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TOC 103 - Outubro 2008

C o n t a b i l i d a d e

A fraude contabilística e o ambiente empresarial


Por Manuel Lourenço e Manuela Sarmento

A Contabilidade constitui a melhor e mais fidedigna fonte de informação para os


gestores, assim como para os sócios e interessados em avaliar o património e ex-
ploração de determinada empresa. Qualquer anomalia pode prejudicar esta in-
formação e respectivos resultados. Mas a fronteira entre algumas anomalias nem
sempre é muito nítida.

T
odas as operações que resultam sição financeira, o desempenho e os fluxos de
da actividade de exploração de caixa de uma entidade que seja útil a uma vasta
um agente económico devem gama de utentes na tomada de decisões de Ges-
ser relevadas contabilisticamente, tão (conforme conceito das chamadas normas
adoptando modelos normalizados de internacionais de contabilidade ou International
contabilidade de âmbito nacional, Accounting Standards). E também proporcionar
regional (por exemplo, da União Eu- informação sobre os resultados da gestão dos re-
ropeia) ou mundial (IASB/FASB), uti- cursos confiados à gerência/administração.
Manuel Lourenço
Mestre em Gestão lizando meios predominantemente A informação a prestar deverá cobrir todos os
Docente do ISCAL
ROC e TOC
electrónicos que os mantenham rapi- elementos das classes de contas típicas dos sis-
damente disponíveis para consulta e temas contabilísticos (activos, passivos, capitais
análise por parte dos utilizadores in- próprios, rendimentos e custos, incluindo ga-
teressados. nhos e perdas, fluxos de caixa e ainda as notas
A Contabilidade constitui, sem dúvi- anexas).
da, a principal fonte de informações, Todos os actos da actividade de exploração de-
quer para o governo das entidades vem corresponder a registos contabilísticos eiva-
quer para a análise quantitativa e qua- dos de rigor e exactidão.
litativa do valor do seu património. Quem detém a responsabilidade de efectuar
As demonstrações financeiras, resul- o registo periódico das actividades relativas às
Manuela Sarmento tantes dos registos dessas operações, operações da actividade corrente de exploração,
Doutorada em Gestão;
Docente da Univ. Lusíada de Lisboa devem corresponder, com rigor in- não deve desconhecer o que distingue o erro
e da Academia Militar
questionável, ao património e activi- da fraude, quer no plano contabilístico quer em
dade desenvolvida pela entidade ao qualquer outro plano da actividade económica
longo da sua existência. das sociedades, jurídica e legalmente constitu-
ídas.
Demonstrações financeiras
Erros, irregularidades
Na sua essência, as demonstrações financeiras são e fraudes contabilísticas
quadros, ou mapas, estruturados quer por sistemas
contabilísticos que os propõem quer formatados Passando à interpretação do conteúdo dos vocá-
livremente (se tal se justificar ser mais adaptável, bulos «erro», «fraude» e «irregularidade», temos
para o valor da informação) que resumem a in- os seguintes conceitos para cada um deles:
formação processada com base nos documentos – Erro, no contexto de erro contabilístico, consi-
(por oposição à contabilidade criativa que poderá derado como um acto fortuito, não intencional,
prescindir deles), de forma a poder ser lida por provocado por descuido ou desconhecimento;
terceiros dentro ou fora da organização. – Fraude, no contexto de fraude contabilística,
A finalidade das demonstrações financeiras con- considerado como um acto intencional, com o
siste em proporcionar informação sobre a po- objectivo de obter benefícios ilícitos ou ilegais,

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em que a ilicitude, ou a ilegalidade, se conside- • Dimensão da empresa – Normalmente, quanto


