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Vida e obra
David Hume nasceu a 26 de Abril de 1711, em Edimburgo, numa família de pequenos proprietários rurais. A família
pretendia que seguisse a carreira do pai, que tinha morrido quando ele tinha dois anos, e, por isso, com onze anos
mandou-o estudar direito para a Universidade de Edimburgo. Hume sentiu uma grande aversão pelo estudo do
direito e, em vez disso, dedicou-se exclusivamente à filosofia, à leitura dos clássicos gregos e latinos e dos principais
filósofos e cientistas do seu tempo. Em 1734, mudou-se para França, para a cidade de La Flèche, em cujo colégio
jesuíta Descartes estudou. Aí, de 1734 a 1737, escreveu a sua primeira e, agora unanimemente considerada, mais
importante obra, o Tratado da Natureza Humana, que foi publicado em 1739, quando tinha apenas vinte e sete
anos. Hume depositava grande esperança no Tratado. Contudo, quando publicado, segundo ele, não despertou
qualquer interesse ou críticas por parte do público. Apesar deste contratempo, Hume publicou, em 1742, os Ensaios
Morais e Políticos, que foram um sucesso imediato. Dois anos mais tarde, candidatou-se a professor da cadeira de
Ética e Filosofia Espiritual na Universidade de Edimburgo. As ideias do Tratado eram agora mais conhecidas e Hume
foi acusado de ser cético e ateu, pelo que a cátedra foi-lhe recusada. Hume haveria, mais tarde, de voltar a
candidatar-se ao lugar de professor — desta vez na Universidade de Glasgow —, com resultados similares.
Convencido, entretanto, de que o desaire do Tratado se devia mais ao estilo do que aos pontos de vista defendidos,
reformulou o Livro I (sobre teoria do conhecimento) e publicou-o, em 1748, com o título Uma Investigação sobre o
Entendimento Humano. Reescreveu também o Livro III (sobre moral) e, em 1751, publicou-o com o título Uma
Investigação sobre os Princípios da Moral. Entre 1754 e 1762, publicou A História de Inglaterra, em seis volumes,
obra que lhe deu fama e fortuna. Em 1763, foi nomeado secretário da embaixada inglesa, em Paris, onde foi
calorosamente recebido pelos iluministas franceses. Em 1757, publicou Quatro Dissertações, que incluía “A História
Natural da Religião”, hoje considerada o primeiro trabalho de psicologia e sociologia da religião. Depois da sua
morte, ocorrida em 25 de Agosto de 1776, o seu sobrinho publicou, em 1779, os Diálogos sobre a Religião Natural,
em que Hume trabalhou durante mais de vinte anos. Os Diálogos são uma extensa discussão e crítica dos principais
argumentos a favor das crenças religiosas, em particular do argumento do desígnio, que era aceite por filósofos e
cientistas como Locke, Boyle e Newton. Tal como Descartes, Hume é um pensador muito influente, com
contribuições importantes para a teoria do conhecimento, a metafísica, a moral, a psicologia, a política e a religião. A
sua discussão da causalidade, da indução, da crença no mundo exterior e no eu têm marcado a discussão filosófica
atual.
O projeto de Hume
O impacto das ideias de Descartes e daqueles que com ele fizeram a revolução científica do século XVII — Galileu,
Kepler, Boyle, e, sobretudo, Newton — foi tão profundo, que no começo do século XVIII a visão escolástica do
mundo tinha sido definitivamente abandonada, substituída pelas novas filosofia e ciência mecanicistas. 1 Mas, por
muito radical que o pensamento cartesiano fosse — e era-o de um modo que hoje somos incapazes de compreender
inteiramente —, em alguns aspectos manteve-se semelhante ao pensamento de inspiração medieval que substituiu.
Na realidade, o pensamento de Descartes pode ser visto como uma tentativa de conciliar a religião e a metafísica
tradicional com a nova ciência. Recordemos que Descartes tornou a matéria objeto da ciência, no sentido moderno
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do termo, mas manteve a mente — o cogito — firmemente no campo da metafísica, que, segundo ele, é também
capaz de produzir conhecimento indubitável de outras verdades fundamentais, como Deus e o mundo.
