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Por que brincar? Brincar
para quê? A perspectiva
Evolucionista sobre
a Brincadeira
Ilka Dias Bichara
Eulina Da Rocha Lordelo
Celina Maria Colino Magalhães

Em situações variadas podemos observar que filhotes


de varias espécies, mas não todas, gastam boa parte do seu
tempo e energia brincando. Mamíferos e entre eles os primatas
são aqueles que mais gastam tempo nessa atividade. Entre os
humanos a brincadeira é tão frequente que podemos afirmar
que ela é uma característica definidora e universal da infância,
embora culturalmente variável (Gosso & Carvalho, 2013; Gosso,
Bichara & Carvalho, 2014).
Mas o que é o brincar, como podemos defini-lo? Essa é uma
questão levantada por aqueles que investigam o brincar, pois
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apesar dessa atividade ser facilmente reconhecida, a sua defi-


nição clara e precisa é difícil (Burghardt, 2005; LaFreniere, 2011;
Smith, 2010). O caminho escolhido pelos pesquisadores, na busca
do esclarecimento para essa questão, foi o de identificar quais
seriam as características básicas dessa atividade que ajudassem
a identificar o início e o término de um episódio, por exemplo,
além de diferenciá-la de outras semelhantes como exploração
e comportamentos estereotipados (Smith, 2007; 2010).
Para Burghardt (2005) a brincadeira, em todas as espé-
cies que brincam, pode ser caracterizada pelos altos níveis de
atividade e padrões comportamentais usados em contextos
funcionais reais, mas desvinculados de sua motivação original.
Por exemplo, os sistemas motivacionais relacionados ao ataque
e ao medo não são ativados durante o brincar, embora alguns
comportamentos possam ser semelhantes. Entretanto, não são
observados ferimentos ou outros efeitos de lutas verdadeiras
(Meaney & et al., 1985). Outra característica é a presença de
movimentos exagerados. Como não há  uma finalidade específi-
ca, os padrões motores se repetem com frequência e são usados
exageradamente. Também se observam reordenação e frag-
mentação dos elementos que compõem a sequência compor-
tamental, pois diversos padrões comportamentais podem ser
incorporados. O brincar pode também ser interrompido por
outras atividades, ocorrendo maior número de combinações
motoras do que em outros tipos de interação (Burghardt, 2005).
Todas essas características são sintetizadas por Burghardt
(2005) em cinco grupos de critérios identificadores: 1) Função
imediata limitada, referindo-se à ocorrência de comportamentos
fora do contexto original; 2) Componente endógeno, represen-
tando o fato de que a brincadeira consiste em comportamento
espontâneo, voluntário, prazeroso, recompensador, reforçador

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ou feito em benefício próprio; 3) Diferença temporal ou estru-


tural, descrevendo o fato de que os comportamentos de brincar
são, em geral, incompletos, exagerados ou precoces, envolvendo
padrões com forma, sequência ou alvo modificados; 4) Ocorrência
repetida, consistindo no desempenho repetido em forma simi-
lar, embora não estereotipada; 5) Ambiente relaxado, ou seja, as
brincadeiras só ocorrem em situações livres de tensões, ameaças,
disputas e quando o indivíduo encontra-se num estado saudável,
alimentado e sem necessidades físicas prementes.
Gray (2009) também elencou 5 características definido-
ras do brincar, porém mais associadas a espécie humana. Para
esse autor, o brincar é uma atividade que é 1) auto-escolhida
e autodirecionada; 2) intrinsecamente motivada; 3) estruturada
por regras mentais; 4) imaginativa e 5) produzida em uma ativi-
dade alerta, mas não estressante. Esse mesmo autor diferen-
cia a brincadeira humana da de outros mamíferos a partir da
observação de grupos de caçadores-coletores onde essa é uma
atividade deliberada e com uma função clara de manutenção
da coesão grupal.
Como já dito, a brincadeira entre os mamíferos é carac-
terizada por grande gasto de energia e tembém pela exposição
a potenciais riscos (ataque de predadores, quedas, ferimen-
tos, entre outros). Por isso, além das dificuldades de definição,
a brincadeira intriga os pesquisadores por sua própria exis-
tência. Como uma atividade que parece ser supérflua, ou seja,
não possui ganhos imediatos aparentes, pode ser tão crucial
a ponto de persistir em tantas espécies mesmo com os riscos que
apresenta? E, se brincar for uma extravagância, como persis-
tiu? Deve, portanto, conter alguma função de adaptação ou ao
menos um benefício que sobreponha seu custo, senão teria sido
eliminada pelas forças da seleção natural (LaFreniere, 2011;