ra como sendo um acto ilegítimo, portanto não maior for uma entidade mais propensão existe
lícito ou não legal; para considerar que as fraudes contabilísticas
– Irregularidade, no contexto de irregularidade podem ser escondidas porque como há muito
contabilística, como sendo uma fraude sem a co- “papel”, ninguém vai notar. Ao invés, também se
notação de ilegalidade ou ilicitude. poderá considerar que as debilidades financei-
É evidente que a fronteira entre irregularidade e ras e de actividade das micro-empresas poderá
fraude é subjectiva e, quiçá, perigosa, podendo contribuir para um certo laxismo, eivado de “ig-
ser falsamente “piedosa”, distanciando-se da tra- norância”, para serem cometidas irregularidades
dição contabilística e, sobretudo, fiscal, onde, à eventualmente fomentadas por terceiros.
semelhança da mulher de César, para o ser, tam- • Sector de actividade (combinada com a tecno-
bém o deve parecer. logia adoptada pela empresa) – Concerteza que
Os responsáveis pela condução dos negócios as empresas com tecnologias de ponta e com
empresariais não podem alegar desconhecimen- tendências de crescimento mais acentuado es-
to no que se refere ao grau de diferenciação que tarão mais sujeitas a irregularidades que outras
se estabelece entre um erro e uma fraude. que, consistentemente, se encontram a navegar

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As tecnologias actuais e a crescente informati- em “velocidade cruzeiro”.
zação das contabilidades (hoje em dia, em Por- • Rubricas do balanço mais expostas à fraude
tugal, já se concebe com dificuldade que a exe- e à irregularidade, que variam de empresa para
cução da contabilidade se processe por meios empresa – Sem dúvida que existências (onde são
manuais) contribuem para que nas organizações bem conhecidas as manobras dos inventários),
empresariais mais sofisticadas a ocorrência de os imobilizados (onde os métodos de cálculo das
irregularidades tenda a minimizar-se, mas nem amortizações e as reavaliações mais ou menos fa-
por isso esta circunstância exclui a ocorrência de laciosas, são os exemplos mais notórios), as con-
fraudes. E os exemplos estão aí bem à vista de tas a receber (onde a avaliação dos ajustamentos
todos com as célebres ocorrências de falências etc., são contas mais propensas a “embarcar” em
suspeitas de grandes empresas, como a america- aventuras mais ou menos duvidosas.)
na Enron e a italiana Parmalat, se bem que neste • Estratégias de governação das empresas com
segundo caso se espere a recuperação da empre- maior ou menor risco – As estratégias mais
sa com a ajuda das entidades oficiais daquele agressivas quer do ponto de vista de gestão e
país. crescimento quer do ponto de vista fiscal, po-
Neste contexto, terá que se antever que o futuro dem formar terrenos mais propensos a riscos de
da auditoria, na sua vertente de execução, será fraudes e irregularidade.
a denominada auditoria informática, em que os • Excessiva carga fiscal que torne demasiado
próprios meios de execução da contabilidade “atractiva” a fuga aos impostos – É pacífico que
– software ou programa de contabilidade, etc. quanto maior for a rentabilidade duma fraude
– terão que ser auditados de forma convincente, maior propensão haverá para a praticar.
o que não acontece actualmente e na sua ver- • Insuficiências de preparação académica ou
tente de preocupação será a continuidade da or- tecnológica dos postos de trabalho-chave, res-
ganização. Resumindo, os conceitos analisados ponsáveis pelas relevações contabilísticas – A
sintetizam-se do modo seguinte: ética e a independência apanágio de pessoas

Tipo de ocorrência Designação do acto Origem da ocorrência


Erro Acto fortuito não intencional Descuido ou falha técnica
Fraude Acto intencional, ilegítimo e doloso Obtenção de benefícios ilegais ou ilícitos
Irregularidade Acto intencional não doloso Desconhecimento técnico (sujeito a sanções)

Factores que podem concorrer para a fraude mais preparadas academicamente, são grandes
responsáveis pelo controlo da fraude.
As fraudes e irregularidades contabilísticas po- • Debilidades da estrutura financeira da empre-
dem surgir associadas ou favorecidas por várias sa – As entidades que lutam pela sobrevivência
situações específicas: são “forçadas” a recriar as suas demonstrações

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financeiras para “contentar” o director do banco


