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ARGUMENTOS
PARA A
LIBERDADE

EDITADO POR
AARON ROSS POWELL E GRANT BABCOCK
2

SUMÁRIO
Introdução..................................................... 3
Capítulo 1 ................................................... 12
Capítulo 2 ................................................... 64
Capítulo 3 ................................................. 112
Capítulo 4 ................................................. 160
Capítulo 5 ................................................. 212
Capítulo 6 ................................................. 270
Capítulo 7 ................................................. 310
Capítulo 8 ................................................. 345
Capítulo 9 ................................................. 400
Leituras Recomendadas ............................. 451
3

INTRODUÇÃO
Se você valoriza a liberdade política – ou a
rejeita em favor da, digamos, igualdade material –
você tem razões para isso. Suas razões podem não ser
examinadas ou pensadas, convincentes ou frágeis.
Quando pensamos rigorosamente sobre as razões
pelas quais acreditamos no que acreditamos sobre
moralidade e política, estamos praticando filosofia.
“Os homens práticos que se julgam isentos de
qualquer influência intelectual, geralmente são
escravos de algum economista defunto”, escreveu
John Maynard Keynes.
Da mesma forma, muitas pessoas, mesmo a
maioria das pessoas, são escravas de algum filósofo
defunto. Se você acredita que suas crenças políticas
são simplesmente baseadas em “senso comum” ou
“praticidade”, você provavelmente não está
explorando o suficiente. O que parece ser senso
comum hoje em dia muitas vezes acaba sendo uma
ideia outrora controversa do ponto de vista da filosofia
há décadas ou séculos atrás. Assim, é provável que
sua política seja originada ou tenha sido
exaustivamente examinada e articulada por algum
filósofo.
Neste livro, nove filósofos dão suas razões para
acreditar que a liberdade política é o sistema mais
moral e justo. Mas eles o fazem de dentro de nove
4

escolas diferentes de pensamento moral. Embora


uma única melhor filosofia moral e política possa
existir, os filósofos oferecem teorias há pelo menos
2500 anos e ainda precisam chegar a um consenso.
Isso não significa que o progresso não tenha sido
feito. Como disse o filósofo libertário Robert Nozick,
“há espaço para palavras sobre outros assuntos além
das últimas palavras”.
Nós montamos este livro por dois motivos.
Primeiro, porque a liberdade é importante. Estamos
convencidos de que a única ordem política justa é
aquela que consagra a liberdade ao bem maior.
Segundo, porque a filosofia é importante.
Libertarianismo sem filosofia é libertarianismo sem
fundamento. Sem princípio. Não é suficiente ter
motivos para as opiniões políticas de uma pessoa.
Precisamos entender essas razões, examiná-las,
avaliá-las criticamente. Precisamos avaliar não
apenas por que as pessoas podem rejeitar a liberdade
política, mas também por que aqueles que a adotam
o fazem – especialmente quando discordam sobre
razões e fundamentos. Os libertários frequentemente
discutem sobre filosofia. Reconhecer e entender a
fonte das diferenças dos libertários nos ajuda a
apreciar melhor o que eles têm em comum e revela
pontos fracos que, de outra forma, poderiam não ser
descobertos e não ser abordados. Ter um
entendimento mais robusto dos fundamentos
filosóficos da liberdade capacitará melhor aqueles de
5

nós que buscam promovê-la para engajar-se com


nossos críticos. E, para os críticos da liberdade,
entender melhor os fundamentos morais da liberdade
ajudará você a argumentar de maneira mais
proveitosa e a evitar espantalhos.
“Argumentos para a Liberdade” não é um livro
fácil, mas também não é um livro apenas para
acadêmicos e especialistas. Os capítulos não
presumem que o leitor tenha um sólido histórico de
filosofia, embora alguns sejam necessariamente mais
complexos que outros, dadas as teorias que estão
articulando. Os capítulos são escritos independentes
dos outros e podem ser lidos em qualquer ordem.
Cada capítulo começa explicando sua teoria
moral apresentada. Em seguida, traça as implicações
dessa teoria, argumentando que é mais
compreensível ter conclusões libertárias no campo da
política. Em alguns casos, essa conclusão não é
muito controversa entre os filósofos acadêmicos. Por
exemplo, quase todos concordam que a teoria moral
defendida por Ayn Rand implica o libertarianismo, ou
pelo menos algo muito próximo. Em outros casos, o
oposto é verdadeiro. A teoria moral de John Rawls,
considerada no capítulo 5, costuma justificar a
social-democracia, não o libertarianismo.
O livro começa com a teoria mais simples,
embora sua simplicidade seja enganosa. O
utilitarismo sustenta que a coisa certa a fazer é o que
6

produzir a maior felicidade, e no capítulo 1,


Christopher Freiman argumenta que, entre os
sistemas políticos concorrentes, o libertarianismo se
encaixa melhor no projeto.
No capítulo 2, Eric Mack assume os direitos
naturais. Se é verdade que os humanos, por nossa
própria natureza, têm certos direitos que restringem
a forma como podemos tratar uns aos outros, então
os governos, assim como as pessoas comuns, devem
respeitar esses direitos.
No capítulo 3, Jason Kuznicki analisa o filósofo
mais importante desde a era antiga, Immanuel Kant.
Kant ofereceu uma teoria moral baseada na razão e
no respeito pela separação e dignidade de cada um de
nós. Kuznicki mostra como esse sistema moral
aponta para um governo que faz o mesmo, ou seja,
um governo libertário.
Se disséssemos a todos que as regras devem
governar a sociedade, mas todos precisam concordar
em um único conjunto, como seriam essas regras? No
capítulo 4, sobre teoria dos contratos sociais, Jan
Narveson mostra como as regras mais prováveis de
atender a esse padrão seriam aquelas que apoiam a
liberdade política.
“A Teoria da Justiça” de John Rawls, que
desenvolveu uma forma de teoria do contrato social,
revitalizou a filosofia política no final do século XX.
7

Kevin Vallier mostra no capítulo 5 como o trabalho de


Rawls, tanto nesse livro quanto no seu posterior
“Liberalismo Político” – embora muitas vezes
considerado antitético ao libertarianismo – pode
realmente fornecer uma justificativa convincente para
um sistema robusto de liberdade política e
econômica.
A ética da virtude, explorada por Mark LeBar
no capítulo 6, é ao mesmo tempo a teoria mais antiga
e mais jovem do livro. Discutida pela primeira vez
pelos antigos gregos, praticamente desapareceu da
filosofia moral acadêmica até seu renascimento em
meados do século XX. A ética da virtude coloca o
caráter de uma pessoa no centro da teoria moral. Ele
pergunta quais características permitem que uma
pessoa faça boas escolhas e viva uma boa vida. No
campo da política, ele pergunta quais instituições são
mais propícias para essa tarefa.
Neera Badhwar discute a teoria do objetivismo
de Ayn Rand no capítulo 7. A filosofia objetivista de
Rand sustenta que a liberdade política é o único
sistema compatível com uma compreensão
apropriada do valor da vida humana e da importância
da razão humana.
Quando enfrentamos questões morais em
nossa vida cotidiana, a maioria de nós não aplica
teorias cuidadosamente construídas; em vez disso,
vamos com o que nossa intuição nos diz. No capítulo
8

8, Michael Huemer desenvolve essa abordagem em


uma teoria completa da moralidade, conhecida como
intuicionismo, e mostra como nossas intuições
morais expõem a imoralidade da maioria, senão de
todos, os governos.
O livro termina com Jason Brennan discutindo
o pluralismo moral, que pode ser visto como uma
teoria que diz que todas as outras teorias erram em
pensar que a moralidade tem um quadro subjacente.
As várias teorias chegam a verdades importantes,
mas a moralidade não se reduz a um bem unitário,
valor ou conjunto de regras. Brennan argumenta que
esta abordagem imprecisa, mas possivelmente mais
realista, da moralidade, dá muito apoio à liberdade.
É um problema que os autores discordam uns
dos outros sobre questões morais fundamentais?
Estamos presos a um raciocínio ad hoc em direção a
uma conclusão desejada – neste caso, o
libertarianismo?
Podemos falar de certo e errado em vários
níveis. Os autores deste volume concordam, em sua
maior parte, com o nível da ética prática – se você fizer
algumas perguntas concretas sobre situações ou
comportamentos específicos, eles responderão de
maneira semelhante. Eles provavelmente
concordariam, por exemplo, que o Estado não pode
proibir legitimamente drogas recreativas, ou censurar
um jornal que critica o presidente, ou recrutar
9

pessoas para as forças armadas. No entanto, eles têm


divergências. Se você perguntasse por que o Estado
não pode legitimamente proibir drogas recreativas,
você obteria respostas muito diferentes. Os quadros
explicativos que os filósofos usam para dar razões
para seus julgamentos morais são chamados de
“teorias morais”. Os títulos dos capítulos de
“Argumentos para a Liberdade” são todos nomes de
teorias morais ou de seus inventores. Agora, se você
começar a fazer perguntas sobre teorias morais –
perguntas como: “O que os termos nas teorias morais,
como bom ou justiça, realmente significam?” Ou
“Como chegamos a ter conhecimento sobre teorias
morais?” – você estará abordando perguntas de um
tipo diferente. O subcampo da filosofia dedicado a tais
questões é chamado de “metaética”. Os autores deste
volume têm opiniões divergentes sobre a metaética,
assim como as teorias morais. Em alguns capítulos,
divergências sobre metaética não importam muito.
Em outros – especialmente no capítulo sobre
intuicionismo – essas divergências são muito
importantes.
Cada capítulo apresenta um argumento
diferente para a liberdade, não porque os autores
estão fazendo as coisas para justificar uma conclusão
predeterminada, mas sim por causa da discordância
de boa-fé entre eles sobre questões de teoria ética e
metaética. Mesmo assim, não devemos considerar
tais discordâncias contra o libertarianismo. Existem
10