Hume tem pouca simpatia por este género de filosofia, que pretende não haver limites para as capacidades
cognitivas da razão quando corretamente utilizada, e ser possível ter conhecimento mesmo dos assuntos mais
complexos e difíceis. De facto, a filosofia de Descartes é um bom exemplo do tipo de filosofia a que Hume se opõe
vigorosamente.
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A teoria das ideias
Para Hume, como vimos, o projeto da ciência do homem, ou a investigação da natureza humana, consiste na análise
da mente. Só fazendo essa análise, pensa ele, é possível saber a que questões é a mente capaz de dar resposta e
quais as que se encontram fora do seu alcance e das suas capacidades. Recordemos, no entanto, que Hume pensa
que este estudo deve basear-se na experiência e na observação. Ora, aquilo de que a mente tem experiência — pelo
menos, experiência direta e imediata — é dos seus próprios conteúdos. Por esse motivo, o estudo da natureza
humana centra-se nos conteúdos da mente e não nos objetos que lhe são exteriores.
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TEORIA DAS IDEIAS
Impressão de vermelho,
Simples
P branco, etc.
E Impressões (sensação: cores, odores, dor, etc.; e
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evoca é a de que aqueles que estão privados de um determinado órgão sensorial desde o nascimento, por exemplo,
da visão, e, por consequência, não têm impressões visuais, também não têm as ideias correspondentes.
O facto de as ideias terem origem em impressões resolve, segundo Hume, uma velha controvérsia. Recordemos
que, para Descartes, algumas ideias fundamentais, das quais todo o conhecimento deriva, são inatas. Mas se as
ideias têm origem em impressões, a que correspondem e que representam, como Hume pensa, não há ideias inatas.
Isto permite a Hume afirmar a sua tese empirista fundamental: todo o conhecimento acerca do mundo tem origem
na experiência e é limitado àquilo de que temos experiência.
O Princípio da Cópia vai ser usado por Hume com um objetivo ainda mais importante do que resolver a polémica
entre racionalistas e empiristas relativamente à origem do conhecimento. Um dos principais problemas da
metafísica, segundo ele responsável por muito do seu descrédito, prende-se com a forma imprecisa e descuidada
com que as palavras e as ideias são usadas nos raciocínios. Há, no entanto, um teste que permite resolver este
problema. Este teste consiste em perguntar que impressão está na origem da ideia que o termo refere. Se não existir
qualquer impressão, o termo não tem qualquer significado e é, portanto, ininteligível.
O Princípio da Cópia é, assim, também um critério de significado: permite, remontando às impressões, determinar
o significado efetivo dos termos e até se têm algum significado. Hume vai aplicar este princípio a algumas das ideias
mais importantes da metafísica, em particular, a ideia de substância e de conexão necessária.
A associação de ideias
Hume pensa que, embora a mente, graças à imaginação, seja capaz de associar ideias e pensamentos muito
distintos, como quando pensamos numa montanha de ouro ou num cavalo virtuoso, e assim produzir ideias que não
têm correspondência na realidade, existem, no entanto, princípios que regulam a forma como as nossas ideias se
unem entre si. Estes princípios são três: semelhança, contiguidade no tempo e no espaço e a relação de causa e
efeito. O quadro seguinte exemplifica a forma como Hume pensa que estes princípios associam ideias:
ASSOCIAÇÃO DE IDEIAS
Causa e
Uma ferida leva-nos a pensar na dor que se lhe segue.
efeito
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As relações de ideias são conhecidas apenas pelo pensamento, analisando a relação existente entre as ideias que
as constituem. A verdade das proposições que expressam relações de ideias não depende de qualquer estado de
coisas existente no universo e a sua negação dá origem a uma contradição. São verdades a priori, isto é,
independentes da experiência, conhecidas por intuição e por demonstração. É possível, por isso, conhecer estas
verdades com total certeza. As proposições da matemática, como “três vezes cinco é igual a metade de trinta” ou “o
quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”, são proposições deste tipo.
