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2018. v. 6, n. 1, p. 05-19
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Resumo
Abstract
In this article, it is proposed an approach of the wandering in the adolescence emphasizing the dimension of
the anonymous desire. From the Freudian research on the transformations of puberty and the Lacanian thesis
on the awakening of the child's dream, the theme of the anonymous desire and non-belonging of the young in
the field of the parental and social Other, specifically, among the juvenile offenders marked by the insignia of
error and the worst. Would there be, in such cases, a space for desiring enunciation?
errância entre os jovens que, em alguns Melchior sobre o fim da inocência, que
casos, convocam, a partir de seus atos marca a sua entrada na puberdade, e o
infracionais, o Outro da lei e da proteção despertar do sonho infantil. Nesta peça de
(Douville, 2002; Lesourd, 2004). Trata-se, Wedekind (2004) é demonstrado o valor
para estes adolescentes, da radicalidade do real que tem, para cada jovem personagem,
encontro com a inexistência desse Outro, o encontro com o corpo, com o gozo e com
seja no campo familiar ou no campo social. a morte (Lacan, 1973/1974). Em face ao
Por sua vez, os laços construídos por estes real em jogo para o ser falante duas
jovens têm a marca da instabilidade. respostas são apresentadas pelos
adolescentes, a saber, o laço com o Outro e
A questão do laço com o Outro foi
o exílio do Outro, ou seja, a entrada no
apontada por Jacques Lacan quando ele
território dos não-tolos, estes que erram
trabalhou o tema da adolescência. Ele
(Lacan, 1973/1974). Passemos,
dedicou uma atenção especial a este tema
rapidamente, pela peça de Wedekind
na década de setenta, a partir da ideia de
(2014) e por algumas falas dos
despertar e da tese freudiana, extraída de
personagens que compõem essa peça e que
seus três ensaios sobre a teoria da
apresentam a problemática da
sexualidade (Freud, 1905/1996), de que a
adolescência:
sexualidade faz furo no real (Lacan,
1974/2003). Ao situar o real em jogo, no (a) O declínio da autoridade paterna:
encontro com a puberdade, a leitura
Moritz: “Para que serve uma
lacaniana sobre o despertar da sexualidade enciclopédia que responde tudo,
na adolescência, coloca em relevo a tese da menos a pergunta mais importante
sobre a vida?” (p. 4)
inexistência da relação sexual e o
malsucedido, que é o encontro com a Wendla: “Sabe o que eu acho? Que
todo mundo que consegue escapar da
sexualidade para cada ser falante (Lacan, religião cai de cabeça na idiotice da
1974/2003). superstição”. (p.3)
ordens, na medida em que “ela satura, merda como seu pai” e assumir um nome
substituindo-se a esse objeto, a modalidade que o particularizava “eu sou um
de falta em que se especifica o desejo (da trabalhador”. Esta era também uma outra
mãe), seja qual for a sua estrutura especial: referência paterna, apagada, escondida por
neurótica, perversa ou psicótica” ( p. 369). trás da sentença materna, e permitiu a este
jovem se alojar de outra forma em seu
Uma situação clínica de um
discurso.
adolescente acompanhado por dois anos no
cumprimento da medida socioeducativa de Esta reflexão sobre o desejo anônimo
liberdade assistida ensina algo sobre o que que particulariza pelo pior, ao nosso ver,
a teoria psicanalítica apresenta. Este aponta para o que Lesourd (2004) afirmou
jovem, Riobaldo, considerado por sua mãe predominar na juventude hoje em dia, a
“um merda, como seu pai”, responde saber, menos as questões da rivalidade
prontamente a esta identificação. Ele não edipiana com o pai, e mais a “questão
para de se meter em confusão. Ele rouba arcaica da existência do eu diferenciado do
uma boca de fumo e quase morre: “melhor outro” (p. 158). Nesta direção, em relação
tivesse morrido, assim não dava trabalho”, aos comportamentos e atos infracionais na
ressoa o discurso materno. adolescência, Lesourd enfatizou o lugar de
“uma delinquência do gozo arcaico com a
Este jovem estava identificado com o
mãe” (p. 158), ou seja, vinculado a uma
nome do pior, ele era guiado em seus
confusão mortífera entre o eu e o outro, a
passos na vida por esse sintagma “ser
uma indissociação do sujeito em relação ao
homem era ser um merda”. Entretanto, em
gozo materno.
