferem na majestade do texto'' .10 Ê interessante apontar expli- histórico". 11 A afirmação de Cornu. fora do contexto, poderia
citamente esta posição aberta e justa de Reclus de não reduzir a dar margem a entender-se que este autor superdimensionaria a
produção ritteriana, por uma avaliação sectária no plano da polí- influência ritteriana sobre a formação de Marx, o que seria um
tica, à mera reprodução mecânica dos posicionamentos prático- grande equívoco. A biografia de Cornu cita também Ritter. por
políticos desse pensador, à medida que estes eram abertamente ~er um levantamento exau~tivo. uma obra em dois grossos volu-
antagônicos aos seus. Voltando ao eixo da discussão, cabe men- mes que examina detalhes da vida de Marx c Engels. A fonnu-
cionar que·a acolhida que as propostas geográficas de Ritter rece- lação sobre Ritter, apesar de enfática, é feita en passwll, sem
bem de seus alunos, até aqui apontados, não encontra paralelo uma tônica condusiva. Sem nenhuma dúvida . Cornu aponta a
nos de sua própria pátria. Os geógrafos principais da geração se- influência predominante de E. Gans entre os professores que
guinte. que freqüentaram seus cursos, entre eles O. Peschel e F. atuaram sobre a formação de Marx na Universidade de Berlim.
von Richthofen, não podem ser considerados seguidores ou discí- Também aponta a influência de Savigny. ressaltando o interesse
pulos de Rttter. Clava! enfatiza esse aspecto, afirmando: "O ver- explícito de Marx pelo estudo do Direito. Um exame preliminar
dadeiramente revelador é que, depois de sua morte, a cátedra de das obras de Marx não revelou alusões a Ritter e suas idéias (as
Geografia. que havia sido criada para ele na Universidade de Ber- próprias alusões à Geografia em geral são bastante escassas ne-
las). Apenas na tese de doutoramento de Marx, Dtferença Emre a
!OVer Reclus. E - Introduction a la traduction de "La configurauon dés
cominent~ sur la surfacc du globe et de leurs fonct1on~ dans l'hts!otre' '. em
li Curnu. {\ - K '14ar.t <' I F l:'nge/s. Leu r •·re I!I leu r Vl!ltl'r<' 'oi. I PUF.
Riner. C - Ob. cit.. pp. 221 e 222.
P.tris, I <ISS p. 1.1J.

144
145
Fílosojiu du Natureza Segundo Demócrito e Segundo Epicuro, há
menção a um certo Ritter (citado no original sem o prenome), mada ao se discutirem as bases filosóficas do pensamento ritte
contra o qual ele levanta crítica no que tange à interpretação do riano.
atom1smo. Entretanto, a obra mencionada não consta da biblio- A partir dessa época, década de trinta do século passado, a
grafia de Carl Ritter. o que leva a crer tratar-se de outro pensa- biografia de Ritter não conhece grandes alterações. Leciona na
dor.12 Assim, a avaliação de M. Quaini dessa relação é correta. Universidade, realiza conferências na Academia, vai preparando
Di'l ele : "me~mo sendo certo que Marx seguiu. em 1838. o curso os volumes da Geografia Comparada, escreve prefácios a vários
de K. Ritter sobre Geografia Geral na Universidade de Berlim, trabalhos monográficos, edita alguns estudos mais específicos
a hipótese de A. Cornu não parece muito convincente, principal- (sobre a Índia em 1837-38, sobre a Nova Zelândia em 1842, sobre
mente a respeito do papel atribuído à geografia de Ritter na ela- a Palestina em 1850 e 1852). Em 1840, perde a esposa, ficando
boração do materialismo histórico. Não se pode, porém, de todo sozinho por não ter filhos. Nesse período sua relação com Hum-
negar que Marx, mesmo e talvez principalmente através de He- boldt se estreita. As revoluções de 1848 deixam-no profunda-
gel, tenha tido em mente os princípios geográficos ritterianos e mente abalado, assim como a renúncia, por perturbação mental.
que com os produtos da escola geográfica alemã se tenha pautado de seu amigo o monarca Frederico Guilherme IV. Em 1859, al-
também em sua maturidade" .13 guns meses depois de Humboldt, Ritter falece em Berlim_
A amplitude do trabalho didático de Ritter é bem evidenciada A obra ritteriana não possui, de modo nenhum, a variedade
pela constatação de Nicolas-Obadia: ''As três ideologias saídas do temática e a amplitude da de Humboldt. Como foi dito, toda a
século XIX - o imperialismo, o comunismo e o anarquismo - sua produção enquadra-se explicitamente no âmbito da Geogra-
foram todas influenciadas (através de seus alunos Frederico Gui- fia. Nessa disciplina é principalmente o trabalho de ordenamento
lherme IV. K. Marx e Elisée Reclus. respectivamente) em dife- das informações e as colocações normativas de método que so-
rentes graus por Carl Ritter. que ensina na Universidade de Ber- bressaem. Sua produção, como bem define Nicolas-Obadia, é
lim por cerca de quarenta anos". Ê interessante assimilar a pre- fundamentalmente de formação da axiomática geográfica. Sua
sença nessa instituição, na mesma época, de um dos maiores no- principal obra foi, sem dúVIda, a Geografia Geral Comparada,
mes do pensamento alemão: G . W. F. Hegel. O filósofo havia que traz por subtítulo "A ciência da Terra em suas relações com a
começado a lecionar em Berlim dois anos antes da entrada de natureza e a história do homem ou Geografia Geral Comparada
Ritter. em 1818, ocupando a cátedra que havia pertencido a como base para os estudos e o ensino das ciências físicas e histó-
Fichte. Ê provável que tenham ocorrido contatos diretos entre os ricas". Esta obra, como assinala Figueira, ficou inconclusa. D~
dois pensadores.. pois a presença hegeliana era por demais signi- todo modo, é na Geografia Comparada que estão contidas suas
ficativa. Sua~ concepções, tanto no que tocava à religião quanto à formulações essenciais, a explicitação prática de sua proposta
política, eram polêmicas e geravam posicionamentos díspares na metodológica, a exemplificação de suas colocações normativas.
~ociedade a lemã (com amplos reflexos no ambiente intelectual); Sua obra anterior mais substantiva, a já mencionada Europa.
por exemplo. a Academia de Ciências. da qual Ritter era mem- Quadros Geográji'cos, Hist6ricos e Estatísticos, apesar de apre-
bro. vedava suas portas à participação de Hegel. Por outro lado, sentar algumas inovações didáticas baseadas nas idéias de Pesta-
em 1829, este torna- ~e reitor da Universidade. falecendo dois lozzi, possui conteúdo claramente identificável com a proposta
anos depois. 14 As.sim. parece evidente que tenha havido contato em voga da Geografia Estatística. Assim, é, sem dúvida, na Geo·
entre Hegel e Ritter. A relação entre estes doi~ autores será reto- grafia Comparada que se podem encontrar a maturidade e a iden-
tidade inovadora da proposta ritteriana. Entre a redação das duas
obras passam cerca de quinze anos, dedicados fundamentalmente
12 Marx. K. - Dtfi?renuu t'lllre lu /ilnl!lfía d l! lu nuturaf,zu H'gwt Dc m<> ·
à elucidação conceitual, à reflexão teórico-metodológica.
, f'Ítv.\ scgu11 LiJI<'IIY•J. U n~>er>iclacl
Central de Vene7ucla. C'araca<., lq73. p. 209.
JJ Quaini. M - Marx1smo e g<'owafía oh cit . p. 14. A obra de Ritter que expressa o itinerário e os resultados fun-
14 Sobre a b1 ografia de Hegel. ver Serreau. R - 11<?)!•4 ·' elltt'gPiiantsmo .
damentais dessa empresa teórica é a Introdução à Geografia Ge-
e.d1tn n:JI Univcrsita ria ele Bueno' Ai res, 19M pp 7 e R. ral Comparada, coletânea de textos escritos em diferentes mo-
mentos. organizada pelo próprio autor. em 1852. Este·volume,
146
147
que tem por subtítulo "Ensaios sobre os fundamentos de uma rnento. Suas fontes filosóficas abarcam um leque variado de
Geografia Científica", reúne sete textos, a saber: 1. "Ensaio de orientações, o que propicia alguma polêmica entre os comenta-
Geografia Geral Comparada: Introdução'', um extrato do pri- ristas que discutem sua filiação. F. Schaefer aponta uma influên-
meiro volume da primeira edição da Geografia Comparada (edi- cia de Kant na obra ritteriana. M. Santos, baseando-se em Mehe-
tada em 1818), mantido também na segunda edição (1822) - dinti, aceita-a, priorizando. porém, nela o peso de Hegel. Mehe-
trata-se da introdução da referida obra; 2. "Generalidades sobre dinti, por sua vez, soma à influência kantiana o papel das colo-
as formas sólidas da crosta terrestre" - trata-se de outro extrato cações de Fichte. Já Quaini defende que foi Ritter quem influen-
da Geografia Comparada, este, constante apenas da segunda edi- ciou Hegel, e destaca nele a influência de Schelling. Esta filiação
ção, logo, escrito posteriormente ao primeiro; 3. "Discursos apre- também é defendida por R. Figueira e por Nicolas-Obadia, sendo
sentados à Academia Real de Ciências de Berlim colocando os que este último lembra as influências também de Wolf e de Des-
fundamentos da Geografia Científica" - são na verdade cinco cartes. P. Clava! e N. Werneck Sodré, entre outros, destacam a
discursos: o primeiro, pronunciado a 14 de dezembro de 1826, filiação ritteriana a Herder. Finalmente, G. Tatham aponta em
intitula-se "Da posição geográfica e da extensão dos continen- Ritter a múltipla influência de Fichte, Schelling, Hegel. Kant e
tes"; o segundo, pronunciado em 17 de janeiro de 1828, tem por Spinoza. 16 Por esta breve enumeração, já se pode ver quão com-
título "Considerações sobre o~ meios que servem a tornar sensí- plexo é o problema. Entretanto, como será demonstrado, há al-
veis as relações espaciais no caso da representação gráfica pela gumas influências mais visíveis e uma certa unidade entre os au-
forma e pelo número"; o terceiro, pronunciado em 10 de janeiro tores arrolados.
de 1833, é o famoso "Do fator histórico na Geografia enquanto Um dos autores que, sem dúvida, se relacionaram com Ritter
ciência"; o quarto, pronunciado a 14 de abril de 1836, intitula-se foi o filósofo G. W. F. Hegel. Como foi visto, os dois pensadores
"A terra. fator de unidade entre a natureza e a história com os são contemporâneos (Hegel nasce em 1770 e morre em 1831) e
produtos dos três reinos da natureza ou: de uma ciência dos pro- mais. lecionam na mesma época na Universidade de Berlim. onde
dutos naturais na Geografia''; o último, pronunciado em 1? de o peso (foi reitor) e o papel da figura hegeliana eram por demais
abril de 1850. denomina-se "Da estrutura do espaço na crosta significativos para serem ignorados. Entretanto, os escritos de
exterior do globo terrestre e de seu papel no curso da história". 15 Ritter analisados não apresentam nenhuma menção ao nome de
Vê-se que os ensaios abarcam um período de mais de trinta anos. Hegel. Deve-se lembrar que estes escritos são os explicitamente
expressando, assim. a evolução das concepções teórico-metodo- metodológicos, e neles aparecem inúmeras menções a outros filó-
lógicas de Ritter. Foi na tradução francesa (de Nicolas-Obadia) sofos como Leibniz, Schelling e Bacon. Assim, pode-se pensar
des!>e volume que se baseou a análise do pensamento ritteriano. que inexistem alusões explícitas a Hegel nas formulações ritteria-
nas. Na verdade, é o inverso que ocorre. pois Hegel, nas Lições
sobre a Filosofia da Hist6ria Universal. diz, explicitamente. ao
AS BASES FILOSOFICAS DO PENSAMENTO DI:: RITTER comparar os continentes africano, asiático e europeu: "Ritter é
quem melhor compreendeu e expressou as diferenças entre estas
três partes. Nele encontramos sugestões engenhosas referentes ao
Os fundamentos filosóficos contidos nas formulações de Ritter nexo da evolução histórica posterior". 17
advêm de influências e filiações variadas. Assim corno em Hum-
boldt, é difícil enquadrá-lo em uma única tradição de pensa-
lb Ver S~haelfer, F. - Ob. cit., p . 19: Santos, M . - Ob. ctl .. p . 29.
Mehcdinti , S - Ob. c·tt. p. 8, Quaint. M . - Marxwno P geografia. ob. cu..
IS l:.ste texto é denominado em outra pa~,agem , pelo próprio Nicolas-Oba- p. 33: Figueira, R . - Ob. cit .. p. 23; Nicolas·Obadia. G - Ob. cit., p. 7.
dta cuj a traduc,;ão utilinmos. de "Da organi1açào do espaço na superfície do Clava!. P - Fvolunon de la xeo~:rafíu hunwnu, oh cit.. p. 34: Sodré. N. W,
gloro e seu papel no curso da história" Eltsée Reclu;, tradu2 seu título como "Da - Ob. ctt.. p 29 e T.tth.un , G.- Oh. cit .. pp 211 e 215
configuração dos continente~ na ~uperfície do globo c de suas funções na histó- 17 Hegel, G . W. F. - Lt!<Ttunes sobre la [ilos,Jjia dt• la hi.Huri,;, um•·<'rlul.
ria " . A tr~dução de Reclus é c .. nsiderada pouco fidedigna por Nicola~-Obad1a Revislio~ de Occtdentc. Madrt. 1974, p 179

148
149
M. Quaini estaria correto quando, apoiando-se em estudo de concepção do desenvolvimento era ainda talveL demasiado natu-
P. Rossi, afirma: "Hegel tirou da Geografia Comparuda não SO· ralista para in'>pirar a concepção hegeliana ( ... ) No comec;o. para
mente a maior parte do próprio material de informação, mas descrever a vida do espírito e particularmente a vida dos povos na
também os mesmos princípios interpretativos dos quais se serviu história, Hegel se servirá de metáforas orgânicas. mas progressi-
para determinação da estrutura física dos continentes e das possi- vamente as irá substituindo por uma dialética que melhor se
bilidades que eles oferecem ao desenvolvimento histórico da hu- adapta ao devi r espiritual " . Outro comentarista de Hegel. R
manidade. Estes princípios são, em poucas palavras. a conside- Serreau. enfatiza mais esta influência. Diz ele: "Para completar
ração dos continentes como indivíduos geográficos. a importância este estudo. seria necessário assinalar a influência que exerceram
fundamental da relação entre formas sólidas e formas fluidas, sobre Hegel todos os escritores que esboçaram filosofias da hh-
a relevância histórico-geográfica da relação entre oriente e oci- tória. em especial Lessing e Herdcr". Por outro lado, Lukács
dente, a correlação inversa entre grau de dependência da natu- minimiza tal filiação: "O jovem Hegel não se apóia em nenhum
reza e grau de civilização" . 18 Desse modo, a "presença" das for- momento concreto e demonstrável nas investigações históricas de
mulações ritterianas em Hegel é explícita. Porém, isto não im- Herder, e nem sequer contamos com documentos para provar que
plica a impossibilidade de existência de uma influência inversa, haja sido impressionado de um modo especial por Herder. Mas as
não explicitada. Essa não explicitação pode dever-se talvez a di- idéias de Herder estavam no ar na Alemanha da época. e seria.
vergências de fundo político. Ritter era pietista e profundo monar- portanto, um trabalho filosófico ocioso bm.car paralelos entre
quista, Hegel inclinava-se a favor dos racionalistas e defendia Herder e o jovem Hegel". 2o
posturas que desagradavam aos círculos mais conservadores (como Assim, para Lukács não se trata de uma linhagem direta. mas
o da Academia, da qual Ritter era um dos notáveis).t 9 Todavia, também não se vetam inHuências mediatizadas. No que toca a
uma avaliação preliminar mostra grande correspondência entre Ritter, tal influência, apesar de também não explicitada. é por
as concepções de "totalidade", "unidade''. "particularidade''. demais evidente. Herder vê a providência dando unidade à histó-
"espírito dos povos'' e dá "terra como teatro da história", exis- ria, vê a nahtreza e a história como "revelações de Deus". logo,
tentes em Hegel e em Ritter. Entretanto, existe toda uma série de dotadas de finalidade. Tais traços, como será visto adiante. são
outras concepções onde há discordância acentuada, como, por centrais pa ra a proposta de Ritter. Herder também elabora uma
exemplo, nas concepções de "finalidade" e de "determinação". noção de organismo articulada com a idéia de particularidade.
Poder-se-ia indagar até que ponto estas concepções concordantes, que reaparecerá com vigor no pensamento ritteriano. Além di~so.
ante.;; de serem uma interinfluência, não seriam o tributo pago a possui uma preocupação pedagógtca. defende a individualidade
uma matriz comum na obra de Herder. nacional germânica (contra o cosmopolitismo da Ilustração fran -
A influência de Herder sobre Hegel é apontada por J. Hyppo- ce'>a) e aceita a influência do meio sobre o "gênio nacional''. 21
lite: "Realmente, é em Herder que o gênio primitivo dos povos é Por todas esta~ posições, que são encontráveis em pontos nodais
considerado pela primeira vez com uma consciência histórica ( ... ) da proposta de Ritter. não hú como desconsiderar o peso de Hcr·
Herder procurava por toda parte na história a energia viva, não a der na formação ritteriana. Princ:ipalmente o tema central em ~ua
forma invariável mas o devir. o sinal da força atuante. Mas a sua
20 Hy ppulite. J. - lurrodur.i" à ji/rm lji'a da hi\l,)n u dr• Ilexet. C11 il il a,· 5n
18 Quau1i, M - Marxtsmo "g<'of:rajw. ob. c11. p . 30. citando Ross•. P. Rra~ 1 lt:na. R io d e Jancir<>. !9 '1 p !() Sc rr c;•u . R - O b. cil. p . 24 t! Lukrtt·\. G.
- St&rw umversale e geografiu 111 Hegel. Estt' autor argt•menta que as questõe~ - I.IJO>'CII HI"RI!i.i lo<pruhh·ma• d• · " ' ç,âc>dw! <CifiÍialllta. Grijalhn . B.ucc lnna
geográfic as não estão prescnles na Enctclupedia de Hegel. escrita antes da publi· 19' 2 p. 1CJ.
cação da Gt?o~:rafia Comparada de Rmer ( 1b1dem, p . 29). 21 .'>obrt H c rdn. •t·r Put'Ciart'lh . F.. - H c rder 1 cl nacim k nlu dt· la <•>ri·
l9 Sobre o p1etismn c n racionalismo (polêmica religiosa do final do século CI CI\(l<llll~t(1!'1Ca. em Hcrd c r , J. G. - Fiil>lojíu d e lu "''''mo pwa la edu,·ac,,;, ele
XVIII 11.1 Ale manha) e a po,tura de Hegel , ver Serreau. R. - Ob. c tt. , p. 45 la httlnanidad. Edilonal Nol'a 1960. pnnc1p::tlmen te pp. 12 a 20. Ver também
Tath::tm observa uma relação entre Kant c Ritte r pelo p1eti~mo (ver ob . ci t . RnnL·he M - 111lrorlucliOI1 em Herd cr. J G. - ( 'n e {/U/fl' r'"''" " f'ltit• de• l/ti\·
p . 2 ll) . u ,irr·prJttr (·ontn /Jt,. ·, u /'n /u, ·atltJIJ dei lltiiii UIIÍir : , Auhic."" r. l'an \. , ,d ,