Por outro lado, as questões de facto dizem respeito à forma como o mundo é e, por isso, a verdade das
proposições sobre questões de facto pode apenas ser estabelecida a posteriori, pelo recurso à experiência. O
contrário de uma questão de facto é sempre possível e a negação de uma proposição sobre questões de facto não
implica uma contradição, pelo que não é possível estar absolutamente certo da sua verdade, como no caso das
proposições sobre relações de ideias. Dada a forma como o mundo é, a negação da proposição “O Sol vai nascer
amanhã” é falsa, mas não implica uma contradição, uma vez que é perfeitamente possível que o Sol não nasça
amanhã.3
As relações de ideias estabelecem relações de identidade entre conceitos e as meras leis da lógica permitem
conhecê-las com absoluta certeza. Com as proposições acerca de questões de facto não acontece o mesmo. Falamos
acerca das nossas crenças relativas a questões de facto e agimos no dia-a-dia como quem acredita que estão
suficientemente justificadas para que possamos confiar na sua verdade, embora saibamos que não podemos
fornecer para elas o mesmo tipo de justificação que para as relações de ideias. Posso justificar a minha crença em
que o pão que comi há pouco me alimentou pela experiência desse acontecimento, ou em que o Sol nasceu ontem e
hoje por intermédio da minha memória de ontem ter visto o Sol e das impressões que estou a ter agora do Sol. Mas
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como posso justificar a minha crença em que o próximo pão que comer me alimentará ou em que o Sol vai nascer
amanhã, acontecimentos de que não tenho nem memória nem impressão?
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Há duas resposta possíveis a esta questão: pela razão, isto é, a priori, ou pela experiência. Hume, no entanto,
afasta logo a primeira possibilidade:
Atrever-me-ei a afirmar, a título de proposta geral que não admite exceções, que o conhecimento dessa relação em
nenhum caso é alcançado por meio de raciocínios a priori, mas deriva inteiramente da experiência, ao descobrimos
que certos objetos particulares se acham constantemente conjugados entre si. (Investigação sobre o Entendimento
Humano, p. 43.)
Para Descartes, por exemplo, as relações de causa e efeito são conhecidas por intuição ou por dedução, o que é uma
garantia absoluta da sua verdade. Quando temos uma ideia clara e distinta da causa podemos saber imediatamente,
por intuição, que efeitos resultam necessariamente dela. Quando não somos capazes de intuir a conexão necessária
entre a causa e o efeito, temos de derivar o efeito por uma cadeia de raciocínios que o liguem à causa. Em qualquer
dos casos, para Descartes, a razão, por si só, a priori, é capaz de conhecer as relações causais com absoluta certeza.
Os empiristas, como Locke e os filósofos naturais britânicos (Newton, Boyle, Hooke), também pensavam que o
nosso conhecimento das relações causais implica o exercício da razão. Contudo, duvidavam da possibilidade de
conhecermos por intuição ou por demonstração essas relações, como os racionalistas pretendiam, porque, diziam,
nunca poderemos conhecer as conexões necessárias existentes entre os acontecimentos. Apesar disso, segundo
Locke, a nossa razão é capaz de chegar a crenças razoáveis, embora não infalivelmente certas, acerca das relações
causais.
Hume discorda tanto dos racionalistas como dos empiristas que o precederam. Nega que sejamos capazes de
conhecer, seja apenas pela razão, a priori, como pretendiam os racionalistas, seja pela razão com o auxílio da
experiência, como pretendiam os empiristas, conexões necessárias entre acontecimentos.
Para que fosse possível conhecer exclusivamente pela razão as conexões necessárias entre objetos, seria preciso
que as relações causais fossem relações de ideias, que a mera análise da ideia da causa revelasse todos os seus
efeitos. Assim, para sabermos que uma coisa causa outra bastaria refletir nela, da mesma maneira que refletir, por
exemplo, na noção de quadrado é suficiente para que saibamos que é uma figura geométrica com quatro lados e
quatro ângulos iguais. No entanto, a análise pela razão de uma coisa não permite saber que efeitos resultam dela. Só
a experiência o pode fazer. Para tornar isto claro, Hume usa Adão como exemplo:
Adão, ainda que supuséssemos que as suas faculdades racionais fossem inteiramente perfeitas desde o início, seria
incapaz de inferir da fluidez e transparência da água que ela o sufocaria, nem da luminosidade e calor do fogo que
este o poderia consumir. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas
que o produziram nem os efeitos que dele provirão; e tampouco a nossa razão é capaz, sem a ajuda da experiência,
de fazer qualquer inferência a respeito de questões de facto e existência real. (Investigação sobre o Entendimento
Humano, p. 43.)
