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Rio de Janeiro
2020
THIAGO MADUREIRA RIBEIRO
Rio de Janeiro
2020
RIBEIRO, Thiago Madureira, 1986-
Nº cutter A DOUTRINA DA DEPRAVAÇÃO TOTAL SEGUNDO A TEOLOGIA
PROTESTANTE / Thiago Madureira Ribeiro – 2020.
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________________________________
Nome do examinador:
Titulação:
Instituição:
___________________________________________________________________
Nome do examinador:
Titulação:
Instituição:
Rio de Janeiro
2020
DEDICATÓRIA
(R. C. Sproul)
RESUMO
Todo ser humano está impossibilitado de ser salvo pelo seu próprio livre arbítrio. A
Queda de nossos primeiros pais colocou um imenso abismo entre Deus e a humanidade. O
homem é mau desde o seu nascimento e a perversão do seu coração é a causa de todos os
males existentes na sociedade. É impossível para o homem natural desejar Deus, pois os
efeitos noéticos do pecado o impossibilitou de fazer isso; pelo contrário, o fez odiar a lei de
Deus. A doutrina da depravação total sobre as lentes da teologia protestante comprovam todos
esses fatos. Calvinistas e arminianos, apesar das suas divergências em outros pontos da
teologia, concordam de que não exista nada de bom no ser humano que o faça desejar Deus e
obedecê-Lo pelo seu próprio livre arbítrio e ser salvo. A depravação total é provada pela
Bíblia e é somente a partir do entendimento dessa doutrina que teremos uma clara
compreensão do estado moral, racional e espiritual que se encontra o homem. O Evangelho só
será uma boa notícia quando o ser humano souber quem ele é e qual o seu status diante de
Deus.
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10
2. A QUEDA ....................................................................................................... 11
2.1 O PECADO HERDADO .............................................................................................. 13
3. DEPRAVAÇÃO TOTAL.................................................................................. 17
3.1 A DOUTRINA DA DEPRAVAÇÃO TOTAL É DEFENDIDA POR CALVINISTAS
E ARMINIANOS ......................................................................................................... 23
3.2 A DOUTRINA DA DEPRAVAÇÃO TOTAL PROVADA PELA BÍBLIA ............... 26
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 29
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 30
10
1. INTRODUÇÃO
1
MARTINS, 2018, p. 58.
11
humano por inteiro, de modo que desde do seu nascimento o homem é mau. Essa é a proposta
primordial no presente trabalho, que apresentará como a teologia protestante vê o homem e
como o pecado de nossos primeiros pais afetou toda humanidade. A partir da doutrina da
depravação total iremos olhar com mais clareza o ser humano e a sua incapacidade de por si
mesmo escolher o que é bom e receber o Evangelho. Ao tratar do livre arbítrio apresentarei
apenas o modo como a tradição protestante, que seguiu o pensamento de Agostinho, vê antes
e depois da Queda. Não mergulharei nas águas profundas que se encontra a discursão entre os
que defendem um livre arbítrio liberto para decidir o que é bom e os acreditam que as
decisões só podem ser tomadas por circunstâncias casuais ordenadas pelo decreto soberano de
Deus. Apesar de não ser o foco do trabalho a discursão entre essas duas importantes escolas
teológicas do protestantismo, irei apresentar um breve resumo sobre o ponto de discordância
entre elas e focarei no pilar em que as duas escolas estão fundamentadas. Apresentarei
também alguns, dentre tantos, textos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento que
fundamentam a doutrina da depravação total sobre a ótica protestante e o porquê dessa
doutrina ser de suma importância para o entendimento do Evangelho.
2. A QUEDA
Neste capítulo iremos tratar sobre à luz da teologia protestante a Queda dos nossos
primeiros pais e os efeitos que trouxeram para sua prole. O termo “Queda” é usado pelos
teólogos para se referir à tragédia que levou Adão e Eva e o resto da humanidade há um
estado de rebelião contra Deus e infelicidade na sua existência. Alguns teólogos dizem que
Queda não é um bom termo, que as palavras transgressão e, principalmente, quebra do pacto
descrevem com mais exatidão o triste cenário de Gênese 3.2 Segundo o dicionário de
cristianismo e ciência,
a queda, como empregada na teologia cristã, refere-se à transição da humanidade
do gozo da benção de Deus para um estado de pecado no qual homens e mulheres
estão alienados do relacionamento íntimo com seu Criador. Essa queda foi
entendida como uma queda da graça ou da inocência, e a história dessa transição é
dada em Gêneses.3
De acordo com Gêneses 1.26 o homem é apresentado como o apogeu da criação. Nos
versículos seguintes ele é posto como o cabeça da humanidade e governante sobre a terra e os
animais. No capítulo 2 três fatos são importantes para o entendimento do capítulo 3: 1) Deus
concede liberdade a Adão e Eva: “E o Senhor deu a seguinte ordem para o homem: Comerás
2
GRONINGEN, 2002, p. 115.
3
COPAN et al., 2018. Posição 27279. Edição Kindle.
