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Sobre o Erro Na Ética de Espinosa
Sobre o Erro Na Ética de Espinosa
N
o início da sequência de proposições que percebe isto ou aquilo não dizemos senão que
iremos analisar, Espinosa afirma que Deus, não enquanto é infinito, mas enquanto
“Toda ideia que é, em nós, absoluta, ou é explicado por meio da natureza da mente
seja, adequada e perfeita, é verdadeira” (E2P34). humana, ou seja, enquanto constitui a
essência da mente humana, tem esta ou
Note-se que a proposição não fala da adequação
aquela ideia (E2P11C).
entre ideia e ideado; ela diz apenas, categoricamente,
que toda ideia que é em nós absoluta é também O corolário nos coloca numa situação
adequada e perfeita e, por isso, verdadeira. A difícil, pois ele se refere à ligação de nosso
pergunta que imediatamente se coloca é: o que intelecto com o intelecto infinito, mas não a
é uma ideia absoluta, uma vez que ela fornece a associa diretamente à produção de ideias
chave da verdade? Ora, a resposta parece se verdadeiras: ele diz apenas que temos em geral
configurar no que a Demonstração acrescenta: “esta ou aquela ideia”. Neste sentido, ele lembra
“Quando dizemos que existe, em nós, uma ideia que a nossa mente é uma ideia e, portanto, é
adequada e perfeita, não dizemos senão que uma afecção de Deus sob o atributo
(pelo corol. da prop. 11), em Deus, enquanto Pensamento. Quer dizer, quando nossa mente
ele constitui a essência de nossa mente, existe
tem uma ideia, Deus tem também essa ideia,
uma ideia adequada e perfeita” (E2P34Dem).
não “enquanto é infinito”, mas na medida em
Dizer que temos uma ideia verdadeira equivale
que “constitui a essência da Mente humana”.
a afirmar que essa ideia é tida por Deus
Decerto, afirmar que Deus constitui a essência
“enquanto ele constitui a essência da nossa
da mente humana significa dizer que ele é causa
mente”. Em outras palavras, essa ideia é na
de todas as ideias, a começar pela ideia mesma
natureza da nossa mente e é também em Deus –
que constitui a nossa mente (isto é, a ideia de
sua verdadeira causa –, já que ele constitui a
nosso Corpo) e, por isso, qualquer ideia surgida
“essência da nossa Mente”. Nisto consiste o
na mente terá como causa Deus, num sentido
caráter absoluto e consequentemente verdadeiro
específico: Deus “é explicado por meio da
da ideia. Portanto, estabelece-se aqui uma
natureza da mente humana” (E2P11C), ou seja,
ligação do intelecto finito com o intelecto infinito,
Deus se expressa na modalização finita que
pois a ideia verdadeira é “em nós” assim como
ela é “em Deus”, ou seja, essa ideia está constitui a natureza de nossa mente.
diretamente relacionada à constituição por Deus Poderíamos dizer que, nestas condições,
da “essência” ou da natureza da nossa mente. estabelece-se uma intimidade entre a natureza
Tentemos entender de modo mais preciso da mente (constituída por Deus, ou seja, modo
essa formulação com a ajuda do apelo que ela finito da potência infinita de pensar) e a
faz ao corolário da Proposição 11: expressão da potência infinita de pensar. Assim,
se, quando temos uma ideia, Deus “é explicado”
Disso se segue que a mente humana é uma pela natureza da nossa mente, ou seja, se ele se
parte do intelecto infinito de Deus. E, assim, expressa por meio da natureza de nossa mente,
quando dizemos que a mente humana só poderíamos estar em regime de verdade, já
que estaríamos em íntima relação com a causa
* Pós-doutoranda do Departamento de Filosofia – USP
(bolsista da Fapesp). de nossa mente e de todas as ideias.
