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EXPRESSO

Doadores de sangue: a decisão que incluiu os


homens homossexuais
Isabela Cruz 20 de mai de 2020 (atualizado 20/05/2020 às 13h22)

Para a maioria do Supremo, orientação sexual do voluntário não pode ser


requisito de elegibilidade. O julgamento estava parado desde 2017, mas pandemia
de covid-19 impulsionou retomada do caso

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FOTO: REPRODUÇÃO/FACEBOOK HEMORIO

! HOMEM DOA SANGUE NO HEMORIO, NO RIO DE JANEIRO

O Supremo Tribunal Federal derrubou por sete votos a quatro as normas


sanitárias que proibiam de doar sangue “homens que tiveram relações
sexuais com outros homens nos 12 últimos”, assim como suas parceiras
sexuais, pelo mesmo período.

A restrição desconsiderava fatores que alteram o risco da prática sexual,


como o uso ou não de preservativos, e foi declarada inconstitucional no dia 8
de maio.

A partir de agora, portanto, homens homossexuais e bissexuais poderão


ajudar a abastecer os bancos de sangue. Isso inclui a possibilidade de doar
plasma para pacientes infectados pelo novo coronavírus, conforme um
tratamento usado em pacientes em estado grave.

EXPRESSO

Além da cloroquina: o que


a ciência testa contra a
covid-19

Ao longo da quarentena, imposta como medida de contenção da propagação


do novo coronavírus, os estoques de sangue estão diminuindo por todo o
país.

30%
Foi a queda na doação de sangue em Minas Gerais, durante a pandemia do
novo coronavírus, conforme reportagem do dia 15 de maio de 2020

Mesmo assim, no início de abril, o Ministério da Saúde comunicou à BBC


Brasil que não revogaria a proibição de doação de sangue imposta aos
homossexuais e bissexuais.

O percurso para a autorização

A epidemia de aids que marcou os anos 1980 por todo o mundo fez com que
diversos governos adotassem medidas drásticas para tentarem controlar a
disseminação da doença, então muito pouco conhecida. Foi nesse contexto
mundial que o Brasil, seguindo outros países, proibiu em 1993 que
homossexuais doassem sangue.

A proibição tinha como fundamento as maiores taxas de infecção pelo HIV


nessa população do que na população que só se relaciona com pessoas do
sexo oposto. Entre outros aspectos que explicam essa maior incidência está
o fato de que a mucosa anal é mais sensível do que a mucosa vaginal, o que
faz com que homens que fazem sexo anal passivo estejam mais sujeitos a
serem infectados pelo vírus presente no sêmen de alguém infectado do que
uma mulher que faz sexo vaginal.

Ao longo do tempo, no entanto, métodos para se evitar a infecção — como a


camisinha e a PrEP (profilaxia de pré-exposição) — se tornaram cada vez
mais acessíveis, e os testes para a detecção do vírus, mais rápidos e precisos.
Os avanços científicos e sociais permitiram que os órgãos de vigilância
sanitária de diferentes países fossem ao longo do tempo diminuindo as
barreiras para que homossexuais e bissexuais também pudessem contribuir
com os bancos de sangue.

No Brasil, o veto total à doação de sangue por homens que tiveram relações
sexuais com outros homens foi flexibilizado em 2002. A Anvisa (Agência
Nacional de Vigilância Sanitária) passou a autorizar a doação, desde que a
relação sexual tivesse acontecido há no mínimo 12 meses.

Em 2016, o PSB questionou esse entendimento no Supremo. O partido


alegou que uma resolução da Anvisa de 2014 e uma portaria do Ministério da
Saúde de 2016, que mantinham o prazo de um ano estabelecido desde 2002,
eram preconceituosas e contrariavam a Constituição Federal. A
Procuradoria-Geral da República concordou.

O julgamento do caso começou em outubro de 2017, quando o relator da


ação, ministro Edson Fachin, defendeu a anulação da restrição. Desde então
até 2019, o processo ficou parado no gabinete do ministro Gilmar Mendes,
que pediu para analisá-lo mais detidamente.