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Pellegrini, 2010). Sendo assim, é fundamental a investigação


da sua função e de sua filogênese, ou seja, a busca dos porquês
deste comportamento ter sido selecionado e como chegou às
formas e funções de hoje. Interroga-se também se as funções
identificadas para os mamíferos, em geral, se aplicam também
à espécie humana e se todos os tipos de brincadeira teriam
a mesma função (Pellegrini & Bjorklund, 2004; Smith, 2007; 2010).

Para que serve o brincar

Várias teorias explicativas do brincar atravessaram


o século XX, sendo que as primeiras, como as de Groos e Hall,
surgiram ainda no século XIX (Smith, 2010). Algumas dessas
teorias salientam a importância do período juvenil para
o desenvolvimento posterior do indivíduo (Smith, 2010), desse
modo, o brincar promoveria o desenvolvimento e treinaria
habilidades importantes para o futuro. É importante ressal-
tar que os comportamentos de brincadeira, enquanto simi-
lares, não são literalmente os mesmos da vida real, e não há
muita evidência experimental para sustentar a conexão entre
a brincadeira infantil e a experiência adulta (Burghardt, 2005;
Pellegrini, Dupuis & Smith, 2007; Smith, 2010).
Porém, alguns autores advogam que o brincar traz alguns
benefícios imediatos que são importantes para toda a vida do
indvíduo. Brincadeiras sociais vigorosas, por exemplo, desen-
volveriam ossos e músculos fortes promovendo a saúde cardio-
vascular e encorajando o hábito de exercícios físicos ajudando
a combater a obesidade (LaFreniere, 2011).
O exercício do brincar também proporcionaria um
senso de domínio, competência e autoeficácia, afetando as

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experiências da criança com novas atividades (LaFreniere,


2011; Pellegrini & Smith, 1998). Outra possibilidade de vantagem
imediata é apontada em algumas hipóteses que associam a brin-
cadeira com funções de preparação para o inesperado (Spinka,
Newberry, & Bekoff, 2001), aumentando a versatilidade de movi-
mentos usados para lidar com eventos súbitos como quedas
e perda de equilíbrio e para lidar emocionalmente com situa-
ções estressantes e inesperadas.
Além da aquisição de habilidades físicas, outro aspecto
deve ser focalizado e especialmente destacado para a espé-
cie humana, mas também presente em outros primatas, que
é o brincar como oportunidade para interação social, para
o estabelecimento de relações sociais, como caminho para
o desenvolvimento de habilidades sociais, como expressão
da vida social e da percepção do infante de seu mundo social
(Bjorklund, 1997; Gray, 2009; Pellegrini, Dupois & Smith, 2007).
Assim, pode-se falar em algumas funções socializadoras
do brinquedo, como, por exemplo, o estabelecimento de hierar-
quias de dominância (a habilidade de se colocar em situação de
dominação ou subordinação, mediada pela avaliação da posição
dos parceiros), a promoção da integração social, determinação
de espaço “experimental” para aprendizagem da comunicação
da espécie, etc (Smith, 2010).
Enfim, tornar os indivíduos flexíveis, versáteis, criativos
e capazes de lidar produtivamente com o novo e o inesperado
são as principais funções imediatas reconhecidas da brincadei-
ra. Através dela seriam desenvolvidas habilidades genéricas de
aprendizagem, permitindo a adaptação do indivíduo a novas
situações e a novos ambientes. O indivíduo com experiência
lúdica pode explorar novas oportunidades mais rapidamente