150 ! SI
filosofia do conhecimento, da relação entre razão e revelação, é cia que na França as contradições inerentes a toda ideologia da
totalmente de inspiração herderiana. Assim, pode-se afirmar ser 3 Ilustração" .23 A solução de Herder passa por um finalismo de
esta uma das filiações preponderantes do fundamento filosófico fundo teológico (que concilia com a religião, ao contrário do Ilu-
de Ritter. Tal avaliação é defendida enfaticamente por Ratzel.2 2 minismo francês). por uma valorização da intuição no processo
A definição dessa influência destacada faz com que a figura de cognitivo (em detrimento do racionalismo extremo de seu congê-
Herder mereça algumas palavras. nere) que abre para toda a produção romântica e, finalmente. por
J. G. Herder(1744-1803), filósofo e teólogo prussiano, foi jun- um nacionalismo que busca uma identidade primitiva (dado que
tamente com Lessing um dos expoentes do movimento pré-ro- evoca o passado e o particularismo, e não a universidade cosmo-
mântico da Alemanha. Foi aluno de Kant em Konigsberg, e um polita e o elogio otimista do futuro). Porém, Herder insere esta
dos fundadores do grupo "Sturm und Drang", do qual partici- concepção num ideãrio político progressista. Como foi visto. nes-
param, entre outros, Goethe e Schiller. Numa posição unânime se contexto a idéia da unidade nacional se colocava como porta-
entre os comentaristas, este autor é posto como um dos repre- voz do progresso, na superação dos resquícios feudais. Assim.
sentantes do pensamento ilustrado na Alemanha. D. Moreira foi um radical defensor da Revolução Francesa e de todo o ideário
Leite, por exemplo, discutindo a gênese da idéia de caráter nacio- liberal.~q É interessante as!)inalar que essa ambigüidade propicia
nal, diz: "Herder é um legítimo herdeiro da Ilustração, pois não que as idéias de Herder alimentem as diferenciadas propostas
defende o nacionalismo exclusivo que se manifestará nos fins do posteriores da evolução alemã. entre elas a de Hegel e a de Ritter.
século XIX". Lukács também defende tal designação, ao dizer: O pensamento de Ritter, que será exposto de forma mais mi-
"Herder foi o primeiro ilustrado alemão que colocou o problema nuciosa nos itens seguintes. revela em sua base as concepções de
da prática social coletiva, ainda que sem ser capaz de fixar con- Herder. Em primeiro lugar, a possibilidade de realizar um estudo
ceitualmente, de modo claro, a natureza do sujeito que atua, nem racional do mundo sem romper com o plano divino; em segundo
as leis reais de sua atuação". Entretanto, como bem aponta este lugar. na visão do todo como un1 orgamsmo particular dotado de
autor, há que se pensar na peculiaridade do pensamento ilus- um sentido dado pela finalidade divina; em terceiro lugar. pela
trado numa Alemanha ainda "feudalizada". Diz ele: "Não se projeção desta visão ao nível das nacionalidades e da busca da
pode esquecer 4ue, ainda que a Ilustração alemã não tenha nunca identidade nacional; em quarto lugar, na aceitação do papel das
alcançado, na luta anti-religiosa, a resolução materialista e atéia, condições ambientais na formação causal de tais individuali-
que se encontra em Diderot, Holbach e Helvetius, chegou, na dades. Poder-se-ia mesmo argumentar que a produção ritteriana
verdade, às vezes (Lessing, Herder), mais longe que estes pensa- é um projeto de realização empírica de algumas concepções de
dores franceses na compreensão histórica da origem das religiões, Herder. tal a correspondência de propósitos encontrada. Entre-
das raízes sociais da evolução de suas formas". Em outra obra, · tanto, no plano do posicionamento social. Ritter vai afastar-se do
Lukács completa: "Esta consciente intensificação do historicismo, ideário liberal defendido por Herder. Seu nacionalismo. como
que recebe sua primeira expressão teórica nos escritos de Herder, será visto . .Já envereda pela via autontária. que realizaria de fato a
tem suas raízes na muito particular situação da Alemanha, na unificação alemã no último lustro do século XIX. De qualquer
discrepância existente entre o atraso político-econômico deste país modo, a presença herderiana é bastante significatJva em suas for-
e a ideologia dos ilustrados alemães que, apoiados em seus pre- mulaçôec; .
cursores ingleses e franceses, levaram a uma altura maior as Outro autor que aparece com destaque nas formulações de
idéias iluministas. Devido a isso, ressaltaram com maior evidên- Ritter é Schelling. filósofo que, como visto, também possui desta-
cada influência sobre os escritos de Humboldt. Entre os comcn-
22 Segundo a avaliação de Rat1el. derivam de Herder as idéias da Terra
como teatro da h1stóna 'humana. da evolução como transformação crescente do 23 Leite. O. M. - O curut.-r IWtionc~l braHirlfv. Pioneira, São Paulo. !969,
meio, e da civilização como ma10r relacionamento do homem com a natureza, p 30; Lukáes. G. - E/ jm ·en Hegel, ob Clt. . pp. 39 e 42 e La novela hist6nca,
todas contidas também na proposta de Ritter (Ratzel, F. - Geografia deli'Uomo. oh c it. p. 18
ob. cit.. pp. 22/3.)
24 lde nt - F.!Jovenlle~:el. ob cit.. p. 4.1 c Rouche M. - Oh . ci l ..

152
153
taristas, é Nicolas-Obadia quem defende de forma mais veemente buscar "sistemas articulados" na Natureza, que aparecem na
a influência prioritária de Schelling sobre Ritter. Diz ele: "Os base das formulações de Ritter. Como afirma o comentarista alu-
fundamentos de seu pensamento se encontram na Filosofia da dido, o próprio "determinismo" de Ritter advém de "uma inter-
Natureza de Schelling. completada por um neoplatonismo inspi- pretação científica da Filosofia da Natureza de Schelling" e não
rado em F. A. Wolf ( ... ) e também suas relações com os natu- de uma postura simplista. Há algumas outras colocações schellin-
ralistas europeus, em particular A. von Humboldt, jogaram um guianas que aparecem com realce na proposta de Ritter: a idéia
papel determinante na formação de seu pensamento e de sua prá- da rela~~ão forma-matéria, finito-infinito e de movimento inces-
tica de Geografia'': adiante completa: "O conceito de todo, tal sante. Por todas estas razões o nome de Schelling deve ser juntado
como entendido por Schelling, está no centro da axiomática geo- ao de Herder, como os dos autores que maior peso tiveram na
gráfica de Ritter". Também Figueira defende esta posição. Diz formação da teoria do conhecimento que informa as formulações
ele: "Para Ritter o fim último da ciência é a compreensão do ritterianas.
plano divino, o que se pode lograr através de um estudo adequado Como foi observado anteriormente, segundo Nicolas-Obadia,
da natureza que. de algum modo, como no último Schelling, é o "idealismo transcendental de Ritter é completado pelo 'neopla-
uma teofania". 25 tonismo alemão' " . Este adviria de uma filiação a F. A. Wolf, um
Estas opiniões encontram apoio sólido nos escritos ritterianos. erudito que introduz o debate clássico grego no ambiente intelec-
Em vários momentos ele apresenta idéias claramente baseadas tual alemão na segunda metade do século XVIIl (e que não deve
em Schelling. bem elencadas por Nicolas-Obadia. Em primeiro ser confundido com C. W olf. seu contemporâneo, sistematizado r
lugar, na idéia de unidade entre experiência e especulação, que das idéias de Liebniz). Segundo Nicolas-Obadia, Ritter vai tomar
para Schelling representa a própria unidade do espírito com a especificamente a "teoria das idéias e das formas", apresentada
natureza. Nas suas palavras: "O sistema da natureza é ao mesmo por Platão no Timeu. Ainda de acordo com este autor, tal teoria é
tempo o sistema do nosso espírito". Dessa idéia derivam as con- preconizada por Schelling. 26 De todo modo, Ritter assume expli-
cepções de finalidade e de totalidade, assimiladas totalmente por citamente esta filiação . Numa passagem, defendendo que "o erro
Ritter. Para Schelling as coisas possuem finalidade. harmonia em e a verdade são todos dois ricos de ensinamentos para o homem",
suas manifestações, que se dão enquanto totalidades articuladas; fala do "divino Platão''. que metaforicamente não caiu nos erros
em suas palavras: "Cada produto orgânico traz em si mesmo a da "longa querela que opôs netunianos e vulcanistas". No geral.
razão de sua existência, e é sua própria causa e seu próprio efeito. Ritter demonstra grande simpatia e conhecimento do pensamento
Nenhuma de suas partes pode aparecer a não ser no Todo, e o clássico, citando, entre outros, Hiparco. Hipócrates, Eratóstenes.
Todo consiste nas ações recíprocas das partes". O todo é para Tácito, Tucídides, Hecateu e principalmente Heródoto, Estrabào
Schelling uma realidade objetiva, porém sua apreensão implica e Ptolomeu . É interessante assinalar, como faz Nicolas-Obadia.
entender "o conceito que está no fundo de cada organização", a presença do pensamento pitagórico. encontrado também em
sabendo que a existência da organização reside em finalidade, Humboldt, entre as influências da fundamentação de Ritter. A
e esta reata a ligação com o plano do divino. Assim, para ele doutrina pitagórica das formas perfeitas (harmônicas) e sua asso-
·'cada organização é um Todo". São, principalmente, estas con- ciação com o conceito abstrato de beleza, são. segu ndo este co·
cepções que. como demonstra Nicolas-Obadia, tornam possível mentarista, encontráveis nas formulações ritterianas. onde se
mesclam com suas concepções teológicas. Nas palavras de Nico-
las·Obadia: "A doutrina pitagórica da triade ( ... )é um compên-
25 Nicola\·Übadia, G - Ob. crt .. pp 7 e 8. Em ourra passagem realirrna.
"Car l Rrtter se imprrou na Frlosolia da N;~ture1a de Schdhng. completada pelo
26 ··Para exphl'ar esta união do conceito c da matéria. você admite a exis-
nc<•rlatonisrno c pela prática pedagógri.'a de He nn Pesta loui. que aplica tdéras de
Rou,seau no Emí lio" (ib1dem. p 214). Figuetra R. - Ob. c tt .. p 23. Quaini tência de uma mteltgêncta supenor divma que concebeu suas criaÇ'ões sobre a
a~~u me a posição de Nicola~·Obadia. apontando também a 'influência do tdca·
forma de ideais, para criar em seguida a natureza conforme estes ideats. A or·
hsmo t ran~c~ndental de Schelling e do neoplatonismo alemão sobre o pensamento dern do Todo. diz o Tm1eu. em ~ua linguagem imaginária, será boa ... .. (Sehelling.
geográfico de K. Rit1er" (Murx1smo I' I(<'O~r<'/w. oh. ~11 .. p. )1) l'itado pnr Nícola~·Obadia, G. - Ob. Cll. p. 25)

155
154
dio místico-religioso ( ... ) uma ontologia aritmética, verdadeira sucessores com a parte critica de sua filosofia. É por isso que
concepção genética dos números( ... )". Porém, este autor diz que Ritter, no prefácio de sua Geografia Comparada, nos confessa
Ritter aproximou-se mais da concepção platônica (que utilizava sem nenhuma inquietude que o objetivo final dessa nova ciência
os números, porém não como diretamente a essência do real) do 'é mostrar ao homem a terra, para conduzi-lo ao conhecimento de
que da pitagórica. si mesmo e· à atividade perfeita'. Acreditamos encontrar as linhas
--,.:vêem-se, desse modo. pontos de proximidade entre a forma- de Discursos à Nação Alemã de Fichte. quando lemos estas refle-
ção filosófica de Ritter c a de Humboldt. Hegel, Schelling e os xões( ... )". Já para Schaefer, é menos a filosofia, e mais a pro-
clássicos gregos (corn destaque para Pitágoras e Platão) também dução diretamente geográfica de Kant, que aparece nas formula-
aparecem fundamentando as concepções deste outro autor; dos ções ritterianas; em suas palavras: "Kant ministrou um curso de
filósofos já apontados em Ritter. somente Herder não é relevado geografia física durante toda sua carreira no magistério ( ... ) O
por Humboldt (talvez seu cosmopolitismo explique o desinteresse texto dessas lições, ou melhor, notas de aulas, foi publicado em
pelo elogio das identidades nacionais proposto pelas formulações 1802, dois anos antes de sua morte. É nesta obra que se encontra
herderianas). Esta proximidade filosófica entre os dois geógrafos a afirmação sobre a geografia e a história que tem sido citada
não deve causar espanto, pois ambos vivenciaram o mesmo am- reverente e repetidamente por aqueles que dela fazem a pedra
biente cultural e político. Assim, são permeáveis pelas idéias de fundamental do método geográfico. Ritter, Hettner e, eventual-
seu tempo. Nessa avallação, parece forçada a afirmação de Cla- mente, Hartshorne a utilizaram". De todo modo. a presença des-
va!, quando coloca: "Apenas dez anos mais jovem do que Hum- tes autores na base filosófica do pensamento de Ritter reforça o
boldt. pertence a outra geração intelectual. Não foi marcado pela enquadramento efetuado, pois Kant é o referencial primeiro do
filosofia racionalista do século XVIII. Pertence à nova escola filo- debate apontado e Fichte (1762-1814), um de seus participantes.
sófica espiritualista e histórica da Alemanha do princípio do sé- '· Ambos os filósofos também aparecem nas formulações de Hum-
culo XIX. Temos que voltar a Herder se quisermos buscar o equi- boldt, o que reforça seu alinhamento junto a Ritter no idealismo
valente filosófico de sua idéia de Geografia". A nosso ver. não pós-kantiano. Tal filiação conjunta é apontada com ênfase por
existe essa divisão tão drástica. Senão vejamos: Herder é um pré- G. Tatham: ''No idealismo de Fichte. Schelling e Hegel o con-
romântico, convivendo, no movimento "Sturm und Drang", com ceito de conjunto relacionava-se com o conceito teleológico de
Goethe e Schiller, românticos, que. como visto, dialogam direta- universo. Schelling, por exemplo, afirmava que a natureza não
mente com Humboldt: este dialoga com Ritter, e ambos com era apenas uma unidade viva, mas que ela se desenvolvia para
Schelling, Fichte. Hegel, etc. Trata-se. enfim, de um mesmo mo- determinado fim. 'A natureza é o ego ou o eu no processo de
vimento com nuanças e diferenciações , que se desenrola sob o existir, tal é o tema da Filosofia da Natureza de Schelling', disse
impacto da Ilustração e da Revolução Francesa, e sob a égide do Windelband. Este conceito teleológico, aceito por Ritter, é refor-
idealismo. Assim, deve-se. na busca de uma classificação gené- çado por sua tendência ao pietismo (outra afinidade com Kant)' ".
rica em termos de filiação filosófica. enquadrar Ritter junto com e conclui: "As citações transcritas indicam. mais uma vez, que
Humboldt. o que não implica igualar suas propostas e seus fun- Humboldt partilhava com Ritter o conceito de unidade da natu-
damentos. reza, concordando que a Geografia Física tinha por fim demons-
Desta forma, colocam-se as formulações ritterianas dentro do trar a referida unidade. Neste ponto, ambos refletem o ponto de
idealismo pós-kantiano. visto enquanto um debate dinâmico e vista filosófico de seu tempo. A concepção de unidade viva da
variado. Outros autores, também associados ao pensamento de natureza, recomendada por Spmoza. havia sido revivida pelos
Ritter pelos comentaristas. são Fíchte e Kant. S. Mehedinti, por idealistas. Constitui parte primordial do pensamento de Fichte.
exemplo, diz: "No momento em que Karl Ritter inicia o estudo Schelling e Hegel e é expresso. de maneira admirável na poesia de
da Geografia Comparada, o entusiasmo pelo lado transcendental Goethe e Schiller" .2'
dos problemas filosóficos era muito forte, e o reformador da geo-
grafia teve a chance pouco propícia de escrever sua obra precisa- 21 Mehedinti. S.- Ob. cit .. p . 8 , Schaeffer. F. - Oh. cit .. p. 19eTatham.
mente na época ern que a metafísica de Kant impunha-se a sem G. - Ob. cit .. pp 211 e 215. rcspec·tJ>amcnte.