12
livremente o fruto de qualquer espécie de árvore que está no jardim” (v.16); 2) põe limites
nessa liberdade: “contudo, não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal” (v.17a);
3) a penalidade da quebra do pacto: “[...] porque no dia em que dela comeres, com toda a
certeza morrerás” (v.17). A Confissão de Fé de Westminster (CFW) define esse pacto da
seguinte forma: “O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras, nesse pacto, foi
a vida prometida a Adão, e, nele, à sua posteridade, sob a condição de perfeita obediência
pessoal” (VII, II). Deus estava exigindo obediência, caso o primeiro casal descumprissem,
tanto eles quanto a sua prole experimentariam no corpo e na alma a punição estabelecida por
Deus, nesse caso a morte de ambos e de seus porvindouros (cf. Rm 5.12). O que Deus quis
dizer com morte? O teólogo calvinista Andrew Willet responde essa objeção:
A primeira pergunta aqui é com que tipo de morte Deus ameaçou Adão: com a
morte somente do corpo, com a morte da alma ou com ambas? Não pensamos que
somente a morte da alma seja representada aqui, por meio da qual a alma é
separada de Deus pelo pecado, pois vejo que o próprio Senhor ameaçou Adão com
a morte do corpo, em Gêneses 3.19: “Tu és pó e ao pó tornarás”. Também não é
apenas a morte do corpo, como o apóstolo mostra em Romanos 5.12... Houve
pecado primeiro na alma, antes que houvesse morte do corpo. Também não
pensamos que a morte eterna esteja excluída aqui, pois o apóstolo diz: “Éramos, por
natureza, filhos da ira, como também os demais (Ef 2.3); e se, pela transgressão de
Adão, somos filhos da ira, quanto mais ele, que nos deixou assim? E se, pecando,
Adão não se fez culpado de morte eterna, por que foi feita a ele, imediatamente
após sua queda, a promessa do Messias (Gn 3.15), cujo o oficio é nos redimir do
pecado e da condenação eterna? Portanto, pensamos, com Agostinho, que morte,
aqui, deve ser entendida como todo o tipo de morte, seja da alma ou do corpo,
temporal ou eterna. Pois Agostinho define quatro tipos de mortes: a morte temporal
da alma, quando, por algum tempo, ela é separada de Deus pelo pecado; a morte
eterna da alma, quando ela é separada do corpo; a morte temporal do corpo, quando
ele é separado da alma; e a morte eterna do corpo no inferno. Assim, Adão morreu
primeiro em sua alma, perdendo sua inocência; ele morreu no corpo, voltando ao
pó; e ele também devia se sujeitar à morte eterna do corpo e da alma – mas, disso,
foi redimido por Cristo.4
4
Comentário Bíblico da Reforma, 2015, pp. 150-1.
5
CALVINO, 2018, pp. 91-2.
13
A partir da queda dos nossos primeiros pais toda pessoa nascida no mundo por
procriação natural (exceto Jesus) tem herdado a natureza pecaminosa de Adão. Aqueles que
6
BAVINCK, 2012, p. 25.
7
GRONINGEN, 2002, p. 127.
14
haviam sidos criados à imagem e semelhança de Deus, tiveram filhos que foram concebidos à
sua imagem e semelhança pecaminosa: “Aos 130 anos, Adão gerou um filho à sua
semelhança, conforme sua imagem; e deu-lhe o nome de Sete” (Gn 5.3). Ao comentar esse
versículo, Lutero diz:
Adão foi criado à imagem e semelhança de Deus, ou a imagem foi criada por Deus
e não gerada; pois ele não tinha pais. Ele não permaneceu nesta imagem, mas caiu
dela por causa do pecado. E assim Sete, que nasceu depois, não nasceu segundo a
imagem de Deus, mas segundo a imagem do seu pai, Adão. Ele é a imagem de
Adão não somente na forma de seu rosto, mas também em semelhança. Ele não
apenas tem dedos, nariz, olhos, conduta, voz e fala, como seu pai, mas também é
como ele nas qualidades remanescentes de mente e corpo, em maneiras, caráter,
vontades, etc. Com respeito a isso, Sete não reflete a semelhança de Deus, que
Adão tinha perdido, mas a semelhança de seu pai, Adão. Mas esta é uma
semelhança e uma imagem que não foi criada por Deus, mas gerada por Adão. Esta
imagem inclui o pecado original e a punição da morte eterna, que foi imposta a
Adão por causa de seu pecado [grifo nosso].8
O apóstolo Paulo em Romanos 5.12 deixa evidente que o pecado de Adão foi
transmitido a toda humanidade: “Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo
por um homem, e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque
todos pecaram”. Essa noção de pecado original11 já era defendida no período da patrística.
8
Comentário Bíblico da Reforma, p. 264.
9
CALVINO, 2018, p. 211.
10
LAWSON, 2012, p. 82.
11
“O pecado original não é o primeiro pecado. O pecado original não se refere especialmente ao pecado de Adão
e Eva. O pecado original refere-se ao resultado do pecado de Adão e Eva. O pecado original é a punição que
Deus dá pelo primeiro pecado. É alguma coisa assim: Adão e Eva pecaram. Esse foi o primeiro pecado. Como
resultado do pecado deles, a humanidade foi mergulhada em ruína moral. A natureza humana experimentou uma
queda moral. As coisas mudaram para nós depois que o primeiro pecado foi cometido. A raça humana tornou-se
corrompida. Essa corrupção subsequente é o que a igreja chama de pecado original.
15
Em uma oração fúnebre feita por Ambrósio, bispo de Milão, no ano de 378, podemos
perceber que a doutrina do pecado herdado era presente em sua teologia. Nas palavras do
bispo de Milão: “Caí em Adão, em Adão eu fui expulso do paraíso, morri em Adão”. [...]
Adão viveu e nele vivemos todos; Adão pereceu e nele perecemos todos”.12 Não obstante, é
em Agostinho de Hipona que essa doutrina ganha forças por causa do debate que ele teve com
o monge britânico Pelágio13. Segundo Pelágio nós não herdamos o pecado de Adão, mas
pecamos por seguir o seu mau exemplo, sendo assim pecamos com Adão, e não em Adão.14
Em seu debate com Agostinho sobre o pecado original, Pelágio diz:
Todas as coisas, boas e más, que nos tornam dignos de louvor ou de censura, são
feitas por nós e não nascidas conosco. Não nascemos completamente
desenvolvidos, mas capacitados para o bem e para o mal; fomos concebidos tanto
sem virtude como sem vício e, antes da atividade de nossa vontade pessoal, nada há
em nós exceto aquilo que Deus depositou em nós [grifo nosso].15
Pecado original não é um ato especifico de pecado. É uma condição de pecado. O pecado original refere-se a
uma natureza de pecado a partir da qual fluem atos pecaminosos” (SPROUL, 2016, p. 46).
12
LOURENÇO, 2018, pp. 179-180.
13
Pelágio era um monge inglês. Em 400, veio a Roma e ficou chocado com o baixo nível moral da península
itálica. Achando que havia necessidade de um esforço moral mais acentuado, chocou-se com a oração de Santo
Agostinho: “Concede-me, Senhor, o que tu exiges e manda o que for do teu agrado” [BETTENSON, 1998,
p.77].
14
STOTT, 2007, p. 175.
15
BETTENSON, op. cit., pp. 103-4.