que assim pode, sem grandes “ondas”, continuar
a abrir a “torneira” do financiamento da organi- Terá que se antever que o futuro da
zação. auditoria, na sua vertente de exe-
• Sistema judiciário – Na actual situação do país,
cução, será a denominada audito-
onde a justiça se arrasta com sucessivos atrasos,
propicia a desresponsabilização, tornando atrac- ria informática, em que os próprios
tiva a fraude para o perpetrador. meios de execução da contabilidade
(...) terão que ser auditados de for-
Eventuais obstáculos à fraude ma convincente.
Por outro lado, os obstáculos à ocorrência de frau-
des e irregularidades podem surgir associados a:
• Revisores Oficiais de Contas, onde as suas certi- Algumas entidades, pelo seu posicionamento no
ficações, dotadas de fé pública e merecedoras de tecido económico nacional, podem inadvertida-
crédito por parte dos credores da empresa, são um mente permitir que se criem condições para que
grande obstáculo à propagação da fraude. as fraudes ocorram.
• Auditores, na linha dos ROC, são apreciados Enumeram-se algumas:
pelo seu trabalho de investigação das irregulari- a) Bancos – À semelhança do problema do sub-
dades contabilísticas. prime americano, há muito crédito bancário
• Técnicos Oficiais de Contas, que na sua maior par- concedido com exagerado risco, carecendo de
te são também os contabilistas e, em primeira linha, segurança mínima o retorno dos capitais em-
inconsciente ou inadvertidamente, colaboram na prestados, tornando a organização demasiado
prática directa de irregularidades/fraudes. Tal como dependente do banco que, por sua vez, não tem
os ROC, têm já estabelecidas responsabilidades pes- vocação nem interesse em assumir a gestão efec-
soais pelo desempenho da sua função, e eventual tiva da entidade. Esta “debilidade” pode ser pas-
cobertura ou prática de fraudes, quer perante tercei- to para as mais variadas situações de fraude.
ros credores quer perante o fisco. b) Finanças – Taxas de impostos elevadas (como,
• Controlo interno, demonstrativo da organização por exemplo, taxa máxima de IVA) são um grande
interna da empresa, é o primeiro obstáculo sério ao “convite” à fuga aos impostos, onde poderá valer
desenvolvimento e prática das fraudes. Por exemplo, tudo: desde a adulteração das demonstrações fi-
uma inadequada segregação de funções poderá ter nanceiras, à sonegação de operações contabilísti-
como resultado a prática de irregularidades contabi- cas tributadas, às declarações falaciosas, que de-
lísticas: um funcionário que simultaneamente faça a pois têm que ser acolhidas no sistema de contabili-
facturação, a cobrança e o movimento bancário. De dade e consequentes demonstrações financeiras.
salientar que este é um risco que tende a agravar-se c) Tribunais – A lentidão dos tribunais em Por-
com as novas tecnologias e consequente diminui- tugal cria um ambiente de desresponsabilização
ção dos “escritórios” das organizações. social que, levado ao limite, pode conduzir à
• Sistema judiciário, que a funcionar correcta- corrupção e consequentes fraudes.
mente (designadamente celeridade), colocaria d) Sócios e gerentes – Como é bem explicado pela
em respeito os eventuais criminosos de colari- chamada «teoria de agência», quando se instalam
nho branco. divergências fundamentais de interesses, entre es-
• Outros sistemas de controlo (CMVM, Banco de tas duas figuras das organizações, salta a “guerra”e
Portugal, Instituto de Seguros de Portugal, ASAE quem sofre mais são, normalmente, as organizações
(Autoridade para a Segurança Alimentar e Eco- e as suas estruturas de rentabilidade, debilitando
nómica), Provedor de Justiça, etc.). equilíbrios financeiros estruturais, com os conse-
quentes malefícios descritos anteriormente. A isto
Alguns “facilitadores” da fraude ainda se pode agregar, outros factores, como os só-
cios com demasiada ambição por rendimentos rá-
Há entidades que podem fomentar, de forma pidos, ou gerentes dominados por terceiros que te-
inadvertida, as fraudes em Portugal? nham interesses concorrenciais com a organização.

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Resumo da “roda” da fraude

Fig n.º 1 – A “roda” da fraude

Debilidades
Insuficiências de
da estrutura financeira Sistema judiciário
preparação académica
da empresa

Estratégia de
governação das

c o n t a b i l i d a d e
Sector de empresas
actividade Excessiva
carga fiscal

Dimensão
da empresa Rubricas do
balanço

Auditores Ambiente
favorável
Bancos
Controlo interno

Sistema
Agentes
judiciário Obstáculos que podem
Finanças
fomentar a
fraude
Outros sistemas
de controlo

Técnicos Oficiais Tribunais


de Contas

Sócios e
Revisores Oficiais
gerentes
de Contas

(Texto recebido pela CTOC em Agosto de 2008)

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