156
157
As peculiaridades das concepçõe5 de Rittcr. em relação à~ de
Humboldt. no seio do idealismo alemão pós-kantiano do final do Comparada moderna ( .. .)". Entretanto, o conhecimento geográ-
século XVIII. resumem-se a trê~ pontos principais. Em primeiro ' fico de Ritter não se limita à produção humboldtiana. Entre ou-
lugar. a leitura das obras ritterianas não revela o traço estilístico tros, são bastante mencionados em suas páginas: Malte-Brun,
do romantismo. tão acentuado em todos os autores dessa tradi- Beaumont, Buache, Zimmermann e Scheuchzer, este colocado
ção. Ao contrário, os escritos de Ritter são secos e bastante obje- como "o primeiro geógrafo moderno da Geografia Física''. Cabe
tivos , não recorrendo a metáforas nem apresentando digressões ainda mencionar o apreço de Ritter pelas formulações de G .
subjetivistas. Sua preocupação é explicitamente de caráter lógico Forster, externado em várias passagens. Fora da Geografia, cabe
normativo: padronizar conceitos, procedimentos de levantamento apontar que Ritter elogia o ensaio de Malthus sobre a população,
e análise, organizar a metodologia de pesquisa, etc. As~im. sua onde está exposta sua célebre teoria. Assim, é no universo da
produção aproximar-se-ia, no estilo, mai!. do cientificismo posi- Ciência e não da Filosofia, que a discussão ritteriana se desen-
tivista do que do romantismo. Isto no estilo, pois, apesar da cla- rola. Ao contrário de. H umboldt, que, como foi visto, oscila entre
reza e concisão de seus textos, o conteúdo é amplamente impreg- os dois planos do conhecimento. alternando discursos áridos ( téc-
nado de concepções próprias do romantismo. Apesar das finali- nicos ou sistemáticos) com passagens de denso conteúdo poético,
dades filosóficas que propõe, Ritter assume que sua atividade Ritter se mantém no estrito leito do discurso científico. Quando
teórica se desenrola no plano da ciência. É como que uma busca se alça às discussões mais abstratas da Filosofia, o faz com um
de fundamento!. empíricos (científicos) de sustentação de um estilo sucinto e objetivo, próprio do debate científico. Assim, seu
projeto filosófico, como argumentou Nicolas-Obadia com pro- romantismo é de conteúdo. não de expressão; diz respeito à es-
priedade. Nesse plano, sua formação também é sólida e variada. sência. não à forma de suas formulações.
Ele demonstra um conhecimento científico enciclopédico, discu- Uma segunda peculiaridade do pensamento ritteriano, no in-
tindo desde teorias da Biólogia até da Física e da Astronomia. terior do movimento que o contém, diz respeito a seu aparente
Aborda as colocações. entre outros, de Saussure, Blumenbach, alheamento com relação ao Iluminismo francês. Como foi obser-
Playfair, Halley, Boyle, Lamarck, Torricelli, Pascal, Cuvier, Ke- vado, as colocações da Ilustração francesa exerceram enorme in-
pler, Newton, Franklin, Lacondamine. Elogia enfaticamente Buf- fluência no idealismo pós-kantiano. Deve-se também lembrar que
fon e Lineu, "dois homens cujos nomes estarão eternamente liga- esta geração alemã foi contemporânea da Revolução Francesa e
dos ao destino das ciências naturais' ' . Mantém ainda polêmicas do período napoleônico, acontecimentos frente aos quais neces-
sobre temas científicos específicos. como aquela que trava com sitou posicionar-se. Tal posicionamento foi, sem dúvida, uma das
L. von Busch acerca de questões geológicas. alavancas para o grande avanço filosófico efetuado por esta gera-
Além disso, Ritter domina uma extensa bibliografia própria ção . Basta lembrar o sempre mencionado episódio em que os jo-
da Geografia. Primeiramente, pode-se mencionar Humboldtcomo vens Hegel, Schelling e Holderlin plantam no seminário de Tu-
um autor muito presente nas formulações de Ritter. Estas cita- binga uma ' 'árvore da liberdade" em homenagem à Revolução
ções são sempre extremamente elogiosas. Diz ele, por exemplo: Francesa. Assim , o pensamento alemão do período tem um con-
"O extraordinário progresso que os trabalhos e as idéias de A. traponto na Ilustração francesa . As idéias de Montesquieu, Di-
von Humboldt ( ... )trouxeram ao sistema da geografia geral com- derot, Rousseau, Danton, e outros, são difundidas e d iscutidas.
parada ( ... ) Este homem, do qual necessita-se apontar a ação Herder, por exemplo. dialoga basicamente com Voltaire. Hum-
sobre um grande círculo de pesquisadores contemporâneos, apa- boldt, como visto, também revela tais influências do Iluminismo.
rece, assim, como um dos representantes do estágio atual de Ritter, entretanto, não menciona estes autores. o que dificulta o
avanço da pesquisa que vai herdar o século que vem". Em outra estabelecimento de urna virtual influência destes sobre sua for-
passagem, falando de Viagens às Regiões Equinociais, Ritter a mação. Nicolas-Obadia aponta certa correspondência entre algu-
define como uma ''obra que enriqueceu consideravelmente a geo- mas afirmações de Ritter e as colocações sobre a relação entre
grafia científica". E de modo ainda mais explicito coloca: "A. clima e forma de governo, efetuadas por Montesquieu.
Humboldt, observador do universo e fundador da Geografia Outro meio pelo qual Ritter poderia relacionar-se com o pen-
samento iluminista seria o da discussão pedagógica. Como foi
158
159
mencionado, Ritter relaciona-se diretamente com H . Pestalozzi , tou autores com posturas ateístas, como. por exemplo, Fichte,
pedagogo suíço discípulo de Rousseau, tendo até sido sondado que foi expulso da Universidade de Jena sob esta acusação. Entre
para ser o diretor do Instituto de Yverdum, pertencente a este os contemporâneos de Ritter dominou uma perspectiva panteísta,
pensador. A admiração pelas idéias de Pestalozzi, a quem Ritter que não rompia com o divino, mas abordava-o através de sua
denominou de "grande homem deste século", fica evidente no obra telúrica, na ordem da natureza, vtsta enquanto unidade do-
fato de lhe haver dedicado sua grande obra, a Geografia Compa- tada de movimento harmônico (submetida a leis) e finalístico,
rada. Pestaloni elabora toda uma proposta pedagógica que se dado pela teleologia divina. Esta mediação introduzida pela "or-
baseia no princípio da liberdade e da bondade inata do ser hu- dem da natureza". pela "força vital", dava a possibilidade de
mano, expo!>tos por Rousseau em suas obras. Pestalozzi também manter toda a discussão num plano onde o teológico não deter-
acata a tese rousseauniana de que a refprma da educação acar- minava diretamente a explicação: daí, a abertura para o pan-
retará a resolução de alguns problemas sociais. Sobre sua pro- teísmo. A adoração da natureza não se opunha ao plano da divin-
posta, comentaM. G. Rosa: "Acreditando que a aprendizagem dade, conciliava-se com este enquanto seu produto. 2<l Assim, em
deveria ser natural, Pestalozzi opunha-se à coerção. A intuição é muito\ autores o religioso passa a um plano secundário. a natu-
a base de todo conhecimento. O primeiro passo da intuição é a reza (e sua apreensão) vindo ao centro da problemática. Isto se
observação. Então, é necessário habituar a criança a observar, expressa meridianamente na poesia de Goethe, na Filosofia de
uma vez que a intuição será tanto mais clara quanto maior nú- Hegel e na Geografia de Humboldt. Já em Ritter o sentimento
mero de sentidos a perceber. No método de Pestalozzi a intuição religioso predomina, ocupando uma posição de centralidade em
penetra todo o ensino'' .28 A partir desse ponto de vista. propõe o sua teorização. Tal ponto é o tema do próximo item.
contato direto com a natureza e a observação da paisagem como o
Sintetizando, pode-se afirmar que fundamento filosófico do
fundamentats no estudo. valorizando a excursão e o trabalho de pensamento de Carl Ritter localiza-se prioritariamente no idea-
campo. Estas são, sem dúvida, preocupações encontrávets na hsmo pós-kantiano da Alemanha na virada do século XVIII , no-
proposta de Rttter. Também a questão da formação religiosa na tadamente no idealismo transcendental da Filosofia da Natureza
educação, presente nesta, aparece entre as colocações de Pesta- de Schelling e na Filosofia da História de Herder. Dessa maneira,
lozzi. Entretanto, precisar até que ponto Rousseau influenciou seu enquadramento filosófico, em termos genéricos. coloca-o ao
Ritter através de Pestalozzi envolveria um detalhamento maior da lado de Humboldt. Entretanto, pode-se dizer que suas bases são
pesquisa. De qualquer forma,' o ideirio iluminista, principal- menos diversificadas do que as deste outro autor, suas influências
mente no que tange ao pensamento político e social. não aparece e filiações. e mesmo seu horizonte de preocupações, são mais deli-
com realce nos escritos analisados de Ritter. neados e homogêneos. Entretanto, seus pontos de contato são
A terceira peculiaridade de seu pensamento também se liga à numerosos, no que toca à fundamentação filosófica. O parâmetro
anterior. Diz r~speito à profunda religiosidade de Ritter. Como !>e kantiano. as formulações de Schelling. o contato com Hegel, as
sabe, um dos traços do pensamento alemão na viragem do século alusões ao pensamento grego clássico (o destaque das coloca-
XVIII foi uma relativa externalidade no trato da dinâmica reli- ções pitagóricas), são todos elementos de aproximação entre os
giosa, um discurso lógico sobre as questões da revelação e outras sistematizadores da Geografia. Isto não iguala suas formula-
tantas ligadas ao plano da di\'indade. Tal per!>pectiva propiciou. ções, cada uma dotada de juízos e interesses singulares. Em
como Já foi comentado, um avanço para posições mais objetivas
na concepção da relação gnosiológica. Se bem que não igualado 29 Seria possível buscar algum paralelo entre tal postura e a 1dé1a na "mão
ao materialic;mo e ao anticlericalisrno de certos pensadores fran- invisível", 4ue regularia a ordem do mercado, clclendida por Adam Smith. Ta i~
ceses (como Diderot ou Volta.ire), o romanttsmo alemão apresen- conecpçl\cs abriam a possibilidade de um estudo racional dos fenômenos sem rom·
per com a C\1\tência de um plano d1vmo. Em Smllh. a ordem do mercado é pa\·
28 Hosa. M. da G (org. e notas) - A 111.\UÍnu da ,·ducuçlio urruvé.s do• siH~l rle ~ompreensão raciC'nal e de expressão .!través de lt:is (\er Dobb. M . -
re.r./lls, Cul1rix. \:to Po~ulo. 1971 p 214 No:\tc hHo c\lllo reproduzidos algun\ lmrtul do •·alor e da dwribuu;ào delde A Smirh Presença. Lisboa. 1977.
trechos da obra de Pe~taloui. Leonardnl' Gerrrudc•. cap 2)

160 161
Ritter destacam-se o peso da postura teológica e a preocupação
pedagógica. posta enquanto missão para a humanidade. Dessa forma. a ciên-
cia é um esforço de aprimoramento, pela observação ordenada
das obras criadas por Deus. Diz Ritter: "O esforço obcecaào. a
TEOLOGIA 1: GEOGRAFIA: A QUES fà O DO FINALISMO vontade privada de consciência, não dá ao homem ( ... ) a força
que encaminha ao Ser autêntico e à verdadeira conduta. É a von-
tade consciente e adaptada à força, a saber, o esforço mais ela-
O fen•or religioso domina a teoria do conhecimento e toda a con- borado que, quando a clareza se associa à verdade, se traduz em
cepção de mundo que informam o pensamento de Carl Ritter. atos bons, grandes e memoráveis e que por conseqüência se apro-
Seu raciocínio e ~ua proposta tornam-se incompreensíveis se não ximam da Eternidade. Do mesmo modo. não é na diversidade
se releva o fundamento teológico de suas formulações. Poder-se-ia desordenada de certas forças precipitadas, mas na contemplação
mesmo especular que a perspectiva religiosa articula a lógica da da medida e da lei Qa plenitude e a força infinita, que nos pene-
proposta ritteriana, pois está na essência de suas concepções de tram da presença do Divino ao nível mesmo da natureza sensí-
ciência, de conhecimento, de história e de natureza, logo, no vel". A ciência, como se vê, propicia uma aproximação entre a
cerne de sua idéia dos propósitos e objetivos da Geografia. Assim, razão humana e a razão divina, expressa na consciência da causa-
a religião e, mais, numa postura pietista, é uma das chaves cen- lidade e racionalidade do mundo. Dessa forma. a revelação da
trais para a interpretação do pensamento de Ritter. ordem da criação não elimina a pesquisa que, antes, é posta como
'-~ O objetivo de toda a ciência, segundo Ritter, seria aproximar o provação. A causalidade dos fenômenos, externa aos homens,
homem da divindade pela observação e entendimento da forma deve ser reconstruída por sua consciência. A religião, porém , se
de ser das obras criadas. A contemplação da criatura (e das coisas coloca como limite ao conhecimento. O plano da divindade, em
criadas para acolhê-la) seria uma forma de adoração do criador; sua essência, permanece intacto, envolvido em dogmas (aqui sena
entendendo seus desígnios, os homens poderiam melhor subme- possível pensar numa analogia com a idéia de revelação em Kant).
ter-se a estes, e assim servi-lo de forma mais profunda. Dessa Nesse sentido, Ritter elogia Playfair, para quem a "concepção
maneira, a ciência, para Ritter, possui um dado de revelação. imparcial dos fatos( ... ) não reside na verdade de um conceito e
Busca-se a ordem na manifestação dos fenômenos para com- sim no conteúdo total de todas as verdades, ou seja, no terreno
da fé".
preender sua finalidade divina. Numa afirmação explícita e sinté-
tica ele Ritter: "A ciência absoluta é a contemplação da própria A concepção religiosa de Ritter não \'eta a possibilidade de
uma análise racional da natureza, antes estimula tal análise,
divindade". Tal postura acarreta uma valorização do aspecto
vendo-a como forma de adoração da divindade. A natureza seria
subjetivo do processo cognitivo, a intuição (como visto, ddendida
uma obra divina, modelada de forma consciente pelo criador, que
por Schelling e por Pestalozzi em diferentes planos), enquanto
contato da dimensão interior com o mundo sensível, é relevada. dispôs as coisas de acordo com seus desígnios. Afirma Ritter de
forma cabal que a Terra "foi organizada desde a origem para
O conhecimento é uno e cósmico. O homem possui em si também
servir de teatro à Natureza e suas forças e para acolher os povos" .
o desígnio divino, a possibilidade de conhecer a finalidade das
É interessante assinalar nesta afirmação que Ritter trata a Terra
coisas criadas e, nela, sua própria razão de ser. Assim, o conhe-
e a Natureza como entidades distintas, criações diferenciadas, se
cimento é em si uma forma de adoração "deste ser efêmero que é
bem que integradas num plano comum. Daí pode-se deduzir que
o homem". Nas palavras de Ritter: "A única coisa que está ao
a Terra é uma base para a Natureza e para o homem, também
alcam'e do homem, eu direi mesmo sua única missão. é tomar
diferenciado desta. Entretanto. homem, Natureza e Terra unifi·
consciência no curso de sua vida desta qualidade, sob o risco de,
car·se-iam ao nível da divindade. que a todos criou. Sendo cria-
em caso contrário, colocar em xeque todos os seus empreendi-
ções conscientes, suas manifestações revelam uma racionalidade
mentos". Ass1m, existe uma finalidade na História , que é a possi-
traduzida em causalidade. A realidade é ordenada e harmônica.
bilidade de um aperfeiçoamento progressivo do homem e dos
O homem, ser possuidor da maior liberdade. a possui enquanto
povos. A realização deste potencial é uma designação divina.
provação no jogo divino do aperfeiçoamento humano. Oeve co·
162
163
nhecer a ratio manifestada nas criaçües inanimada\ qu.:: lhe '>t:r- l'Ti.lção. Assim, a ordem da natureL:a se coloca para o homem
vem de teatro. A origem divina do univer!!.o justiftca a ext~tênci..t como um enigma que deve ser decifrado. Diz Ritter: "Para o indi-
de uma racionalidade na natureza. a forma e funcionamento do) ,·íctuo e para a humanidade inteira, ela deve ser esse anjo guar-
fenômenos e seres obedecem a uma finalidade definida pela enti- dião que ajuda a encontrar a paz interior. Do mesmo modo que.
dade que os criou. A postura preconizada é de conhecer o intuito como planeta. a Terra é uma mãe que carrega a humanidade
divino para melhor dispor daquilo que ele nos legou. Dessa for- inteira. assim também tudo na natureza se destina a aclarar as
ma, o estudo da natureza aponta para um uso ma1s harmônico Cll!1Sciências. guiá-las e formá-las. Verdadeiro elemento organi-
desta. que espelharia um aprimoramento do homem. urna apro- zador da humanidade, ela deve prepará-lo. destino mais nobre, a
ximação com o criador. Esta racionalidade da natureza é clara- conhecer e conceber o infinito naquilo que não é visível".
mente expressa por Ritter. Diz ele: "Independente do homem. Vê-se aqui novamente a diferenciação explícita entre a Natu-
quer dizer sem ele e antes dele, a Terra é o teatro dos acontecJ- reza e a Terra. também a contraposição de ambas (numa mani-
mentos naturais; o homem não pode ser a origem da lei que rege fe~tação una) ao homem e à humanidade. O homem aparece
as criações terrestres. Na ótica de uma ciência da Terra. é para a cünw ator. sujeito de toda a existência. criado à semelhança da
Terra mesmo que temos de nos voltar para compreender ~ua!> leis. di1·indade para protagonizar a epopéia da vida terrestre. Essa
Os monumentos que a natureza aí edificou devem ser observados concepção explicaria o privilégio da relação homem-natureza nas
e de~critos. suas formas decifradas"; c completa: "O resultado preocupações de Ritter, e sua perspectiva marcadamente antro-
decorrerá agora de si mesmo em cada elo da corrente e do t.'nca- pocêntrica. O homem é a criatura escolhida pela divindade, feita
deamento em si. Sua verdade encontra-se verificada nos accmte- à sua imagem. para ser o sujeito da natureza. Daí, dotá-lo o cria-
cimentos naturais locais e na vida dos povos onde lhe encontra- dor de uma alma, que significa liberdade e inteligência ou a pos-
mos o reflexo e cuja existência e caracteres coincidem com este ou sibilidade de agir, conhecer e escolher de modo a. pelo seu pró-
aquele encadeamento de criações terrestres típicas. Assim. deter· prio aprimoramento, melhor servir ao senhor. Há, dessa maneira,
minados pela Providência e sob a influência combinada da na tu· um conteúdo ético, que perpassa toda a teorização ritteriana.
reza e da razão, os povos, assim como os homens. são a resultante E::.ta posição foi bem percebida por Hartshorne: "Efetivamente
de componentes espirituais e físicos, da vida do mundo que en- pode ser qut> o conceito teleológico de Ritter acerca da Terra
globa tudo em si". Assim, o homem busca apreender a racionali- como sendo divinamente planejada em todos os seus detalhes
dade do mundo, para entender sua própria existência. Ritter di7 para o desenvolvimento da espécie humana. caberia ser conside-
que seu estudo ''tentará abarcar o mais completo e o mais có<>- rado como uma das raízes históricas da ênfase particular. no
tn.ico aspecto da Terra. juntando e organizando em bela unidade campo da Geografia. atribuída às relações entre o homem e a
tudo quanto sabemos com relação ao globo e mostrando a relação natureza. De maneira geral. o conceito parece coerente com o
desse todo unificado com o homem e seu criador''. ponto de vista do Livro do Gênesis", acrescentando noutra pas-
'\ Além desse peso significativo na definição de conhecimento e sagem: "O conceito de uma clivagem entre o homem e a natureza
dos objetivos da ciência. o fundamento religioso de Ritter se foi originariamente estranho à Geografia. Se nela penetrou, em
manifesta com vigor em sua própria concepção de natureza e d<t conseqüência da posição religiosa e teleológica de Ritter e seus
relação desta com o homem. Nas suas palavras: "Deu-5 deu ao discípulos. tornou-se de importância capital. cc)nforme observou
homem a Natureza por companheira ( ... ) Ela deve servir como Sauer. como um conccllo da Filosofia da História, apoiado no
<;ua amiga fiel. conselhe1ra e confidente de sua vida mortal". As- desenvolvimento das ciências naturais, do darwinismo e da F ilo-
sim. a na1ureza tem sua razão de ser na existência humana. a sofia racionalista dos meados do século X I X" .30 Pode-se obser-
qual deve envolver e sustentar. O homem tem a natureza como var que, segundo Hartshorne. uma das definições dominantes do
guia de sua vida. e~ta fornece-lhe os estímulos e os materiais.
Direciona sua ação e suas necessidades. E é a chave para seu
aprimoramento. pois permite-lhe(pela decifração de suas formas .30 Hart~horne . R. - Pruposi1us I? maureza du pN•grafw. ob. Cll. pp 52
e forças) penetrar (ainda que não integralmente) nos mistério~ da r oS. re~p,:cll,aJr.t:nte.