Adão — o primeiro homem bíblico — não teve ainda experiências e, por isso, afirma Hume, não pode meramente
refletindo no conceito de água, isto é, a priori, saber que esta o pode sufocar. Só a experiência permite a Adão saber
isso. Quando raciocinamos a priori consideramos a ideia do objeto que vemos como a causa independentemente de
quaisquer observações que tenhamos feito dele. Quando consideramos a ideia do objeto deste modo, ela não pode
incluir a ideia de nenhum outro objeto, mesmo daquele que julgamos ser o seu efeito e, portanto, também não pode
mostrar-nos uma conexão necessária entre estas ideias. O raciocínio a priori não pode ser a origem da conexão entre
as nossas ideias de causa e efeito, isto é, as nossas inferências causais não constituem relações de ideias, mas
questões de facto. Hume conclui, por isso, que as causas e os efeitos não podem ser descobertos a priori, mas
apenas pela experiência.
A nossa experiência de acontecimentos familiares pode, no entanto, fazer-nos duvidar da verdade desta
afirmação. Estamos tão habituados a ver uma bola de bilhar bater noutra e provocar o seu movimento que
tendemos a imaginar que poderíamos ter descoberto esta relação de causa e efeito usando apenas raciocínios a
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priori. Contudo, se pensarmos em situações menos familiares, é fácil ver que o nosso conhecimento das relações
causais provém da experiência. Imaginemos que passeamos por um bosque e encontramos um arbusto que dá umas
bagas de que nunca ouvimos falar. Por mais que avaliemos a cor, o odor, a forma e a textura das bagas nunca
seremos capazes de saber, dessa forma apenas, se são venenosas. Só a experiência direta ou indireta nos permitirá
sabê-lo.
Esta é a primeira conclusão cética de Hume. Como vimos, os filósofos, em particular os da tradição racionalista,
como Descartes, acreditavam que as relações causais eram conhecidas usando exclusivamente a razão. A análise de
Hume revela que não é pela razão mas pela experiência que conhecemos as relações causais entre acontecimentos.
O problema da indução
Esta análise leva-nos a um outro problema, como Hume mostra:
Quando se pergunta Qual é a natureza de todos os nossos raciocínios acerca de questões de facto? a resposta
adequada parece ser que eles assentam na relação de causa e efeito. Quando em seguida se pergunta Qual é o
fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões acerca dessa relação? pode-se dar a resposta numa palavra:
experiência. Mas se ainda continuarmos com o nosso espírito inquiridor e perguntarmos Qual é o fundamento de
todos os nossos raciocínios a partir da experiência? Isto implica uma nova questão, que pode ser de ainda mais difícil
solução e esclarecimento. (Investigação sobre o Entendimento Humano, p. 48.)
Os nossos raciocínios acerca de questões de facto baseiam-se na relação de causa e efeito. A relação de causa e
efeito, por sua vez, baseia-se na experiência. Mas qual a justificação para os raciocínios que têm por base a
experiência? Acreditamos que no futuro o movimento de uma bola de bilhar fará outra mover-se e que o pão nos
alimentará, porque vimos estes acontecimentos ocorrerem sempre juntos no passado. Mas o que nos autoriza a
fazer estas inferências acerca do futuro com base no nosso conhecimento do presente e do passado?
Esta questão só se coloca pelo facto de a nossa ideia de causa e efeito não ter origem a priori, mas na experiência.
Se a razão fosse capaz de demonstrar a existência de conexões necessárias entre acontecimentos (isto é, que o
efeito resulta necessariamente da causa), isso seria suficiente para estarmos certos de que as nossas crenças sobre
acontecimentos futuros são verdadeiras, porque bastaria observarmos a ocorrência da causa para sabermos que o
efeito se iria inevitavelmente seguir. Mas, como a nossa ideia de relação causal resulta da experiência, é legítimo
perguntar de que modo a experiência permite justificar as nossas crenças acerca de acontecimentos de que não
temos experiência, isto é, de que modo a experiência permite justificar a crença em que as relações causais
observadas no passado se manterão no futuro. Os filósofos empiristas, como vimos, pensavam que a partir da
experiência era possível chegar a crenças razoáveis sobre acontecimentos futuros, isto é, crenças de cuja verdade
podíamos estar razoavelmente — embora não absolutamente — seguros. Existe alguma justificação racional para
esta convicção dos empiristas?4
A resposta de Hume a esta questão é negativa. Como ele diz:
[M]esmo depois de termos experiência das operações de causa e efeito, as conclusões que tiramos dessa
experiência não estão fundadas no raciocínio ou em qualquer processo do entendimento. (Investigação sobre o
Entendimento Humano, p. 49.)