16
O termo “livre arbítrio” (tradução do termo latino liberum arbitrium) não é bíblico, mas originário do
estoicismo. Foi introduzido na igreja ocidental pelo teólogo Tertuliano, que viveu no século segundo
(MCGRATH, 2005, p. 507).
17
Ibid., p. 104.
16
Portanto, todo gênero humano que devia propagar-se pela mulher estava no
primeiro homem quando essa união dos cônjuges recebeu a sentença divina da sua
condenação. E aquilo em que se tornou o homem, não quando criado, mas quando
pecou e foi castigado, transmitiu-o ele aos seus descendentes no que diz respeito à
origem do pecado e da morte.19
Na escolha equivocada daquele único homem, todos pecaram nele, visto que todos
estavam naquele único homem, de quem todos, em face disso, derivam
individualmente o pecado original. 20
Deus, autor das naturezas e não dos vícios, criou o homem reto, mas este,
espontaneamente pervertido e justamente castigado, gerou pervertidos e castigados.
É que todos estivemos naquele homem único quando todos fomos aquele homem
único que foi arrastado ao pecado pela mulher que dele fora feita antes do pecado. 21
A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício. Mas a
atual natureza, com a qual todos vêm ao mundo como descendentes de Adão, tem
agora necessidade de médico devido a não gozar de saúde. O sumo Deus é criador e
autor de todos os bens que ela possui em sua constituição: vida, sentidos e
inteligência. O vício, no entanto, que cobre de trevas e enfraquece os bens naturais,
a ponto de necessitar de iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu Criador,
ao qual não cabe culpa alguma. Sua fonte é o pecado original que foi cometido por
livre vontade do homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com justiça a
condenação. Se agora somos nova criatura em Cristo, contudo éramos por
natureza, como os demais, filhos da ira. Mas Deus, que é rico em misericórdia,
pelo grande amor com que nos amou, quanto estávamos mortos em nosso delitos,
nos vivificou com Cristo – pela graça fostes salvos! (Ef 2.3-5).23
Por que razão diz que foi concedido em iniquidade, senão porque contraiu o pecado
original de Adão? A própria necessidade da morte liga-se ao pecado. Ninguém
nasce sem contrair a culpa, a pena.24
18
Apud, FERREIRA, 2007, pp. 158-9.
19
Ibid, p. 159.
20
Ibid, p. 160.
21
Ibid.
22
AGOSTINHO, A graça, v.I, p. 311.
23
Ibid, p. 114.
24
AGOSTINHO, Comentários aos Salmos, 50.10, v.I, p. 908.
17
“A doutrina do pecado original sustenta que houve a partir da queda uma depravação
que leva o homem a inclinações más e viciosas e, sendo assim, sua vontade sempre se voltará
para coisas más.”25 Calvino disse que “o pecado original representa, portanto, a depravação e
a corrupção hereditárias de nossa natureza, difundidas por todas as partes da alma, que, em
primeiro lugar, nos condenáveis à ira de Deus”.26
Portanto, a teologia protestante afirma que toda nossa natureza foi corrompida –
racional, moral e espiritual. As igrejas protestantes se baseiam nas seguintes declarações:27
1) Que a corrupção da natureza afeta toda alma.
2) Que ela consiste na perda ou ausência da justiça original, e consequente
depravação moral total da nossa natureza. Essa depravação moral inclui, ou se
manifesta por um ódio e afastamento de todo bem espiritual – ou de Deus – e
uma inclinação para o mal.
3) Que, por sua própria natureza, ela é real e apropriadamente pecado; e como tal,
envolve culpa e poluição.
4) Que ela retém seu caráter como pecado, mesmo naqueles a quem o Espírito
Santo regenerou.
5) Que ela torna a alma espiritualmente morta, de forma que a pessoa natural ou
não-regenerada é inteiramente incapaz de por si só fazer algum bem aos olhos de
Deus.
3. DEPRAVAÇÃO TOTAL
25
TOURINHO, 2019, p. 108.
26
As Institutas, II, 1.8.
27
LYONS, Gordon. Pecado Original. Trad. Felipe Sabino de Araújo Neto. Disponível em:
http://monergismo.com/textos/pecado_original/pecado-original_lyons.pdf. Acesso em: 18/05/2020.
28
Os Cânones de Dort, Caps. III e IV, artigos 1 e 2.
18
A depravação total, como afincada acima em um dos documentos mais importantes das
igrejas reformadas – Os Cânones de Dort –, está intrinsecamente ligada com a noção de livre
arbítrio e os limites dessa liberdade. Segundo a doutrina da depravação total o homem foi
criado à imagem de Deus, isto é, santo e sem qualquer mancha de pecado, mas pela sua
própria vontade, ou pelo seu próprio livre arbítrio, despencou de um estado de retidão e
mergulhou em uma fonte inesgotável de pecados. De acordo com Agostinho, o primeiro livre
arbítrio dado ao homem em seu estado de retidão lhe concedia a posse non peccare
[capacidade de não pecar], mas também a posse peccare [capacidade de pecar]29. Alister
McGrath propõe um resumo das ideias básicas de Agostinho sobre o livre arbítrio da seguinte
forma:
Primeiro, ele afirma a existência da inerente liberdade humana: não fazemos as
coisas por obrigação, mas por uma questão de liberdade; segundo, ele declara que o
livre arbítrio foi debilitado e enfraquecido – mas não totalmente eliminado ou
destruído – pelo pecado. Para que o livre arbítrio seja restaurado e recuperado, é
necessária a atuação da graça de Deus. O livre arbítrio realmente existe; entretanto,
ele se encontra debilitado pelo pecado.30
Em seguida ele diz que Agostinho se utiliza de uma analogia para explicar melhor
sobre sua noção de livre arbítrio.
Pense um uma balança com dois pratos. Um dos pratos é utilizado para pesar o
bem, e o outro prato, o mal. Se os dois pratos estivessem em equilíbrio, os
argumentos favoráveis ao bem e ao mal poderiam ser pesados, e chagaríamos,
portanto, a uma conclusão. A analogia desse exemplo com livre arbítrio é bastante
óbvia: pesamos os argumentos favoráveis ao bem e ao mal e agimos conforme o
resultado. Mas o que faremos, conforme nos pergunta Agostinho, se os pratos da
balança estiverem cheios? O que acontece se alguém puser um peso excessivo no
prato do mal? A balança ainda funciona, mas ela se inclinará para o lado do mal.