t64 165
objeto geográfico teria sua raiz em Ritter, e mais diretamente próprios termos: são "predestinados". Os recursos do meio, a~
embasada nas concepções religiosas deste. Assim, aceita essa forma~ presentes. o ritmo dos movimentos. tudo manifesta os de-
tese, tem-se a introdução do elemento humano na análise geo- sígnios divinos. que se apresentam para o homem como possibili-
gráfica respaldada numa argumentação teológica. De todo modo, dade do devir, a ser realizada enquanto provação terrena. Nesse
esta idéia de uma "natureza para o homem", parece bastante sentido. a teleologia concebida por Ritter, na perspectiva do ho-
clara nas formulações de Ritter; por exemplo, ao dizer: "Segura- mem, aparece como causalidade. um finalismo externo à sua
mente um grande bem da humanidade - bem que lhe servirá ação. Esta determinação da teleologia divina manifesta-se exter-
ainda por milênios - consiste, enfatizo este aspecto, em que ela namente ao homem na causalidade da natureza e no próprio ho-
não aprende a empregar e utilizar sua morada, o seu invólucro mem (pela ação do meio sobre os povos) como possibilidade do
terrestre, como a alma ao corpo, senão pouco a pouco, do mesmo devir, ideal de redenção terrena e limite de ação. Nesse processo,
modo que a criança, ao converter-se em adolescente, aprende aos a ciência, já como produto do aperfeiçoamento histórico progres-
poucos a empregar sua força, a fazer uso de seus membros e de sivo da humanidade, atua como um guia para a ação dos homens
seus sentidos, a utilizar os próprios movimentos e as próprias fun- e dos povos. Compreender a predestinação dos lugares propicia
ções de modo a ~aber satisfazer as mais elevadas exigências do uma vida local mais próxima do ideal divino (o devir) de sua ocu-
espírito humano''. pação. Compreender as leis da natureza e da História significa
Por serem a Natureza e a Terra coisas criadas dentro de um compreender a finalidade divina. e a ela deve-se orientar a ação.
plano divino, para acolher os homens, suas manifestações obede- Ê dentro de tais parâmetros que a Geografia de Ritter vai legiti-
cem a uma ordenação de conteúdo finalístico, isto é, os arranjos mar seus propósitos. Em suas palavras: ''Chegará um tempo em
naturais apresentados pelas variadas localidades da superfície que uns homens dotados de igual força abarcarão ao mesmo tem-
terrestre não são casuais e ímpares; ao contrário, desenvolvem-se po, com uma visão de águia, tanto o mundo físico como o mundo
segundo uma causalidade ditada pelo projeto do criador. Tam- moral. Da totalidade dos fatos da história do mundo talvez pos-
bém a forma de ser dos vários fenômenos manifesta, em suas sam descer do geral ao particular, com tanta segurança como a
regularidades e leis, os desígnios divinos. A harmonia do uni- política se elevou do particular ao desenvolvimento geral da espé-
verso, que em Humboldt aparece como quase epifenômenica. em cie. Talvez com todos estes dados gerais possam perceber de ante-
Ritter é tributária de uma teleologia superior, impenetrável, da mão a marcha necessária do desenvolvimento de um povo no âm-
qual só podemos observar os resultados. Desse modo, a essência bito determinado do que lhe haviam eleito e indicar com anteci-
do real é posta num plano místico, só penetrável através dos dog- pação o caminho que deve seguir para alcançar a felicidade que a
mas teológicos. Entretanto. o mundo sensível é visto como dotado eterna Providência reserva a cada povo fiel em sua missão". Vê-
de causalidades. cuja análise (posta enquanto missão) aponta a se, de forma sintética e exemplar, que, para Ritter, há uma fina-
finalidade divina. Este processo é, para Ritter. um aprimora- lidade na história externa ao homem (a marcha necessária [.. .]
mento histórico, com a gradativa apropriação da natureza, signi- no âmbito determinado), porém que não o torna passivo; ao con-
ficando uma aproximação ao criador. trário, as possibilidades dadas devem ser realizadas enquanto
Ê inquestionável que esta perspectiva finalista desempenha missão inexorável de sua existência. Enfim, é como se o homem
um papel central na elaboração ritteriana. A Geografia, para ele, devesse cumprir um itinerário previamente fixado, mas que lhe é
será a busca do sentido contido em tais arranjos (ou sistemas, estranho. Assim. existem descaminhos e só a ciência pode servir-
para sermos fiéis à sua terminologia) espaciais e sua influência lhe de guia. Essa epopéia humana se desenrola sobre um palco
sobre os povos que os habitam. Assim, a Geografia é, em última natural, o planeta Terra, ou melhor, sua crosta sólida. Nesta en-
instância, um caminho para se penetrar nos mistérios da "essên- contram-se as principais indicaçôe~ para cumprir o~ de:.ígnios di·
cia divina do globo". Por serem os lugares criados, seu arranjo ~inos.
(combinação dos fenômenos, formas, etc.) possui um conteúdo Encerrados em meios diferenciados por obra da Providência, os
finalístico. Para Ritter os lugares são portadores de uma finali- povos se defrontam com possibilidades e necessidades objetivas
dade imposta pela teleologia divina que os gerou; para usar seus d1stintas. Segundo a concepção finalista de Ritter, istp implica

166 167
que a divindade dividiu a humanidade, impondo a çada parcela européia na intenção divina. Tal fundamentação é elaborada por
caminhos (missões) de desenvolvimento singulares. Aqui, a teolo- intermédio de "leis naturai-," que "explicam" 0 destino dos povos
gia de Ritter assume integralmente as argumentações de Herder. da Europa. como. por exemplo. a '' lei da articulação litorânea··. )I
A ação humana desenvolve-se dentro do quadro de culturas na- Estas leis. como todas as dcmai:.. são 'iimples manifestações da
cionais\ Estas representam já a determinação da divindade, pois ordem estabelecida pelo criador. Entretanto, o determinismo de
se forjam naturalmente a partir dos estímulos dados pelas condi- Ritter não impüc uma pa!-.::.ividadc ab~oluta na ação humana. O
ções naturais do meio em que estão inseridas. A identidade nacio- homem. como visto, po~sui uma dose de liberdade, que propicia
nal é um desígnio divino, já um elemento do realizar-se da huma- sua "provação terrena"; assim. caminha por caminhos pré-escri-
nidade, em cuja constituição o quadro natural desempenha papel tos. mas com sua!. próprias pernas. Sua atividade deve realizar a
considerável. Nesse ponto. a proposta de Geografia de Ritter arti- finalidade para que veio: é esta a provação: Dessa forma, o condi-
cula sua postura religiosa \e o fundamento teológico) com sua in- cionamento natural existe. é elemento preponderante na caracte-
serção no movimento social de sua época. A já discutida particu- rização e identificação dos atores. e mais, estipula os limites e as
laridade histórica da Alemanha aparece na defesa do conteúdo possibilidades. Porém . não anula o existir humano enquanto rea-
divino da busca da identidade nacional, também proposta por lidade. É este que elabora o próprio conhecimento geográfico,
Ritter. O povo enquanto sujeito histórico seria em si um fruto como um dos instrumentos para a compreemão da causalidade
da teleologia divina, construído no realizar-se terreno. Segundo do mundo exterior. A Geografia é, assim, um meio de revelação
Dresch: "Ritter procura o 'Raume', os espaços de antigas cons- na perspectiva ritteriana.
truções regionais, os espaços vitais. Ritter engaja a Geografia Ritter desenvolve um idealismo de fundo religioso, onde o
num caminho perigoso. Nascida não apenas durante a conquista, conceito principal adotado é o de universo como obra de uma
mas durante o triunfo da classe burguesa, a Geografia foi, pelos entidade supra-objetiva: o Criador. Ao ser o real produzido por
seus objetivos, mais uma filosofia que uma ciência, filosofia que uma força que lhe antecede e lhe é exterior, a posição, disposição,
os geógrafos alemães e os historiadores utilizaram com fins polí- forma. funcionamento e ritmo dos elementos e fenômenos serão
ticos". Independente de se concordar com a avaliação de Dresch, dotadas de urna finalidade que lhes é atribuída pela divindade
não há como negar a eficácia ideológica dessa combinação entre (vista como força consciente). Tal finalidade, em termos terres-
postura religiosa e objetivos políticos. A luta pe!a unidade alemã , tres, manifesta-se primeiramente na predestinação dos lugares.
passa a ser considerada missão divina. de realização daquilo que Estes. enquanto sistemas naturais, são elementos preponderantes
Deus preconiza através das Imposições da causalidade da natu- na formação dos povos. imprimindo-lhes características especí-
reza. A não-unificação nacional é posta por Ritter e Hcrder como fica~. À Geografia caberia criar os meios de se estudarem estes
negação da naturalidade, logo, como opoc;ição aos desígnios da fenômenos: a caracterização da causalidade contida no::. arranjo:.
Providência. locais e sua ação sobre a história dos povos. O fator geográfico
Do que foi apresentado pode-se depreender que o propalado emergindo com destaque na interpretação da evolução da huma-
determinismo natural. contido nas formulações de Ritter, advém nidade, tal é a concepção que anima a empresa ritteriana. Seu
diretamente de sua concepção teológica de mundo. A idéia da fundamento último repousa numa base ética. A perspectiva pie-
predestinação dos lugares não deixa outra alternativa. Existe uma tista de impregnar todos os domínios da vida de um traço de ativi-
finalidade definida no arranjo espacial, porém. c0mo visto, esta dade religiosa manifesta-se em Ritter no fim supremo de seu tra-
finalidade é posta como um devir; os caminhos singulares dos balho (o fim supremo da ciência em sua concepção): compreen-
povos a nimam a história universal. A teleologia divina reali- der as lch da naturen para melhor se sub meter aos desígnios
zando-se. em cada história particular, através das condições na-
turais (e entre elas a posição), na própria identificação do povo.
31 Feb,re fa1 a cr.tica des~a teona de Rltlcr Ver la fiara y /" e•·olru·tull
Assim. Deus fala prioritariamente através dos ambientes condi- humana. ob. cit., p 279 Ver, também, Ratzel que faz uma apresentação crítica
cionantes. Através destes baliza a história dos povos e indica sua de tal teoria , em La Corse: étude anthropogéographique. em Annales de Géogra·
vontade. Este raciocínio vai inclusive fundamentar a expansão phll!, VI II. A Colm. Paris. 18C)9, Tal discus~ão serà retomada adian~.

168 169
divinos. A atividade científica é, para ele, um ato de penitência
na busca da redenção. 7ados é aqui bastante minimizada. O fato de o interesse mani-
festado pelo autor ser o de organizar o conhecimemo geográfico.
dotá-lo de método. faz com que aquelas questões, que constituem
O OBJETO·E O Mf: rODO DA GEOGRAFIA SECUNDO RITTER diretamente o foco da presente pesquisa, aflorem explicitamente,
e quase sempre com clareza meridiana. quanto ao conteúdo dos
juízos. argumentos e propostas. Assim. questõe~ como a da clas-
A produção geográfica de Ritter, ao contrário da de Humboldt, sificação das ciências ou da definição do objeto geográfico. que
possui um conteúdo normativo explícito que facilita bastante sua não constituíam tema central das elaborações de Humboldt. apa-
análise e interpretação. Na maioria das vezes seus conceitos e ob- recem como a temática central discutida nas páginas ritterianas
jetivos estão expostos de forma clara e inquestionável. Entretanto, consultadas. Este é, iqclusive, um dos elementos de diferenciaç·ão
mesmo assim existem polêmicas entre os comentaristas quanto à dos dois sistematizadores da Geografia: enquanto Humboldt ela- ·
definição de sua proposta. No que tange, porém. a esse conteúdo bora sua Geografia na prática direta de investigação (e. numa
normativo, todos parecem estar de acordo: Nicolas-Obadia, por v1sào enciclopédica que perpassa o nível das disciplinas). Ritter se
exemplo, afirma com ênfase que Ritter "faz uma obra aplicada e propõe explicitamente a elucidação teórico-metodológica dessa
disciplina.
teórica, e explicitamente normativa": Claval coloca que "a obra
de Ritter é interessante em razão mesmo de seu caráter sistemá- Frente ao objetivo as~umido, uma das primeiras questões, que
tico". De qualquer modo. é nas próprias formulações de Ritter inevitavelmente se colocam para Ritter, é a da classificação das
que este propósito de ordenar a investigação geográfica fica abso- ciências e, nesta, o lugar destinado à Geogratia. Quanto ao pri-
lutamente evidente. Diz ele, logo ao início da Geografia Compa- meiro ponto, os textos ritte.rianos consultados não apresentam
rada. que "A Geografia é uma ciência ainda por fazer", e reforça . uma apreciação geral do tema. não tendo sido encontrado ne-
que seu intuito é "fazer da Geografia uma ciência"; mais à frente, nhum esboço de tipologia de ciências nem qualquer outra tenta-
reafirma seu objetivo de "promover uma Geografia Científica, tiva taxonômica. Numa passagem, falando da atmosfera. dos
esforçando-se por introduzir um método". Vê-se que não há como oceanos e dos continentes. coloca que todos são constituídos de
tergiversar frente a uma intenção declarada de forma tão explí- uma multidão de elementos e materiais, apresentando volumes.
cita. Ritter se propõe a dar ao conhecimento geográfico uma fei- extensões e forças variadas, cuja análise individualizada seria
ção de ciência (de acordo com os cânones da época), padroni- ''tarefa de outras ciências" como a Química, a Física. a Mecânica
zando. assim, os conceitos, definindo o objeto e o universo de e a Fisiologia. Esta parece ser a concepção de ciência sistemática
análise, delimitando o seu lugar entre as demais ciências, apro- assumida por Ritter: estudos de aspectos cada vez mais particu-
ximando os procedimentos de levantamento e análise e, princi- lares da realidade. buscando a ótica do específico. Muito dife-
palmente, estabelecendo um inventário do estágio atual dos co- rente seria a perspectiva das ciências históricas ou empíricas,
nhecimentos acumulados, apresentando-os regionalmente a par- preocupadas fundamentalmente com as relações entre os fenôme-
tir de uma divisão continental da superfície terrestre (é este o nos. Segundo Ritter, nestas ciências o "aperfeiçoamento cresce
projeto da Geografia Comparada, que, nesse sentido, identificar- unicamente à medida que a soma das experiências mais impor-
se-ia melhor como um compêndio de Geografia Universal). De tantes aumenta de volume. Assim, podem ser transmitidas de for-
todo modo. não se pode negar o propósito axiomático das formu- ma sempre mais elaborada para as novas gerações". Dessa for-
lações ritterianas. A questão é saber até que ponto ele realizou, ma, o avanço das ciências históricas ou experimentais pede o con-
na prática. seus objetivos. curso das descohertas das ciências sistemáticas, cujos resultados
Este caráter normativo da produção teórica de Ritter faz com são por ela sintetizados, num movimento cumulativo e constante.
que alguns problemas, encontráveis na análise da Geografia de Assim, haveria um comércio entre estes dois planos da atividade
Humboldt, apareçam aqui com intensidade muito menor. Por científica. Entretanto, todo este raciocínio não está explicitado
exemplo; toda a problemática em torno dos rótulos a serem utili- em Ritter, constituindo interpretação da lógica de suas coloca-
ções (apoiada em algumas formulações periféricas). Ainda nesse
170
171
plano. pod,~-se itl[erprett,r que estas dua\ modalidade~ de dên- "Geografia Especial'·, que, peta colocação. se pode deduzir seria
cia<; difereneiam-se ba~icamcnlt:' ~m tunção dos métodos de inves- subdividida em tantos estudos quantos fossem os fenômenos pas-
tlgé!ç:lo que ser~w prioriLados em suas análises. As c1ências siste- síveis de um tratamento geográfico (os manifestados na <;uperfí-
máTicas trabalhariam prioritariamente com o mérodo "subjetivo cie da Terra).
ou classifica tório". e as ciências históricas. cum o metodo "obje- É interessante assinalar que Ritter entende que estes estudos
tivo ou dedutiyo". que ·'tende a revelar t' aspecto principal da'> especiais por si mesmos fariam a trajetória entre a análise regio-
formações dt natureza e a construir os SIStemas, revelando as nal f!evantamentc de casos locais. espacialmente particulares) e a
rclaçõeo; fundada~ na essência mesma da n:1tureza" . Enfim. esta global (classificação e comparação das manifesi.açõe;; do fe11Ô-
s0na a divisão das ciências subjacente à concepção de Geografia meno tratado a nível planetário). Des<;a forma, sua dhisão da
de Ritter. Esta disciplina, para ele . .,eria basicamente uma ciên- Geografia n&o se põe em termos de regional e globaL mas entre as
cia histórica. porém. conforme as snas subdivisões. aproximar- perspectivas sintéticas (relações entre fenômenos) e tópicas (fenô-
se-ia das ciências sistemáti.::a-. ao lançar mão do método classífi- menos ou classe de fenômenos específicos). Ainda ~o plano dos
catório. Isto coloca. de imediato. a questão do pensamento geo- estudos tópicos. Ritter destaca explicitamente a importância de
gráfico. ou. noutras palavras. o problema das múltiplas aborda- se desenvolver uma "Geografia dos produto~ da Naturen''. Diz
gens da Geografia. ele que "uma tal ciência dos produtos da natureza deverá ser ( .. )
Na concepção de Ritter. convivem no interior da perspectiva uma parte muito importante da geografia científica''. Esta divi-
geográfica variadas abordagens. Assim. a Geografia . cnquantr.' são da Geografia Especial estudaria os produtos da Terra em su1
campo específico do C')nhecimeilto. abarcaria difer<"ntes ângulos extensão, moctalirlades. quantidades. qualidades, nos diversos
de análise (interligados. porém. com perfis aut0nomo'>) . Ritter lugares e povos, e em relação ao conjunto do sistema terrestreY
distingue ao nível sintético a Geografia Comparada. a Geografia Segundo Ritter, tal tópico seria urn subsídio funrla.mental para o
Física e a Geografia Universal. além de apontar outras variadas a\·anço do conhecimento geogrâfico como um todo. Em suas pa-
Geografias Especiais dedicadas ao estudo geográfico de fenô- lavras: ··se. apoiando-se no estudo (sistemático) àa Natureza e
menos específicos. Quanto a estas Mtimas, diz ..:om clareza: ''Era- nas fontes disponíveis, a Geografia se mostrar capaz de elaborar
tóstenes é o pai da geografia astronômica: Heródoto e E~trabão uma ciência geral dos produtos. ela poderá chegar a abordar to-
estão na origem da históri?. geugráfica e da geografia histórica. das as relações e~paciais necessárias a seu desenvolvimento, e
Entre os modernos. C'luver elaboron a primeira geografia da Anti- dará a seu objeto a forma científica qHe até hoje :he está cruel-
güidade, Bergmann, a primeira geografia fí&icé!, Buching. a pri- mente faltando, e assim ela ascenderá ao statuc; de Geogratia
meira geografia estatística e política, e outros autores desenvol- cientifica". Vê-se. novamente. mar.ifestar c;e a idéia da Geografia
veram a \:(•rografia ( .. .) Zimmermann pesquisou, pela primeira como "uma ciência por construir", e que tal constn1ção implica o
vez. a relação geral dos animais com a superfícte terrestre e Blu- desenvolvimento de alguns estudos tópicos que. l'On~tituindo ,iá
membach introduziu n:-~ geografia a observação das relações entre parte de seu ser, lhe são pressupostos. Assim. as Geografias Espe-
as raças humanas ( ... )". Vê-se que a possibilidade de estudos ciais são uma divisão do univer<>o de interesse do conhecimento
específicos dentro da Ge'ografia 6. na conc~pção ritteriana, bas- geográfico e, também, uma etapa rta substantivação dos objetivos
tante ampla. Isto fica ainda mais claro na seguinte passagem: maiores da tnvestigação geográfica.
"SeJa com um caráter eminentemente físico. etnográfico ou m0ral Ao n!vcl dessa perspectiva sintética (a '·Geografia Cir.nlífica' '
e político. a observação científica das partes do espaço terrestre. propriamente dita). Ritter distingue difeientes abordagens. É
r~artes efetiva<; e integrantes do Todo planetário. deverá comtituir bastante clara sua diferenciação entre :1 Geografia Fís1ca e a Geo-
o objeto da geografia especial. Nós ainda não desenvolvemos essa
disciplina e só a Geografia Política pode, hoje. abordar cientifi-
J2 ~ po~sÍiel apontar algum paraleltsmo entre tal propoq~ de Hiuer c ai·
camente os dois caminhos representados pelas descrições gerais e guns pontos da obra de Jean Brunhcs notadamente quando este 'eocupa. entre
particulares" . Assim, os estudos de aspectos específicos da reali- 1 os "fatos essencíats da Geografia Humana" com os "latns da conqul\la 'cgetal e
dade seriam englobados numa perspectiva una denominada antmal"h·crBrunhes. J.-Oh <.ll cap lVI '