discordâncias semelhantes sobre como justificar os


concorrentes do libertarianismo também.
Você pode achar que algumas ou até mesmo
todas as teorias morais aqui apresentadas não são
convincentes. Isso significa que ler os capítulos sobre
essas teorias foi um desperdício do seu tempo? Nós
não pensamos assim. Mesmo que, por exemplo, você
não acredite que maximizar a felicidade humana seja
o caminho certo para pensar sobre a moralidade,
ainda seria útil aprender que o libertarianismo
maximiza a felicidade humana. Da mesma forma,
ainda seria útil aprender que o libertarianismo é
propício ao desenvolvimento da virtude pessoal,
mesmo se você acha que é o fundamento errado para
a ética.
De fato, você pode terminar “Argumentos para
a Liberdade” pensando que o libertarianismo satisfaz
múltiplas teorias da moralidade, embora você
acredite que apenas uma das teorias está correta. Se
esse é o caso, significa simplesmente que a liberdade
é sobredeterminada: o fato de que o libertarianismo
cumpre o padrão de moralidade de outra pessoa, um
padrão que você não necessariamente sustenta, não
significa que ele também não possa alcançar seu
padrão.
Se você acredita que nenhum dos argumentos
é persuasivo, tudo bem. Esperamos que você tenha
pelo menos uma noção melhor dos tipos de
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argumentos que se pode montar para a liberdade e,


assim, ser mais capaz de se envolver com tais
argumentos.
Independentemente de quantos capítulos – se
houver algum – do livro você considera convincentes,
nosso objetivo é inspirar você a continuar seus
estudos de ética e libertarianismo. No final do livro,
incluímos uma bibliografia com sugestões para
leitura adicional, incluindo textos introdutórios e
fontes primárias, muitas das quais estão disponíveis
gratuitamente online.
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CAPÍTULO 1 - UTILITARISMO E
LIBERTARIANISMO
Suponha que tenha acontecido um naufrágio e
você esteja na missão de resgate. Seu barco só tem
combustível suficiente para salvar as pessoas em um
dos dois botes salva-vidas. O primeiro bote tem
quatro sobreviventes; o segundo tem três. Qual você
salva?
Você deve, ao que parece, resgatar o primeiro
bote. Por quê? Porque resgatar o primeiro salva mais
pessoas. Isso tende a ser o melhor. Essa ideia – de
que você deve fazer o máximo possível – fortalece a
teoria moral conhecida como utilitarismo.

O QUE É O UTILITARISMO?
Em termos simples, o utilitarismo diz que a
coisa certa a fazer é aquilo que produz os melhores
resultados.1 Uma ação, regra ou instituição é

1 Para um trabalho clássico sobre utilitarismo, veja


John Stuart Mill, Utilitarianism, ed. George Sher
(Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2001 [1861]).
Para uma introdução acessível, ver Russ Shafer-
Landau, The Fundamentals of Ethics (Nova York: Oxford
University Press, 2014), capítulos 9 e 10.
13

moralmente correta para o caso de nenhuma


alternativa disponível fazer mais bem.
Mais especificamente, o utilitarismo nos diz
para maximizar a utilidade. Concentrarei-me na
versão que identifica utilidade com felicidade,
entendida como a satisfação de nossas preferências.2
Nesse tipo de visão, não devemos equiparar a
felicidade a algo específico, como prazer físico ou
riqueza. Pelo contrário, a felicidade é, por definição,
qualquer coisa que você deseja da vida. A esse
respeito, o utilitarismo adota nossas próprias
opiniões sobre que tipos de coisas são valiosas, em
vez de ditar com o que devemos nos preocupar. Dê às
pessoas o que elas querem.
O utilitarismo não nos diz simplesmente para
promover nossa própria felicidade. A moralidade exige
imparcialidade – que consideramos igualmente iguais
quantidades de felicidade. Então, somos obrigados a
maximizar a felicidade social em vez de nossa própria
felicidade individual. Se você ver uma criança com
uma perna quebrada ao lado da estrada, você deve
parar e levá-la para o hospital, mesmo que isso faça

2 Os utilitaristas discordam aqui – alguns acham


que há uma variedade de coisas intrinsecamente boas que
devemos promover (por exemplo, conhecimento, beleza,
etc.). Outros se concentram no prazer em particular. Para
evitar o alongamento no assunto, terei que deixar essas
alternativas inexploradas.
14

você atrasar para a festa. A felicidade que a perna


saudável da criança traz para ela é muito maior do
que a felicidade que a festa lhe traz, por isso seria
moralmente errado negligenciar a criança por causa
da festa.
Por fim, o utilitarismo diz para não apenas
promovermos a felicidade social, mas maximizá-la. Se
você se depara com duas opções e uma produz mais
bem do que a outra, você deve escolher aquela que
produz mais bem. Em um nível pessoal, se você
precisar de dinheiro e tiver disponível uma nota de $5
ou $10, será difícil entender por que você pegaria a
nota de $5. Em um nível social, se você tiver uma
escolha entre duplicar a felicidade das pessoas ou
triplicar a felicidade das pessoas, um utilitarista
insistirá que você não teria justificativa para escolher
menos felicidade.
Para tornar a ideia de maximizar a felicidade
social mais concreta, pense assim: quando você
enfrenta uma série de opções, observe quanta
felicidade e também quanto sofrimento cada uma
produzirá para as pessoas afetadas, depois escolha
aquela que tem a maior felicidade líquida. O
utilitarismo é o saldo. Para qualquer ação, some os
benefícios, subtraia os custos e, em seguida, analise
o saldo do cálculo: ela maximiza os benefícios depois
que você subtrai os custos? Em resumo, o
utilitarismo diz que devemos selecionar as ações,
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regras e instituições que produzem o máximo de


felicidade possível para os afetados.
Então, por que pensar que o utilitarismo está
correto? Por um lado, parece plausível no nível
abstrato. A ideia de que a felicidade é o ponto final da
moralidade é convincente, assim como o pensamento
de que não estamos justificados em fazer menos bem
do que podemos. Em um nível concreto, o utilitarismo
faz sentido para grande parte da moralidade do senso
comum. Ele fornece um relato razoável de quais ações
são certas e erradas e por que elas estão certas ou
erradas. Por exemplo, ações como mentir, roubar e
agredir geralmente são erradas porque geralmente
diminuem a felicidade social. Mentir é errado porque,
se não podemos confiar um no outro, então não
podemos estabelecer promessas ou contratos. Esse
resultado seria ruim para nossos relacionamentos e
para os negócios. Vítimas de assalto suportam grande
sofrimento. Em relação às ações virtuosas, a
generosidade é boa porque alivia a pobreza e o
sofrimento – torna as pessoas mais felizes. E assim
por diante. A moralidade é importante porque nos
ajuda a prosperar, não porque seja boa em si mesma.
Agora, de acordo com o utilitarismo, as regras
morais não são absolutas. Podemos justificadamente
quebrá-las em certas condições – isto é, quando
quebrá-las é o que há de melhor a se fazer. Mas essa
conclusão parece correta também. Para usar um
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exemplo famoso, se você está escondendo uma pessoa


inocente em sua casa para protegê-la de um
assassino, você estaria certo em mentir quando o
assassino perguntar se você está escondendo ela.3
Por fim, o utilitarismo nos dá uma perspectiva
a partir da qual podemos criticar e descartar as partes
indefensáveis da moralidade do senso comum. Isso
nos ajuda a fazer progresso moral. Regras morais que
não aliviam o sofrimento ou promovem a felicidade
não merecem nossa lealdade, não importa o quão
enraizadas estão na tradição ou na convenção.
Para ser claro de antemão, este ensaio é uma
prévia do utilitarismo, não aborda tudo sobre o
assunto. Então, aqui está uma confissão: as coisas
nem sempre são ensolaradas para o utilitarismo.
Considere que o utilitarismo não tem problema em
nos pedir para levar meios desagradáveis até o fim de
maximizar a felicidade social. Aqui está um caso
famoso:
TRANSPLANTE: Cinco pacientes estão
morrendo porque não têm doadores de órgãos

3 Este caso é mais notoriamente discutido por


Immanuel Kant (que argumenta, contra-intuitivamente,
que não é correto mentir nessas circunstâncias). Veja
Immanuel Kant, On a Supposed Right to Lie from Altruistic
Motives, em Immanuel Kant: Critique of Practical Reason and
Other Writings in Moral Philosophy, ed. Lewis White Beck
(Chicago: Universidade de Chicago Press, 1949 [1976]).
17

adequados. Um entregador entra no hospital. O chefe


da cirurgia sabe que ele é compatível com todos os
cinco pacientes que estão morrendo. Se o cirurgião o
sequestra e colhe seus órgãos, ele salvará cinco e
matará um. (Suponha que nunca se saberá do
assassinato).4
Matar o entregador maximiza a felicidade
social, mas, intuitivamente, é a coisa errada a se
fazer. O transplante é apenas uma ilustração de uma
preocupação mais ampla com o utilitarismo: qualquer
ação, não importa quão repreensível, pode ser
moralmente justificada, desde que os resultados
sejam bons o suficiente.
Sem dúvida, isso é um problema para os
utilitaristas. Mas é um problema menor para o tipo
de utilitarismo de que falarei aqui. Um ato utilitário –
alguém que pensa que a ação moralmente correta é
aquela que produz mais felicidade social do que
qualquer ação alternativa disponível – pode precisar
aceitar a necessidade de matar um para salvar cinco.
Mas vou me concentrar em questões institucionais.
Então, estarei discutindo o que tem sido chamado de
utilitarismo institucional – a visão de que nossas
instituições sociais, econômicas e políticas devem

4 Ver Judith Jarvis Thomson, The Trolley Problem,


Yale Law Journal 94 (1985): 1395–415.
18

maximizar a felicidade social.5 A questão relevante da


perspectiva das instituições é se deveríamos ter uma
lei que permitisse ao cirurgião matar um para salvar
cinco. E a resposta para essa pergunta parece ser
não. O motivo é simples. Uma sociedade que
legalizasse a extração de órgãos teria dificuldade em
administrar hospitais funcionais, já que pacientes e
pessoal de entrega nunca poderiam ter certeza se
sairiam vivos. Assim, todos aqueles que necessitam
de tratamento médico não o receberiam. Os benefícios
possibilitados pelo hospital seriam perdidos.6
Agora, podemos nos preocupar de que o
utilitarismo não tenha nenhuma objeção à violação
dos direitos, desde que isso seja feito secretamente.
Poderíamos imaginar um administrador hospitalar
que tenha a política de autorizar a expropriação de
órgãos apenas nos casos em que se tenha certeza de
que não será detectada. Desta forma, ele poderia
salvar vidas na rede e manter a reputação do hospital
como um lugar seguro. Generalizando: por que um