REVISTA Conatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 6 - NÚMERO 11 - JULHO 2012 43
RAMOS, SILVANA DE SOUZA. SOBRE O ERRO NA ÉTICA DE ESPINOSA, P. 43-50.
como lhe estando presentes” (E2P17C). A subjugar as paixões que nascem no corpo.
imaginação é assim o poder de tornar presente Sabemos que Espinosa não se coaduna com esta
à mente algo que não está diante de nós (esta é concepção, uma vez que não admite ação da
uma virtude de sua natureza, isto é, o poder de mente sobre o corpo. Deste modo, a reflexão
engendrar em nós a memória). Porém, se a cartesiana sobre a liberdade só pode ser
mente não reconhece este poder da imaginação inadequada, o que implica dizer que Espinosa
e se, quando imagina, simultaneamente, não não definirá a liberdade como livre vontade e
sabe que as coisas que lhe aparecem não estão sim, de acordo com a Definição 7 da Parte 1,
de fato presentes, então ela erra. Ora, esse erro como o que “existe exclusivamente pela
não é atribuído à imaginação, mas a um necessidade de sua natureza e que por si só é
desconhecimento da própria mente com relação determinada a agir”. Por ora, contudo, basta
à sua virtude de imaginar. Ademais, prossegue salientar que o erro em relação à origem de nossa
o filósofo, a faculdade de imaginar da mente não liberdade aparece porque desconhecemos a
é livre, pois não depende somente de sua própria verdadeira causa de nossas ações (que pode ser,
natureza uma vez que depende da ação das segundo Espinosa, a coação externa ou a
coisas exteriores que imprimem em nós tais disposição interna), embora saibamos
imagens (as quais serão por sua vez mal perfeitamente que agimos: ou seja, conhecemos
interpretadas ou mal refletidas pela mente que o efeito, mas não a causa. E, para tentar
não compreende a causalidade que as gera). O compreender esse efeito, forjamos explicações
apelo à Parte 1 esclarece definitivamente este imaginativas, tais como uma alma sediada em
ponto: “Diz-se livre a coisa que existe determinada parte do corpo, de onde o comanda
exclusivamente pela necessidade de sua natureza livremente a partir do poder soberano da
e que por si só é determinado a agir. E diz-se vontade.
necessária, ou melhor, coagida, aquela coisa que O segundo exemplo diz respeito a um erro
é determinada por outra a existir e a operar de comum de percepção. Quando percebemos o sol,
maneira definida e determinada” (E1Def7). Ora, imaginamos que ele está muito próximo de nós.
a faculdade de imaginar não pode ser dita Esse erro, explica Espinosa, “não consiste nessa
imediatamente livre porque não existe imaginação enquanto tal, mas em que, ao
exclusivamente pela necessidade de sua imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e
natureza: ela é determinada do exterior, pela a causa dessa imaginação” (E2P35S). Mais uma
outra coisa que a afeta e, por isso, é coagida. vez, o erro só nasce porque desconhecemos a
Note-se que já no escólio da Proposição 7 causa e o funcionamento da imaginação. Após
da Parte 2 o tema da liberdade aparece vinculado exame, porém, podemos saber que não é bem
à reflexão sobre o estatuto do erro. A Proposição assim, pois o sol está muito distante de nós.
35 retoma o assunto, acrescentando, como Entretanto, acrescenta o filósofo:
dissemos acima, dois exemplos. O primeiro diz
ainda que, posteriormente, cheguemos ao
respeito à opinião comum, e imaginativa,
conhecimento de que ele está a uma distância
segundo a qual a liberdade humana é de mais de seiscentas vezes o diâmetro da
interpretada como liberdade da vontade. Essa Terra, continuaremos, entretanto, a imagina-
opinião nasce do fato de que os homens “estão lo próximo de nós. Imaginamos o sol tão
conscientes de suas ações e ignorantes das causas próximo não por ignorarmos a verdadeira
pelas quais são determinados” (E2P35S). Quer distância, mas porque a afecção de nosso
dizer, eles percebem suas ações, mas não corpo envolve a essência do sol, enquanto o
conhecem a causalidade que as determina. Ora, próprio corpo é por ele afetado (E2P35S).