face a iminência de se tornar pai, este
jovem começa a redimensionar os lugares Essa indiferenciação entre o sujeito e
subjetivos de pai e filho, que ele era. Os seus outros parece ser uma característica
laços construídos com um orientador privilegiada nos casos dos adolescentes
social, com quem conversava enquanto confrontados com o desejo anônimo no
ocupava os espaços diversos da cidade, campo do Outro parental. Um adolescente
foram fundamentais em sua releitura de si não particularizado no campo do Outro
mesmo. pelo viés do desejo é este que se encontra
assolado pelo sentimento de não-
Aos poucos, ao tomar a palavra e
pertencimento que o conduz a ser
falar das “coisas de homem”, ele pode se
estrangeiro em relação à sua própria vida, a
deslocar desta identificação mortífera “um
“da autenticação de um nome ao sujeito” a palavra é que pode dar lugar à função da
(p. 251) na construção de narrativas que errância em sua vida.
operem como resistência aos discursos
Esse ato de tomar para si a sua
hegemônicos, alienantes e excludentes.
palavra e a sua história pode, talvez,
E, em relação a essa experiência, produzir algumas condições de balizar a
cabe ao analista, sustentar o seu desejo sua angústia, ou seja, de mediar a sua
levando-se em consideração, tal como relação com o desejo do Outro, a partir da
sublinha Lacan (1964/1996) que “o desejo inserção de índices de separação na
do analista não é um desejo puro. É um alienação que o constitui como sujeito,
desejo de obter a diferença absoluta, aquela contribuindo para a construção de
que intervém quando, confrontado com o referências outras que dêem lugar ao seu
significante primordial, o sujeito vem, pela despertar.
primeira vez, à posição de assujeitar a ele”
Essa referência lacaniana, que aponta
(p. 260). Pois, conforme aponta Jacques
na direção da pluralização dos nomes do
Lacan (1973) em seu seminário “Os não-
pai em seu ensino, ou seja, situa a
tolos erram”, erram aqueles que são
perspectiva da invenção possível a cada
estrangeiros em relação a si mesmos, no
um em face ao real que se antecipa como
sentido de que são descrentes de seu
impossível de dizer, indica que o itinerário
inconsciente e de sua história.
do desejo a ser mapeado por cada
É nesse sentido que pensamos a adolescente pode servir como uma baliza à
dimensão positivada da errância, ou seja, a sua errância, produzindo um saber em face
de abertura do espaço para que o ao insabido que é o inconsciente na medida
adolescente possa se enredar em sua em que o verdadeiro está à deriva quando
narrativa, construindo novos enredos que o se trata do real.
permitam situar a sua estrangeiridade
Nesta direção, ao deslocar-se da
íntima e potencial. Pois, para utilizar uma
errância ao erreur, ao erre, Jacques Lacan
expressão de Jacques Lacan (1962-
(1973) localiza que erram aqueles que não
1963/2005), quando o adolescente
se encontram enamorados de seu
envereda em sua “partida errante para o
inconsciente, aqueles que não são tolos do
mundo” (p. 130), nessa travessia em que
real, embora errem também os que o são.
tantas vezes prevalece o imperativo do ato,
Sobre o real e o “erre”, “esse negócio que
do agir, a possibilidade de dizer e de tomar
impele”, Lacan pronuncia:
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Sobre a autora
¹ Aline Guimarães Bemfica | Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado pela Fundação de
Amparo à Pesquisa da cidade do Rio de Janeiro (FAPERJ/Pós-doc nota 10), na Universidade
Federal do Rio de Janeiro.Nesta pesquisa, desenvolve projeto de intervenção no campo da
psicanálise, na interface com a arte, com jovens em situação de migração, de refúgio e de
errância. Possui doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2017). Em seu doutorado trabalhou o tema do jovem infrator, do desejo e da errância,
a partir de sua prática clínica, exercida durante dez anos, com adolescentes. Possui mestrado
em Teoria da Literatura, na Universidade Federal de Minas Gerais (2006) e graduação em
Psicologia pelo Centro Universitário Newton Paiva (2003). Possui experiência clínica em
Psicanálise com adolescentes, adultos e crianças (consultório particular e instituições).
Trabalha, principalmente, com os seguintes campos: psicanálise, adolescência, socioeducação,
direito, literatura.