5 Ver Russell Hardin, Morality within the Limits of


Reason (Chicago: University of Chicago Press, 1988); e
Robert Goodin, Utilitarianism as a Public
Philosophy (Cambridge, MA: Cambridge University Press,
1995).
6 Veja David Schmidtz, Separateness, Suffering, and

Moral Theory, em Peter Singer under Fire: The Moral Iconoclast


Faces His Critics, ed. Jeffrey Schaler (Chicago: Open Court,
2009), pp. 429-54, 435.
19

utilitarista não endossaria um governo que viola


secretamente os direitos por um bem maior?
A resposta, em resumo, é que tais poderes
secretos criariam enormes oportunidades de abuso –
sem supervisão para manter os abusos sob controle.
Em uma discussão relacionada sobre se o utilitarismo
recomendaria que o governo cometesse atos de
injustiça enquanto estivessem escondidos da opinião
pública, o filósofo e psicólogo utilitarista Joshua
Greene escreveu: “Para que tais políticas cumpram
seus objetivos utilitários, os funcionários do governo
teriam que manter, indefinidamente, uma enorme
conspiração de proporções orwellianas, renunciando
às oportunidades diárias de abusar de seu poder. Não
se pode esperar que isso leve a um mundo mais
feliz.”7
Uma sociedade que maximiza a felicidade,
então, reconhecerá os direitos de uma pessoa, como
o direito ao seu corpo. Isso significa que os outros não
devem expropriar seus órgãos, mesmo que possam
colocar os órgãos em um uso melhor em um caso
particular. A justificativa para essa restrição é
simples, embora tenha um indício de paradoxo: as
instituições produzirão os melhores resultados se

7 Joshua Greene, Moral Tribes (Nova Iorque: Penguin,


2013), p. 269. Aqui, Greene está discutindo
especificamente a possibilidade de falsas punições de um
governo, mas acho que seu ponto se aplica em geral.
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impedirem as pessoas de buscar incansavelmente o


que consideram ser os melhores resultados.
Para ilustrar melhor, imagine uma lei que diz:
“Em geral, não roube a casa do seu vizinho, mas você
tem alguma margem de manobra para abrir uma
exceção quando acha que precisa mais do material do
vizinho do que ele. Use o seu melhor julgamento.”
Essa é uma lei ruim por motivos utilitários, apesar de
sua concordância com as boas consequências. Há
muito valor em viver em um mundo no qual podemos
contar com a segurança para nossa casa, fazer planos
de longo prazo sobre como usar nossos bens e assim
por diante. Como escreve David Schmidtz, “há uma
enorme utilidade em poder tratar certos parâmetros
como resolvidos, como não permitir sequer o
raciocínio utilitarista caso a caso”.8 Se pensarmos que
outras pessoas estão prontas para nos roubar, atacar
ou matar sempre que acharem que é suficientemente
benéfico, as consequências seriam desastrosas. As
pessoas teriam medo de ir à escola, ao trabalho ou ao
hospital. Esse arranjo deixaria todo mundo infeliz.
Um utilitarista dirá que as instituições devem
proteger nossas vidas e propriedades, porque os
direitos de propriedade criam um ambiente no qual
podemos florescer.

David Schmidtz, Elements of Justice (Cambridge, MA:


8

Cambridge University Press, 2006), p. 171.


21

Em uma explicação utilitarista, então, direitos


não são moralmente importantes em si mesmos –
apenas como um meio para produzir bons resultados.
Os direitos são justificados porque são úteis. No
entanto, muitos filósofos pensam que os direitos são
importantes em si mesmos. Essa é uma posição
plausível, mas acredito que a visão de que os direitos
são um meio tem mérito também. Dizer que direitos
não são valiosos em si mesmos não os desvaloriza.
Afinal, o oxigênio não é valioso por si só, mas ainda é
muito valioso.

LIBERTARIANISMO UTILITARISTA
Dadas essas pinceladas sobre utilitarismo.
Quais instituições e direitos específicos serão
endossados?
A seguir, argumento que tenderá a favorecer as
instituições libertárias. Por “libertarianismo”, quero
dizer, grosso modo, o conjunto de pontos de vista por
certos compromissos institucionais, como o
reconhecimento legal das liberdades civis, os
robustos direitos de propriedade privada, a liberdade
de troca e a liberdade de contrato; o lugar central dos
mercados na produção e distribuição de mercadorias;
e a minimização da interferência forçada nas escolhas
privadas pessoais. Mais especificamente,
libertários tendem a apoiar algo nos moldes de um
22

“estado mínimo” que fornece apenas um exército,


polícia e tribunais. Existem algumas disputas
intramuros entre os libertários sobre as
particularidades do papel do Estado (talvez devesse
fazer mais do que o estado mínimo; talvez devesse
fazer menos), mas vou me preocupar principalmente
com o estado mínimo em prol da discussão.
Aqui está o argumento de uma sentença para o
libertarianismo utilitarista: em comparação com
outras instituições, os mercados fazem o melhor
trabalho de promover a felicidade social sem
depender de pessoas que tentam promover a
felicidade social. Os mercados resolvem dois grandes
problemas do utilitarismo. Primeiro, a maioria das
pessoas não deseja maximizar a felicidade social em
oposição à sua própria felicidade e de um círculo
relativamente pequeno de familiares e amigos. Em
segundo lugar, mesmo que as pessoas desejem
maximizar a felicidade social, elas geralmente não
sabem como. Sabemos muito pouco, como
indivíduos, sobre a distribuição dos recursos do
mundo e os desejos particulares das pessoas por
esses recursos. Consequentemente, não temos as
informações necessárias para produzir uma
correspondência ideal entre recursos e pessoas. Mas
os mercados fornecem tanto os incentivos quanto as
informações de que as pessoas precisam para
promover a felicidade de estranhos. Os mercados
geralmente fazem com que nossas limitações morais
23

e cognitivas funcionem para nós e não contra nós.


Eles canalizam o interesse próprio para o interesse
público.

DIREITOS DE PROPRIEDADE PRIVADA


Vamos começar com a propriedade privada. Os
direitos de propriedade privada são uma das
características de um sistema de livre mercado.
Reivindicamos a propriedade privada de coisas como
casas, jardins, terras, carros, papel e computadores.
Outros são obrigados a não pular a cerca e invadir
nosso gramado, invadir nosso carro ou usar nosso
computador sem nossa permissão. Privadamente
possuir algo significa que você possui o direito de
excluir outros de usá-lo.
Para começar a entender por que o direito de
excluir é socialmente útil, vamos pensar na
alternativa – um mundo no qual ninguém tem o
direito de excluir qualquer outra pessoa do uso de sua
propriedade. À primeira vista, esse mundo pode
parecer ideal. Todos os recursos são mantidos em
comum e tudo é compartilhado. Assim, todos têm o
mesmo direito de beber do rio ou nadar no lago. Eles
podem sentar-se sob qualquer árvore que gostem
quando quiserem e desfrutar de sua sombra e frutas.
Eles podem caçar os veados e coelhos que correm pela
terra comunal até o desejo de seus corações.
24

Mas problemas surgem. Suponha que Stan


esteja pensando em começar um jardim para poder
cultivar alguns tomates e fazer ketchup para sua
família desfrutar. No entanto, como as coisas estão,
ele tem pouco incentivo para suportar o trabalho
envolvido no cultivo de tomates, porque ele não tem
garantia de que vai colher o que semeia. Como não há
propriedade privada, ele não tem o direito de excluir
ninguém de seu jardim. Se Stan não pode excluir os
outros, ele pode se perguntar por que deveria gastar
seu tempo e os recursos necessários para cultivar
tomates quando Morty pode simplesmente pegar o
quanto quiser sem oferecer nada em troca. Então
Stan decide que cultivar a terra não vale a pena.
Consequentemente, o desejo de Stan de alimentar
sua família com ketchup caseiro não é suficiente para
motivá-lo a plantar os tomates, porque é improvável
que os tomates acabem na mesa de sua família.
Generalizando: ninguém tem muito incentivo
para investir seu tempo e esforço na produção de
alimentos, abrigo, roupas e assim por diante, porque
não se tem garantia de que se desfrutará dos
benefícios desses esforços produtivos. Este é um
exemplo do que é conhecido como a tragédia dos
comuns: as pessoas tenderão a não usar os recursos
eficientemente quando estiverem em comum, levando
25

a resultados abaixo do ideal.9 Quando os recursos são


comuns, há pouco incentivo para usá-los
eficientemente porque a eficiência não é
recompensada.
Uma solução padrão para a tragédia dos bens
comuns é introduzir direitos de propriedade privada.
Ao conceder a Stan o direito de excluir outros de
arrancar seus tomates, nós lhe damos um incentivo
para produzir esses tomates em primeiro lugar. Os
direitos de propriedade encorajam as pessoas a serem
produtivas porque permitem que as pessoas
capturem os benefícios de seus esforços produtivos.
O filósofo liberal clássico John Locke escreveu:
Aquele que se apropria da terra para si mesmo
pelo seu trabalho, não diminui, mas aumenta o estoque
comum da humanidade: pois as provisões que servem
ao sustento da vida humana, produzidas por um acre
de terras fechadas e cultivadas, são (mantendo a
devida proporção) dez vezes mais do que as que são
produzidas por um acre de terra de igual riqueza
encontrada em desperdício comum. E, portanto, aquele
que possui a terra, e tem uma abundância maior das
conveniências da vida em dez acres, do que ele poderia
ter em cem acres deixados para a natureza, pode
realmente ser dito que foi dado noventa acres à

9 Veja Garrett Hardin, The Tragedy of the Commons,

Science 162 (1968): 1243–48. Veja também


Schmidtz, The Institution of Property.
26

humanidade: pois seu trabalho agora garante


provisões de dez acres, que eram apenas o produto de
uma centena deles em comum. Eu subestimei aqui a
terra produtiva, ao fabricar seu produto, como dez para
um, quando está muito mais próximo de cem para
um.10
Para ser claro: a propriedade privada é útil
mesmo para pessoas bem intencionadas. Stan não é
mau ou egoísta – ele só quer alimentar sua família.
Ainda assim, sem propriedade privada, ele tem pouco
incentivo para realizar esse objetivo, melhorando a
produtividade da terra e, assim, aumentando a
quantidade total de bens disponíveis – em oposição,
digamos, ao consumo de recursos existentes por meio
de caça e coleta. Ele não desperdiçará seu tempo
cultivando uma nova variedade de tomates; ele vai
procurar o que se tem disponível em vez disso. No
entanto, esta é uma receita para se estagnar no status
quo, em vez de trabalhar em prol de uma maior
prosperidade para todos.