172 173
grafia Comparada. Falando des~a última e de sua prioriz.ação do possuiria um movimento interno de agregação desses fenômenos
método dedutivo ou redutor, diz de forma explícita: "Seu plano diferenciados. Tal ordem própria atribuiria à Terra o estatuto de
deverá, então, ser totalmente diferente de excelentes trabalhos entidade, isto é, dotada de uma causalidade própria e inerente.
antenores que, sob o nome de Geografia Física ou Descrição Fí- Daí, pode-se interpretar que, na concepção de Ritter. a Geografia
sica da Terra. trataram da mesma ciência, empregando, pelas Física estudaria a manifestação das forças da Natureza na Terra.
necessidades de outras ciências ou de fins particulares, o métoJo isto é, como as leis naturais se substantivam em cada realidade
classtficatório ou ~ubjetivo". A Geografia F bica seria, assim, um.t local da Terra. Já a Geografia Comparada visaria explicar a cau-
síntese de alguns estudos da Geografia Especial. por~m com um.t salidade própria da Terra, a ordem que governa os fatos na super-
tônica marcadamente taxonômica. Já a Geografia Comparada fície terrestre; enfim, buscaria as leis telúricas. Nesse sentido. a
possuiria um horizonte mais amplo, buscando a causalidade e a Geografia Física é posta como uma preliminar da Geografia
generalização. Esta distinção fica evidente quando Ritter di7: Comparada, uma ordenação sintetizada da manifestação das leis
''Nós descartamos a expressão usual de Geografia Física, que re- da natureza na superfície da Terra, necessária para se chegar a
cobre uma parte estreita do conceito de Geografia tal como é con- compreender a ordem que rege e une tais manifestações. A Geo-
cebido aqui e renunciamos também àquele de Geografia Fisio- grafia Comparada seria claramente uma ciência preocupada com
gráfica em uso. mas CUJO sentido é ainda muito ambíguo". É in- relações. Nas palaHas de Ritter: "a ciência das relações terrestres
teressante assinalar que, apesar de Ritter colocar sua proposta espaciais".
fora do rótulo explicitamente empregado por Humboldt de Geo- A Geografia Comparada teria, dessa forma. na acepção de
grafia Física (ou Descrição Física da Terra). concebe a produção Ritter. um horizonte mais abrangente que o da Geografia Física.
desse autor como análoga à sua, colocando-o como "fundador da pois englobaria Integralmente os resultados desta e adiCIOnaria
geografia comparada moderna'·. outros fatores no estudo, por exemplo, os sobremaneira impor-
Na concepção de Ritter, a Geografia Física seria uma apreen- tantes fenômenos ligados à atividade dos homens. Talvez seja isso
são da superfície da Terra, vista enquanto local de manifestações que Ritter queira dizer ao colocar que a "Geografia Natural nos
de fenômenos naturais variados estudados por ciências sistemá- deixou insatisfeitos, pois consideramos a dimensão histórica da
tica<; específicas. Estudaria, então, os efeitos de urna causalidade Geografia como o elemento mais importante dessa ciência". De
que lhe é exterior, r>endo, nesse senudo, tributária das ciência!> todo modo, ele é muito explicito quanto à maior abrangência da
naturais e de alguns ramos da Geografia Especial. Teria por inte- Geografia Comparada, tanto que, ao defendê-la, afirma: "As
resse compor um quadro físico do globo, vendo aí a ação das obras de Geografia têm-se limitado até aqui a descrever as partes.
forças naturais (estudadas pela Química. Física ou Biologia). Ri t- Contentam-se em descrever e classificar sumariamente as diferen-
ter não menospreza a Geografia Física, apenas lhe atribui um tes partes do Todo; a Geografia não tratou ainda das relações e
horizonte de preocupações mais limitado que o da Geografia das leis gerais, as únicas capazes de fazer dela uma ciência e de
Comparada; sobre esta, afirma: "A Geografia Comparada abre lhe fornecer sua unidade". Vê-se a idéia da Geografia Compa-
para a Geografia como ciência um novo domínio. que nós no~ rada como o corolário dessa disciplina. dando unidade e sentido a
esforçaremos para expor aqui na medida de nossos falhos meios. todas as abordagens da investigação geográfica, ao tematizar em
mas que pode evoluir a ponto de ser um dia a Geografia Um- si a harmonia telúrica que a tudo engloba na superfície do pla-
versa!". neta.
Se lembrarmos a diferenciação introduzida por Ritter. ao nÍ\el Sintetizando o que foi apresentado. pode-se afirmar que na
filosófico, entre a Natureza e a Terra, podemos melhor equacio- concepção ritteriana o conhectmento geográftco é formado de dt·
nar esta distinção entre a Geografia Fí.,ica e a Comparada. Foi ferentes abordagens (correspondentes a diferentes interesses, mé-
visto que ele concebe a Natureza e a Terra como duas entidades todos, níveis de tra lamento e universos de análise), que se unifi-
distintas (dois Todos, dotados de ordem e sentido). A Terra seria cam e se individualizam pelo parâmetro terrestre de todas as suas
uma manifestação de inúmeras forças e elementos da natureza preocupações. Nessas diferentes abordagens, a análise osc1la
governados por harmonia própria {por isso seria um Todo), isto é. entre a escala local e a global. o elemento de diversifica~ão delas

174 175
rçsídindo no grau de complexidade do objeto tratado e na finali- fonnas sólidas ou ..:ontinentes; As forma~ fluída'> ou elemen10s:
dade do estudo em termo!> de generalização. A Geografia Compa- e Os corpos dos três reinos da Natureza. Ne)te último campo. a
radn aparece nesse quadro como o corolário de todo o honzonte figura do homem e da história da humanidade ganham relevo.
de prcocapações desse campo do conhecimento científico. Para pois. como foi visto. "o homem pert:Jassa os trêl> reinos da Natu-
chegar a seu resultado. tal Geografia necessita do concurso de re7a corno um fio condutor" c a história humana é a finalidade
todos 0s campos da investigação geográfica. Na avaliação de Rit- mesma de todo o existente. A análise desles três campos propi-
tei C!>\e pressuposto permanece inconcluso, pois a Get,grafia "não ciana a compreensão da harmonia e da5 leis que regem a superfí-
se impôs uma ordem ( ... ) seu materiill resta ainda como letra cie da Terra
morta, e lhe é um pesado fardo''; ela não "ascendeu a um cálculo - O objeto pnmciro de toda imcstiga:ção geográfica é a Terra.
sistemático da riqueLa dos seus dados ( ... )joga com !:>Cus tesouros po1s é a perspectiva telúrica que especifica a análise geográ-
como uma criança brincando com pedras de ouro". Ainda. se- fica. Segundo Ritter. a Terra deve ser apreendida primeiro como
gundo Ritter, a Geografia não está pronta nem para orientar uma "teatro dos acontedmeutos naturais''. no sentido de que ''os
Filosofia da Natnreza, e nem a Geografia Física atingiu um pata· monumentos que a natureza aí cdifi..:ou e seus símbolos miste-
mar necessário. l.endo ainda "imperfeita e cheia de lacunas". riosos de•em ser observado~ e des\:ritos. suas formas definidas
Como ciência histórica. não especulativa, a Geografia tem neces- ( ... ) c cla%ificadas em !:>eU'> principais caracteres". Mas a Terra
~idade de "assentar a~ pedras antes de construir seu edifício -
também interessa enquanto ··morada do homem·· ou "teatro
essa a nossa única ambição( ... )". Vê-se que, para o autor, a Geo-
dd história". pois para ele "o homem é aquilo que a natureza
grafia ê ainda uma ciência a se construir (para ser digna desse
conhece de maior( ... ) ele atravessa os três reino<,; (mineral, ve-
denominati\•o). E, mais. Ritter vê o seu próprio trabalho nesse
getal e animal) como um ho condutor e aparece na finalidade
sentido, daí sua obra ser assumidamentc metodológica e norma-
de cada forma principal como um espelho da natureza". Assim.
tiva. axiomática. Cabe, segundo ele. dar alguma ordenação ao
o homem é. pela fundaméntaçâo teológica já apre~cntada. um
material e ao procedimento dos geógrafos. e, sendo esta uma
ciência histórica, tal contribuição não poderia advir de teorias elemento essencial da imcl.tigação. pois encarna. na perspec-
substantivas, mas da elaboração de método. tiva ritteriana. o papel nítido de "sujeito da natureza''. Este
A discussão ::itteriana vai desenvolver-se prioritariameme no propósito antropocêntrico da Geografia de Ritter é bastante enfa-
plano da Geografia Geral Comp1}rada. Diz Ritter explicitamente tizado por Hartshcrne, que diz: "Outros sábios do século XVIII
que sua Geografia ''pode ser definida por dms qualificativos: Ge- observaram que pertencia à esfera da Geografia o estudo da
ral - não pelo esforço de apresentar tudo. porém porque. sem Terra corno lugar de habitação do homem. E desde o começo
considerar um só o'bjeto específico, está empenhada em explorar do século seguinte Ritter referiu-se. entre outros. à superfície da
com a mesma atenção cada parte da Terra c cada uma de suas Terra como âmbito da Geografia ( .. . ) É certo que ele, por ve-
formas, imbricadas no liquido e no sólido, num lugar longínquo zes. escreveu sobre o planeta ou eskra. mas. nesse caso. geral-
ou no solo pátrio, seja a terra de um povo agricultor ou um de- mente acrescentava 'como morada do homem'··; em outra pa!>-
serto ( ... ) Poi~ é ~ó discutindo o~ tipos básicos das formações es- sagem, reafirma: ''Muitos estudiosos sentiram-se perplexos ante
senciai' da natureza que se pode chegar a um sistema natural a palavra 'lrdisch ' na expressão de Ritter. Quaisquer que sejam
( ... ): c C01nparacia. no sentido de outras dências que já se cons- as razões dele. ao empregá-la, Ritter afirmou explicitamente,
tituíram ..:omo disciplinas instruti>as; pensamos aqui especifica- em seu contexto. que incluía não apenas a crosta da Terra, a cober-
mente na Anatomia Comparada'' .J3 Essa Geografia. por sua vez. tura vegetal e o mundo animal. mas também o mundo do ho-
-;ul:>dividir-se-ia em três grandes campos de estudo, a saber: As mem com todas as atividades deste. que incluíam o5 'movimentos
animados' e as 'forças intelectuais' ( ... )". Também Clava! con-
)J Riucr. C. - üb. ci 1.• pp. 55 e 56. Ad1untc Rlttcr Jiz que \Ua Geografia é corda com esta a'aliação, quando diz; ··carl Ritter se expressa\a
1
Comparada J.>Nquc "em nt>SSt' conhecunento rins di.!.lmto' ponto~ da Terra no~
defront<JlllO~ com fatoJ' análogo~ c análogo~ modo:. de atuação' (ib1dcm, p 56).
do seguinte rnodu: ·o objeto da Geografia con~1ste em dar a co- ·
nhecer ao homem o cenário onde 1ranscorre sua atividade. não
176
177
:.e trata então de uma descrição do lugar por si mesmo. e sim intenção e seu encadeamento são bem apreendidos por Tatham.
sempre em função do homem' ( ... )".34
ao colocar: "O conceito de individualidade regional derivado das
Deve-se assinalar, entretanto, que. apesar da postura marca-
idéias de Forster e Zeune, combinado com o conceito de conjunto
damente antropocêntrica, a Geografia de Ritter apreende o ele- de Kant, tornou-se um dos motivos da Geografia Comparada. Os
mento humano como fator de compreensão da realidade terres- conjuntos individuais poderiam ser de várias dimensões. Cada
tre, sendo esta e não o homem em si o objeto primordial do es-
continente possuía diversos conjuntos, sendo entretanto, em si.
tudo. Isso é claramente expresso por ele ao afirmar que a inves-
um conjunto. Assim, também, a totalidade da Terra era um con-
tigação geográfica busca apreender "o mais completo e mais cós-
junto cósmico, com organização individual (en sui generis). Pes-
mico aspecto da Terra, juntando e organizando em bela unidade
quisar e apresentar a individualidade da Terra constituía a maior
tudo quanto sabemos em relação ao globo". Assim, o homem é tarefa da ciência geográfica''. 35
abrangido pela análise enquanto elemento diferenciador da su-
Ritter é bastante claro ao colocar a relação como objeto da
perfície terrestre. É esta diferenciação que deve ser explicada pela
investigação geográfica, como o meio de se chegar à causalidade
Geografia, isto é, Ritter propunha uma discussão ontológica da
terrestre. Isso fica evidente quando ele afirma que a Geografia
Terra em sua unidade e variedade. Em suas palavras: "Apresen-
deve "buscar descobrir, no curso de uma evolução histórica exata,
tar um quadro vivo do conjunto da Terra, seus produtos nah1rais
a unidade da lei na diversidade dos fenômenos". Desse modo,
e cultivados, ~us aspectos naturais e humanos, e demonstrá-los
tanto a interrogação sobre o Todo terrestre como a análise local
num todo coerente, de tal forma que a mais significativa conclu-
devem buscar as formas de articulação entre os fenômenos va-
são sobre o homem e a natureza ficará evidente( ... )''. Tal estudo
riados - os sistemas naturais, pois a ordem manifestada atra-
da Terra (sua explicação), teria uma finalidade antropocêntrica,
vessa as diferentes escalas, apontando para a compreensão da
como todas as ciências. de conscientizar o homem acerca da reali-
individualidade terrestre. Assim, não há uma oposição entre as
dade que o envolve, no caso da Geografia, come já foi dito. "fa-
miliarizá-lo com o cenário de sua ação". escalas, nem mesmo uma hierarquização no encaminhamento de
' .. sua compreensão. Daí Ritter preconizar que se deve ver o "fenô-
'f'JJ' \ \~
A idéia de conjunto ou de sistema (ou ainda de Todo) é central
na concepção do objeto geográfico contida na proposta ritteriana. meno local em suas relações de causalidade". Na verdade, para
~t' ele o que existiria seriam níveis diferentes de complexidade no
,~\" J- De acordo mesmo com sua visão ontológica da Terra, esta é "um
sistema específico de fenômenos( ... ) um corpo físico constituído universo tratado, independentes da escala em foco, ao contrário
\ ,JJ"' presentes em todas elas. Nesse sentido, o estudo encaminhar-se-ia
~<-f
e animado por forças naturais( ... ) um planeta distinto com uma
do simples ao mais complexo. do arranjo menos numeroso de
ordem característica". Enfim, a Terra apresenta-se no real como
fenômenos ao mais numeroso. E sempre tendo a relação com o
y- um Todo, a "totalidade do sistema terrestre". que "foi organi-
zada desde a origem para servir de teatro à natureza e suas forças
caminho analítico, o que fica explícito para Ritter ao colocar "os
·íf- en<·adeamentos como mais importantes que os fenômenos genéri-

~ t
e para acolher os povos". A Terra é tomada assim como "um
sistema diversificado de fenômenos''. O conhecimento das leis cos''. Nicolas-Obadia apontou com presteza este enfoque, ao di-
zer: ''A Geografia é para Ritter a ciência das relações espaciais.
<me..regem a harmonia telúrica. logo a ~nidade dessa totalid~de,
seria o objeto (lltimo da Geografia ritteriana. Esta totalidade- Ele define o axioma corológico 'é geográfico todo objeto, no sen-
tido estatístico do termo. que diferencia o espaço terrestre'".
Terra, segundÕ Ritter. seriaJubclividida em outros to..QQLme~o­
Hartshorne é ainda mais enfático, ao afirmar: "Nas análises de
res, sen_do a_so_J!!P-re~~ão destes e da lógica de sua divisão oca-
minho p~ara se chegar à ~compreensao da-totalidade maior. Esta Ritter, a heterogeneidade dos fenômenos foi não só aceita, mas
.. . - - - - - ~ ·-- -
35 Tatham. G. - Ob. dt. p. 21 I. Este autor afirma ainda: "Escritore\
34 Hartshorn~ . R -- Pr'>p<Ístlos e natureza da geografia. ob. cil.. pp. 23
anteriores a Ritter (For\ter. Zeune). que e~tabeleceram o conceito de conjunto.
e 7 1. respecli>amente. Nesta scgt1nda afirmação. Hartshorne reforça ; •·o homem
nunca o distinguiram de mero agr~gado de parte~ R111er foi o pnrnciro J tentar a
pertence à Terra, é terre\tre c~>mo Ritter acentuou": e Clava!, P. - Evo/ució" de
reunião dos di,·e rsos elementn~ e apresentâ ·ln\ como uma totalidade diStmta"
(a geoJJrafíu. h•w11ma oh. c !L . p 11 7. nota 20.
1 ibidem. p. 211).

178
179
acentuada como característica e!>sencial da Geografia.~ matê.ri-ª .thumanidade''. Vê-se que este tema aflora aqUI enquanto ele-
encontra sua unidade e especificidade enquanto campo do conhe- mento diferenciador da superfície terrestre. logo geográfico. Isto
cimento, através do estudo do caráter das áreas. determinado fica claro na seguinte passagem: "A Terra e seus habitantes man-
pela multiplicidade de aspectos que, em suas inter-relações-' reco- têm-se na mais estreita reciprocidade. não podendo um ser apre-
brem as áreas da superfície terrestre" . 16 Parece que Hartshorne sentado em todos os seus aspectos sem o outro. Assim, pois, a
enfatíza em demasia a existência de um privilégio da escala local. Geografia e a História devem sempre andar JUntas. A Terra tem
de resto, sua afirmação é correta: os encadeamentos. as articu- influência sobre os habitantes e estes últimos sobre a Terra".
lações, os arranjos ~ão. sem dúvida, as metas da preocupação Vê-se que a questão é tomada por sua incidência explicativa
ritteriana. na compreensão da realidade terrestre. Isto fica ainda mais claro
Na!> obras de RHter analisadas. não é a escala local (as "loca- quando Ritter argumenta que a Geografia "se interessa pelo con-
V !idades concretas da Terra", para usar sua expressão) _gue é des- teúdo do espaço. não do ponto de vista da estrutura, da forma e
J, ...t.!' tacada, e sim a c~>ntinental.- Para ele. os con_!inentes representam das forças inerentes ao material em si ou sob o ângulo das leis
' ;i''\ uma divisão primeira e fundamental do "Todo que é o gloQo ter- naturais a que ele obedece( ... ) Ela se interessa pelas relações do
\f restre enquanto forma de espaço". sendo em si mesmo, cada desenvolvimento diferenciado, da esfera de extensão e das leis de
( ·u m. um Todo. Nas suas palavras: "os grandes continentes se expansão destes espaços sobre toda a Terra( ... ) A humanidade,
apresentam para a observação, que os aborda como Todos mais seus povos e se~s indivíduos são parte integrante do conteúdo
ou menos separados pela natureza e que nós consideramos agora material dos espaços, dado pelas forças naturais e os três reinos
como os grandes indivíduos da Terra". Estes "indivíduos" deve- da natureza ( ... ) Nós podemos considerar que as condições im-
riam ser inquiridos em sua "individualidade", sua causalidade- postas por estes espaços ao mundo animado e inanimado e ao
finalidade, enfim sua predestinação. Ritter, apesar de realizar desenvolvimento mental·dos homens, dos povos e da humanidade
suas obras empíricas em divisões contmentais (a Europa e a divi- inteira representam parte importante da Geografia científica( ... )
são dos volumes da Geografia Comparada em África e Ãsta), efe- Nós admitimos que estas relações e condições próprias a nosso
tua a exposição em quadros "regionais". isto é. como seqüência planeta e suas localidades, que evoluem no tempo do físico ao
das "partes". Entretanto, não deixa de tecer teorizaçõe!> na escala mental e que agem sobre a humanidade, constituem o princ1pal
dos continentes, por exemplo, comparações ao nível da forma ou objeto da Geografia Científica" .J7 A questão da relação homem-
da massa dos contmentes. t também ao nível dessa escala que natureza, uma das questões fundamentais de toda a Geografia
formula a sua conhecida "lei da articulação litorânea". ou "lei posterior, recebe, na proposta ritteriana, um papel de relevo.
das costas''. onde compara os graus de continentalidade de cada Como aponta Krebs: "Entre os geógrafos, Karl Ritter foi o pri-
continente. tecendo correlações com seu desenvolvimento histó- meiro que submeteu o problema à consideração científica. porém
rico. de fato foi a História que obteve maior proveito''. Porém, cabe
É na aceitação do estudo das relaçõe!. como caminho para se enfatizar, este realce não redunda em que ele tenha elevado tal
apreender a individualidade dos Todos terrestres que Ritter se tema ao nível de objeto da Geografia; esta é. l.em dúvida, a com-
depara com aquela que será uma das questões a cujo tratamento preensão da ordem ou harmonia terrestre. A relação homem-
seu nome será mais vinculado no futuro: a questão das relações natureza é tematizada enquanto elemento eluc1dador desta, como
entre as condições naturais e o desenvolvimento histórico dos po- bem aponta Hartshorne: "Por conseguinte. é sobretudo em seus
vos. Ritter considera parte importantíssima da ciência geográfica aspectos humanos que as áreas diferem, não apenas em sua mor-
o exame "da influência que o ambiente físico exerce tanto sobre o fologia mas, igualmente, no que Ritter denominou sua fisiolo-
mundo inorgânico como sobre os organismos vivos, sobre a evolu- g}a" .38
ção e desenvolvimento dos md1víduos e povos, e assim sobre toda
37 Ritter. C. - Ob. dt . pp. 135·136.
Jô N1colas·Obadi.t, G - Ob. l'lt.. p . ló e Hamhorne. R. - PropÓSIIOS e 311 Krcb~. N.- Geografia humana, Labor Barcelona, 1950. p. 10 e Hart·
natureza da geografia oh CÍl , p JO. shorne, R. -PropÓSitOS e natureza da geo!vufiu, <lh Cll, p. 20