no intuito de explicar tal causalidade, acreditam
Este exemplo traz um elemento ausente
que ela se deve à vontade, definida como livre e
no anterior: ele mostra que o conhecimento da
capaz de controlar o corpo. A referência evidente
verdadeira causa da imaginação não exclui a
é Descartes, já que o filósofo francês concebe a
presença da imaginação. Noutras palavras,
liberdade como um poder da vontade para
mesmo depois de saber que o sol está muito
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distante, ele continuará a me afetar como se verdadeiras. Para corroborar com essa
estivesse próximo. Quer dizer, a reflexão formulação, Espinosa apela para a Proposição
adequada não anula a produtividade da 32 da Parte 1 (já analisada aqui, porquanto foi
imaginação, já que a afecção do corpo (isto é, o citada na Demonstração da Proposição 34), onde
efeito da imagem do sol sobre ele) envolve a se afirma que todas as ideias enquanto referidas
essência do sol e, ao mesmo tempo, me sujeita a ao intelecto infinito são verdadeiras e, por isso,
necessariamente imaginá-lo como se estivesse nele as ideias convêm com seus ideados. Além
próximo. disso, para apoiar a demonstração de que tais
Por fim, chegamos à Proposição 36, a qual ideias são adequadas, Espinosa se refere ao
afirma: “As ideias inadequadas e confusas corolário da Proposição 7 da Parte 2 (também já
seguem-se umas das outras com a mesma citado), no qual argumenta em favor da
necessidade que ideias adequadas, ou seja, claras igualdade em Deus entre a potência de agir e a
e distintas” (E2P36). De todas as proposições que potência de pensar, o que lhe permite concluir
analisamos até agora, essa é a mais obscura. Num (agora, na Proposição 36) que “nenhuma ideia
primeiro momento, parece-nos que Espinosa é inadequada e confusa senão enquanto está
pretende mostrar que há uma ordem na sucessão referida à mente singular de alguém”. Até aqui,
de ideias inadequadas e, mais, que essa ordem é contudo, não entendemos por que há
tão necessária quanto a ordem das ideias necessidade na sucessão das ideias inadequadas.
adequadas. Perguntamos, porém: por que isso? Para compreender esse estranho salto
Não basta mostrar que o erro não tem forma, argumentativo, sigamos o conselho do autor e
nem é ignorância absoluta, para explicitar seu busquemos apoio na Proposição 24 e na
funcionamento? Qual o objetivo deste novo Proposição 28 da Parte 2.
dado? Vejamos o que diz a Demonstração: A Proposição 24 demonstra que a mente
humana não envolve o conhecimento adequado
Todas as ideias existem em Deus (pela prop.
das partes que compõem o corpo humano. Isso
15 da P. 1) e, enquanto estão referidas a Deus,
são verdadeiras (pela prop. 32) e (pelo corol. porque o corpo é assaz complexo, já que formado
da prop. 7) adequadas. Portanto, nenhuma por muitas partes (corpos também eles muito
ideia é inadequada e confusa senão enquanto complexos) em relação de adesão entre si, adesão
está referida à mente singular de alguém garantida pela manutenção de certa proporção
(vejam-se as prop. 24 e 28). Logo, todas as de movimento (e é isto que faz do nosso corpo
ideias, tanto as adequadas, quanto as uma coisa singular). Estas partes, entretanto, não
inadequadas, seguem-se umas das outras com pertencem à essência do próprio corpo, quer
a mesma necessidade (pelo corol. da prop. 6). dizer, consideradas individualmente – ou seja,
C.Q. D (E2P36Dem). separadas – elas não constituem a natureza do
Comecemos pela primeira assertiva: todas nosso corpo, a não ser “enquanto transmitem
as ideias existem “em Deus”, pois, na Proposição entre si os seus movimentos segundo uma
15 da Parte I, Espinosa afirma que “Tudo o que proporção definida (E2P24Dem)”. Deste modo,
existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode tais partes podem ser separadas de nosso corpo,
existir nem ser concebido”. No contexto da Parte sem que por isso percam sua natureza própria, e
I, essa proposição tinha por função afastar a podem, ainda, estabelecer outra proporção de
possibilidade de haver mais de uma substância movimento com outros corpos, formando assim
e, ao mesmo tempo, mostrar que tudo o que é outro indivíduo. É claro, pois, que a natureza do
(seja a Substância única, sejam suas infinitas nosso corpo não envolve a natureza de cada parte
modalizações subsumidas a seus respectivos que o compõe, pensada individualmente, pois o
Atributos), é em Deus e só pode ser concebido que garante a manutenção da forma do nosso
por ele. Noutros termos, Deus é causa de si e corpo é certa coesão entre as partes (isto é, certa
causa de tudo o que é. Consequentemente, no proporção de movimento). Daí a questão: como