Agostinho argumenta que isso é exatamente o que aconteceu à humanidade por
meio do pecado. O livre arbítrio inclinou-se para o lado do mal. O livre arbítrio
realmente existe e pode, de fato, ajudar-nos a tomar decisões – assim como a
balança ainda funciona quando está cheia. Mas em vez de chegar a uma conclusão
equilibrada, existirá uma séria inclinação para o mal. 31
Apesar de existir uma discursão sobre o livre arbítrio entre duas escolas teológicas
dentro da tradição protestante32 desde o século XVII, há um ponto central, infinitamente mais
importante, que a negação resulta em um abandono da ortodoxia, em que essas escolas estão
29
AGOSTINHO, A graça, v. II, p. 119.
30
MCGRATH, 2005, p. 507.
31
Ibid.
32
As duas tradições mais conhecidas que vivem uma tensão desde o final do século XVI sobre livre arbítrio são
os arminianos e os calvinistas. Os conceitos sobre livre arbítrio defendidos por essas duas escolas recebem o
nome de Libertarismo e Compatibilismo. De acordo com o dicionário de apologética e filosofia da religião, “os
libertários afirmam que o livre-arbítrio inclui o poder de determinar a vontade, de tal forma que a pessoa com
livre-arbítrio pode desejar mais de uma opção. Os compatibilistas veem o livre-arbítrio tipicamente como o
poder de uma pessoa de agir de acordo com a vontade própria e não compelida por alguma causa externa,
permitindo que a vontade do indivíduo seja a causa final da determinação, e não algo fora dela” (EVANS, 2004,
p. 83).
19
unidas. Os adeptos mais comuns dessas escolas são conhecidos como calvinistas e
arminianos. Os calvinistas seguem uma visão compatibilista sobre o livre arbítrio e os
arminianos uma visão libertária. Compatibilistas e libertários estão separados sobre o decreto
ou não de circunstâncias casuais. Para os compatibilistas o homem sempre age de acordo com
seu próprio desejo, sendo que tal desejo é determinado por circunstâncias causais que foram
ordenadas pessoalmente por Deus.33 Em oposição a isto, os libertários afirmam que o livre
arbítrio só deve ser considerado real se trouxer consigo a ideia de liberdade contra causal, isto
é, a ideia de que um ato só é livre se não for determinado por uma causa. 34 Apesar da
existente divergência teológica que divide as duas escolas, há uma catolicidade protestante em
que ambas dogmatizam que toda a humanidade em seu estado natural, como filhos legítimos
de Adão, estão mortos em seus pecados e delitos, sob o domínio do mundo, da carne e do
diabo, incapazes pelo seu próprio livre arbítrio de amarem a Deus e serem salvos.
A teologia protestante afirma que o homem é mau desde o seu nascimento e que essa
maldade se desenvolve não por sofrer influências culturais e sociais, mas por fazer parte da
sua natureza adâmica. Essa maldade pode ser vista inclusive na fragilidade de um bebê de
colo. Agostinho ao olhar para crianças recém nascidas “recorda” dos seus pecados quando
ainda se alimentava do leite materno de sua mãe Mônica e deixa claro que até mesmo bebês
inofensivos são inclinados para o mal. Em suas Confissões ele diz:
Ouve-me, Senhor! Ai dos pecados dos homens! É um homem que assim fala; e dele
te compadeces, porque és o seu Criador, e não o autor do seu pecado. Quem me
poderá lembrar os pecados cometidos na infância, já que ninguém há que diante de
ti seja imune ao pecado, nem mesmo o recém-nascido com um dia apenas de vida
sobre a terra? Quem, senão um pequerrucho, onde vejo a imagem daquilo que não
lembro de mim mesmo? Qual era então o meu pecado? Seria talvez o de buscar
avidamente, aos berros, os seios da minha mãe? Se mostrasse hoje a mesma avidez,
não pelo seio materno, é claro, mas pelos alimentos próprios da minha idade, seria
justamente escarnecido e censurado. Meu procedimento era então repreensível, mas
como não teria podido compreender as reprimendas, nem a razão nem os costumes
permitiam que eu fosse reprovado. Com o crescer dos anos, extirpamos e atiramos
fora tais defeitos, e nunca vi ninguém que, para cortar o mal, rejeitasse
conscientemente o bem! Ou seria justo, mesmo tendo em conta da idade, exigir
chorando o que seria prejudicial, indignar-se com violência contra homens adultos
e de condição livre, e contra os pais e outras pessoas sensatas que não aceitavam
satisfazer a certos desejos? Seria justo fazer todo o possível para prejudicá-los,
porque eles não se prestavam a obedecer a ordens que seriam nocivas? Portanto, a
inocência das crianças reside na fragilidade dos membros, não na alma. Vi e
observei bem uma criança dominada pela inveja: não falava ainda, mas olhava,
pálida e incitada para o seu irmão de leite. Quem já não observou esse fato? Dizem
que as mães e amas têm não sei que remédio para eliminar tais defeitos; sem dúvida
não é inocente a criança que, diante da fonte generosa e abundante leite, não
admite dividi-la com um irmão, embora muito necessitado desse alimento para
sustentar sua vida [grifo nosso].35
33
TITILLO, 2016, p. 33.
34
Ibid, p. 36.
35
Confissões, I, VII, 11.