180 181
Enfim, esta é a concepção do objeto da Geografia segundo zado em geral ao especial, do geral ao mdividual, da generalidade
Ritter: a busca da ordem que rege o Todo terre!.tre, enquanto ser ao singular". A segunda regra diz respeito ao "agrupamento do
singular da realidade, constituído do entrecruzamento de fenô- agual e do !>imilar". Uma outra consiste "em se esforçar para
menos da Natureza; ordem esta apreensível pela compreensão da recolocar o fenômeno em seu contexto histórico, a saber, em sua
individualidade da Terra, que, por sua vez. se torna cognoscível evolução". c uma última, finalmente, "compreende a distinção
pela compreensão da individualidade dos lugares que constituem entre a magnitude intensiva de cada fenômeno em relação à sua
as diferentes partes deste Todo- os continentes; cada lugar, por extemiva manifestação territorial; dito de outra forma, acele-
sua vez, expressa arranjos (sistemas naturais) de elementos e for- ranJo a subordmação necessária da matéria à lei geral".
ças. sendo. assim. a relação entre os fenômeno~ o caminho da Após esta formulação geral de método, Ritter \'ai detalhar al-
compreensão das realidades locais (e também nas demais esca- guns preceitos de sua concepção. Tal é, por exemplo, o senl!do de
las); entre estas relações, papel privilegiado cabe àquelas referen- suas colocações sobre o papel do estudo das formas na investi-
tes às influências recíprocas entre a humanidade e a natureza. gaçào geográfica. Ele defende que tal estudo é primordial para a
A ótica geográfica é, para ele, aquela que privilegia a "impor- Geografia, e que, para realizá-lo, deve ser buscado o arsenal da
tância espacial dos fenômenos''. Geometria, isto é, o geógrafo deveria trabalhar com o referencial
As colocações metodológicas de Ritter não conseguem acom- das figuras geométricas, com a aproximação a estas da!) formas
panhar a profundidade e explicitação de suas colocações ontoló- e~paciais reais (a "forma plástica dos espaços"). Nas palavras de
gicas. Boa parte de sua discussão de método está centrada na Ritter: "Assim, na ótica do estudo da!> figuras geométricas funda-
explicitação e homogeneização de conceitos, isto é, na padroni- mentais dos espaços terrestres, algumas categorias e conceitos de
zação dos termos utilizados no discurso geográfico. Por exemplo, classificação aparecerão comtituídos por relação aos arquétipos e
Ritter critica o uso vago e indiscriminado do termo ··montanha", a suas. variações de maneira precisa e científica, o que permitirá,
ora designando o que ele denominará de maciço ou planalto, ora na leitura da~ figuras. deduúr a~ relações e características que
designando elevações locais, como os montes ou os promontórios. forem próprias a cada classe. a cada subclasse e a cada indivíduo";
O mesmo se dá com outros termos geográficos como ''vale" ou um pouco adiante, reafirma: "É reagrupando as figuras geomé-
"divisor-de-águas". os quais devem à formulação ritteriana suas tricas e todas as suas subdivisões com suas relações qualitativas e
primeiras elucidações conceituais. No que tange, também. à prá· quantitativas que se poderá descobnr a expressão mais concisa,
tica imediata de pesquisa, Ritter, que, como foi mencionado. não suscetível de designar as características imanentes dos continen-
desenvolve um trabalho empírico de levantamento, não introduz tes, dos países. dos territórios, das províncias e distritos". En-
grande\ ensinamentos, limitando-se a precomnr os métodos de quantt) representações visuais, as formas permitem analogias,
observação e levantamento desenvolvidos por J. R. Forster. No logo. comparações. Também permitem identificações por abstra-
que toca à metodologia de interpretação, a produção ritteriana ção (proximidade das formas reai!> às figuras ideais), atuando ao
também não é muito rica. Afloram aqui, entretanto. algumas nível da regra de procedimento precomzada de ·'agrupar o seme-
concepções interessantes. lhante". Ritter defende que. com o uso da Geometria. pode-se
Ritter defende que o método especificamente geográfico seria partir do semelhante para chegar ao diferente. Assim, nesse jogo
o método redutor. ou "das conexões". o único capacitado para entre comparação e identificação, chega-se à meta prioritária de
definir as individualidades. Tal método precomzana algumas re- compor o "mosaico terrestr~::" pela definição das individualidades
gras de procedimento: A primeira. "que assegura o progresso do de diferentes escalas. Ainda na!. palavra!) de Ritter: "É assim pro-
conjunto e de cada um dos resultados, embasa-se na passagem do cedendo que as extensões da Terra dotadas de formas idêntica<.,
mais simples ao mais complexo, de cada urn dos lado~ ao centro aparecerão como terras diferenciadas, e se constituirão em luga-
ou à unidade, começando pela regra para depoi!> enfrentar as ex· res terrestres precisos. dotados de uma individualidade própria,
ceçõcs; quer dizer. abrindo em todas a~ direçõe~ na<> relações do feita df: fenômenos fundamentais, de particularidades e de rela-
espaço( ... ) Indo da influência mel:ânica. química e orgânica à ções secundárias específicas". Fica evidente o objetivo almejado
'ida total. da natureza ao homem. e. novamente. rlo caracteri- de compreender a particularidade dos e~paços terrestres. c a prio-

182 183
rização do uso das figuras geométricas nos momentos iniciais da humanidade deveria ser pesquisada pelo geógrafo, ambas como
investigação. Ainda nessa etapa inicial da pesquisa. as figuras elementos de explicação dos lugares terrestres. Ritter refere-se
geométricas ajudariam, segundo ele. na divisão das "partes" da explicitamente à necessidade de se abordar a "disseminação efe-
superfície da Terra, permitindo "compartimentar os espaços ter- tiva das tribos e famílias de línguas, a progressão dos tipos de
restres em continentes, países, subdivisões naturais e artificiais cultura vegetal e outras relações também importantes historica-
( .. ) ajudando ( ... )a definir qualitativamente os espaços". mente". Assim. a Geografia e a História, sem se confundirem,
Ainda no plano dos passos iniciais da pesquisa geográfica, caminhariam paralelamente. Para ele, a Geografia não pode
outro ponto referente aos métodos de análise que Ritter vai dis- abrir mão da análise histórica, como observa corretamente Hart-
cutir diz respeito ao uso do número e do arsenal da Matemática. shorne: "A conclusão de que a Geografia deve utilizar-se de ma-
Segundo ele, a medição e a contagem são fundamentais na iden- terial histórico para explicar a presença e o caráter de aspectos
tificação dos elementos e na caracterização dos lugares, forne- atuais, tem sido quase que universalmente reconhecida desde que
cendo uma linguagem universal padronizada e rigorosa que apro- Ritter expôs este tema em sua famosa conferência sobre '(J Ele-
ximaria as várias pesquisas, .abrindo grandes facilidades para a mento Histórico na Geografia· ".
comparação. Para Ritter, os números permitem demonstrar a Restaria ainda salientar, dentro da proposta metodológica
"natureza real das relações geográficas" e o estabelecimento de ritteriana, que toda a pesquisa geográfica deve ser construída so-
uma "sistemática exaustiva'' na Geografia. Assim, o uso do ins- bre um patamar empírico sólido. Ritter é bastante claro quanto a
trumental matemático seria imprescindível para a pesquisa geo- este ponto ao defender que a forma de garantir "toda verdade ao
gráfica. A necessidade do cálculo apareceria na "interpretação conjunto é avançar de observação em observação, e não da opi-
gráfica e na articulação lógica ( ... ) do conjunto do sistema de nião ou hipótese à observação". Assim. a Geografia é meridia-
relações"·. Ritter, entretanto, já deixava claro que os números de- namente assumida como ciência empírica, que tem por base a
veriam ser vistos enquanto instrumentos, asseverando que uma observação; em suas próprias palavras: "O meu sistema não se
concepção puramente matemática em Geografia seria inerte, pois baseia em teorias, porém em fatos".
só forneceria "imagens abstratas". Cabe mencionar, já na relação entre objeto e método, o papel
Ritter também destaca o papel da análise histórica na pes- que Ritter destina à intuição na investigação geográfica. Esta,
quisa geográfica. Esta já havia sido apontada, nas regras funda- . como foi visto, está na base da teoria do conhecimento que in-
mentais, como elemento para se chegar à particularidade. Tal forma seu pensamento e também o de Humboldt. Entretanto, o
postura é reafirmada em várias passagens de suas formulações. momento da investigação científica, no qual a intuição está cen-
Por exemplo: "Mas a ciência geográfica não pode igualmente pri- trada, varia nos dois autores. Em Humboldt. a intuição está alo-
var-se do fator histórico. se ela quer ser uma verdadeira disciplina cada prioritariamente no momento da apreensão da individuali-
das relações terrestres espaciais e não um feixe de abstrações, um dade local (a "impressão da paisagem") . Em Ritter. a intuição
compêndio que fixa um quadro e permite avaliar o vasto mundo, terá por /ocus prioritário o momento da generalização pela apreen·
mas não permite conhecer a realidade espacial através de suas são da causalidade (a "harmonia da parte como a harmonia do
relações essenciais, assim como a conformidade interna e externa To~o" ). Isto não quer dizer que ela seja estranha à apreensão da
a suas leis''. Para Ritter, os espaços e os sistemas de relações são particularidade, mas que se concentra não na ótica do específico,
mutáveis no tempo e valorizados de forma diferenciada pelos mas da universalidade. Nas palavras de Ritter: "A unidade do
povos ao longo da história. Assim, cabe entender a evolução his- Todo é uma intuição dada pelo que há de comum na diversi·
tórica, nas suas palavras: "Em vista de sua natureza específica, dade". Assim, a intuição entraria com realce como fundamento
a Geografia científica só poderá nascer levando em consideração do processo cognitivo num momento posterior àquele defendido
distinta os fatos relativos a periodos e ( .. .) personagens histó- por Humboldt. Em termos da estrutura lógica do processo de
ricos"; ou ainda: "Devemos combinar dados espaciais e históri- pesquisa, poder-se-ia especular que, apesar da postura religiosa,
cos para chegar a fazer uma imagem completa da realidade ter- a proposta de Ritter deixaria um espaço maior de racionalidade
restre". Assim como a história natural. também a história da antes de assumir o fundamento irracionalista. Seria isto o que

184 185
daria possibilidade de uma "leitura empirista" de sua proposta, SOCIEDADE E NATUREZA NA GEOGRAFIA DE RIITER
pois toda a fase inicial do processo de pesquisa estaria apoiada
em procedimentos de investigação objetiva, ao contrário de Hum-
boldt, para quem o fundamento subjetivista aflora já ao primeiro Resta enfocar como o elemento humano aparece tematizado na
contato entre o sujeito e o objeto.
proposta de Geografia de Ritter. Como foi observado em itens
Ainda quanto à intuição, Ritter considera-a, aparentemente, anteriores, este autor inaugura a dtscussào geográfica sobre are-
no sentido kantiano de intuição pura, isto é, como elo entre a lação homem-natureza, colocando-a mesmo como um dos objetos
racionalidade do mundo e a razão do investigador. Tal postura principais de tal disciplina. Também foi colocado que, em função
apareceria, também ao contrário de Humboldt. de forma não da postura teológica que legitima a prática científica. o pensa·
explicitada. Por exemplo. quando Ritter implicitamente vincula-a mento ritteriano vai priorizar. muito mais do que o de Humboldt,
também ao nível do senso comum, ao dizer: "Os produtos da a figura do homem, vista como o :-ujeito e a razão de ser da natu-
Natureza em seu conjunto, em seus reagrupamentos locais, em reza e da própria ciência. Cabe agora avaliar como se substantiva
sua repartição, permitem compreender o caráter distinto dos es- esta priorização, e que concepções sociais ela veicula.
paços terrestres ( ... ) cuja apreensão global e intuitiva marca Antes de penetrar nas colo\ ações de Ritter. é interessante
incontestavelmente o desenvolvimento e a vida material e espiri- apresentar que os comentarista~ de sua obra, ao abordarem este
tual dos homens". Vê-se que, pela via intuitiva, haveria na con- ponto, limitam-se praticamente a apontar a perspectiva determi-
cepção de Ritter uma Geografia não normatizada do senso co- nista aí contida. É o caso de G. Nicolas-Obadia. que considera ser
mum. o grande mérito de Ritter o haver ele passado do determinismo
Bem, esta é uma visão geral, concisa e interpretativa da con- global ao especificamente geográfico. É também o caso de P. Cla-
cepção de Geografia de Ritter. Uma ciência que estuda relações va!, que não tem dúvida em enquadrá-lo nesse rótulo, dizendo
terrestres espaciais, que se constituem enquanto sistemas da que Ritter tinha por objetivo central discutir ··como a configu-
Natureza, tentando apreender nos encadeamentos a causalidade ração das terras determina o destino dos povos". Também E. La-
especificamente telúrica. Deve-se enfatizar que Ritter vai con- vasseur, para dar apenas mais um exemplo, compartilha dessa
cebê-la como um projeto que apenas se inicia. assim como um opinião. Diz ele: "Ritter tem dois defeitos que não são raros entre
corpo de conhecimentos em construção. É por isso que sua pro- seus concidadãos: diluí suas idéias na imensidão de sua erudição,
posta é claramente normativa em termos de delimitação do ob- e, mesmo aceitando a influência decrescente da natureza à me-
jeto. Ritter entende sua proposta teórica, e também seu trabalho dida que a civilização avança, tende muito ao fatalismo que assi-
empírico, como uma primeira ordenação do material, e vai frisar, mila as diversas formas de civilização a um tipo de vegetação pró-
quanto ao objeto, pois teme pela sua dispersão. Isto fica evidente pria a cada solo" .39 Assim, vê-se que a discussão ritteriana sobre
quando coloca: "É grave que uma ciência tenha necessidade de o elemento humano na Geografia é identificada diretamente com
ser estimulada artificialmente por outras ciências ( ... )Se ela não a gênese da ''escola determinista" .
possuir em si um germe de desenvolvimento, ela não viverá"; e O determinismo contido no pensamento de Ritter é facilmente
acrescenta adiante que a Geografia só se desenvolverá ''desco- aferível. Várias passagens podem ser evocadas para ilustrá-lo:
brindo seu objeto, a saber o globo terrestre em seu conjunto e em Numa versão atenuada, "o processo de desenvolvimento da huma-
suas partes"; e afirma que por isso deve buscar "uma cadeia de nidade é tributário da existência de uma harmonia com a orga-
causalidade dos fenômenos terrestres locais e gerais". Esta última nização da terra ( ... ) pondo de lado a questão das origens étnicas
citação de Ritter parece sintetizar perfeitamente sua proposta. ( .. . ) podemos ver a influên<'ia exercida pelo meio natural, um
quanto ao objeto geográfico e à forma de seu tratamento.
39 Nicolas-Obadia. G - Ob. cit.. p. 19 e Claval. P. -La pensee géogra·
phtque. introductton a son histotre. ob. cit., p. 4ó. Ver também Clava). P. -
Evoluci6n de la geografia humana. ob. Ctl . p . SI e Leva~~eur, E .. em Claval. P.
c Nardy. J -P. - Oh. cit., p 69. '