TROCA VOLUNTÁRIA
Suponha que Stan esteja agora seguro em seus
bens graças aos seus direitos de propriedade recém

10 John Locke, Two Treatises of Government, ed. Peter

Laslett (Cambridge, MA: Cambridge University Press,


1988), p. 37.
27

descobertos, e por isso ele cultiva tomates e faz


ketchup caseiro. Morty gosta de ketchup, mas como
Stan tem o direito de restringir o acesso a sua
propriedade, Morty não pode simplesmente pegá-lo
da mesa de Stan. Se ele quer algum ketchup, ele tem
que fazer valer a pena para Stan. Morty planta
algumas sementes de mostarda, faz mostarda e troca
algumas com Stan por uma garrafa de ketchup. Stan
e Morty estão mais felizes do que antes. É vantajoso
para todos.
Em uma economia de mercado caracterizada
pela troca voluntária, se eu quiser algo que você
tenha, eu tenho que te dar algo que você quer, e vice-
versa. Assim, tenho um forte incentivo para atender
seus interesses. Como o filósofo e economista Adam
Smith diz:
O homem, entretanto, tem necessidade quase
constante da ajuda dos seus semelhantes, e é inútil
esperar esta ajuda simplesmente da benevolência
alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que
quer, se conseguir interessar a seu favor a autoestima
dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles
fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isto o
que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra.
Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que
você quer – esse é o significado de qualquer oferta
desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos
outros a grande maioria dos serviços de que
28

necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro,


do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso
jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu
próprio interesse.11
Quando eu entro em uma loja e compro
um Mountain Dew por 99 centavos, eu faço isso porque
eu quero o Mountain Dew mais do que os 99 centavos.
O lojista faz isso porque quer os 99 centavos mais do
que o Mountain Dew. A troca nos deixa mais felizes do
que antes – caso contrário, não concordaríamos com
o acordo.
Aqui está uma das informações vitais de Smith:
quando dou ao vendedor meus 99 centavos, faço isso
porque espero que o Mountain Dew me faça mais feliz,
não porque os 99 centavos farão o lojista mais feliz.
Ainda assim, minha ação tem a boa consequência de
deixar o lojista mais feliz. Portanto, uma
característica crucial dos mercados é que eles levam
as pessoas a promover a felicidade dos outros, mesmo
quando pretendem apenas promover sua própria
felicidade. Como diz Smith, em um mercado, “ao
buscar seu próprio interesse, [uma pessoa]
frequentemente promove o da sociedade mais

11 Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of


the Wealth of Nations (New York: Bantam, 2003 [1776]), 1.2.2.
29

efetivamente do que quando ele realmente pretende


promovê-la”.12

PREÇOS
Suponha que eu tenha feito um trabalho tão
poderoso de elucidar o utilitarismo que você já está
convencido de que é a teoria moral correta. Motivação
não é um problema; você não precisa de nenhum
incentivo financeiro e, portanto, talvez não esteja
claro o que o mercado pode fazer por você. Você está
pronto para sair e maximizar a felicidade do mundo.
Ok, como? Mais especificamente, qual é a
distribuição maximizadora de felicidade dos recursos
do mundo?
A resposta curta é que eu não sei. Ninguém
sabe. Dito isso, podemos estar confiantes de que os
mercados tendem a colocar os bens nas mãos
daqueles que obtêm mais satisfação ou felicidade
deles. Imagine que um cientista no Arizona esteja
freneticamente comprando grãos de café. O extrato de
grãos de café é um ingrediente-chave na nova droga
para artrite que está desenvolvendo, uma droga que
ele espera vender para milhares de pessoas. Em
suma, ele realmente quer grãos de café. Na compra

12 Ibid., 4.2.9.
30

de muito café, o cientista promove um aumento em


seu preço.
Em contraste com o cientista, um
ultramaratonista de Dakota do Norte tem uma ligeira
preferência por café em vez de chá como sua bebida
matinal. Quando ele vê que sua xícara de café da
manhã ficou mais cara, ele muda para o chá. Ele não
está cortando café para ajudar a sociedade; ele está
fazendo isso para poupar. No entanto, no corte, ele
ajuda a sociedade. Sua mudança do café para o chá
significa que o café está indo para um uso mais
valorizado – é melhor para a sociedade que os grãos
de café sirvam para a droga contra a artrite do que na
caneca de viagem do ultramaratonista. Criticamente,
o ultramaratonista não tem ideia do que o
pesquisador está fazendo ou do que ele precisa (ou
até mesmo que ele exista). Ainda assim, ele libera o
café para um uso mais valorizado simplesmente
respondendo ao aumento de seu preço. O economista
F. A. Hayek argumenta que os preços de mercado nos
fornecem informações sobre a escassez ou a
abundância de bens, informações que, por sua vez,
nos motivam a usar esses bens de maneira eficiente.13
Agora, um minuto atrás, você presumiu que
não precisava de nenhum incentivo financeiro para
promover a felicidade de estranhos. Essa suposição é

13 F. A. Hayek, The Use of Knowledge in Society,


American Economic Review 35 (1945): 519–30.
31

provavelmente otimista. Não se preocupe, no entanto:


como o exemplo do café sugere, os preços fornecem
não apenas informações úteis socialmente, mas
também incentivos socialmente úteis. O
ultramaratonista é levado a conservar o café não por
preocupação com o interesse público, mas por
interesse próprio – ele só quer gastar menos com sua
dose diária de cafeína.
O mesmo ponto se aplica ao trabalho. Se
muitas pessoas quiserem assistir a desenhos
animados e a demanda por tais shows aumentar,
então os salários pagos para aqueles que fazem esses
shows aumentarão. Aqui, novamente, o alto salário
fornece informações úteis e incentivos úteis. Os
críticos do capitalismo podem lamentar que o Family
Guy arrecade centenas de milhões, enquanto Fellini,
bem, não. Mas um utilitarista não poderia criticar
isso. Family Guy faz um trabalho melhor do que Fellini
em entregar às pessoas o que elas querem. A riqueza
de Seth MacFarlane, o criador de Family Guy,
representa uma característica do mercado, não um
defeito. Os altos salários dos empregos em demanda
criam um poderoso incentivo para o trabalho que
deixa as pessoas felizes. (E em um mercado livre,
ninguém vai impedi-lo de ir ao cinema independente
para assistir Fellini se você realmente quiser.)

INTENÇÕES OU RESULTADOS?
32

A capacidade do mercado de mobilizar o


interesse próprio pelo bem comum é realmente uma
virtude? De acordo com uma objeção, o mercado
motiva você a fazer a coisa certa – ajudar os outros –
mas pelo motivo errado. Mesmo se você der a seus
clientes o que eles querem, você pode estar fazendo
isso apenas porque você quer ganhar dinheiro para si
mesmo. Às vezes, os críticos do capitalismo
argumentam que devemos nos opor aos mercados por
motivos morais, porque eles incentivam nossas
compulsões básicas, como o interesse próprio.14
Vale a pena esclarecer que as evidências
sugerem que os mercados não se baseiam ou
cultivam o pior da psicologia humana.15 Mas vamos
conceder a objeção por argumentação. Ainda assim
não vai abalar o utilitarista.
Para um utilitarista, os resultados são o que
importam. O famoso utilitarista John Stuart Mill
escreve: “Aquele que salva um companheiro de
afogamento faz o que é moralmente correto, seja seu

14 G. A. Cohen, um proeminente adversário


filosófico do libertarianismo, reconhece a produtividade do
capitalismo, mas ainda acha que é digno de crítica moral
sobre esses tipos de fundamentos. Veja G. A. Cohen, Why
Not Socialism? (Princeton, NJ: Princeton University Press,
2009).
15 Para uma revisão de algumas das ciências sociais

relevantes, veja Herbert Gintis, Giving Economists Their


Due, Boston Review, May–June 2012.
33

motivo o dever, seja pela esperança de ser pago por


sua ajuda.”16 Não há vergonha em pagar salva-vidas
para salvar vidas . Pense nisso a partir da perspectiva
do homem que está se afogando salvo pelo salva-
vidas: ele não se importa com o que motiva o salva-
vidas, desde que ele seja salvo. Da mesma forma, o
lojista não se importa porque eu estou dando a ele 99
centavos; ele só se preocupa com os 99 centavos.
Um utilitarista nos diria para não torcermos a
nobreza dos motivos da salvação – o importante é
salvar a vida. Imagine um cirurgião de bom coração,
com astigmatismo não corrigido, que mata
regularmente seus pacientes (pro bono). Nós
queremos que ele pare. Por outro lado, imagine um
cirurgião virtuoso narcisista que opera apenas para
ganhar fama e fortuna. Nós queremos que ele
continue. A questão que mais importa é esta: Qual
cirurgião queremos? Aquele que produz os melhores
resultados. Qual arranjo institucional queremos?
Aquele que produz os melhores resultados.
Assim, um utilitarista se oporia à ideia de que
argumentos de eficiência para mercados livres não
são suficientes – que também precisamos de
argumentos morais que são de alguma forma
distintos dos econômicos que eu tenho dado até

16 Mill, Utilitarianism, p. 18.


34

agora.17 De acordo com o utilitarismo, os argumentos


econômicos são os argumentos morais. Mercados
livres são morais porque são benéficos. Pense nisso
assim: ninguém diria que é verdade, mas moralmente
insuficiente, argumentar que os hospitais nos fazem
melhor. O fato de os hospitais nos trazerem mais
saúde, prazer e vida parece ser toda a justificativa de
que precisam. Da mesma forma, o fato de uma
instituição política ou econômica nos trazer mais
saúde, prazer e vida parece ser uma boa justificativa
moral, assim como o fato de uma instituição causar
pobreza e sofrimento é uma boa razão para pensar
que é ruim.