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que outros sem essa experiência. Um animal com experiência


lúdica é um “especialista na não-especialização” (Fagen, 1981).
Mas esses são ganhos essenciais, do ponto de vista filoge-
nético, para justificar a permanência do brincar? Será que todas
as formas de brincar possuem a mesma função, ou seja, perse-
guir e pegar é semelhante a construir ou fazer de conta? Por
que o brincar não é identificado em todas as espécies? Buscando
clarificar essas questões Burghardt (2005) desenvolveu a Teoria
do excesso de recursos, que apresenta um modelo evolucionário
que especifica as condições necessárias para o desenvolvimen-
to da brincadeira em diferentes espécies: longo período de
imaturidade, cuidado parental e um metabolismo que garanta
termorregulação e engajamento em atividades vigorosas. Ou
seja, mamíferos e aves que possuem grandes períodos juvenis
e relativo desenvolvimento do córtex cerebral.
A hipótese é que a brincadeira é uma adaptação onto-
genética, ou seja, um sistema comportamental que melhora
a adaptação do indivíduo nos estágios imaturos da vida, perden-
do seu significado na idade adulta. Essa hipótese foi desenvolvi-
da baseada em 2 premissas: que a seleção natural atua em todos
os períodos do desenvolvimento, não só para a maturidade;
que um comportamento para ser selecionado pressupõe que os
benefícios devam ser maiores que os custos associados.
Na busca por encontrar quais poderiam ser esses benefí-
cios, Byers & Walker (1995) constataram que em quase todas as
espécies estudadas, o gráfico de disposição para brincadeiras
parecia um U invertido, aumentando durante o período juvenil
e daí caindo por volta da puberdade, o período depois do qual
a maioria não brinca muito. Para esse autor o ato de brincar
pode estar relacionado ao crescimento do cerebelo, desde que
os dois atinjam o pico mais ou menos ao mesmo tempo. Parece

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haver um período sensível no crescimento do cérebro, no qual


o tempo é importante para que o animal seja estimulado com
brincadeiras para esse crescimento e que o cerebelo precisa dos
movimentos de todo o corpo na hora da brincadeira para obter
sua configuração final.
Em outro estudo Lewis & Barton (2006) associaram
o tamanho do hipotálamo e da amígdala ao desenvolvimento de
brincadeiras sociais em primatas não humanos. Esses autores
propõem que comportamentos tais como contato social, reco-
nhecimento e respostas a expressões faciais e respostas sociais
apropriadas, que são mediadas pela amígdala, são desenvolvi-
dos através da brincadeira social. Esse parece ser um caminho
promissor na busca de explicações mais conclusivas, necessi-
tando, no entanto de altos investimentos em pesquisa para que
as respostas venham a ser construídas.
Porém, independentemente das razões do por que o
brin­­car foi selecionado ao longo da evolução das espécies que
brincam, constatamos que as brincadeiras, principalmente as
humanas, passam por mudanças em forma e conteúdo durante
o desenvolvimento dos indivíduos. Esse é um campo promis-
sor de pesquisas e tema presente nas principais teorias da
Psicologia do Desenvolvimento.

Brincadeiras de meninos e de meninas

Dentre as possíveis causas para as variações em frequên-


cia, forma e conteúdo das brincadeiras para todas as espécies
que brincam, uma que chama grande atenção é a que asso-
cia essas variações ao sexo dos brincantes. Pellegrini, Dupuis
e Smith (2006) afirmam que brincadeiras de luta, de rolar e que

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envolvem muitos movimentos são mais frequentes em machos


que em fêmeas. Já Palagi (2006) relata que existem evidências
de maior frequência de brincadeiras em machos que fêmeas em
muitas espécies de primatas como babuínos, gorilas, saimiris
e chimpanzés. Já em outras, como o cobus vermelho, as fêmeas
brincam mais que os machos e entre lêmures não foram obser-
vadas diferenças entre os sexos.
Entre humanos dois fenômenos chamam a atenção quan-
do se observam meninas e meninos brincando: a segregação
e a estreotipia de gênero (Bichara & Carvalho, 2009; Bichara,
Lordelo, Santos e Pontes, 2012), ou seja, meninos e meninas
brincam mais frequentemente com parceiros do mesmo sexo
e desenvolvem brincadeiras e apresentam comportamentos
considerados femininos e/ou masculinos para sua cultura.
Lippa (2005) considera a segregação como a mais dramática
das diferenças entre os sexos na brincadeira, pois é um fenô-
meno que já se observa nos anos iniciais e influencia na forma
e conteúdo das brincadeiras. A segregação também é constatada
em chimpanzés e bonobos (Pellegrini, 2004).
Meninos e meninas variam também quanto à forma
de se organizar social e espacialmente: meninos engajam-se
em grupos mais amplos de amizade, utilizam mais tentativas
de dominação, ocupam mais espaços abertos e amplos para
brincar, enquanto as meninas participam de grupos meno-
res, em ambientes fechados e utilizam mais recursos comuni-
cativos para manter a coesão do grupo (Archer, 1992; Aydt &
Corsaro, 2003; Bichara & Carvalho, 2009; Lippa, 2005; Pellegrini,
Dupuis & Smith, 2006; entre outros). Estudos têm identificado
maior estereotipia entre meninos do que entre meninas, bem
como maior reação para com o parceiro que se comporta de

