Você está na página 1de 5

Quando a crase muda o sentido – REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA –

OUTUBRO /2009
Muitos deixariam de ver a crase como bicho-papão se pensassem nela
como uma ferramenta para evitar ambiguidade nas frases

Luiz Costa Pereira Junior

O emprego da crase costuma desconcertar


muita gente. A ponto de ter gerado um
balaio de frases inflamadas ou espirituosas
de uma turma renomada. O poeta Ferreira
Gullar, por exemplo, é autor da sentença "A
crase não foi feita para humilhar ninguém",
marco da tolerância gramatical ao acento
gráfico. O escritor Moacyr Scliar discorda,
em uma deliciosa crônica "Tropeçando nos
acentos", e afirma que a crase foi feita, sim,
para humilhar as pessoas; e o humorista
Millôr Fernandes, de forma irônica e jocosa,
é taxativo: "ela não existe no Brasil".
O assunto é tão candente que, em 2005, o deputado João Herrmann Neto, que
morreu em abril deste ano aos 63 anos, propôs abolir esse acento do português
do Brasil por meio do projeto de lei 5.154, pois o considerava "sinal obsoleto,
que o povo já fez morrer". Bombardeado, na ocasião, por gramáticos e
linguistas que o acusavam de querer abolir um fato sintático como quem revoga
a lei da gravidade, Herrmann Neto logo desistiu do projeto.

O acento grave (`) no a tem duas aplicações distintas, explica Celso Pedro Luft
(1921-1995) no hoje clássico Decifrando a Crase (Globo, 2005: 16):

1) Sinalizar uma fusão (a crase): indica que o a vale por dois (à = a a): "Dilma
Rousseff compareceu às CPIs".
2) Evitar ambiguidade: sinaliza a preposição a em expressões de circunstância
com substantivo feminino singular, indicando que não se deve confundi-la com
o artigo a. "Dilma Rousseff depôs à CPI". Sem a crase, a frase hipotética se
revela ambígua: Dilma destituiu a comissão parlamentar de inquérito ou apenas
deu depoimento à comissão? O sinal de crase tira a dúvida.

Sinalizar a contração entre vogais idênticas (no caso, a preposição a e o artigo


a) é um desafio que, mesmo quando parece complicado, pode ser intuído pelo
usuário do idioma, em regras relativamente simples de ser incorporadas.

Ambiguidade
A grande utilidade do acento de crase no a, entretanto, que faz com que seja
descabida a proposta de sua extinção por decreto ou falta de uso, é a
assinalada por Luft: crase é, antes de mais nada, um imperativo de clareza.

Muitas frases em que a preposição indica uma circunstância (instrumento, meio


etc.), em sequências do tipo "preposição a + substantivo feminino singular",
podem dificultar a interpretação por parte de um leitor ou ouvinte. Não raro, a
ambiguidade se dissolve com a crase - em outras, só o contexto resolve o
impasse.

Exemplos de casos em que a crase retira a dúvida de sentido de uma frase,


lembrados por Luft em Decifrando a Crase:

Cheirar a gasolina (aspirar) x cheirar à gasolina (feder a).

A moça correu as cortinas (percorrer) X A moça correu às cortinas. (seguiu em


direção a).
O homem pinta a máquina (usa pincel nela) X O homem pinta à máquina (usa
uma máquina para pintar).
Referia-se a outra mulher (conversava com ela) X Referia-se à outra mulher
(falava dela).

Contexto
O contexto até se encarregaria, diz o autor, de esclarecer a mensagem em
casos como: "vimos a cidade"; "viemos a cidade". "conserto a máquina";
"escrevo a máquina". Um usuário do idioma mais atento intui um acento
necessário, garantido pelo contexto em que a mensagem se insere, se a finada
testemunha do exemplo a seguir destituiu a relatora da OAB ou prestou
depoimento:
Morta a testemunha que depôs a relatora da OAB.

Mas, em geral, contextos elípticos ainda deixariam dúvidas em exemplos do


tipo: "Fique a vontade onde está" ou "A sombra das raparigas em flor".

  Cheirar a gasolina                                                   Cheirar à gasolina


(aspirar o combustível)                                           (feder tal qual o
combústivel)

  

"Fique a vontade onde está" indica que uma entidade metafísica chamada
"vontade" deve se manter suspensa ou que o interlocutor da mensagem deve
se sentir confortável?

A falta de clareza, por vezes, ocorre na fala, não tanto na escrita. Exemplos de
dúvida fonética, sugeridos por Francisco Platão Savioli, professor e coordenador
de gramática e texto no Anglo Vestibulares:

- "A noite chegou." Na linguagem falada há ambiguidade; na escrita, com ou


sem o acento, não. Alguém chegou à noite, ao escurecer? Ou foi a noite que
chegou no fim da tarde? Como saber o sentido de uma frase como essa, sem o
acento?
 