186
187
fator que contribui a condicionar o desenvolvimento da personali- agora mais diretamente. pode-se assinalar que ele não afirma que
dade dos povos"; ou noutra mais radical, "os caracteres da natu- a ação ambiental cesse com a civilização, mas sim que ela se ate-
reza regional diferenciados, influindo na guerra c na paz, no indi- nua e se modifica. Isto posto, vem à tona a questão do que Im-
viduo e na coletividade, na barbârie e na civilização". Os exem- pulsiona este progresso.
plos poderiam suceder-se: "No seu conjunto, seu reagrupamento As formulações ritterianas também são bastante explícitas
local, na repartição que Lhe é própna, os produtos da natureza quanto a esta questão. Diz ele: "O aparecimento dos povos e dos
permitem compreender o caráter distinto dos espaços terrestres E<otados no curso da história foi, de qualquer modo, condicionado
( ... ) cuJa apreensão global e intuitiva marca incontestavelmente e estimulado por esta harmonia entre povo e pátria, entre Estado.
o desenvolvimento e a vida material e espiritual dos homens": natureza e humanidade, quer dizer, entre a natureza física e polí-
assim, "a organização espacial local do sistema natural do nosso tica"; e numa outra passagem: "As relações globais da nature1a e
planeta" marca o desenvolvimento também dos povos, regis- da história, que observadas parcialmente no processo de desen-
trando "uma grande influência, ao longo da história da huma- volvimento da hum,anidade, correspondem igualmente a esta
nidade, sobre a evolução efetiva e mental do homem e também organização cósmica das extensões terrestres. Mas a posição das
sobre seu comportamento", a personalidade dos povos é "influen- diversas extensões de terra recobre também sua fisionomia parti-
ciada pelo fator do meio natural, é uma segunda natureza", por cular; os conjuntos espaciais em si, e notadamente em suas prin-
essa razão, toda atividade espiritual e produtiva é "orientada cipais cadeias intermediárias, são a influência determinante que
invariavelmente conforme o meio ambiente". Nessa citação já estas terras exerceram sobre o desenvolvimento dos povos e dos
está presente a essência do determinismo geográfico de Ritter: as acontecimentos. e necessitarão ser seriamente analisados na lus-
condições naturais são o motor da história humana, determi- tória de cada povo". Assim, são as condições naturais e espaciais
nando o destino do homem e da sociedade. Esta posição é por que determinam as possibilidades dos povos. Não há como tergi-
demais evidente. Entretanto, cabt.: aprofundar sua explicitação. versar sobre a opinião ritteriana nesse assunto, pois ele se refere
Ritter aceita que a determinação da natureza diminui com a em vários momentos à "natureza estimulante destas forças das
civilização, ficando isso claro quando ele coloca: ·•f evidente que, relações naturais externas que agem sobre o curso da evolução da
na influência que elas implicitamente exercem sobre a evolução humanidade", e diz que é a partir daí que os povos se diferenciam
dos povos e das civilizações, as forças naturais diminuem seu peso "uns suscetíveis de progredir. outros condenados a estagnar": c
à medida que estes progridem. No começo da história, elas, como conclui, de modo inequívoco: "E na repartição diferencial e na
impulsos naturais, exerciam uma influência decisiva sobre os pri- e.xtensào irregular das superfícies de terra e de água, e também
meiros desenvolvimentos que conheceu o berço da humanidade, nas temperaturas variáveis e nos movimentos aparentemente
influência na qual nós podemos eventualmente apontar os traços desordenados dos ventos, que rec;ide a razão fundamental da ubi-
e as diferenças nas disposições naturais das diferentes raças hu- qüidade e da interação geral ( ... ) O fato de os continente<> pos-
manas, ou dos grupos étnicos fisicamente diferenciados, vivendo !>UÍrem superfícies diferentes explica o poderio dos povos e a possi-
numa época que desconhecemos( ... ) Mas esta influência está fa- bilidade que lhes é dada de dominar".
dada a se atenuar ( ... ) O mundo civilizado, o homem em si, se Dessa forma, para Ritter. é na naturera manifesta na Terra
destaca progressivamente dos entraves que lhe impõe; a natureza e que se encontra a chave para a compreensão da história humana.
sua morada: a Terra. Nós podemos dizer que as influências exer- Em suas próprias palavras: "A influência que, através de suas
cidas pelas mesma~ relações naturais e as mesmas posições terres- formas e do conteúdo de sua realidade global. seus efeito\ e o;uas
tres dos espaços construídos no universo não se mantêm idênticas manifestações terrestres, os produtos da natureza exercem sobre
no curso dos tempos". Vêem-se, nessa formulação, várias con- a humanidade e suas diversas coletividades não pode, as~im. ter
cepções importantes do pensamento de Ritter: a determinação da contribuído com uma parte insignificante no de~envolvimento da
natureza se atenuando com o progresso, a variabilidade histórica história da civilização". Tal concepção pode ser entendida. se
da ação dos condicionantes ambientais, e. novamente, a diferen- relacionada com a postura teológica de Ritter, da seguin_te forma:
ciação entre natureza e Terra enquanto fatores. No que interessa O criador, ao distribuir o<; grupos originaic; na superfície terre~-

188 189
tre, os localizou em quadros locais distintos, cujas qualidades de- poder da totalidade destas relações e a atividade profunda de al-
finiam-lhes as possibilidades e os limites de desenvolvimento. gumas de suas partes se mostram ativos não apenas ao nível da
Assim, a diversidade dos lugares, a dotação diferenciada do "ca- vida cotidiana, mas também naquele do desenvolvimento. do pro-
pital específico dos dons naturais". seria a mediação da finali- gresso e da orientação dos sentimentos, da imaginação, das idéias,
dade divina na determinação do devir dos homens. Sendo que a de todo universo intelectual dos habitantes civilizados do nosso
vida destes, como já foi observado, define-se enquanto missão- planeta, e, enfim, sobretudo no nível das origens das verdadeü·as
provação terrena, o que os obriga a tentar realizar um percurso atividades humanas como a agricultura, a pesca ou mesmo o pen-
em essência predeterminado no plano divino. Em tal percurso, samento filosófico e religioso". Nessa afirmação Ritter quase que
a única indicação dos desígnios divinos se encontra no conheci· assume uma postura panteísta. Poder-se-ia dizer: a natureza cria
mento e na submissão à realidade do meio natural que os envolve. o homem. Entretanto, para ele há uma teleologia divina que dis-
Nas palavras de Ritter: "Se todo o gênero humano não pode ser pôs as coletividades e os lugares na Terra.
pensado independente do globo terrestre, o indivíduo. assim Visto isso, cabe apontar algumas condições que Ritter apre·
como o povo, cuja relação de dependência com a terra é ainda senta como favcráveis ao progresso humano. Em primeiro lugar.
maior e também o Estado, que é quase encaixado na natureza do o papel da água é destacado, em suas palavras: "A água aparece
lugar, não pode chegar a uma identidade sem ter consciência do como principio bási~o de multiplicação das civilizações". Numa
lugar exato que ocupa na Terra". Portanto, ao localizar as cole- outra passagem vai falar dos rios como "estímulos naturais que
tividades, a finalidade divina definia-lhes destinos a cumprir, contribuem para tirar a humanidade da sua letargia original, e
pelas próprias qualidades presentes nos seus espaços. Como ob- que a ajudam a formar um povo e depois um Estado e a adquirir
serva nosso autor, "os lugares terrestres não se encontram, nesse uma verdadeira personalidade". Ele também vai defender clara-
sentido, destinados a conhecer o mesmo desenvolvimento". As- mente que as formas extremas são "influências negativas e inibi-
sim, existiria uma finalidade histórica que se determinaria pelo deras sobre o desenvolvimento dos seus primeiros habitantes" e
condicionamento da natureza, este sendo uma expressão da teleo- que assim são pouco favoráveis à evolução, "que faz os povos
logia divina. Tal determinação se colocava para os sujeitos en- saírem da barbárie primitiva". A sazonalidade também seria
quanto missão numa práxis redentora. para ele uma condição positiva, pois, num argumento contrário.
Uma primeira divisão implícita deduzível das formulações de falando do atraso dos povos africanos, diz: "Ao longo de todo ano
Ritter: existem povos que cumprem suas potencialidades e outros domina no céu um sol enorme e monótono''. Ritter argumenta
que não o fazem. Esta divisão parece ser independente de um que é necessário analisar as relações de tamanho, largura, altura,
questionamento acerca da variabilidade dos potenciais (ou des- contorno e articulação das várias porções terrestres. Em suas aná-
tinos). Os povos "melhores" (os "civilizados") são aqueles que lises substantivas, como será visto adiante, este último elemento é
substantivaram estes potenciais. Para tanto, contaram com van- dos mais valorizados. De forma mais específica, Ritter vai apon-
tagens naturais e de localização e também com uma "personali- tar as bacias hidrográficas como os ''berços da civilização dos
dade" ou "identidade" bem formada. Na verdade, os dois requi- povos e dos Estados".
siios se mesclam à medida que, na concepção de Ritter, a perso- A escala, contudo, em que Ritter mais desenvolve suas consi-
nalidade também é determinada por condicionamentos ambien- derações é, coerente com suas posições já observadas em itens
tais; discutindo especificamente esta questão, diz ele. "Aqui se anteriores. a dos grandes indivíduos terrestres: os continentes.
revela a influência que a natureza exerce sobre os povos e os indi- Ele argumenta que com a civiliLação podem-se observar os fato-
víduos. Entretanto, se ela afeta mais os povos que os indivíduos é res naturais que atuaram na evolução dos povos; por isso, devem-
que. no caso. são massas que estão em cena e cuja personalidade se buscár as "indicações do que, na estrutura dos continentes. se
é mais marcada. Esta influência foi reconhecida e St! constitui, em revelou ~er um freio ou um acelerador. quer dizer, condições de-
todos os tempos, num tema importante de pesquisa na história terminantes do desenvolvimento". Assim. ele apresenta sua inter-
dos povos, do Estado e do homem". Numa outra passagem, fa- pretação corno resultado de uma análise histórica; tratar-se-ia da
lando das possibilidades que a Terra nos oferece, afirma: ··o elucidação de processos já ocorridos, logo ernpiricamente cons-

190 191
fundir as diversidades do resto do mundo e a maturação precoce gresso. Tal fato adviria também de condições naturais espaciais
da cultura universal que aí se desenvolveu, e depois propagou-se, que não estimulavam o contato entre elas, pois apresentam bar-
modificando a história até nas fronteiras mais recuadas do globo, reiras (desertos, cordilheiras, etc.) entre os territórios das cultu-
foi, por menos que se possa dizer, condicionada pela posição que ras mais expressivas. Aqui, a mais monótona articulação litorâ-
ela ocupa no coração de nosso planeta, ou, dito de outra forma. nea jogaria um papel considerável. Ritter vai observar com aten-
pela relação espacial da parte ao todo". ção aquelas regiões asiáticas dotadas de costas mais articuladas.
A posição de Ritter é de uma clareza meridiana, seus juízos Compara o Sudeste da Ásia com a Europa, dizendo que ambos
são límpidos. O contim:nte europeu, por sua configuração espa- possuem "os dons planetários mais favoráveis ao avanço da histó-
cial e natural, estava fadado a uma missão histórica ímpar. O ria da humanidade". Elogia sobretudo a exuberância da zona
desenvolvimento de seus povos estava inscrito na!> próprias condi- tropical. "dotada da produção mais rica dos três reinos da natu-
ções ambientais que os envolviam. Poder-se-ia dizer que a natu- reza( ... ) a vida física do globo aparece aqui em sua intensidade e
reza determinava-lhes a história, dentro de um plano traçado pela potência ( ... )Se o mais alto grau de desenvolvimento e civilização
finalidade que a tudo rege. Desta forma, a proeminência euro- deve coincidir com uma posição planetária favorável, é aqui que
péia no cenário mundial vivenciado por Ritter era, em seu juízo. ela deverá se produzir". Entretanto, não é isso que ocorre em
natural. logo harmônica e consoante com os desígnios divinos. A função de faltar as mesmas condições favoráveis ao nível do todo
postura etnocêntrica de justificação do colonialismo implícita é maior onde esta região está inserida. Os sistemas peninsulare5.
por demais evidente. Cabe então apresentar o juízo ritteriano ficam isolados, logo estagnados num certo patamar de desenvol-
sobre os demais continentes. vimento.
Sobre a Ásia e a África, argumenta que "os povos da periferia, Quanto à Austrália, Ritter vai concebê-la como o único conti-
que tiveram um desenvolvimento superior''. ficaram "isolados em nente oceânico: "É a razão por que os povos desta parte do mun-
seu~ sistemas peninsulares", e que no "nódulo central" desses do. que são a nossa ant:ípoda, só puderam se integrar no curso
continentes encontra-se "a prática da monotonia dos povos nô- geral das civilizações quando se desenvolveu a ciência da nave-
mades". Assim, faltavam-lhes articulações entre o litoral e a hin- gação oceânica, quer dizer, após milhares de anos'' ; e noutra pas-
terlândia. Sobre "as costas periféricas africanas", pouco articu- sagem reafirma que, graças à navegação, a Austrália "pode se
ladas, afirma Ritter, que daí advêm "a pobreza de contatos entre integrar rapidamente ao mundo civilizado constituído pela parte
o mar e o interior das terras e a dificuldade de acesso ao coração ocidental de nosso planeta". Vê-se o quão longe se encontra o
do continente''. Tais condições naturais recusam, segundo ele, autor de qualquer tônica relativista; é corno se a Austrália inexis-
qualquer indiviclualização ao "corpo inarticulado da África", tisse anteriormente ao colonizador. Resta falar dos juízos de Rit-
dando-lhe um "caráter uniforme". Isso explicaria "o estado pri- ter com relação à América. Este continente recebe uma avaliação
mitivo e patriarcal no qual vivem os povos desse continente, à favorável. sendo visto como uma espécie de expansão da civili-
margem do progresso e do tempo". E conclui que a raça negra zação européia num quadro natural espacial bastante favorável.
não apresenta culturas, povos e Estados individualizados (dado. Nas palavras de Ritter: "Esta situação poderá rapidamente evo-
segundo ele. também observável na proximidade das línguas afri- luir, fazendo da América do Norte uma nova e jovem Europa;
canas): que os homens e animais vivem aí sem possibilidades de ela parece estar destinada a transplantar e fazer penetrar a civi-
desenvolvimentos individuais. E finaliza: "Esta terra presa no lização até os pontos setentrionais mais avançados da Terra". Vê-
imobilismo so conhece efetivamente desenvolvimentos coletivos". se que ele diferencia a América do Norte da América do Sul,
Puece desnecessário enfatizar o paralelismo entre a teorização considerando esta como o midi daquela. De todo modo, sua ava-
ritteriana e a justificativa ideológica da ação imperial européia. liação do devir americano é altamente positiva. Ritter observa
a portadora do desenvolvimento coletivo da humanidade. Oua!lto que o Novo Mundo "pode se desenvolver mais livremente dos
à Ásia, Ritter reconhece a riqueza de alguma<> de suas civilizações obstáculos naturais locais, permitindo a seus povos se expandi-
(ccm10 a chinesa. por exemplo), porém define-as como estagna-- rem humanamente". Com base nessas interpretações, Ritter esta-
das. reproduzindo-se dentro dos costumes estabelecidos. sem pro- belece uma diferenciação hierárquica entre Oriente e <?cidente,
194
195
obviamente favorável a este. Estabelece também outra distinção expedições militares a países distantes mostraram o modo pelo
entre os hemisférios. que fica clara no seguinte juizo sobre o qual os movimentos de civilização transformaram os espaços ter-
hemisfério sul: "Portanto. há alguns espaços bem favorecidos restres e. com eles, as relações internacionais". ou noutra passa-
localmente( . .. ) lá os continentes muito distantes uns dos outros gem: ''Os progressos ocorridos na comunicação com o universo
para formar costas de acesso fácil ao movimento dos barcos, das oceânico não apenas transformaram as distâncias verticais ( ... )
correntes, dos ventos, das migrações de animais, de flores, de mas também as horizontats em todas as direções ( ... ) As terras
povos e de civilizações. Somente a arte náutica mais desenvolvida longínquas, que restavam inacessíveis( ... ) se tornaram integra-
pode ligar os pontos meridionais de nosso planeta". das no mundo civilizado" .
Pode-se observar que a teorização ritteriana caminha no sen- Observa-se uma concepção de história bem delineada nas pá-
tido de buscar uma explicação geográfica para a história, onde a ginas de Ritter. Uma concepção evolucionista, linear e finalista.
dominação européia apareça como natural. Assim, são o hemis- A mundialização da história, "a elaboração progressiva de uma
fério norte e o Ocidente os condutores da história universal, por história universal", aparece para ele como a realização de uma
uma determinação das condições naturais espaciais, que expres- meta preestabelecida que expressa o progresso objetivo de deter-
sam a teleologia divina. Como foi apresentado. a personalidade minadas civilizações; aquelas portadoras de uma "vocação natu-
dos povos, também condicionada pelo ambiente, joga um papel ral". a "aptidão a conhecer a evolução universal. a contribuir
conjunto ao das condições favoráveis do meio. Ê a Europa a depo- na história da humanidade" . Aquelas que realizaram seu destino
sitária do progresso. Assim, essa argumentação de Ritter é um (provação-missão) terreno habilitaram-se para comandar a evo-
elogio do etnocentrismo e da expansão colonial. Isto fica claro lução coletiva da humanidade. Pode-se ainda deduzir, das colo-
em seu elogio dos movimentos colonizadores que, segundo ele, cações de Ritter. que se iniciaria. a partir da globalização da his-
"aparecem como verdadeiros movimentos criadores de espaço. tória. um novo período para a humanidade, cujas qualidades de-
estabelecendo sobre toda .a Terra fronteiras espaço-tempo, aio; veriam ser tematizadas pela Geografia. Nas próprias palavras do
precisas' '. Tal postura fica ainda mais evidente em todo o elogio autor: "A Antiguidade e os tempos modernos conheceram, assim,
da circulação, e a conseqüente crítica do Isolamento, contida na uma natureza física, uma realidade terrestre diferente'', e "gra-
obra ritteriana. ças aos progressos realizados pelo homem( ... ) e à medida que ele
Quanto a este último ponto, a crítica ritteriana é bastante con- se apropria progressivamente da natureza( . . . ) a natureza física
tundente; diz ele que o imobilismo "só desaparece quando a da Terra toma ( ... ) formas e valores totalmente diferentes", e
humanidade descobre os meios práticos de atravessar os obstá- ainda: "A diversidade, a harmonia, a variedade, a riqueza que
culos postos pela natureza, e, libertando-se de seu império, domi- oferecem não apenas todas as regiões naturais, mas também as
nar a terra natal''. Vê-se claramente a concepção de que a expan- formas específicas e distantes das características naturais pró-
são territorial é uma conseqüência inevitável da civilização. e que prias aos diversos países adquirem hoje, igualmente, uma perso-
esta pede um certo grau de evolução construído localmente (daí nalidade política". Tem-se a redefinição dos condicionamentos,
o juízo critico com relação ao nomadismo, assimilado à barbárie). pois, como exemplifica Ritter. o barco a vapor liber a o homem
E, mais, a expansão seria uma condição fundamental para não se dos ventos; assim. muitas das "forças naturais ativas da super-
frear o processo evolutivo de um povo. Assim. a expansão é to- fície dos continentes, que restavam até aqui indomadas, são hoje
mada já como um resultado do progresso, num sentido que submetidas pelo homem", e "os espaços do universo terrestre e
aponta para a constituição de uma história mundial. Tais concep- suas principais relações mudam sua posição consoante com a
ções são explicitadas, ao afirmar que a circulação traz todos os modificação da humanidade". Entretanto, "Tal evolução não
lugares para o "curso da história" e que "a história dos tempos pode modificar completamente o valor da maioria dos espaços
modernos levou a riqueza de sua trama ao conjunto do globo". construídos do globo terrestre em suas situações relativas nem
Assim, há um elogio claro da expansão. da navegação oceânica, e a fetar suas posições".
dos movimentos colonizadores; em suas palavra$: ·• As primeiras
tentativas de colonização, o desenvolvimento do comércio e as