20
Mesmo tendo a lei de Deus gravada no coração de todo ser humano (cf. Rm 2.15), o
que significa que existe um senso de certo e errado em suas consciências, o homem natural
está sempre propício a fazer aquilo que é contra a lei de Deus. A depravação total pode ser
percebida na dificuldade que o homem natural possui em desejar fazer o bem e na inclinação
de fazer vertiginosamente aquilo que é mal. Ainda citando Agostinho em suas Confissões, ele
lembra de que na sua adolescência, aos dezesseis anos de idade, roubava pêras pelo simples
prazer em praticar o mal. Ele descreve essa experiência em forma de suplicas:
Tua lei, Senhor, condena certamente o furto, como também o faz a lei inscrita no
coração humano, e que a própria iniquidade não consegue apagar. Nem mesmo um
ladrão tolera ser roubado, ainda que seja rico e o outro cometa o furto obrigado pela
miséria. E eu quis roubar, e o fiz, não por necessidade mas por falta de justiça e
aversão a ela por excesso de maldade. Roubei de fato coisas que já possuía em
abundância e da melhor qualidade; e não para desfrutar do que roubava, mas pelo
gosto de roubar, pelo pecado em si. Havia, perto da nossa vinha, uma pereira
carregadas de frutos nada atraentes, nem pela beleza nem pelo sabor. Certa noite,
depois de prolongados divertimentos pelas praças até altas horas, como de costume,
fomos, jovens malvados que éramos, sacudir a árvore para lhe roubarmos os frutos.
Colhemos quantidade considerável, não para nos banquetearmos, se bem que
provamos algumas, mas para jogá-las aos porcos. Nosso prazer era apenas praticar
o que era proibido.36
36
Ibid, II, IV, 9.
37
Conversas à Mesa de Lutero, 2017, p. 139.
38
Apud GEORGE, 1993, p. 76.
39
Ibid, p. 77.
40
Conversas à Mesa de Lutero, 2017, p. 145.
21
Espírito Santo, nada pode fazer senão pecar”.41 Lutero, assim como Agostinho, afirmava que
após a Queda o livre arbítrio do homem passou estar sob o domínio do pecado, de modo que
pela vontade de sua natureza só poderia pecar. Em conclusão a este pensamento, Lutero diz:
Desse modo, concluímos, de maneira geral, que o homem, sem o Espírito Santo e a
graça de Deus, nada pode fazer senão pecar; ele prossegue no pecado
initerruptamente e cai de um pecado no outro. Ora, se o homem não suportar a sã
doutrina, antes despreza a Palavra salvífica e resiste ao Espírito Santo, então
mediante os efeitos e o ímpeto de seu livre-arbítrio ele torna-se inimigo de Deus;
ele blasfema contra o Espírito Santo, e segue as concupiscências e desejos de seu
próprio coração.42
A doutrina da Depravação Total era tão central na teologia de Lutero que era expressada
até mesmo em suas orações:
Ah, Senhor Deus! Por que deveríamos nos gloriar de nosso livre-arbítrio como se
fossemos capaz de fazer a mais insignificante coisa em questões divinas e
espirituais? Quando consideramos que horríveis misérias o Diabo trouxe sobre nós
por meio do pecado, podemos nos envergonhar até à morte.
Porque, primeiramente, o livre-arbítrio levou-nos ao pecado original, trazendo
morte sobre nós; posteriormente, ao pecado seguiu-se não apenas a morte, mas toda
a sorte de ofensas, como encontramos diariamente no mundo assassinatos,
mentiras, enganos, roubos e outros males, de modo que ninguém está minimamente
a salvo, em seu corpo e seus bens, mas permanece sempre em perigo. [...]
Não sabemos perfeitamente o que nos tornamos após a queda de nossos primeiros
pais, o que, de nossas mães, trouxemos conosco. Pois temos, por inteiro, uma
natureza confusa, corrupta e envenenada, tanto no corpo quanto na alma; na
totalidade do homem não há nada que seja bom. 43
41
Ibid, p. 148.
42
Ibid.
43
Ibid, p. 150.
44
MELANCHTHON, 2018, p. 85.
22
humano ao afirmarem que o homem mesmo caído em Adão poderia pelo seu próprio livre
arbítrio escolher o que é bom e ser salvo. Ao que parece, esses novos pelagianos ensinavam, a
partir de uma antropologia filosófica, que homens ímpios, como Sócrates, Xenócrates e
outros, possuíam virtudes louváveis e poderiam praticar boas obras percebidas aos olhos de
todos e serem salvos. Melanchthon os refuta sobre o argumento de que essas virtudes eram
praticadas pelo amor à vanglória. Para endossar o seu argumento ele apresenta a experiência
vivida pelo apóstolo Paulo, antes da sua conversão, quando ele era um judeu irrepreensível e
conclui com textos Bíblicos que afirmam a universalidade do pecado e sua eficácia. Em suas
próprias palavras, ele diz:
O pecado original é uma certa atividade vivaz, sendo que em nenhuma parte nossa,
em nenhum período deixa de produzir fruto – vícios. Pois quando o ânimo do ser
humano não está queimando de maus desejos, dentre os quais os que são os mais
terríveis e horríveis, não são percebidos – efetivamente, avareza, ambição, ódio,
inveja, rivalidade, chamas dos desejos, ira, quem é que não os percebe de vez em
quando? Arrogância, orgulho, jactância farisaica, desprezo de Deus, desconfiança
de Deus, blasfêmia – os afetos principais poucos percebem. São os que em
aparência vivem da forma mais honesta, e Paulo atestava assim ter vivido antes do
seu conhecimento de Cristo, de forma que não pudesse ser reprendido. Esses não
têm do que se gloriar, uma vez que estão submetidos no ânimo por aqueles afetos
mais torpes e miseráveis que não percebem. O que será pois se, em certo momento,
como na morte, Deus lhes abrir os olhos para que os santinhos conheçam seus
vícios, suas doenças? Acaso não compreendem aquilo que está em Isaías 40.6?