Mesmo que os nossos raciocínios acerca de acontecimentos futuros tenham por ponto de partida premissas
empíricas nunca é possível justificar racionalmente as conclusões a que chegamos por seu intermédio. Dito de outro
modo, não há fundamento racional para afirmarmos, como os empiristas faziam, que podemos ter crenças razoáveis
acerca de acontecimentos futuros. Para percebermos o raciocínio de Hume que está na base desta conclusão
usemos como exemplo um argumento em que a partir da experiência anterior seja tirada uma conclusão sobre um
acontecimento de que não há experiência, como o seguinte:
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Sempre que no passado comi pão ele alimentou-me.
Portanto, da próxima vez que comer pão ele alimentar-me-á.
Hume não tem qualquer dificuldade em admitir que as experiências anteriores, sintetizadas na premissa, estejam
corretas, isto é, que até agora o pão sempre me tenha alimentado. Mas, essas experiências fornecem apenas
informação sobre os objetos dessas experiências — neste caso, o pão que comi — e no período anterior em que
decorreram. As nossas inferências causais, contudo, não se limitam a registar as nossas experiências anteriores.
Antes alargam, na conclusão, a informação adquirida por essas experiências a acontecimentos futuros e diferentes.
O que justifica que o façam? Como Hume diz:
O pão que antes comi alimentou-me, isto é, um corpo com determinadas qualidades sensíveis estava, naquele
momento, dotado de determinados poderes secretos. Mas segue-se daí que outro pão deva igualmente alimentar-
me em outra ocasião, e que qualidades sensíveis idênticas devam estar sempre acompanhadas de idênticos poderes
secretos? É uma consequência que de modo algum parece necessária. É preciso, pelo menos, reconhecer que aqui
houve uma consequência tirada pela mente, que se deu um certo passo: um processo de pensamento e uma
inferência que estão a exigir uma explicação. (Investigação sobre o Entendimento Humano, pp. 49-50.)
Qual é a explicação para esta inferência? Como vimos acima, Hume pensa que não existe uma explicação adequada
para ela. Não é possível passar diretamente da premissa para a conclusão. A conclusão não se segue da premissa.
Não se segue do facto de no passado o pão sempre me ter alimentado que me irá alimentar da próxima vez que o
comer. O facto de o pão me ter alimentado no passado e o facto, suposto, de me alimentar no futuro, quando o
voltar a comer, são dois acontecimentos distintos e, por isso, não posso inferir o segundo a partir do primeiro. A
premissa pura e simplesmente não suporta a conclusão. 5 Por isso, para que o argumento funcione é necessária uma
premissa intermédia que ligue a premissa à conclusão. Uma vez que aquilo que nos impede de inferir diretamente os
acontecimentos futuros a partir dos anteriores é que o curso da natureza pode mudar, essa premissa terá que
garantir que no futuro os acontecimentos serão como foram no passado. Se uma premissa como “O futuro será
como o passado” for acrescentada ao argumento, a inferência a partir da experiência passada passa a estar
justificada. Com essa premissa, o argumento terá a seguinte forma:
Sempre que no passado comi pão ele alimentou-me.
O futuro será como o passado.
Portanto, da próxima vez que comer pão ele alimentar-me-á.
É frequente chamar-se a esta premissa Princípio da Uniformidade da Natureza. Este princípio expressa a ideia de que
a natureza é uniforme ou que o futuro será como o passado, isto é, que, em circunstâncias idênticas, os
acontecimentos de que não temos experiência serão como os acontecimentos de que temos experiência.
Contudo, segundo Hume, esta premissa não está em condições de permitir à razão fazer a inferência de
acontecimentos passados para ocorrências futuras porque ela própria não é justificável, isto é, não é possível provar
que é verdadeira. Para o mostrar, Hume recorre à distinção entre relações de ideias e questões de facto e aos dois
tipos de raciocínios que lhes estão associados, os raciocínios demonstrativos e os raciocínios morais ou prováveis.