Com a emergência da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, o


PSB conseguiu convencer o Supremo da necessidade de retomada do
julgamento.

O entendimento que prevaleceu

O ministro Edson Fachin, relator do caso, afirmou que a discriminação


contra homossexuais na doação de sangue não tem justificativa técnica,
dados os avanços científicos, e ofende a dignidade humana. Segundo ele, os
bancos de sangue devem selecionar doadores a partir da segurança de suas
práticas sexuais (o que inclui uso de preservativo e diversidade de parceiros,
por exemplo) — e não a partir de sua orientação sexual.

Nesse mesmo sentido, a ministra Rosa Weber afirmou que as restrições


estabelecidas pelas normas são desproporcionais, uma vez que
desconsideram fatores que afetam o risco da prática sexual, como o uso ou
não de preservativo e a existência ou não de uma relação homoafetiva fixa.

Concordaram com esses entendimentos os ministros Luís Roberto Barroso,


Luiz Fux, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Carmen Lúcia.

O ministro Alexandre de Moraes também disse ser possível a doação de


sangue por homossexuais, “desde que o sangue somente seja utilizado após o
teste imunológico, a ser realizado depois da janela sorológica [período em
que uma infecção pode não ser detectada pelo exame sorológico] definida
pelas autoridades de saúde”. Esse prazo não é estabelecido para o caso de
doações feitas por heterossexuais, mas, segundo Moraes, é necessário em
razão de a taxa de infecção pelo HIV ser mais alta entre homossexuais.

O entendimento contrário

Os ministros Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello


defenderam que as normas que proíbem homossexuais com vida sexual
ativa de doarem sangue são compatíveis com a Constituição.

Segundo eles, o impedimento tem razão científica, e não caberia ao Supremo


interferir nos critérios epidemiológicos determinados pelas autoridades
sanitárias.

O ministro Lewandowski citou um artigo do presidente da ABHH


(Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular),
Dante Mário Langhi Júnior, segundo o qual a prevalência do vírus HIV entre
homens que têm relações sexuais com outros homens foi de 15,4% em São
Paulo — taxa "cerca de 450 vezes superior à encontrada entre os doadores de
sangue, que é inferior a 0,03% (Hemocentro de Ribeirão Preto-SP)". Os
dados são de uma pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa
de São Paulo publicada em 2015.

"[O Supremo] deve adotar uma postura autocontida diante de


determinações das autoridades sanitárias quando estas forem embasadas
em dados técnicos e científicos devidamente demonstrados", afirmou
Lewandowski.

Como funciona em outros países

3 MESES
Em meio à pandemia de covid-19, a vigilância sanitária dos Estados Unidos
reduziu de um ano para três meses o período em que homens que tiveram
relações sexuais com outros homens têm de esperar para poderem doar
sangue. Os estoque de sangue do país estão muito reduzidos em razão das
medidas de distanciamento social. Até 2015, a doação de sangue por
homossexuais era totalmente proibida.

1 MÊS
No Irlanda do Norte, o prazo de um ano foi reduzido para 30 dias, também
em razão da pandemia de covid-19. No restante do Reino Unido, a proibição
da doação de sangue por homossexuais foi totalmente revogada em 2011.

SEM RESTRIÇÕES
Em países como Argentina, Chile, Peru, Espanha e Itália, os critérios de
habilitação para doação de sangue não envolvem orientação sexual.

Uma análise sobre a decisão do Supremo

Sobre os fundamentos e os impactos da decisão do Supremo, o Nexo


conversou com Wallace Corbo. Ele é professor da FGV Direito Rio, advogado
da Clínica de Direitos Fundamentais da Uerj e autor do livro "Discriminação
indireta: conceito, fundamentos e uma proposta de enfrentamento à luz da
Constituição de 1988".