E QUANTO AO FRACASSO DO MERCADO?


O caso utilitário dos mercados é simples: eles
são eficientes. Mas abra qualquer livro didático de
economia introdutório e você lerá muitas maneiras

17 Veja, por exemplo, Walter Williams, The Argument


for Free Markets: Morality vs. Efficiency, Cato Journal 15
(1995/6): 179–89. Williams escreve: “A eficiência
econômica e a maior riqueza devem ser promovidas
simplesmente como um benefício secundário dos
mercados livres. A defesa intelectual do capitalismo de
livre mercado deve focar sua superioridade moral” (p. 182).
Williams argumenta que a superioridade moral dos
mercados repousa sobre sua natureza voluntária e
respeito pelos direitos individuais.
35

pelas quais os mercados são ineficientes, isto é, casos


de “falha de mercado”. Portanto, a falha de mercado
não deve conter o entusiasmo do utilitarista pelo
mercado?
Para começar a responder a essa pergunta,
vamos considerar um caso específico de falha de
mercado: bens públicos. Bens públicos não são
excluíveis, o que significa que você não pode ser
excluído de apreciá-los mesmo se você não contribuiu
para eles. Bens públicos também não são rivais, o que
significa que meu prazer pelo bem não subtrai o seu.
Aqui está um exemplo. Uma tempestade
ameaça inundar o rio, um evento que destruiria sua
cidade. Se as pessoas da cidade se juntarem para
construir um dique com sacos de areia, a cidade será
poupada. No entanto, sua contribuição individual não
fará a mínima diferença. O dique é um bem público.
Se impedir o dilúvio, minha casa será salva, quer eu
tenha ajudado ou não a empilhar os sacos de areia. E
o dique protege toda a cidade, portanto, proteger
minha casa não diminui a proteção oferecida a outras
casas.
Normalmente, presume-se que as pessoas não
contribuem voluntariamente para bens públicos,
como o dique. Sua contribuição individual não fará
diferença na existência do dique e, se o dique de
alguma forma for fornecido, você desfrutará da
proteção dele mesmo que tenha ajudado ou não. Você
36

recebe o benefício sem pagar os custos. Assim, a


escolha autointeressada é assistir TV enquanto seus
vizinhos ficam doloridos por carregar sacos de areia
ao redor. O problema é que seus vizinhos têm
exatamente o mesmo incentivo para ficar em casa –
se um número suficiente de outros contribuir para o
dique, eles desfrutarão dos benefícios,
independentemente de terem contribuído ou não.
Consequentemente, ninguém tem um incentivo para
contribuir para o dique. Como resultado desse
problema dos aproveitadores, a cidade vai inundar,
mesmo que a inundação seja ruim para todos. O
interesse público e o interesse próprio dos indivíduos
se desfazem.
Aqui está a moral da história do fracasso do
mercado: os mercados não são tão eficientes quanto
poderiam ser. Às vezes, eles deixam ganhos de bem-
estar de lado. Mas isso não significa uma maldição
para o caso utilitário dos mercados.
Para entender por que, assuma que um
utilitarista não considera o arranjo institucional
correto como o melhor arranjo imaginável, mas sim o
melhor arranjo possível. Pense no caso do naufrágio.
Você poderia resgatar o bote com quatro passageiros
ou aquele com três passageiros. Obviamente, você
produziria mais felicidade ao salvar todos os sete
passageiros, mas essa opção não estava disponível.
Você só tinha combustível suficiente para salvar um
37

bote. Em um mundo perfeito, poderíamos salvar


todos os sete (ou melhor, ninguém precisaria
economizar em primeiro lugar). Mas nós não vivemos
em um mundo perfeito. Podemos escolher apenas a
alternativa menos imperfeita de um menu de
alternativas imperfeitas. Então, simplesmente
mostrar que os mercados são imperfeitos não mostra
que eles são a estrutura institucional errada. Para
chegar a essa conclusão, precisamos de uma
alternativa disponível que faça melhor – uma
alternativa que perceba os ganhos de bem-estar que
os mercados não oferecem.
Por analogia, deixe-me falar sobre minha teoria
do “fracasso de LeBron James”. Essa teoria alega que
o Cleveland Cavaliers deveria cortar LeBron James
porque ele perde cerca de 50% de seus arremessos.
Como James falha aproximadamente 50% do tempo,
ele deveria ser substituído.
A teoria do “fracasso de LeBron James” não é
convincente, e é fácil perceber porquê. A perfeição não
é o padrão que devemos usar para julgar jogadores de
basquete. Em vez disso, o padrão é o melhor jogador
disponível para substituí-los. Se o substituto do
LeBron James é melhor do que o James, então, vamos
substituir o James. Mas o substituto de James não é
melhor, ele erra ainda mais seus arremessos, então a
titularidade de James está segura.
38

A mesma análise aplica-se às instituições. Os


mercados às vezes deixam ganhos de bem-estar de
lado, assim como LeBron James às vezes deixa pontos
de lado. Mas o padrão que devemos usar para julgar
o mercado não é a perfeição; em vez disso, é a melhor
alternativa institucional disponível. Os mercados são
a escolha errada apenas se houver uma alternativa
viável que fará um trabalho melhor. Como o
utilitarista Henry Sidgwick escreve: “Não se segue que
sempre que o laissez faire seja insuficiente, a
interferência do governo é conveniente; já que as
inevitáveis desvantagens do último podem, em
qualquer caso particular, ser piores que as
deficiências da iniciativa privada”.18
É claro que os governos podem às vezes superar
os mercados. Na verdade, muitas vezes é assim que o
sistema é elaborado no quadro negro. Pegue o caso do
dique. Para resolver o problema dos bens públicos, a
cidade poderia autorizar um imposto sobre vendas de
1% para financiar um projeto de obras públicas de
construção de diques. Dessa forma, os cidadãos são
forçados a contribuir para o dique. No entanto, eles
não têm motivos para reclamar, porque o imposto
funciona a seu favor: é melhor pagar 1% a mais por

18 Henry Sidgwick, Principles of Political


Economy (London: MacMillan, 1887), citação em Charles
Wolf, Markets or Governments: Choosing between Imperfect
Alternatives (Cambridge, MA: MIT Press, 1993), p. 17.
39

chiclete do que perder sua casa para uma inundação.


Portanto, parece que temos uma formidável razão
utilitarista para nos afastarmos de um mercado livre.
No entanto, não é suficiente estipular que o
governo fornecerá de maneira eficiente bens públicos
– precisamos saber como. Afinal de contas, um
libertário poderia apenas estipular que o mercado
fornecerá de maneira eficiente bens públicos, mas
isso claramente não é verdade. Como vimos, as
pessoas não contribuem para o dique porque não têm
nada a perder por não contribuir. Mas aqui está o
problema: exatamente a mesma análise aplica-se à
intervenção governamental destinada a corrigir este
problema e fornecer eficientemente o dique. As
pessoas não contribuem para um bom governo
porque não têm nada a perder por não contribuir.
Deixe-me aprofundar esse argumento.
Suponha que, nas próximas eleições, os candidatos a
prefeito apresentem suas propostas políticas para a
prevenção de enchentes. Para determinar qual
candidato realmente tem uma boa proposta, você
precisará inspecionar cada uma delas pelo seu custo
econômico, viabilidade e impacto ambiental. Para
formar uma opinião instruída sobre esses assuntos,
você precisará revisar sua economia, engenharia e
ecologia. Você também vai querer pesquisar o quanto
as promessas dos candidatos se alinham ao histórico
legislativo. Por exemplo, leia as letras miúdas da
40

legislação do incumbente para ver com que


frequência a receita fiscal realmente vai em direção ao
objetivo pretendido em vez de emendas
parlamentares criadas para obter o apoio de grupos
de interesse especial; você vai querer saber se as
empresas contratadas para os projetos de obras
públicas são as melhores para o trabalho, e não as
que mais doaram para a campanha de reeleição do
candidato; e assim por diante.
Isso parece ser um monte de problemas. Mas
os cidadãos precisam fazê-lo se quiserem
responsabilizar o governo e garantir que ele forneça o
bem público de maneira eficiente. Então você vai
arregaçar as mangas e começar a trabalhar?
Provavelmente não. Na verdade, você não o fará
exatamente pela mesma razão pela qual não vai
trabalhar no dique: seu incentivo é ser um
aproveitador. Com toda a probabilidade, o seu voto
individual não vai inclinar a balança em favor do
melhor candidato, e se o melhor candidato de alguma
forma for eleito, você desfruta dos benefícios se você
votou ou não nele.19 Você obtém o benefício sem
pagar os custos. Assim, a escolha autointeressada é
assistir ao Family Guy enquanto seus vizinhos passam

19 Para uma visão geral da democracia e da


“ignorância racional”, veja Ilya Somin, Democracy and
Political Ignorance (Stanford, CA: Stanford University Press,
2013).
41

os fins de semana examinando as letras miúdas da


regulação para a construção de diques. O problema é
que seus vizinhos têm exatamente o mesmo incentivo
– se um número suficiente de outros votar no melhor
candidato, eles desfrutarão dos benefícios, mesmo
que não votem bem. Então ninguém tem incentivo
para votar bem. Como resultado do problema dos
aproveitadores, a cidade não conseguirá um bom
governo, embora esse resultado seja ruim para todos.
O problema dos aproveitadores que gera a chamada
para a intervenção do governo, em primeiro lugar,
prejudica a própria intervenção.
Pense desta maneira. Suponha que Stan esteja
se sentindo preguiçoso para caminhar até o café.
Morty sugere que Stan possa se preparar para a
caminhada bebendo um expresso – um expresso que
é vendido na cafeteria. Podemos concluir que a
solução sugerida por Morty não é muito útil. É
desvendada pelo próprio problema que pretende
resolver. Stan não é energético o suficiente
para caminhar até o café, então Morty não deveria
sugerir estratégias de cafeína que dependem de Stan
ser enérgico o suficiente para caminhar até o café. A
mesma análise se aplica ao argumento dos bens
públicos para a intervenção do Estado. Se a causa da
falha do mercado é que as pessoas são consideradas
aproveitadoras, não devemos sugerir soluções
governamentais que dependam de pessoas que não
são aproveitadoras.
42