intelecto infinito, causa de todas as ideias, só se dá o conhecimento das partes do corpo? E do
há, se referirmos essas ideias a ele, ideias corpo como um todo composto? Sabemos que
só há conhecimento adequado quando este da mente humana não está dado o conhecimento
envolve o conhecimento da causa. Ora, a das partes que compõem o corpo humano, o que
Proposição 3 da Parte 2 (evocada na implica dizer que a mente não tem conhecimento
Demonstração da Proposição 24 da mesma adequado das partes que compõem a coisa singular
Parte) afirma que: “Existe necessariamente, em de que é ideia. Por isso, Deus, quando tem a ideia
Deus, uma ideia tanto de sua essência quanto do corpo humano, não conhece suas partes. Este
de tudo o que necessariamente se segue dessa conhecimento nele existe somente enquanto
essência”. A Proposição 9, também evocada na integrado à conexão causal, cuja rede permite
Demonstração da Proposição 24, afirma que a compreender a relação estabelecida entre cada uma
ideia de uma coisa singular existente em ato (por das partes (internamente, umas em relação às
exemplo, o nosso corpo, ou cada uma de suas outras e, também, as relações estabelecidas entre
partes considerada como indivíduo) “tem Deus essas partes e os corpos exteriores), e isto extrapola
como causa, não enquanto ele é infinito, mas o âmbito da mente humana, modo singular
enquanto é considerado como afetado de outra interligado a infinitos modos. Noutros termos, todas
ideia de uma coisa singular existente em ato, as ideias estão em Deus e ele tem, a partir de sua
ideia da qual Deus é também causa, enquanto é potência infinita de pensar, o conhecimento
(E2P9)”. Isso quer dizer que a ideia de uma coisa adequado de cada uma delas. A mente, por sua
singular existente em ato é um modo de pensar vez, está interligada a essa rede causal infinita
singular, e por isso tem como causa Deus sob o (agindo sobre ela e sofrendo seus efeitos). Todavia,
atributo Pensamento. Porém, ela não tem como não tem conhecimento adequado nem de si mesma
causa Deus, enquanto “absolutamente pensante”, (como vimos na Proposição 24) nem das ideias
mas enquanto “é considerado afetado de uma que produz ou que agem sobre ela (como veremos
terceira ideia, e assim ao infinito”. a seguir).
Note-se que é estabelecida uma ordem e Ora, a Proposição 28 afirma que “As ideias
conexão entre as ideias, a partir de Deus (em das afecções do corpo humano, à medida que
consonância com a formulação da Proposição 3), estão referidas apenas à mente humana, não são
embora tenhamos aqui uma compreensão mais claras e distintas, mas confusas” (E2P28). Isso
precisa dessa ordem, já cada ideia singular, se demonstra pelo fato de que tais afecções
enquanto modo singular, não está referida envolvem a natureza dos corpos externos, a
somente a Deus – causa de tudo – mas à ideia natureza do corpo humano, e, ainda, a natureza
que a compreende (e é portanto sua causa); essa de suas partes. Já pressentimos a confusão que
ideia, por sua vez, é compreendida por outra aí implicada: uma afecção no corpo afeta suas
(causa da causa), e isto ao infinito. Por isso, partes (das quais não temos ideia adequada),
Espinosa conclui a Demonstração dessa deixa em nós uma marca do corpo externo (quer
Proposição dizendo: “a causa de uma ideia dizer, não nos dá uma ideia adequada dessa
singular é outra ideia, ou seja, Deus, enquanto é “outra coisa”, mas apenas produz um efeito dela
considerado afetado de outra ideia, da qual ele no nosso corpo, do qual, por sua vez, tampouco
também é a causa, enquanto afetado de outra temos uma ideia adequada), e isso ao infinito.
ideia ainda, e assim até o infinito (E2P9Dem)”. Segue-se então a conclusão:
Voltando à Proposição 24, essa regra de
o conhecimento adequado dos corpos
conhecimento também se aplica ao
exteriores, tal como o das partes que
conhecimento das partes que compõem o corpo compõem o corpo humano, existe em Deus,
humano: “o conhecimento de cada uma das enquanto este é considerado não como
partes que compõe o corpo humano existe em afetado da mente humana, mas enquanto é
Deus, enquanto ele é afetado de muitas ideias considerado como afetado de outras ideias.
de coisas, e não enquanto tem exclusivamente a Logo, essas ideias das afecções, à medida que
ideia do corpo humano, isto é (pela prop. 13), a estão referidas exclusivamente à mente
ideia que constitui a natureza da mente humana humana, são como consequências sem
(E2P24Dem)”. Donde se conclui que na natureza premissas, isto é (o que é, por si mesmo,
sabido), ideias confusas (E2P28Dem).
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RAMOS, SILVANA DE SOUZA. SOBRE O ERRO NA ÉTICA DE ESPINOSA, P. 43-50.
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