É o princípio de que a natureza é uniforme uma relação de ideias que possamos provar por intermédio de uma
demonstração, como o Teorema de Pitágoras? Nesse caso, a negação de a “Natureza é uniforme” teria de implicar
uma contradição. Mas, diz Hume, não há qualquer contradição em supor que a natureza não é uniforme ou, para dar
o exemplo do argumento, que da próxima vez que comer pão ele não me alimentará. Isto é, nada impede que a
premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. O Princípio da Uniformidade da Natureza não é, portanto, uma relação
de ideias e, por isso, não pode ser provado a priori, pela razão apenas.
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O princípio é, então, uma questão de facto. Nesse caso, a sua verdade terá de ser provada por um raciocínio a que
Hume chama provável, isto é, com base na experiência. Mas, podemos provar a sua verdade com base na
experiência?
Para provar este princípio com base na experiência temos de fazer um argumento como o seguinte:
No passado, a natureza tem sido sempre regular.
Portanto, a natureza é regular.
A premissa expressa a nossa experiência da regularidade da natureza. A conclusão é o próprio Princípio da
Uniformidade da Natureza. Passa-se, no entanto, com este argumento o mesmo que acontecia com o anterior. Não
é possível inferir a conclusão da premissa, porque a premissa é sobre o passado ao passo que a conclusão é sobre o
futuro. Só recorrendo a uma premissa que garanta que o futuro é como o passado pode a inferência ser feita. Se
acrescentarmos essa premissa, o argumento é o seguinte:
No passado, a natureza tem sido sempre regular.
A natureza é regular.
Portanto, a natureza é regular.
Mas assim o argumento é circular, uma petição de princípio, uma vez que a conclusão aparece como uma das
premissas, pelo que também não é possível justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza por meio da
experiência. E, claro, se não é possível justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza também não temos razão
para pensar que as nossas crenças acerca de acontecimentos futuros são verdadeiras. Este é o famoso problema da
indução, de que Hume foi o primeiro a dar conta.
Esta é a segunda conclusão cética de Hume. Até Hume, os filósofos e os cientistas pensavam que o nosso
conhecimento do mundo estava racionalmente justificado, ou por raciocínios a priori, como os racionalistas
pensavam, ou por raciocínios com base na experiência, como os empiristas anteriores a Hume pensavam. Hume
mostrou que tanto os racionalistas como os empiristas estavam enganados e que não podemos justificar
racionalmente, nem a priori nem a posteriori, os princípios que estão na base das nossas crenças acerca do mundo.
Portanto, as nossas crenças sobre o mundo não constituem conhecimento.
Significa isto que estas nossas crenças sejam totalmente injustificadas? Hume não o pensa, embora a justificação
que encontra para elas, como veremos, não tenha origem na razão, mas na natureza humana.
Respostas a Hume
Dadas as consequências devastadoras da análise de Hume da causalidade e da indução, é natural que tenham
surgido diversas tentativas de lhe responder. Vamos ver brevemente três dessas respostas.
O princípio da indução
Uma forma de tentar superar as dificuldade colocadas pela análise de Hume da indução é, como fez Bertrand
Russell, propor um Princípio da Indução que justifique as inferências indutivas. A ideia de Russell é que os raciocínios
indutivos estão na base da ciência e dos nossos atos mais comuns e triviais do dia-a-dia e ou arranjamos forma de
justificá-los ou temos de admitir que tanto uns como outros são irracionais. Esta última opção, no entanto, é
inaceitável. É, por isso, necessário recorrer a um Princípio da Indução que garanta, em função da nossa maior ou
menor experiência anterior, a maior ou menor probabilidade de as conclusões dos nossos raciocínios indutivos
serem verdadeiras.
O próprio Russell, contudo, admite que este princípio não pode ser provado pela experiência, o que o deixa
exposto a uma objeção fatal: se nada o pode provar, não temos razões para pensar que é verdadeiro e, portanto,
para acreditar na probabilidade das conclusões das nossas inferências indutivas. Dito de outro modo, um princípio
probabilístico da indução está também submetido às objeções de Hume e, portanto, é incapaz de resolver o
problema da indução.6]
Possibilidades
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Possibilidades
É fácil comprovar, pelo quadro, a superioridade da indução. Deve-se, no entanto, ter em conta que esta análise não
prova que o Princípio da Uniformidade da Natureza é verdadeiro. Ela mostra apenas que a indução na prática é
superior às alternativas.