Historicamente, uma característica importante


da análise institucional libertária tem sido a
insistência de que usamos as mesmas suposições
sobre o comportamento humano quando pensamos
em economia e política, em vez de modelar as pessoas
como gananciosas no mercado e santas na cabine de
votação.20 O economista George Stigler escreve:
Para alguns, as falhas de mercado servem como
uma razão para a intervenção pública. No entanto, o
fato de que o comportamento de interesse próprio do
mercado nem sempre produz consequências sociais
felizes não é razão suficiente para chegar a essa
conclusão. É necessário avaliar o desempenho público
em condições comparáveis e, portanto, analisar o
comportamento político autointeressado nas
estruturas institucionais do setor público. Nossa

20 De fato, essa insistência está no cerne da


economia da escolha pública, que é, grosso modo, a
análise econômica da política. Para mais sobre a ideia
geral de que nossa análise deve aplicar seus pressupostos
comportamentais em contextos institucionais, veja James
Buchanan e Gordon Tullock, The Calculus of
Consent (Indianapolis, IN: Liberty Fund, 1999 [1962]);
Geoffrey Brennan e James Buchanan, The Reason of
Rules (Indianapolis, IN: Liberty Fund, 2000 [1985]); Harold
Demsetz, Information and Efficiency: Another Viewpoint, Journal
of Law and Economics 12 (1969): 1–21; Milton
Friedman, Capitalism and Freedom (Chicago: University of
Chicago Press, 2002 [1962]), conclusão; e Jason
Brennan, Why Not Capitalism? (New York: Routledge, 2014).
43

abordagem enfatiza essa estrutura institucional – suas


incongruências e tudo – e, portanto, fornece alertas
preventivos específicos sobre a confiança otimista em
instituições políticas para melhorar o desempenho do
mercado.21
Não é de surpreender que os governos fictícios
e idealizados pareçam melhores que mercados
realistas e imperfeitos. Mas isso não é uma
comparação entre iguais.
O ponto mais amplo aqui é que devemos
comparar como gostar. Os mercados falham e os
governos falham. Nosso objetivo deve ser o de
favorecer instituições que falham com menos
frequência e menos severamente quando seus
participantes estão operando dentro das mesmas
limitações de incentivos e informações. O economista
Tyler Cowen sugere que uma comparação semelhante
geralmente favorece soluções privadas para
problemas de bens públicos:
As imperfeições das soluções de mercado para
problemas de bens públicos devem ser comparadas
contra as imperfeições das soluções do governo. Os
governos confiam na burocracia, respondem a eleitores

21 George Stigler, The Economists’ Traditional Theory of


the Economic Functions of the State, em The Citizen and the State:
Essays on Regulation (Chicago: University of Chicago Press,
1975), p. 103.
44

mal informados e têm incentivos fracos para atender


aos consumidores. Portanto, eles produzem de forma
ineficiente. Além disso, os políticos podem fornecer
“bens” públicos de maneira a atender seus próprios
interesses, e não os interesses do público; exemplos de
desperdício de gastos do governo e emendas
parlamentares são a regra. Muitas vezes, o governo
cria um problema de “aproveitadores”, obrigando as
pessoas a apoiar projetos que não desejam. Meios
privados de evitar ou transformar problemas de bens
públicos, quando disponíveis, são geralmente mais
eficientes do que soluções governamentais.22
Como Cowen indica, existem meios privados de
resolver problemas de bens públicos. O dique, por
exemplo, poderia ser construído
via crowdfunding (financiamento coletivo), por meio do
qual indivíduos prometem x dólares em direção a
algum projeto de larga escala, com a condição de que
outros também se comprometam. Se não houver
pessoas suficientes que contribuam para que o
projeto funcione, não será cobrado nada. Essa
estrutura garante que você não fará uma contribuição
em vão. Isso não elimina o problema do aproveitador
(talvez nada possa), mas diminui o problema.

22 Tyler Cowen, Public Goods. The Concise


Encyclopedia of Economics, Library of Economics and
Liberty, 2008.
45

É verdade que as soluções privadas


provavelmente funcionem melhor para bens públicos
como o dique do que para bens públicos de grande
escala, como a defesa nacional. Às vezes, a melhor
solução pode ser uma mistura de mecanismos de
mercado e regulamentação governamental, como no
caso do ar limpo. De acordo com o argumento da falha
de mercado, você não contribuirá voluntariamente
para a compra de um carro híbrido (por exemplo),
individualmente não fará diferença para a limpeza do
ar. Se um número suficiente de pessoas comprarem
híbridos, você respirará ar puro, quer tenha
comprado um ou não.
Antes de examinarmos como podemos fornecer
ar limpo, vale a pena notar que nossa incapacidade
de fornecer o bem público neste caso é plausivelmente
devido à ausência de qualquer tipo de direito de
propriedade privada. O que temos aqui é uma
tragédia dos comuns: o ar é um recurso que é
mantido em comum e, portanto, nenhum indivíduo
tem um incentivo para administrá-lo com sabedoria.
Não tenho como capturar os benefícios da minha
contribuição individual para um ar mais limpo.
Minha decisão de comprar um híbrido (ou não) não
faz diferença alguma para a qualidade geral do ar que
respiro. Por essa razão, os libertários tendem a
recomendar a expansão dos direitos de propriedade
para o domínio dos recursos naturais, na medida do
possível, para fornecer às pessoas um incentivo para
46

tratá-las bem. (É muito menos provável que você


jogue distraidamente sua embalagem de chiclete
amassada no seu jardim da frente – e permita que
outros o façam – do que em uma calçada pública).
Claro, estabelecer direitos de propriedade
privada no ar não é viável. Aqui, a melhor solução
disponível pode ser um sistema de comércio de
emissões, que tira proveito de algumas das virtudes
da propriedade privada e dos mecanismos de
mercado para produzir ar limpo. Sob este sistema, o
governo limita a quantidade total de poluentes, e as
empresas recebem licenças de poluição que podem
ser compradas e vendidas em um mercado. As
empresas têm um incentivo para reduzir sua poluição
porque podem vender licenças não utilizadas e,
inversamente, devem pagar mais se quiserem poluir
além do limite inicial. Além disso, o sistema tenderá
a canalizar permissões de poluição para aquelas que
mais as valorizam e, portanto, estão dispostas a pagar
mais por elas, garantindo, assim, que quando os
poluentes são emitidos, eles vão em direção a um uso
altamente valorizado. Porém, como acontece com
qualquer tipo de arranjo institucional, devemos fazer
uma avaliação sóbria de sua provável eficácia no
mundo real. Nenhuma forma de regulação é imune a
ineficiências ou pressões de interesses especiais. Só
podemos escolher a alternativa menos falha.
47

Resumindo: no nível da filosofia moral, não


podemos dizer como os governos deveriam intervir na
economia em casos específicos (se tanto), assim como
não podemos dizer como um hospital em particular
deveria alocar sua oferta particular de remédios para
tratar pacientes em particular. No entanto, podemos
determinar o padrão moral para avaliar essas
decisões – ou seja, devemos favorecer o arranjo que
faz melhor do que todos os seus concorrentes viáveis.

REDISTRIBUIÇÃO UTILITÁRIA
Eu aposto que a maioria dos filósofos
utilitaristas não são libertários. Uma razão
importante diz respeito às desigualdades econômicas
que tendem a resultar dos processos de mercado. Um
livre mercado de trabalho fornece tanto a informação
quanto o incentivo que precisamos para dar às
pessoas o que elas querem. Se você é realmente bom
em dar às pessoas o que elas querem, você ficará rico.
Mas há muitas pessoas que têm dinheiro mais do que
suficiente para satisfazer todas as suas necessidades
e desejos, ao lado de outras que não têm o suficiente
para atender às necessidades básicas. Poderíamos,
ao que parece, maximizar a felicidade redistribuindo
recursos de ricos para pobres.
Este argumento baseia-se no fenômeno da
utilidade marginal decrescente da riqueza (UMD). A
48

ideia é algo assim: cada dólar adicional que você


recebe traz menos felicidade do que o dólar antes dele.
Nós tendemos a alocar nossos recursos para seus
usos mais valiosos, e assim, satisfazemos nossas
necessidades mais urgentes primeiro. Alguém sem
dinheiro vai se beneficiar enormemente de $100 – ele
pode gastar esse dinheiro em bens como comida e
água. Por outro lado, um bilionário mal notará um
extra de $100 porque todas as suas necessidades
urgentes foram atendidas há muito tempo. Talvez ele
gaste em algo trivial, como fogos de artifício extras
para sua festa de aniversário extravagante. Embora
$100 em fogos de artifício possam ser bons, eles
certamente não geram tanta felicidade para o
bilionário quanto os $100 em alimentos criados para
alguém que está morrendo de fome. Portanto,
transferir a riqueza de alguém com mais para alguém
com menos aumentará a felicidade geral.
A UMD forma a base de várias críticas dos
utilitaristas ao libertarianismo. Em uma resenha da
obra do filósofo libertário Robert Nozick, “Anarquia,
Estado e Utopia”, Peter Singer escreve:
O utilitarismo não tem nenhum problema em
justificar uma quantidade substancial de
redistribuição compulsória dos ricos para os pobres.
Todos nós reconhecemos que $1.000 significa muito
menos para pessoas que ganham $100.000 do que
para pessoas que tentam sustentar uma família com
49

$6.000. Portanto, em circunstâncias normais,


aumentamos a felicidade total quando tiramos
daqueles com muito e damos para aqueles com pouco.
Logo, é isso que devemos fazer. Para o utilitarista, é
tão simples quanto isso. O resultado não será a
igualdade absoluta de riqueza. Pode haver alguns que
precisam relativamente pouco para serem felizes, e
outros cujos gostos caros exigem mais para alcançar o
mesmo nível de felicidade. Se os recursos forem
adequados, o utilitarista dará a cada um o suficiente
para fazê-lo feliz, e isso significará dar mais do que
outros.23
Mais recentemente, Joshua Greene manifesta
sua simpatia por uma série de políticas libertárias,
mas não chega a endossar totalmente a visão.24 Uma
de suas razões é o argumento da UMD: “Pegar um
pouco de dinheiro dos que sofrem muito pouco,
fornecendo assim recursos e oportunidades para os
que não têm, quando feito com sabedoria, vai-se

23 Peter Singer, The Right to Be Rich or Poor, New York

Review of Books, March 6, 1975.