196 197
CONSIDERAÇOES SOBRE A GEOGRAFIA DE RITTER mesma opinião. Entre esses temas centrais do debate geográfico
defendidos pelos dois pioneiros poderia ser mencionada, em pri-
meiro lugar, a própria idéia da Geografia como ciência de síntese.
Um elemento que deve, primeiramente, ser destacado numa ava- Esta posição é claramente expressa por Ritter, que definiu essa
liação sintética da obra de Ritter reside no fato de esse autor ha- disciplina como a "ciência das relações terrestres espaciais",
ver inaugurado aquela que seria uma das principais vias de dis- assim como um estudo de relações de fenômenos bastante diver-
cussão do conhecimento geográfico, qual seja. a problemática da sificados. Tal posição, como foi observado, é nodal da evolução
relação homem-natureza. Foi, sem dúvida, em suas páginas que da Geografia posterior. Outra idéia basilar observada na obra de
tal tema aflorou pioneiramente como central nas indagações da Humboldt, que também aparece na de Ritter, é a de que as indi-
Geografia. Como foi visto, mesmo sem alçá-la a nível de objeto vidualidades locais (o caráter dos lugares) derivam do arranjo
dessa ciência, Ritter vai discutir em profundidade o tema da re- desses fenômenos variados. Ritter defende, assim, a posição de
lação homem-natureza, pois este tema colocava-se para ele no que a Geografia deve estudar conjuntos. em suas palavras - "sis-
plano da justificação de sua proposta. Nesta discussão, elaborou temas". Também para ele, tais sistemas, individualizados pelas
ar[,rumentos que serão retomados com freqüência pelos geógrafos formas das relações, manifestariam a ordem universal, as "leis
posteriores. Muitas dessas posições não são originais de Ritter, telúricas". Não é difícil identificar tal argumentação nas propos-
mas cabe a ele o mérito de havê-la!> introduzido no debate geo- tas de geógrafos posteriores; ela e!>tá presente mesmo em per~­
gráfico . .E: o caso das idéias herderianas sobre o assunto, que são pectivas tão antagônicas como as Hartshorne e de Schaefer.
muitas vezes creditadas à lavra de Ritter na literatura dessa disci- Um outro ponto de convergência entre as concepções de Hum-
plina. Entre estas, poder-se-ia apontar a conhecida formulação boldt e de Ritter é a idéia de que a Geografia é uma "ciência
de ''ver a Terra como teatro da história". Tal juízo é evocado com empírica", que se pauta na observação. Pode-se considerar a pos-
insistência pelos geógrafos dedicados à discussão da problemática tura ritteriana como mais enfática nessa posição. Como visto,
da relação homem-natureza. O grau de aceitação de tal colocação Humboldt associa à obsen'ação a impressão, com o mesmo peso
pode ser medido pelo fato de ele ser acatado tanto pelos argu- no processo cognitivo; Ritter dá à primeira a primazia total (isso
mentos "deterministas" quanto pelos "possibilistar" (estando permitiria uma leitura mais empirista de sua obra). Um último
presente tanto nas colocações de Ratzel quanto nas de Vidal de exemplo poderia ser dado com a idéia de que a realização teórica
LaBlache). A obra ritteriana, porém, representa mais, na discus- (a formulação de leis) seria uma meta futura da Geografia, a qual
são do tema mencionado, do que o simples repasse das idéi.ts de constituiria, assim. uma disciplina "em formação". Em todos
Herder. Ritter chegou a formular um equacionamento mais claro esses pontos, Ritter pode ser considerado um co-autor dos argu-
da questão, colocando-a em termos da relação entre as "condi- mentos, ao lado de Humboldt. Como foi dito. seria muito difícil
ções naturais" e o "desenvolvimento histórico dos povos", ten- definir a paternidade originária dessas formulações. Sua recor-
tando mesmo avançar na avaliação substantiva e na teorização rência na obra dos dois autores serviu, sem dúvida, para reforçar
a respeito dela. Nesse sentido, seu nome pode ser associado à sua proeminência no debate geográfico posterior. Talvez se possa
gênese do determinismo geográfico. Tal postura, efetivamente, mesmo avaliar os argumentos comuns deles como os "dogmas"
recebeu em suas páginas uma primitiva explicitação. Apenas por ou "princípios'' sobre os quais se apóiam as formulações poste-
esta razão, a figura de Ritter. já teria reservado lugar de relevo no riores. Dessa maneira, esses argumentos convergentes dariam a
processo de sistematização do pensamento geográfico. Entre- substância originária da Geografia moderna, aquilo que cimenta
tanto, esta não foi sua única contribuição. a continuidade de uma discussão autônoma e diferenciada das
Em vários daqueles pontos mencionados ao se avaliar a he- demais ciências.
rança intelectual de Humboldt, Ritter aparece como co-autor dos Deve-se ressaltar, contudo, que estas posições comuns se inse-
argumentos desenvolvidos . .E: difícil precisar, em muitas daquelas rem, muitas vezes, em contextos e propostas distintas. Por exem-
idéias. quem foi o formulador original. pois os dois autores pu- plo, apesar de concebê-la também como ciência· de síntese. Ritter
blicam na mesma época e compartilham. em muitos casos. a vai dividir a Geografia de forma diferente de Humboldt, e vai

198 199
nomear cada subdivisão com diferentes rótulos. Também na Ritter colocou-a como uma ciência. A posição ritteriana foi, sem
questão das escalas do estudo geográfico. as posições não são dúvtda, a que grangeou mais adeptos.
idênticas: Humboldt trabalha com o local e o global; Ritter pos- A diferença apontada é explicativa do caráter assumidamente
sui uma concepção multiescalar, onde os conjuntos se subdividem normativo da obra de Ritter. Como foi visto. esta possui um claro
em sistemas menores (a Terra como um sistema, os continentes inhlito axiológico, suas colocações buscam uma SIStematização
como sistemas e os lugares como sistemas). Também ao contrário para o estudo geográfico. Dessa forma. em Rith:.r a '>istemati-
de Humboldt, para ele a análise e a reflexão deveriam ser reali- zaçào da Geografia era um propósito deliberado. Tal fato, ahado
zadas ao nível dos vários conjuntos, assim em diferentes escalas. à inexistência de uma variedade temática em sua obra, levou a
Vê-se que os dois autores afirmam alguns encaminhamentos co- uma a ..similação mais linear dela pelo~ geógrafos posteriores. Ao
muns de di~cussão, porém por caminhos díspares. A própria acei- contrário de Humboldt, cuja mfluênc1a é difusa, é possível apon-
tação do papel da intuição no processo de conhecimento em am- tar filiações diretas à obra ritteríana. Em primeiro lugar no de-
bos encontra guarida, porém relacionada, em cada um, a mo- bate sobre a relação homem-natureza, notadamente na corrente
mentos düerentes desc;e processo. Em Humboldt o peso da intui- determinista. As formulações de Ratzel. por exemplo, podem ser
ção emerge já no momento inicial da pesquisa, enquanto "im- diretamente relacionadas às de Ritter. Existem, todavia. filiações
pressão da paisagem"; em Ritter a inhlição aloca-se no momento ainda mais diretas. Poder-se-Jam lembrar aquele<, autores que
da generalização. O elogio da intuição aparece, assim, como uma foram seus alunos. come Reclus ou Pe~chel; estes dialogam expli-
herança comum aos dois autores, porém em argumentações dis- citamente com suas idéias, seja em contextos afirmativo<; como
tintas. em Reclus, seja em termos crítico~ como Peschel. De todo modo.
Como foi visto, a fundamentação filosófica da proposta rit- podem-se definir linearidades na influência ritteríana sobre a
teriana repousa numa concepção religio<;a de mundo, sendo mais Geografia posterior, o que se revelou bastante dificil no caso de
adequado falar em fundamentos teológicos de sua obra. Sua con- Humboldt. O seu própno innuto normativo a tuou nesse <;entido
cepção do conhecimento, sua visão de ciência, seu entendimento de forjar filiações explícitas. Os juízos defendidos por Ritter ge-
da causalidade, enfim. todos os pressupostos lógicos que susten- raram, entretanto, posicionamentos mais radicais, tanto posnivos
tam sua proposta de Geografia fluem diretamente desse funda· quanto negativos. Há críticos severos de suas concepções. como
mento religioso. Dessa forma, as bases de seu pensamento assen- Dresch e Febvre. que creditam a esta grande parte do~ equívocos
tar-se-iam num plano menos objetivo do que as de Humboldt. existentes no pensamento geográf1co. Conclui-se. então. que a
autor que sustenta fundamentos laicos. A proposta de Ritter influência de Ritter foi menos abrangente que a de Humboldt.
desenrola-se, entretanto, no plano estrito do conhecimento cientí- a não ser naqueles posicionamentos mai~ genéricos, onde apareci!
fico (a ciência é uma arma forjada pelo homem para auxiliá-lo em como co-autor dos argumentos. Sua ?roposta de Geografia, numa
sua missão terrena): este plano é posto como intrinsecamente v1~ão integral, sofreu mats refutaçõe<, do que a de Humboldt. Sua
objetivo (cabe conhecer a Terra em sua realidade fatual). Em fun- influência, entretanto. onde ocorreu, foi mais explícita e direta
ção dessa artimanha lógica - sustentada na idéia de provação- Resta ainda assinalar que sua obra não sofreu leituras muito
redenção do homem - Ritter desvincula o fundamento teológico diferenciadas. Como foi dito acima. ela era mais precisa, em ter-
dos procedimentos analíticos defendidos em sua proposta. Estes mos de explicitação e· sistematização. e menos diversificada em
apresentam uma postura mais objetívista do que a de Humboldt. termos temáticos e em níveis de tratamento dos problemas. Não
Volta-se a afirmar que sua Geografia coloca-se explicitamente se encontra, enfim, diversidade significativa na avaliação de ~ua
circunscrita no plano da ciência; ele chega mesmo a formular proposta, comparável à que ocorre no caso de Humboldl. A in-
juízos críticos quanto à e~peculação no âmbito dessa disciplina. fluência desse. volta-se a afirmar, foi mais abrangente, porém.
São, assim, estranhas à sua proposta as divagações filosóficas en- difusa, a de Ritter foi mais inc1siva e restrita. Isso em termos
contradas (e defendidas como fundamentais para a discussão comparativos, pois quando se assume um plano mais amplo. uma
geográfica) na obra humboldtiana. Humboldt propunha sua visão do processo de sistematização da Geografia como um todo.
Geografia como uma Ftlosofia da natureza com base empírica, obscrva-\e o papel da própna crítica na soldagcm cln continu1-

200 201
dade da discussão geográfica autônoma. Nésse sentido, a figura
de Ritter adquire relevo por sua própria influência negativa, isto
é, a dos autores que se vão contrapor a suas colocações. Estes,
mesmo negando a proposta ritteriana, referendam o campo de
preocupações em que ela se desenrola, isto é, mesmo na crítica a
juízos específicos assimilam (ou reforçam) aqueles princípios ge-
Considerações Finais
rais constitutivos do nódulo aglutinador da Geografia. Pode-
aventar aqui uma complementaridade Ritter-Humboldt, na afir-
mação desses princípios comuns.
Finalizando, cabe afirmar que a falta de acesso a trabalhos
empíricos de Ritter impede que se avalie a existência de uma con-
tradição interna em sua obra, semelhante à observada em Hum-
boldt, apontada por Tatham e Claval. Pode-se, entretanto, re-
Ü processo de sistematização do pensamento geográfico, em
outras palavras a constituição da Geografia moderna, inicia-se na
lembrar que este autor coloca explicitamente a Geografia como primeira metade do século XIX. Localiza-se, assim, no crepús-
uma ciência ainda no início de formação, o que poderia ser inter- culo do período heróico do pensamento burguês, isto é, num mo-
pretado como autojustificativa. A presença de Ritter na gênese da mento em que ainda se colocava para os representantes dessa
Geografia moderna é, de qualquer forma, assunto incontroverso. classe o estímulo de explicar o mundo, uma postura de efetiva-
Seu esforço de padronização conceitual e de clarificação do objeto mente conhecer o real. O pensamento burguês, formulador do
geográfico constitui um elemento destacado no processo de siste- projeto de uma nova ordem social, pode, nessa situação, ser crí-
matização dessa disciplina. tico frente à realidade. As posturas filosóficas materialistas, ra-
cionalistas e humanistas atestam tal condição histórica. Cabe in-
dagar até que ponto Humboldt e Ritter apresentam tais posturas,
isto é, até que ponto suas propostas estariam inseridas em tal
tradição. A própria colocação da relação Ciência-Filosofia em
suas formulações seria explicativa dessa questão ..
Em primeiro lugar. deve-se apontar uma diferença substan-
cial; Humboldt não possuía um intuito sistematizador explícito,
enquanto Ritter se propunha estabelecer ou explicitar os princí-
pios fundamentais e as noções básicas da Geografia. A obra hum-
boldtiana, como foi visto, desenvolve-se fora da escala das disci-
plinas, possuindo uma perspectiva enciclopédica, um tom sinté-
tico estranho às ciências particulares. Além disso, seus juízos,
objetivos e argumentos transitam constantemente entre o domí-
nio da indagação filosófica e o da consider~ção científica. Mesmo
sem conseguir realizar a união entre estes dois domínios, Hum-
boldt chega a falar que sua Geografia é uma Filosofia da Natu-
reza com base empírica, atribuindo-lhe, assim, também caráter
de ciência; a Geografia seria uma reflexão sobre conhecimentos
dados pela observação ordenada do mundo - o método por ele
definido de empirismo raciocinado atesta bem tal intuito.
A obra ritteriana, por outro lado, possui deliberado caráter
normativo, isto é, um assumido intuito sistematizador. Ritter se
202 203
propõe explicitamente a construir uma Geografia, por isso de-
observo para levantar elementos objetivos que fundamentam
dica-se a delimitar seu campo, a localizá-la entre as ciências.
minha impressão. A Geografia humboldtiana seria um trânsito
a subdividi-la, a padronizar seus conceitos, a gerar, enfim, nor-
da Filosofia para a Ciência, e de volta à Filosofia. Em Ritter, que
mas para o procedimento dos geógrafos. Na sua proposta, a Geo-
coloca a discussão geográfica restrita ao plano da ciência, a rela-
grafia é expressamente definida como ciência das relações terres-
ção permanece quase a mesma. apesar da redução efetuada. Isso
tres espaciais. assim, não há possibilidade de polêmicas em loca-
porque para ele a justificativa da própria ciência geográfica colo-
lizá-la no plano do conhecimento científico, pois se trata explici-
cava-se também num plano que lhe era exterior: sua Geografia
tamente. para ele, de uma disciplina científica autônoma e espe-
tinha uma finalidade teológica. À ciência cabia, em última ins-
cífica. Do que foi apresentado. pode-se concluir que Humboldt,
tância, apenas referendar explicações oriundas do campo da fé.
especificamente nessa questão, identifica-se mais com uma con-
A identidade entre razão e 'mundo dos sentidos, igualmente to-
cepção unitária do conhecimento, enquanto Ritter assume de
mada do idealismo alemão pós-kantiano, fornecia a possibilidade
modo mais explícito a diferenciação entre ciência e filosofia e
de justificar o estudo objetivo. Onde para Humboldt tratava-se de
mesmo a particularização do conhecimento científico em campos
substantivar a impressão, em Ritter torna-se substantivar a reve-
específicos.
lação. A identidade de filiação transparece com nitidez no elogio
A diferença apontada não implica um grande distanciamento da intuição no processo cognitivo, efetuada pelos dois autores.
entre os dois autores, em termos de concepções e propostas. Já
Para eles, o conhecimento filosófico supera o científico: a Ciência
foram vistos vários elementos de identidade entre eles. A identi-
existe para a Filosofia. Nesse traço, que os une ao pensamento do
dade de filiação filosófica é, contudo, a que merece aqui maior
século XVIII, poder-se-ia localizar seu elo com o movimento as-
destaque. A influência predominante no pensamento de Hum-
cendente do pensamento burguês. Em sendo válido esse raciocí-
boldt e Ritter foi localizada no idealismo alemão pós-kantiano.
nio, pode-se dizer que Humboldt vivencia de forma mais intensa
Foi observado que tal corrente filosófica possui grande diversi-
os componentes progressistas desse movimento; Ritter, na pos-
dade interna - englobando autores bastante diferenciados como
tura religiosa. refletiria mais claramente o caráter reflexo da Ilus-
Fichte, Schelling e Hegel - , que podem, porém, ser agrupados
tração alem à.
por algumas preocupações comuns. Duas concepções nodais do Ê neste quadro que foram gestados os nódulos iniciais da Geo-
idealismo pós-kantiano. presentes com destaque nas formulações
grafia moderna, os que forneceram os elementos da sua sistema-
de Humboldt e Ritter, devem ser aqui lembradas: a busca da
tização. As metas que o conhecimento geográfico se colocava fun-
totalização e a idéia de unidade entre razão e experiência. Tais
damentavam-se nos juízos do idealismo transcendental pós-kan-
concepções, comuns aos dois autores, estão no centro dos argu- tiano, elaborados pelas propostas de Humboidt e Rittcr. O s ele-
mentosjustificadores de suas propostas da Geografia.
mentos de irracionalismo. porventura existentes nas posturas filo-
A idéia de ciência de síntese fundamenta-se na crença da cog-
sóficas assumidas, encontram-se no centro das concepções de
noscibilidade da totalidade. a apreensão do Todo sendo um as-
Geografia defendidas . Muitas das metas teóricas almejadas só se
sunto discutido por Humboldt e por Ritter. A concepção da iden-
justificam à custa das postulações defendidas por essa corrente
tidade entre o "mundo do espírito" e o "mundo exterior" impede
filosófica . Poder-se-ia indagar se alguns dos objetivos defendido-;
um hiato, pelo menos em termos lógicos, entre Filosofia e Ciên- por Humboldt para a pesquisa e reflexão geográfica não seriam
cia, pelo contrário, possibilita o estabelecimento de relações íntJ· objetivos eminentemente filosóficos, impossíveis de ser cumprido~
mas entre os dois domínios. É isto que vai ocorrer nos dois auto-
por qualquer ciência. Poder-se-ia também indagar se alguns
res analisados. Em Humboldt. como foi avaliado. tal concepção
dos temas desenvolvidos por Ritter só poderiam ser formulados
torna possível justificar a proposta de unir numa mesma explica-
dentro de uma visão teológica do conhecimento. Os problema~
ção a impressão subjetiva da paisagem e sua observação objetiva,
insolúveis (notadamente com respeito à definição do objeto) \l-
numa visão vaga em que a Geografia aparece difusa entre o
conhecimento filosófico e científico. A primazia do processo de vendados por todos os teóricos da Geografia posterior podem
conhecimento, todavia, permanece no campo da Filosofia: eu dar talvez um indício de uma resposta afirmativa às questões
levantadas.
204 205
A presença das formulações desses autores sobre a evolução da
Geografia posterior é por demais evidente, não podendo ser ques- -
tionada. Humboldt e Ritter são os primeiros formuladores e ali-
mentadores da Geografia moderna. Em suas páginas encontram-
se os resultados dos esforços teóricos, que propiciaram a sistema-
tizaÇão do pensamento geográfico e sua existência enquanto um
campo autônomo do conhecimento, segundo os padrões moder-
nos. A continuidade desse processo de sistematização encontra
em suas propostas a impulsão inicial e os parâmetros para sua
condução. As pioneiras delimitações do universo de preocupações
da Geografia, as primeiras localizações de sua identidade, estão
aí contidas. Poder-se-ia dizer, enfim, que toda a Geografia tradi-
cional tem na Geografia alemã do século XIX, da qual os autores
analisados são indubitavelmente os principais expoentes, a sua
fonte. Aí se definiram as metas e os contornos da discussão geo-
gráfica.
O movimento teórico contínuo, a Geografia tradicional, que se
inicia com as formulações dos autores analisados, conhece na
atualidade uma profunda crise. Suas premissas e objetivos vêm
sendo questionados de forma progressiva nas últimas décadas.

~
Hoje já se pode aventar que esse movimento unitário, em seu en-
caminhamento tradicional, foi, inapelavelmente, ultrapassado
pela dinâmica histórica. A Geografia tradicional está morta e um
vigoroso e dispersor movimento de renovaç~ª-J!is.cipli.ruLjá
esfa em curso. É visando o sucesso das iniciativas renovadoras
que se deve mterrogar o passado. Buscar a raiz da perspectiva
tradicional de discussão dessa grande problemática agrupada so-
bre o rótulo de pensamento geográfico, que, mesmo superada em
termos de possibilidades históricas de discutir o real, subsiste nas
mentes e instituições conservadoras. Acredita-se que muitas das
críticas levantadas contra a Geografia tradicional incidem em
posições originadas na obra de Humboldt e Ritter, pois, como
visto, suas formulações encontram-se na gênese de alguns dos
princípios mais básicos desse conhecimento. Foi a explicitação de
tais princípios que animou a execução do presente estudo, no in-
tuito de melhor compreender os limites e os compromissos subja-
centes à Geografia tradicional.
Impresso na
Gráfzca A Trzbuna de Santos Ltda
Rua João Pessoa, 349
Telefone 32 8692
CEP 11 0!3- Santos

206

Você também pode gostar