A solução pragmática, no entanto, para muitas pessoas está longe de ser satisfatória. Em primeiro lugar, porque
desvia a atenção do problema da justificação da indução, o problema que verdadeiramente está em questão e não o
de saber se na prática funciona. Em segundo lugar, porque não diz muito mais do que aquilo que o próprio Hume
diz. Hume nunca defendeu que se abandonasse a indução justamente porque ela funcionava e deu até uma
explicação natural, o hábito, para esse facto.
Não há indução
Uma terceira forma de responder a Hume, radicalmente diferente porque implica abandonar completamente a
indução, é a proposta por Karl Popper. Popper aceita a distinção de Hume entre o problema da justificação das
inferências causais, a que chama o problema lógico da indução, e o problema de saber por que e como fazemos
inferências causais, a que chama problema psicológico da indução. Ele concorda com a solução de Hume para o
problema lógico, isto é, aceita que não é possível justificar racionalmente os argumentos indutivos, mas discorda da
sua solução para o problema psicológico, o hábito, porque pensa que não existem inferências indutivas, a mente
pura e simplesmente não faz raciocínios deste tipo.
O PROBLEMA DA INDUÇÃO
Hume Popper
Não Não
Há solução para o
(Não é possível justificar racionalmente a (Não é possível justificar
problema lógico?
indução) racionalmente a indução)
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O PROBLEMA DA INDUÇÃO
Sim Não
Há solução para o
(O hábito ou costume é o mecanismo na base (É falso que a mente faça
problema psicológico?
das nossas inferências indutivas) inferências indutivas)
Recusando-se a aceitar a indução como processo lógico e como mecanismo psicológico, Popper vai tentar dar uma
resposta estritamente dedutiva aos problemas levantados por Hume.
Álvaro Nunes
Notas
1. Descartes não foi o único pensador do século XVII, nem talvez o primeiro, a defender o mecanicismo. Mas foi
certamente o primeiro a formular uma visão mecanicista do mundo articulada e global capaz de substituir a
escolástica.
2. A famosa afirmação de Newton “Não faço hipóteses” (Hypotheses non fingo) não significa que recusasse, como às
vezes se pensa, fazer toda e qualquer hipótese, mas sim que se recusava a formular hipóteses que não tivessem a
experiência e a observação por base.
3. É de notar que o facto de as relações de ideias serem, para Hume, a priori não significa que sejam inatas como
significava para Descartes. As relações de ideias são a priori porque uma vez conhecido (pela experiência, como tudo
o resto) o significado dos termos que entram nelas é possível determinar, sem recorrer a qualquer investigação
empírica, o seu valor de verdade.
4. Quando tiramos conclusões acerca do futuro com base no passado raciocinamos por indução. Por isso, o problema
que Hume coloca pode também ser expresso assim: Podemos justificar as nossas previsões e generalizações
indutivas?
5. Hume não está apenas a dizer que a premissa não permite ter a certeza da verdade da conclusão, ou que ela é, por
hipótese, mais provável do que improvável. Hume está a afirmar a tese muito mais radical de que a razão não
fornece justificação racional para a conclusão.
6. Para um conhecimento mais aprofundado da posição de Russell sobre o problema da indução veja-se a sua obra
indicada na bibliografia.
Bibliografia
Hume, David, Tratado da Natureza Humana, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, Livro 1.
Hume, David, “Investigação sobre o Entendimento Humano”, in Tratados Filosóficos I, Lisboa: INCM, 2002.
Magee, Bryan, Os Grandes Filósofos, Lisboa: Editorial Presença, 1989, Cap. 7.
O’Brien, Dan, Introdução à Teoria do Conhecimento, Lisboa: Gradiva, 2013, Cap. 10.
Russell, Bertrand, Os Problemas da Filosofia, Coimbra: Almedina, 2001, Cap. 6.
In: https://criticanarede.com/anunesoempirismodedavidhume.html
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