24 Greene escreve, “Acredito que os libertários


provavelmente estejam certos – mais claros do que muitos
liberais – em alguns casos”. Greene, Moral Tribes, p. 367.
Ele discute a escolha da escola, o mercado de órgãos, a
prostituição e as oficinas de trabalho como possíveis casos
(com algumas reservas).
50

longe.”25 Antes de oferecer uma resposta filosófica ao


argumento da UMD contra o livre mercado,
permitam-me primeiro fazer algumas observações
preliminares.

REDISTRIBUIÇÃO LIBERTÁRIA
Para começar, muitos libertários e liberais
clássicos endossam alguma riqueza e redistribuição
de renda. F. A. Hayek, por exemplo, apoiou “a
garantia de uma certa renda mínima para todos”.26
Milton Friedman propôs um imposto de renda
negativo, em que as pessoas que ganham menos do
que uma quantia específica recebem receita do
governo em vez de pagá-la em impostos.
É crucial observar que o apoio a algo como uma
renda mínima garantida não equivale a apoiar o que
consideramos um welfare state que coloca o governo no
negócio de fornecer diretamente bens como educação
ou assistência médica. Em vez disso, a renda extra é
distribuída diretamente aos pobres, que podem usá-
la como bem entenderem. Uma grande vantagem
dessa política é que ela não enfrenta os mesmos
problemas de informação que a provisão de bens e
serviços “em espécie” do governo. Dada a diversidade

25 Ibid., p. 368.
26 F. A. Hayek, Law, Legislation, and Liberty, vol.
3 (Chicago: University of Chicago Press, 1979), p. 55.
51

das preferências dos cidadãos, é difícil para os


governos determinarem a alocação que maximiza a
felicidade dos bens que eles oferecem. E se eu preferir
metade dos cuidados de saúde, mas o dobro de
educação que você? É mais eficiente simplesmente
deixar as pessoas comprarem a cesta de mercadorias
que melhor satisfaz suas preferências.

POBREZA E PRIORIDADES
Em seguida, a ênfase na redistribuição interna
é gravemente deslocada de uma perspectiva utilitária.
O utilitarismo aconselha a nos importar igualmente
com quantidades iguais de felicidade,
independentemente de quem estamos fazendo feliz.
Assim, o utilitarismo não fornece nenhuma base para
priorizar a felicidade dos nossos concidadãos acima
da felicidade daqueles que estão do outro lado de
nossa fronteira nacional. E como os pobres do mundo
são muito mais pobres do que os pobres domésticos
nos Estados Unidos, o argumento da UDM deveria
nos levar a tornar o alívio da pobreza global uma
prioridade mais urgente do que a mitigação da
pobreza doméstica.27

27 Para uma discussão de por que as “dificuldades

[dos pobres nos Estados Unidos] são de uma ordem


diferente das pessoas mais pobres do mundo” veja Peter
52

Uma ferramenta incrivelmente poderosa e


subestimada para combater a pobreza global é um
livre mercado de trabalho, isto é, a abertura da
fronteira aos imigrantes. Estudos sugerem que
poderíamos dobrar o produto interno bruto mundial
eliminando todas as restrições à imigração.28 As
fronteiras abertas seriam particularmente benéficas
para os mais pobres do mundo. O economista Michael
Clemens escreve: “Os migrantes dos países em
desenvolvimento para os Estados Unidos
normalmente elevam seus padrões reais de vida em
centenas de por cento e em mais de mil por cento para
as pessoas mais pobres dos países mais pobres.”29 O
livre mercado de trabalho permitiria que a mão de
obra fluísse para onde ela é economicamente mais
valiosa, assim como um livre mercado de bens

Singer, The Life You Can Save (New York: Random House,
2010), p. 8.
28 Lant Pritchett, The Cliff at the Border em Equity and

Growth in a Globalizing World, ed. Ravi Kanbur and Michael


Spence (Washington: World Bank, 2010), pp. 263–86;
Michael Clemens, Economics and Emigration: Trillion-Dollar Bills
on the Sidewalk? Journal of Economic Perspectives 25
(2011): 83–106.
29 Michael Clemens, The Biggest Idea in Development That

No One Really Tried, Annual Proceedings of the Wealth and


Well-Being of Nations, ed. Emily Chamlee-Wright (Beloit,
WI: Beloit College Press, 2010), pp. 25–50, 29.
53

comercializáveis tende a alocar esses bens para seus


usos mais valorizados.30
Meu ponto aqui é que uma parte importante da
plataforma de política libertária – um livre mercado
global de trabalho – provavelmente fará muito mais
bem para os pobres do que a redistribuição
doméstica. Isso não quer dizer que alguma
redistribuição doméstica seja injustificada ou que a
redistribuição interna e as fronteiras abertas sejam
incompatíveis, como alguns alegam, apenas que as
críticas utilitaristas padrão ao libertarianismo
tendem a exagerar os méritos da redistribuição em
relação a outras propostas políticas.

QUESTÕES DE IMPLEMENTAÇÃO
Mesmo com fronteiras abertas, ainda pode
haver espaço para a redistribuição maximizadora da
felicidade de ricos para pobres. No entanto, conforme
discutido anteriormente, é importante usar um
modelo não romântico, de olhos claros, de como as
instituições funcionam. Podemos ficar tentados a
pensar na redistribuição administrada pelo Estado

30 Para uma discussão sobre o efeito da localização


nos salários, veja Michael Clemens, Claudio E.
Montenegro, e Lant Pritchett, The Place Premium: Wage
Differences for Identical Workers across the U.S. Border, Center for
Global Development Working Paper no. 148, July 2008.
54

como análoga ao tipo de redistribuição sem esforço e


eficaz que ocorre toda vez que transferimos dinheiro
de nossa conta poupança para nossa conta corrente.
Mas a redistribuição econômica do mundo real não é
simplesmente transferir recursos. Isso pode reduzir o
montante total de recursos disponíveis porque reduz
os incentivos para o trabalho e o investimento de
capital.
Aqui está um caso simples. Robinson Crusoé
vive em uma ilha e passa seu tempo pescando. Sexta-
feira desemboca em terra e solicita que todos os
recursos da ilha sejam igualmente distribuídos em
prol da maximização da felicidade social. Então
Sexta-feira recebe um de cada dois peixes que Crusoé
pega. Consequentemente, Crusoé gasta menos tempo
pescando e construindo redes de pesca porque o valor
dessas atividades para ele foi cortado pela metade.
Em suma, a oferta de mão de obra e capital de Crusoé
diminui com o aumento das taxas de tributação.
Antes da chegada de Sexta-feira, Crusoé colheria
plenamente os benefícios de suas expedições de
pesca. Agora, metade das capturas de Crusoé é
transferida para Sexta-feira numa redistribuição
igualitária. Crusoé opta por pescar menos porque
espera se beneficiar menos do trabalho adicional e do
investimento de capital.
A redistribuição também pode desincentivar o
trabalho diminuindo os custos esperados do lazer.
55

Quando Sexta-feira tem garantido metade do peixe de


Crusoé, ele tem um incentivo para fazer menos
forrageamento (por exemplo). Ele espera obter peixes,
independentemente de reunir frutas para negociar
com Crusoé por alguns peixes. Ele conclui que seu
tempo é melhor gasto em outras atividades além da
colheita de frutas silvestres, então ele escolhe não
colher as frutas. A mudança de opinião de Sexta-feira
não é um reflexo da falta de vontade de trabalhar,
mas sim da mudança no custo de oportunidade de
fazer outras coisas além de trabalhar. Antes da
redistribuição, se Sexta-feira fosse surfar ao invés de
pegar frutas, ele não teria peixe de Crusoé. Agora, ele
espera pegar peixe e surfar, o que significa que ele
tem um incentivo muito mais fraco para colher frutas
silvestres.
Como resultado de um programa de
redistribuição igualitária, tanto Crusoé quanto Sexta-
feira veem uma queda no incentivo para produzir
seus respectivos tipos de comida. Nesse caso, a
redistribuição não transfere mercadorias de uma
pessoa para outra; diminui o número total de bens
disponíveis para todos.
Por fim, a redistribuição do mundo real não é
uma transferência simples entre ricos e pobres. Uma
boa fatia do bolo que é redistribuído vai para outras
pessoas além dos pobres, como a classe média e os
56

ricos.31 Pense em programas como a previdência


social e a proteção à indústria, ambos envolvendo
transferências de riqueza financiadas por impostos.
Não deveria ser uma surpresa que grupos com poder
político substancial sejam capazes de redirecionar o
fluxo de redistribuição politicamente administrada
em direção a eles mesmos.