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maneira inadequada segundo as expectativas do grupo (Bichara


& Carvalho, 2009).
Segundo Aydt e Corsaro (2003) esses fenômenos aconte-
cem porque a mais importante identidade que a criança apren-
de para definir a si mesma e aos outros é a de gênero. Essa
é uma questão tão importante que crianças muito pequenas
já identificam traços dessas diferenças. Mas quais podem ser
os mecanismos biológicos e/ou culturais que estão presentes
nestas diferenças?
Pesquisadores têm discutido sobre as razões da segre-
gação e muitos argumentos são levntados entre eles os da
diferença de estilo de brincar entre meninos e meninas (Aydt
& Corsaro, 2003; Martin & Fabes, 2001), associando a segre-
gação com a tipificação de brincadeiras. Do ponto de vista
evolucionista Pellegrini (2004) hipotetiza que a diferença de
estilos é consequência dos papéis reprodutivos diferenciados
em que, por exemplo, os machos devem ser mais competitivos
e assertivos e as fêmeas mais maternais e protetoras. Esse autor
também hipotetiza que diferenças biológicas no amadureci-
mento também podem explicar diferenças de atividade entre
os sexos, já que entre humanos meninas amadurecem mais
rapidamente que meninos.
Iervolino et al (2005) investigaram possíveis influências
genéticas e ambientais sobre o comportamento tipificado por
gênero através do estudo com gêmeos. Constataram na amostra
pesquisada que o ambiente foi mais determinante para meninos
enquanto a genética fois mais determinante para as meninas. Os
autores argumentam que os meninos parecem ser mais suscetí-
veis às pressões do ambiente para o comportamento não tipifi-
cado, porém que essa influência pode diminuir com o aumento
da idade. Concluíram também que as influências genéticas

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e ambientais podem diferir para diferentes características espe-


cíficas influenciando interesses e atividades tipificadas para
meninos e meninas.
Estudos como esse desenvolvido por Iervolino et al (2005)
trazem luz na busca por conhecer melhor os mecanismos bioló-
gicos e culturais atuantes na determinação das diferenças da
brincadeira entre meninos e meninas, mas outros estudos
também são necessários, principalmente aqueles que busquem
as respostas através de uma abordagem que integre biologia
e estudos interculturais.

Conclusões

Em conclusão, pode-se afirmar que brincar é uma das


características mais significativas da infância dos mamíferos,
em geral, e especialmente da humana. Da perspectiva evolu-
cionista, a brincadeira surge como uma parte indistinguível
da evolução de nossa espécie, cujo modo de vida baseado na
cooperação e na tecnologia requer forte flexibilidade compor-
tamental, acarretando uma infância longa e protegida, com
amplas possibilidades de exploração e prática em situações
não realísticas.
Motivação e formas de brincar alteram-se durante o ciclo
vital, acompanhando as mudanças gerais em habilidades moto-
ra, cognitiva e social. Produto da dinâmica do desenvolvimento
do organismo, a brincadeira também é profundamente afetada
pelo ambiente, seja nas circunstâncias físicas circundantes, seja
nos parceiros sociais disponíveis, nos relacionamentos construí-
dos no tempo, seja nos elementos culturais que contribuem para
a construção dos indivíduos (Gosso, Bichara & Carvalho, 2014).

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Box 1. A brincadeira fantasiosa é limitada ao Homo sapiens?


Essa questão foi levantada por Pellegrini e Bjorklund (2004) que argu-
mentam que esse tipo de brincadeira pode estar de alguma forma
presente também em outros primatas. Os autores levantam essa possi-
bilidade a partir de duas constatações, uma teórica e outra empírica.