O que havia de ciência e o que havia de preconceito na proibição de


doação de sangue por homens homossexuais?
WALLACE CORBO A proibição, supostamente científica, partia da pergunta

errada. O que é relevante para o contágio do HIV? É quem você é ou o que


você faz? Se eu comparar um homem gay que sempre usa preservativo com
um homem hétero que usa o preservativo esporadicamente, a chance de
contrair o vírus do homem gay é infinitamente menor em relação à do
homem hétero. Ou seja, quando se pergunta a sexualidade do doador de
sangue, a pergunta já está errada. Porque não é a sexualidade que é
relevante. O vírus não faz pesquisa de opinião com quem ele contagia. O que
importam são as práticas (sexuais e não sexuais) da pessoa.

Trinta anos atrás, quando não conhecíamos bem o vírus, podemos entender
por que critérios extremamente rígidos foram adotados. Mas hoje sabemos
como o HIV funciona e como ele é transmitido. Continuar associando o
vírus apenas a homens gays e bissexuais acaba inclusive atrasando a
resposta do poder público contra a doença.

Veja que há outras restrições à doação de sangue na portaria da Anvisa,


como fazer uma tatuagem, ter um piercing, sofrer uma acidente com
material biológico. Mas todas as outras se referem a práticas consideradas
arriscadas, não a um grupo de pessoas.

Os ministros que discordaram do entendimento majoritário


argumentaram que a restrição a homens homossexuais se baseava
em dados técnicos. Como o sr. avalia esse tipo de argumento?
WALLACE CORBO Esse é um argumento extremamente sensível, porque revela

como o “dado técnico” pode ser interpretado de tal forma a fortalecer


preconceitos e estereótipos.

Por exemplo, se eu quiser saber as condições que levam uma pessoa a


praticar um crime, não posso olhar para o fato de que 61% das pessoas que
estão nas cadeias são negras, e concluir que uma das condições que leva a
pessoa a cometer um crime é ser negra. Esse tipo de determinismo foi muito
aplicado à população negra nos séculos 19 e 20, para justificar a
marginalização social, mas é uma leitura pseudo-científica.

Assim, de certa forma, quando ministros do Supremo remetem a esses


dados técnicos, produzidos em um paradigma científico extremamente
defasado, eles acabam revelando a dificuldade do STF em lidar com
argumentos científicos. Também revelam como o STF, apesar da decisão
histórica no âmbito da proteção a minorias, ainda assim é um espaço de
reprodução de certos discursos sociais e morais de outros tempos.

O que a decisão do Supremo representa para a comunidade LGBTI?


WALLACE CORBO Sempre que a gente fala em população LGBTI, precisamos

lembrar que são muitos grupos com características, interesses e pautas


distintas que se unem pela características comum de serem excluídos por
não se conformarem com expectativas de perfomance de gênero ou de
sexualidade impostas pela sociedade. Então o julgamento ele pode ter uma
relevância maior para algumas dessas letrinhas e menor para outras.

Mas me parece que, pensando a população LGBTI como um grupo com


algumas demandas políticas unificadas, a decisão é mais uma afirmação da
cidadania dessas pessoas. Eu não leria essa decisão de maneira isolada: o
processo de inclusão e reconhecimento de pessoas LGBT na sociedade
brasileira e no direito brasileiro começa nos anos 70, com os primeiros
pedidos de reconhecimento de união estável, e culmina nos anos 2010 com o
reconhecimento pelo STF do casamento gay, do direito à alteração de nome
e sexo de pessoas transexuais, transgêneros e travestis e, agora, com a
decisão sobre doação de sangue.

O interessante dessa decisão, assim como das outras, é como ela atua para
descontrair uma leitura patologizante da homossexualidade, da
bissexualidade e da transexualidade. Quando o STF diz que ser trans não é
uma condição demonstrada por laudo médico, como disse em 2018, ou que
ser gay não torna o sangue de um homem menos puro, ele reafirma a
igualdade e a condição humana de quem, por conta de uma epidemia
devastadora e de uma sociedade extremamente conservadora e excludente,
foi sempre lançado às margens do que se considera saudável e do que se
considera “normal”.

VEJA TAMBÉM
A decisão do STF que
EXPRESSO
suspende a permissão à ‘cura gay’

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