“Toda a glória da carne é como a glória do feno”. Vês como é profunda,
efetivamente, quão imperscrutável é a malícia do coração humano. E ainda não
envergonha os nosso sofistas ensinar a justiça das obras, ensinar as satisfações e as
virtudes filosóficas. Que seja: teria havido em Sócrates certa constância, em
Xenócrates castidade, em Zenon temperança, embora – porque existiram em almas
impuras, de fato porque essas sombras de virtudes se originavam, a partir da
filáucia, pelo amor-próprio – não devam ser tidas por verdadeiras virtudes, mas por
vícios. Sócrates foi tolerante, mas amava a glória, ou certamente apreciava a si
mesmo pela própria virtude. Catão foi corajoso, mas em função do amor pelo
louvor. [...] E para que eu sintetize toda a questão como em um resumo: Todos os
seres humanos são sempre e verdadeiramente pecadores pelas capacidades naturais,
e pecam. Gêneses 6.5: “Todo o desejo das reflexões do coração humano é vão e
falho a todo tempo”. E a mesma sentença foi repetida no capítulo oitavo (v.21): “O
senso e a reflexão do coração do ser humano é falho desde a infância”. [...] Agora,
ouçamos também Davi, que como igualmente percebe na maioria das passagens
que, como diz, “todo ser humano é mentiroso”, no entanto proclama isso em todo
Salmo 14 como um trovão, quando diz (v.1-3): “Disse o insensato no seu coração,
não há Deus. Corromperam-se e tornaram-se abomináveis em seu zelo. Não há
quem faça o bem. O Senhor olhou do céu para os filhos de Adão, de modo que veja
quem compreenda ou busque a Deus. Todos desertaram, se tornaram inúteis por
igual, não há quem faça o bem, não há nem um único” etc. Eis que não acusa o ser
humano de vícios simples, mas das mais atrozes infâmias, de impiedade, de
incredulidade, de insensatez, de ódio e desprezo a Deus, vícios que ninguém pode
perceber sem o espírito. E aí, teologistas hipócritas? Que obras do livre-arbítrio,
que capacidades humanas pregareis? Fingis que o pecado original não é negado por
vós, e, no entanto, ensinais que o ser humano pode fazer algo de bom com suas
capacidades. Acaso pode uma árvore má produzir bom fruto? Não vedes que aqui o
profeta descreveu uma árvore com os frutos, quando fala não só do coração do
insensato, mas também de todos os esforços, decisões, propósitos, obras e esforços
do ser humano? Vês, porém, com que diferença julgam a respeito do ser humano a
filosofia – ou a razão humana – e as letras sagradas. A filosofia não vê nada além
23
das máscaras exteriores do ser humano. As letras sagradas observam os afetos mais
interiores e os incompreensíveis.45
Calvino ao considerar sobre o livre arbítrio diz ser o homem dotado do mesmo, não no
sentido de que ele seja livre para escolher o bem e o mal de forma igualitária, mas ao
contrário, “age mal por vontade, não por efeito de coação”46 No pensamento de Calvino a
Queda não destruiu o livre arbítrio, mas impossibilitou para aquilo que é bom.47
Hernandes Dias Lopes, outro pastor presbiteriano, teólogo calvinista e escritor de diversos
livros cristão, disse que Jacó Armínio espalhou na Holanda um declarado semipelagianismo.50
De acordo com Louis Berkhof, renomado teólogo calvinista, Armínio suavizou a doutrina do
pecado original e os arminianos tomaram uma posição semelhante à do semipelagianismo.51
Jailson Serafim, outro calvinista que se opõe à teologia arminiana, disse em seu livro
45
Ibid, pp. 91-7.
46
As Institutas, II, 2. 7.
47
As Institutas, II, 2. 6-17.
48
Os cincos pontos do calvinismo, ou as doutrinas da graça, são conhecidos pelo acrônimo TULIP que
representa cincos pontos que tiveram como objetivo reafirmar a teologia reformada contra os cinco pontos da
remonstrância, que eram discípulos do teólogo holandês Jacó Armínio, no sínodo de DORT, na Holanda, entre
1618 à 1619. A TULIP é representada pelos seguintes pontos:
49
ANGLADA, 2009, p. 41.
50
LOPES, 2005, p. 59.
51
BERKHOF, 1992, p. 136.
24
Arminianismo Proscrito que Armínio era pelagiano em sua teologia.52 Ao resumir o terceiro
artigo dos remonstrantes ele disse que eles “ensinavam que o homem embora debilitado pela
Queda, não era totalmente incapaz de escolher o bem espiritual, e podia exercer fé em Deus
de forma a receber o evangelho e assim tomar posse da salvação para si mesmo”.53 Afirmou
também que os arminianos são herdeiros do catolicismo romano e que não podem ser
considerados como protestantes.54 Segundo esses teólogos calvinistas, Armínio e os
arminianos negam a depravação total do homem. Não obstante, Roger Olson, erudito e um
exímio defensor da teologia arminiana, diz que “é simplesmente um mito que o arminianismo
rejeita ou nega este ponto (Depravação Total) do calvinismo rígido”55 e que “o arminianismo
ensina que todos os seres humanos nascem moral e espiritualmente depravados e incapazes de
fazer qualquer coisa boa ou digna aos olhos de Deus, sem uma infusão especial da graça
divina para superar as inclinações do pecado original”.56 Olson reconhece que alguns
arminianos, que por causa da influência do iluminismo no século XVIII, inclinaram-se bem
próximo ao pelagianismo, universalismo e do arianismo (heresia que negava a divindade de
Cristo).57 Franklin Ferreira e Allan Myatt, teólogos calvinistas, dizem que o arminianismo que
surgiu no século XVII foi bem enfático em sua negação ao pelagianismo, mas que o
arminianismo posterior negou a imputação do pecado de Adão à sua prole.58 Olson se defende
da acusação de que pelo fato desses arminianos do século XVIII terem defendido uma
teologia pelagiana, toda a tradição arminiana está condenada juntamente com eles, como se
tais representassem de forma fidedigna o pensamento de Armínio e da tradição arminiana
clássica, com o seguinte argumento:
Se o arminianismo clássico foi o responsável por isso, tal coisa é duvidosa; estas
pessoas abandonaram radicalmente Armínio e os primeiros remonstrantes, assim
como Friedrich Schleiermacher, o pai da teologia liberal alemã, abandonou Calvino
sem jamais ter estado sob a influência do arminianismo. Schleiermacher, reputado
por liberalizar a teologia protestante no continete europeu, permaneceu um
calvinista de uma ordem diferente até o dia de sua morte. É tão injusto acusar
Armínio ou o arminianismo pela deserção dos remonstrantes posteriores quanto
acusar Calvino ou o calvinismo pela deserção de Schleiermacher da ortodoxia.59
52
SILVA, 2017, pp. 12-3.
53
Ibid, p.11.
54
Ibid, p.41.
55
OLSON, 2013, p. 74.
56
Ibid, p. 26.
57
Ibid, p. 31.
58
FERREIRA; MYATT, 2007, pp. 436, 438.