Quanto à questão teórica, Pellegrini e Bjorklund (2004) se referem às


afirmativas feitas pela maioria dos autores que consideram que a brin-
cadeira fantasiosa, assim como a construção com objetos, são brinca-
deiras essencialmente humanas. Enquanto outras formas de brincar,
como as brincadeiras de luta e perseguição por exemplo, são claramente
observadas em outros mamíferos, faz de conta não é. Isso, segundo os
autores, representaria uma descontinuidade filogenética.

A constatação empírica se refere a observações realizadas por Gard-


ner & Gardner (1971) que relataram que a chimpanzé Washoe banhava,
ensaboava e secava bonecas.

A assertiva de que faz de conta é limitada a humanos se baseia na


premissa de que essa atividade envolve meta-representação (Leslie,
1987), que a realidade fantasiada é mentalmente representada. Por outro
lado, alguns teóricos têm proposto que a fantasia necessariamente não
envolve metarrepresentação em crianças pequenas (Pellegrini & Bjor-
klund, 2004).

Para esses autores, crianças pequenas e chimpanzés têm dificuldade


para reconhecer o estado mental de outros e usam seus conhecimen-
tos para imaginar o que os outros podem ver em uma nova situação.
Crianças pequenas e chimpanzés não têm uma teoria da mente, mas
reconhecem que outros veem o mesmo objeto de uma forma diferente.

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Assim, uma criança pequena tanto brinca de esconde-esconde reconhe-


cendo que o outro visualiza coisas diferentes de si, quanto pode simular
pentear ou dar comida a uma boneca, por exemplo.

Bering (2001) diferencia o faz de conta derivado desses estágios e propõe


duas formas de brincadeiras simbólicas. Uma que seria dependente
das características dos objetos (Feature-dependent make-believe) em que
o comportamento imaginativo associaria diretamente um objeto que se
assemelha a outro (fazer um sapato de telefone, tratar uma boneca como
um bebê etc.). Na outra forma que ele chamou de verdadeira brincadeira
simbólica (True symbolic play), os indivíduos seguem um enredo social na
ausência de elementos constantes do contexto representado.

Com isso, poderíamos pensar que chimpanzés e crianças pequenas se


assemelhariam em suas possibilidades de brincadeiras, porém, vale
ressaltar que os eventos em que este tipo de atividade foi observado
em chimpanzés aconteceram em laboratórios, com indivíduos encul-
turados, não existindo registros em ambiente natural. Observam-se
na natureza atitudes de jovens fêmeas em relação aos bebês alheios
de imitação de comportamentos maternos, mas, no caso, são bebês de
verdade. Mitchell (2007) estende este tipo de raciocínio para alguns
comportamentos de gorilas, cães e golfinhos, porém a grande questão
que esses eventos suscitam é: Há o “como se” que caracteriza o faz de
conta nesses casos?

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Box 2. Brincar é coisa de criança?


Como já afirmamos anteriormente, a brincadeira é uma das principais
características definidoras da infância em mamíferos, mas observa-se
com certa facilidade sua ocorrência em animais adultos, principalmente
no ambiente doméstico ou em cativeiro (Hausberger et al, 2012). Registros
na natureza são escassos, assim como a existência de estudos voltados
para a sua caracterização como, por exemplo, se são solitários ou sociais,
sobre o envolvimento de objetos etc., além da própria identificação da
brincadeira decorrente da dificuldade de definição do brincar constatada
com filhotes (Bradshaw, Pullen & Rooney, 2015; Holmes, 2005).

Entre humanos são frequentes atividades caracterizadas como lúdi-


cas. A brincadeira adulta se manifesta através da galhofa (playfulness),
experiências culturais, criatividade, espontaneidade e humor. Pode-
mos incluir jogos eletrônicos, festas, atividades esportivas, entre outras,
como tendo conteúdo lúdico evidente (Holmes, 2005). Em um interes-
sante depoimento constante do filme documentário Tarja Branca (2014,
direção Cacau Rhoden), o dançarino Antônio Nóbrega lembra que os
participantes de atividades culturais regionais como reisados, maraca-
tus, bumba meu boi, entre outras, se autodenominam como brincantes.
Também é recorrente em nosso meio a expressão brincar o carnaval.
Holmes (2005) salienta a dificuldade em se separar a brincadeira de
adultos de trabalho, inclusive porque muitas atividades profissionais
podem ter caráter lúdico como os esportes e atividades artísticas.