- "Ela cheira a rosa." A afirmação será ambígua, se oral. Se escrita, terá
sentidos diferentes, se houver o acento grave no a que precede "rosa" ou se ele
for dispensado. "Ela cheira a rosa" significa que a dama aspira o perfume da
rosa. Já "ela cheira à rosa" indica que a princesa tem o perfume da flor. Na
escrita, com a crase, nem é preciso explicar ou entender o contexto. 

- "Matar alguém à fome." Sem acento, alguém mata a própria fome. Com,
mata-se alguém pela fome. Como na África ou em ásperas periferias brasileiras.

Sem o sinal diacrítico, construções como essas serão sempre ambíguas. Nesse
sentido, a crase pode ser antes um problema de leitura do que prioritariamente
de escrita.

Pintar a máquina Em expressões com palavras


(aplicar tintura numa superficie) femininas (expressões
adverbiais, conjuntivas e
prepositivas), há o acento grave
de clareza, utilizado por
tradição: "às vezes", "à moda
de", "à espera", "à medida que",
"à custa de", "à prova de" etc.

Embora com expressões


adverbiais de instrumento o
emprego do acento da crase seja
desaconselhado pelos
gramáticos, seu uso é frequente
no português brasileiro, mesmo
quando desnecessário: Escrever a máquina, a mão, a tinta, a caneta (a lápis);
ferir a faca (a cacete); calar a bala (a tiro), matar a baioneta (a punhal).
Acentua-se, se houver confusão de sentido. Alguém matará uma baioneta?
Coisa difícil. Quem aplica o sinal intui um chamado da mensagem ao uso do
acento grave de clareza. "Produzir a máquina" será fabricar a máquina ou
produzir com a máquina? Então: "Produzir à máquina". Por isso, "pintar a mão"
Pintar à maquina será pintar, desenhar na própria
(usar algum tipo de mecanismo para pintar) mão, como amantes de
tatuagens? Ou pintar com a
mão, sem instrumentos, como
fazem alguns sensitivos? Então:
"Pintar à mão".

Mesmo a regra da crase como


índice de contração com
"distância" tem sido interpretada
pelos usuários do idioma como
dependente do contexto.

Pela regra tradicional, não há


acento, se a "distância" estiver
indeterminada:
"Ficar a distância". "Seguiu-a a distância". "Manteve-se a distância segura". Se
a "distância" estiver definida, determinada numericamente, há acento: "Ficou à
distância de dois metros". "Viu o corpo à distância de três passos".

Influência
Há, no entanto, autores que sempre acentuam o a dessa locução. Não por
acaso, dicionários como Houaiss incorporam as diferenças de sentido que os
usuários da língua tendem a sentir ao usar a locução.

No sentido de "de longe" e "de um ponto distante", muitos brasileiros sentem


que faz sentido usar crase. Exemplo de Houaiss: "a sentinela vigia à distância.
Entende-se "à distância" como "localizado a (certa) distância; distante,
afastado". No sentido de "ao longe" e "em um ponto distante" não se sentiria a
necessidade da crase: "viram algo movendo-se a distância".

O que os usuários intuem do sentido implícito à frase parece influir, por


exemplo, no uso da crase com nome próprio feminino, o que torna o acento
muitas vezes optativo: "Fizeram uma homenagem à Maria" revela mais
intimidade do que "Fizeram uma homenagem a Maria".

Assim também "desenhei a caneta" x "desenhei à caneta"; "a polícia recebeu a


bala" x "a polícia recebeu à bala"; "dar à luz" x "dar a luz".

   Chegar a noite                                                           Chegar à noite


    (anoitecer)                                                                  (chegar tarde)
Expressões
Em crase, a intuição e a generalização de exemplos concretos podem ser mais
efetivas que a decoreba de regras.

Se intuímos a regra básica de que só se usa crase diante de palavras femininas


quando há uma preposição seguida de um artigo, evitamos ocorrências como "à
80 km", "à correr" ou "à Pedro". Afinal, nunca pensamos em crase com palavras
masculinas ou verbos: daí não haver em "a lápis", "a contragosto", "a custo".

Se lembramos que a crase serve para eliminar uma ambiguidade, também


evitamos tirar a crase em contextos que pedem, por exemplo, "à beira", "à boca
miúda", "à caça". Assim, fica muito mais fácil pensar a crase. (Colaborou João
Jonas Veiga Sobral)

Você também pode gostar