59
OLSON, op. cit., p. 31.
25
cristãos protestantes, não são verdadeiras quando analisadas pelo viés de seus escritos. O
terceiro artigo da remonstrância nega o pelagianismo e afirma a depravação total do homem:
Que o homem não possui por si mesmo graça salvadora, nem as obras de sua
própria vontade, de modo que, em seu estado de apostasia e pecado para si mesmo
e por si mesmo, não pode pensar nada que seja bom – nada, a saber, que seja
verdadeiramente bom, tal como a fé que salva antes de qualquer outra coisa. Mas
que é necessário que, por Deus e em Cristo e através do seu Santo Espírito, seja
gerado de novo e renovado em entendimento, afeições e vontade e em todas as suas
faculdades, para que seja capacitado a entender, pensar, querer e praticar o que é
verdadeiramente bom, segundo a Palavra de Deus (grifo nosso). 60
Em diversos textos de sua obra, Armínio está em completo acordo com a doutrina da
depravação total defendida por Agostinho e, posteriormente, pelos reformadores. Em sua
Declaração de Sentimentos, ele diz:
Esta é minha opinião a respeito do livre-arbítrio do homem: Em sua condição
primitiva, tendo vindo das mãos do Criador, o homem foi dotado com uma porção
de conhecimento, santidade e poder, para capacitá-lo a entender, estimar,
considerar, deseja e fazer o bem, de acordo com o que lhe foi dado como missão.
No entanto, ele não podia realizar nenhum desses atos, exceto com o auxílio da
graça divina. Mas em seu estado de descuido e pecado, o homem não é capaz de
pensar, nem querer, ou fazer, por si mesmo, o que é realmente bom; pois é
necessário que ele seja regenerado e renovado em seu intelecto, afeições e desejos,
e em todos seus poderes, por Deus, em Cristo, por intermédio do Santo Espírito,
para que possa ser corretamente qualificado para entender, estimar, considerar,
desejar e fazer aquilo que realmente seja bom. Quando ele é feito participante dessa
regeneração ou renovação, considero que, estando liberto do pecado, ele é capaz de
pensar, de querer e fazer aquilo que é bom, mas ainda não sem a ajuda continuada
da graça divina [grifo do autor].61
60
Os cincos artigos da Remonstrância (1610). Disponível em:
http://teologiaarminiana.blogspot.com/2009/02/os-cinco-artigos-da-remonstrancia-1610.html. Acesso em
10/05/2020.
61
ARMINÍO, 2015, Vol. 1, p. 231. Declaração III.
62
Ibid, Vol. 2, p. 406. Carta endereçada a Hipólito A. Collibus.
26
uma das palavras dessa passagem, nos fala: “Cristo não diz ‘... sem mim podeis
fazer muito pouco’; muito menos diz ‘... sem mim não podeis fazer coisas árduas’,
nem ‘... sem mim só podeis fazer as coisas com dificuldade’. Mas ele diz ‘... sem
mim nada podeis fazer!’ Ele também não diz ‘... sem mim não poderei completar
coisa alguma’, mas diz ‘... sem mim nada podeis fazer’.63
O renomado teólogo calvinista Robert Charles Sproul faz o seguinte comentário sobre
essa citação de Armínio:
A citação acima, de uma das obras de Armínio, demonstra o quão seriamente ele
considerava a profundidade da queda. Ele não se satisfaz em declarar que a
vontade do homem estava meramente ferida ou enfraquecida. Ele insistiu em que
ela estava “aprisionada, destruída e perdida”. As maneiras de se expressar de
Agostinho, Martinho Lutero ou de João Calvino dificilmente são mais fortes do que
Armínio (grifo nosso).64
Vimos até aqui que a doutrina da depravação total afirmada pelos principais
reformadores era um eco da teologia de Agostinho, que em seu debate com Pelágio afirmou a
incapacidade do homem de fazer o que é bom e ser salvo pelo seu próprio livre arbítrio.
Contudo, de acordo com o Sola Scriptura – doutrina que é exclusiva do protestantismo –, a
Bíblia deve ser a nossa única regra de fé e prática; que os concílios e as tradições devem
submissão à Ela. Será que podemos provar pela Bíblia a doutrina da depravação total ou nós,
protestantes, estamos errados quando afirmamos a eficácia do pecado no homem, como diz o
concílio de Trento?65
Após o cenário da Queda a Bíblia descreve uma série de eventos catastróficos como
consequências da desobediência de Adão e Eva. Na narrativa do capítulo 4 encontramos o
primeiro caso de assassinato e fratricídio na história da humanidade. Na medida em que a
terra vai sendo povoada, a partir da descrição das genealogias de Gêneses 4.17 até o final do
capítulo 5, a corrupção humana aumenta e lemos no capítulo 6 o desprazer de Deus: “O
63
Ibid, Vol. 1, p. 473. Debate XI, VII.
64
SPROUL, 2012, p. 122.
65
Cân. 5. Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, depois do pecado de Adão, se perdeu, ou se extinguiu,
ou que é coisa só de título, ou antes, titulo sem realidade, e enfim, uma ficção introduzida na Igreja por Satanás
— seja excomungado.
Cân. 6. Se alguém disser que não está no poder do homem tornar os seus caminhos maus, mas que Deus faz
tanto as obras más como as boas, não só enquanto Deus as permite, mas [as faz] em sentido próprio e pleno, de
sorte que não é menos obra sua a própria traição de Judas do que a vocação de Paulo — seja excomungado.
Cân. 7. Se alguém disser que todas as obras que são feitas antes da justificação, de qualquer modo que se façam,
são verdadeiramente pecados ou merecera o ódio de Deus; ou que, com quanto maior veemência alguém se
esforça em se dispor para a graça, tanto mais gravemente peca — seja excomungado [Concílio Ecumênico de
Trento, Montfort Associação Cultural. Disponível em:
http://www.montfort.org.br/bra/documentos/concilios/trento/ . Acesso em 22/05/2020.