Mas, será que esse brincar adulto, do ponto de vista evolutivo, tem as
mesmas características e funções que o brincar infantil? Pesquisadores
têm procurado responder a essa questão através da investigação em espé-
cies variadas: cães e gatos domésticos (Bradshaw, Pullen & Rooney, 2015);
ratos silvestres e em cativeiro (Himmle et al, 2013); cavalos em cativeiro

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(Hausberger et al, 2012); diferentes espécies de primatas (Ciani et al, 2012;


Norscia & Palagi, 2011; Palagi, 2006); entre outros.

Uma das principais questões levantadas por esses autores é sobre até
que ponto a domesticação altera em forma e frequência a brincadeira
nas espécies estudadas e se a domesticação e/ou o cativeiro imporiam
funções adaptativas específicas ao brincar. Para responder a essas
questões alguns pesquisadores realizaram estudos comparativos com
animais silvestres (na natureza ou em laboratório) e animais domesti-
cados e/ou cativos. Himmle et al (2013), por exemplo, compararam ratos
domesticados com ratos silvestres e concluíram que a brincadeira de
luta, que é muito comum em ratos domesticados, é rara em ratos silves-
tres. As brincadeiras de rolar deitado que em filhotes teriam função de
desenvolvimento da sociabilidade, com repercussão no desenvolvimento
da amígdala e hipotálamo (semelhantes ao constatado em chimpanzés
por Lewis & Barton, 2006), não foram observadas em animais silvestres.

Já Hausberger et al (2012) constataram que o brincar adulto de cavalos


domesticados e/ou em cativeiro é bem mais frequente que o observa-
do em campo e que essa brincadeira está correlacionada aos graus de
stress crônico nos animais. Os autores argumentam que o brincar está
associado ao bem-estar desses animais atuando como atenuador dos
graus de stress.

Já os cães domésticos que apresentam maior frequência de brincadei-


ras sociais, diferentemente dos gatos que brincam mais com objetos
mimetizando comportamentos de caça, apresentam comportamentos
diferenciados quando estão brincando com outros cães ou com huma-
nos. Para Bradshaw, Pullen & Rooney (2015) estas brincadeiras têm
motivo e funções distintas. A hipótese é que enquanto a brincadeira

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intraespecífica teria a mesma função das práticas juvenis voltadas


ao estabelecimento de hierarquias, as com humanos, mais variadas,
seriam resultado de pressão seletiva para obtenção de recursos alimen-
tares e reprodutivos.

Em primatas, a brincadeira adulta está presente de lêmures a humanos,


porém com características e funções bem diferenciadas, mas fortemen-
te influenciadas pelo tipo de organização social da espécie (Norscia &
Palagi, 2011). Exemplos dessas diferenças foram observados em colônias
de chimpanzés e bonobos por Palagi (2006): os bonobos, que possuem
sociedade mais igualitária, brincaram mais que os chimpanzés e exibi-
ram mais a face de brincadeira, principalmente nas brincadeiras de
rolar. O autor argumenta que a brincadeira social entre essas espé-
cies poderia ser vista como uma forma de equilíbrio entre cooperação
e competição. Ademais para as fêmeas bonobos teria a função de promo-
ver flexibilidade comportamental gerando relacionamentos socialmente
simétricos, base da sua sociedade igualitária.

Já em pesquisa realizada com micos comuns em cativeiro, Norscia


e Palagi (2011) encontraram forte associação do brincar com redução
do stress. Esses autores relatam que em outras espécies de primatas
a brincadeira teria a função de tolerância social.

Como se pode concluir, brincadeira não é só coisa de criança, porém sua


função entre indivíduos adultos pode diferir muito das constatadas em
filhotes de várias espécies, porém com uma característica comum: os
benefícios imediatos parecem ser mais fortes que os a longo prazo (Nors-
cia & Palagi, 2011). No entanto, a maioria dos estudos se concentra na
investigação com animais domesticados e/ou em cativeiro, necessitando
de mais esclarecimentos sobre a ocorrência desse fenômeno na natureza.

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Questões para discussão

1. Como poderíamos definir o brincar?

2. O que seria uma espécie “especialista na não especializa-


ção”? Cite alguma além da humana.

3. Quais mudanças no brincar são percebidas durante


a ontogênese humana?

4. Que outras espécies, além da humana, podem apresentar


brincadeiras fantasiosas? Por quê?

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