27
Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda inclinação dos
pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. Então o Senhor arrependeu-
se de ter feito o homem sobre a terra; e isso cortou-lhe o coração” (v.5-6). O coração para os
escritores bíblicos indica a cede de todas as faculdades humanas, e não apenas o centro dos
sentimentos e afeições. Segundo R. N. Champlin, “nas páginas da Bíblia, tanto no Antigo
como no Novo Testamentos, é o vocábulo mais completo para indicar todas as faculdades
humanas, como os sentimentos, a vontade e o intelecto.66 Nenhuma outra declaração bíblica é
mais forte do que essa ao falar da completude do pecado no homem e sua perversidade. John
MacArthur diz que “esta é uma das mais forte e mais claras declarações acerca da natureza
pecaminosa do homem”.67 A descrição que temos do homem nesse texto é feita a partir da
perspectiva do próprio Deus. Deus declara em sua Palavra não apenas o seu desprazer (v.6),
mas a gravidade do pecado no coração humano (v.5). Mesmo depois do dilúvio, ocasião pela
qual Deus julgou os homens por causa da sua perversidade, a pecaminosidade humana é
descrita como inalterável, ao passo que na medida em que a terra estava sendo popularizada
novamente no mundo pós dilúvio o pecado e a maldade humana se proliferavam e a
depravação permanecia inalterada: “O Senhor sentiu o aroma agradável e disse a si mesmo:
Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, pois o seu coração é inteiramente
inclinado para o homem desde a infância” (Gn 8.21). De acordo com Yago Martins, “a ideia
no hebraico aqui é de que, desde o nascimento, a imaginação do nosso coração é má. A
maldade não é simplesmente aprendida, ela faz parte de quem nós somos desde nosso
nascimento”.68 Isso significa que nenhum ser humano precisa aprender a ser mau, eles já
nascem assim. O homem não nasce bom e é corrompido pela sociedade, como disse
Rousseau. “O ambiente pode ocasionar o pecado, mas não a causa. A raiz do pecado é mais
profunda: está no coração corrupto do homem”.69 É exatamente desta forma que o salmista
Davi descreve a si mesmo: “Sei que sou pecador desde que nasci, sim desde que me concebeu
minha mãe” (Sl 51.5). Pecador significa ser transgressor da lei de Deus e a Bíblia afirma que
até mesmo crianças inocentes aos nossos olhos são demasiadamente perversas em seus
corações, mesmo que pratiquem tais pecados inconscientes. Calvino diz que Davi ao
comentar esse Salmo “avança para além do mero conhecimento de um ou de muitos pecados,
66
CHAMPLIN, v.1, 2013, p. 899.
67
Apud LAWSON, 2012, p. 83.
68
MARTINS, 2018, p. 63.
69
HOEKEMA, 1999, p. 175.
28
confessando que nada trouxera consigo em sua entrada no mundo senão pecado, e que sua
natureza era inteiramente depravada”.70
Nas páginas do Novo Testamento, Jesus como o verdadeiro interprete da lei, diz que a
raiz da maldade do ser humano está no seu coração, não somente em seus atos externos. Para
sociedade uma pessoa para ser considerada adúltera precisa ter relações sexuais
extraconjugais – atos externos –, mas Jesus disse que basta olhar e desejar para que o
adultério seja consumado no coração (Mt 5.27-28). De acordo com Jesus é do interior do
coração que procede a depravação total da raça humana:
Pois do interior do coração dos homens vêm os maus pensamentos, as imoralidades
sexuais, os roubos, os homicídios, os adultérios, as cobiças, as maldades, o engano,
a devassidão, a inveja, a calúnia, a arrogância e a insensatez. Todos esses males
vêm de dentro e tornam o homem impuro (Mc 7.21-22).
Lawson ao comentar sobre a depravação total descrita por Jesus nesses versículos diz que
“Jesus apresentou um conceito direto e franco sobre a natureza humana”71 e que “o Senhor
ensinou que todas as espécies de contaminação do pecado e de corrupção moral vêm
inevitavelmente do coração do homem”.72
Paulo sob a inspiração Divina apresenta logo no início do livro de Romanos a condição
em que se encontra toda a humanidade. Ele diz:
Como está escrito: Não há nenhum justo, nem um sequer; não há ninguém que
entenda, ninguém que busque a Deus. Todos se desviaram, tornaram-se juntamente
inúteis; não há ninguém que faça o bem, não há nenhum se quer. Suas gargantas
são um túmulo aberto; com suas línguas enganam. Veneno de serpente está em seus
lábios. Suas bocas estão cheias de maldição e amargura. Seus pés são ágeis para
derramar sangue; ruína e desgraça marcam os seus caminhos, e não conhecem o
caminho da paz. Aos seus olhos é inútil temer a Deus (3.10-18).
A descrição que temos aqui é uma série de citações do Antigo Testamento73 para provar
a depravação total do homem e o quão distante ele está de Deus e incapaz de quere-Lo pela
sua própria vontade. Paulo não diz que é apenas um grupo sob a influência má da sociedade
que se encontra nesse estado, mas sim que toda humanidade. Charles Hodge diz que esses
versículos (10-18) “contêm a confirmação do ensinamento da pecaminosidade universal dos
homens no testemunho das Escrituras”.74 Calvino diz que a descrição que Paulo faz nesses
versículos é como um “espelho caríssimo” que nos faz contemplar de forma integral a nossa
natureza caída75 e conclui dizendo que:
70
CALVINO, 2011, p. 417.
71
LAWSON, 2012, p. 368.
72
Ibid.
73
Os versículos de 10 a 12 são de Salmo 14 e 53; o versículo 13 é de Salmo 5.9; o versículo 14 é de Salmo 10.7;
os versículos 15 a 17 são de Isaías 59.7-8; e o versículo 18 é do Salmo 36.1.
74
HODGE, 2019, p. 85.
75
As Institutas, II, 3.2.
29
Com esses raios, o Apóstolo não está investindo apenas contra certos homens, mas
contra toda raça dos filhos de Adão. Nem está ele a censurar os costumes
depravados de uma ou outra era, mas está acusando a perpétua corrupção de nossa
natureza. Com efeito, nesta passagem, seu propósito não é simplesmente censurar
os homens, para que caiam em si, mas, antes, ensinar que todos têm sido
pressionados por inelutável calamidade, da qual não podem sair, a não ser que
sejam retirados pela misericórdia de Deus.76
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
76
Ibid.
30
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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