A QUESTÃO FILOSÓFICA
Até agora eu tenho abordado alguns problemas
práticos em torno da redistribuição do mundo real,
mas o que pode ser dito por meio de um tratamento
filosófico?
David Schmidtz argumenta que a própria
suposição da utilidade marginal decrescente da
riqueza que motiva o argumento da redistribuição
simultaneamente desmotiva a redistribuição.32 O
ponto-chave a reconhecer é que os recursos podem
ser usados para consumo e produção. Dada a
utilidade marginal decrescente, a produção torna-se
um uso de recursos mais valorizado do que o

31 Veja Tyler Cowen, Does the Welfare State Help the


Poor? Social Philosophy and Policy 19 (2002): 36–54, sec.
2.
32 David Schmidtz, Diminishing Marginal Utility and

Egalitarian Redistribution, Journal of Value Inquiry 34 (2000):


263–72.
57

consumo, à medida que a renda aumenta. Assim, as


transferências que equalizam os recursos podem
diminuir a produção e a felicidade social junto com
ela.
Para ilustrar, Schmidtz imagina o caso de Joe
Rico e Jane Pobre.33 O milho é o único bem a ser
distribuído. Rico tem uma unidade de milho; Pobre
tem nenhuma. Uma unidade de milho é suficiente
para comer; duas unidades são demais – tentar comer
duas unidades de milho fará um doente. Sem milho,
Rico e Pobre teriam que comer algo terrível – algo que
certamente não comeriam na presença de milho
adequado. Assim, consumir a primeira unidade tem
alta utilidade marginal para Rico e Pobre; consumir
uma segunda unidade tem utilidade marginal
relativamente baixa. Até agora, o argumento UMD
favorece a igualdade.
No entanto, como Schmidtz observa, as coisas
parecem diferentes quando consideramos a
produção. Dada uma unidade de milho, Pobre
consome imediatamente – isto é, ela colocará o milho
no seu uso mais valorizado. O apetite de Rico, no
entanto, está satisfeito, já que ele consumiu uma
unidade antes. Assim, ele vai colocar o milho para um
uso diferente do consumo, ou seja, a produção.
Schmidtz explica:

33 Ibid., p. 266.
58

Pobre come o milho, enquanto Rico, já tendo


comido o suficiente, não tem nada melhor para fazer
com seu excedente do que plantá-lo […] Precisamente
por causa da utilidade marginal decrescente, a
produção torna-se um uso mais valorizado à medida
que a renda aumenta. Se uma comunidade não tem um
número significativo de pessoas além em suas curvas
de utilidade, como não ter nada melhor a fazer com
unidades marginais do que plantá-las, então a
comunidade está enfrentando estagnação econômica
na melhor das hipóteses. […] Portanto, o apoio
utilitarista inequívoco à redistribuição igualitária não
se encontra na ideia de que riqueza e consumo têm
uma utilidade marginal decrescente.34
É precisamente a suposição da UMD que
fundamenta a objeção à redistribuição. Quando você
tem muitos recursos, você pega menos e vê menos
valor em consumir uma unidade adicional. Assim, o
valor do investimento produtivo relativo ao consumo
aumenta.35
O ponto mais amplo é que a preocupação com
a felicidade social em geral e o alívio da pobreza, em
particular, deve nos levar a nos preocupar com a
produção econômica, além do consumo. Reduzir o

34Ibid., p. 268.
35 Embora Schmidtz observe que esse ponto
também pode apoiar outros empreendimentos produtivos,
como a educação. Ibid., p. 270.
59

investimento em prol do consumo de curto prazo


retardará o crescimento econômico, um resultado que
pode acarretar enormes perdas na riqueza material ao
longo do tempo.
É muito fácil subestimar o poder do
crescimento econômico. Deixe-me citar um
economista, Paul Romer:
Na versão moderna de uma velha lenda, um
banqueiro de investimento pede para ser pago
colocando um centavo no primeiro quadrado de um
tabuleiro de xadrez, dois centavos no segundo
quadrado, quatro no terceiro, etc. Se o banqueiro
tivesse pedido que apenas os quadrados brancos
fossem usados, o centavo inicial teria dobrado em
valor trinta e uma vezes, deixando $21,5 milhões no
último quadrado. Usando ambos os quadrados preto e
branco teria feito o centavo crescer para $92 milhões.
As pessoas são razoavelmente boas em formar
estimativas baseadas em adição, mas para operações
como a composição que depende da multiplicação
repetida, subestimamos sistematicamente a rapidez
com que as coisas crescem. Como resultado, muitas
vezes perdemos de vista a importância da taxa média
de crescimento para uma economia. […] Para uma
nação, as escolhas que determinam se a renda dobra
60

a cada geração, ou a cada outra geração, superam


todas as outras preocupações de política econômica.36
Para tomar um caso específico de Tyler Cowen:
“Se um país cresce a uma taxa de 5% ao ano, leva
pouco mais de 80 anos para ir de uma renda per
capita de $500 a uma renda per capita de $25.000.
Com uma taxa de crescimento de 1%, a mesma
melhoria levaria 393 anos.”37
O crescimento pode elevar a renda real dos
pobres, reduzindo o preço real dos bens – a mesma
quantidade de mão de obra compra mais (e melhor)
bens ao longo do tempo. Por exemplo, comprar meio
galão de leite em 1950 exigia que alguém trabalhasse
por 16 minutos com um salário típico, mas apenas
por 7 minutos cerca de meio século depois.38 Durante
esse mesmo tempo, o custo do tempo de trabalho de
uma cesta com uma dúzia de alimentos básicos
diminuiu significativamente de 3,5 para 1,6 horas.39
O microondas que usamos para cozinhar esses
alimentos também se tornaram muito mais

36 Paul M. Romer, Economic Growth, The Concise


Encyclopedia of Economics, Library of Economics and
Liberty, 2008.
37 Cowen, Does the Welfare State Help the Poor? p. 45.
38 W. Michael Cox e Richard Alm, Time Well Spent: The

Declining RealCost of Living in America, Federal Reserve Bank of


Dallas Annual Report (Dallas: Federal Reserve Bank of
Dallas, 1997), p. 4.
39 Ibid.
61

acessíveis. Em 1984, apenas 12,5% dos domicílios


abaixo da linha de pobreza possuíam microondas.40
Em 2011, 93,4% já tinham.41 Não negligenciemos
também as melhorias de qualidade que os novos
microondas oferecem em relação aos anteriores. Por
fim, não devemos esquecer os produtos que estão
disponíveis para compra hoje e que não existiam no
passado (por exemplo, smartphones, Netflix, etc.).
Uma vantagem que a estratégia de crescimento
para a redução da pobreza tem sobre a estratégia de
redistribuição é que ela trabalha com, e não contra,
nossas limitações morais. Eu enfatizei que uma das
grandes virtudes do mercado é que ele canaliza o
interesse próprio para o interesse público. Em
contrapartida, o interesse próprio dos cidadãos
frequentemente prejudicará a eficácia da
redistribuição politicamente administrada. Se as
pessoas trabalharem menos à medida que os
impostos aumentam, a eficácia da redistribuição é
diminuída. A redistribuição também é menos eficaz
quando o rico faz lobby por uma fatia grande da

40 Dados do United States Census Bureau reportados em


W. Michael Cox e Richard Alm, By Our Own Bootstraps:
Economic Opportunity and the Dynamics of Income
Distribution, Federal Reserve Bank of Dallas Annual
Report(Dallas: Federal Reserve Bank of Dallas, 1995), p.
22.
41 United States Census Bureau, Extended Measures of

Well-Being: Living Conditions in the United States, 2011.


62

arrecadação sendo distribuída ou investida em


métodos engenhosos para reduzir sua carga
tributária.
Agora, considere a estratégia de crescimento.
Em vez de gastar $1 milhão em sua terceira piscina
olímpica (a partir da qual ele obterá pouca satisfação
graças à UMD), um bilionário pode investir esse
dinheiro em uma tecnologia revolucionária que
permitirá a produção de microondas mais baratos e
melhores. Ele não precisa tornar o microondas mais
acessível por causa de uma preocupação altruísta
com os pobres, mas por causa de uma preocupação
de interesse próprio por sua conta bancária. Ele
beneficia os pobres sem pretender beneficiar os
pobres.
De maneira nenhuma estou afirmando que o
crescimento é uma solução perfeita para a pobreza.
Mas, no mínimo, devemos estar atentos contra a
tendência de superestimar os benefícios da
redistribuição pelos que estão mal e subestimar seus
custos indiretos de seu efeito adverso sobre o
crescimento econômico. Dado o quão surpreendentes
os efeitos de uma queda na taxa de crescimento
podem ser, não devemos descartar o que a
redistribuição de danos pode fazer para os pobres.
Para seu crédito, o utilitarismo diz para
considerarmos o alívio à pobreza e sofrimento uma
prioridade moral urgente. Mas devemos ter cuidado
63

aqui. A maneira mais intuitiva de ajudar os pobres


pode não ser o melhor caminho. Os mercados são
instrumentos enganosamente poderosos do
humanitarismo.
O utilitarismo, apesar das aparências iniciais,
é um ajuste natural do libertarianismo. É uma teoria
moral que pode ter um forte respeito pelos direitos e
que valoriza bons resultados acima das boas
intenções. A grande virtude do mercado, de uma
perspectiva utilitarista, é que nos leva a promover a
felicidade dos outros sem exigir que priorizemos suas
felicidades ou mesmo saibamos como fazê-los felizes.
Nenhuma instituição é perfeita, mas o mercado faz o
melhor trabalho de extrair benefícios sociais do
fornecimento limitado de imparcialidade e informação
das pessoas.42

42 Agradecemos a Adam Lerner e Aaron Ross Powell

pelos comentários úteis sobre uma versão anterior deste


capítulo.
64

CAPÍTULO 2 -DIREITOS
NATURAIS E
LIBERTARIANISMO
“Os indivíduos têm direitos e há coisas que
nenhuma pessoa ou grupo pode fazer a eles (sem
violar seus direitos). ”
– Robert Nozick, Anarquia, Estado e Utopia

INTRODUÇÃO
Os direitos naturais são reivindicações morais
que cada indivíduo tem contra todas as outras
pessoas e grupos. Os direitos naturais permitem que
cada indivíduo exija que todos os outros indivíduos e
grupos não o sujeitem a certos tratamentos
desfavoráveis - não o sujeite, por exemplo, a ser
morto, escravizado ou mutilado. Os direitos naturais
não decorrem dos decretos de autoridades políticas
ou cálculos de interesses sociais ou através dos
processos particulares pelos quais os indivíduos
podem adquirir direitos de propriedade específicos ou
direitos contratuais. Os direitos naturais são nossos
direitos originais – direitos que cada indivíduo possui
contra todos os outros agentes, a menos que esses
direitos tenham sido renunciados ou perdidos. Se
65

existem tais direitos naturais, eles devem ser


fundamentados em alguma característica
moralmente seminal de cada pessoa. Os direitos
morais – tanto naturais quanto adquiridos – são
absolutamente centrais para a filosofia política. Pois,
como os indivíduos podem exigir que seus direitos
sejam respeitados, os indivíduos (ou seus agentes)
podem usar a força para garantir o cumprimento de
seus direitos; e filosofia política é sobre o uso aceitável
da força.
Neste capítulo, explico e recomendo a
abordagem dos direitos naturais à filosofia política.
Vou dissipar a ideia de que há algo de misterioso,
assustador ou antiquado nessa abordagem. Explico
como essa abordagem captura algumas de nossas
percepções morais mais centrais e como ela se
conecta a outras percepções morais sobre a
importância separada de cada indivíduo e o bem-
estar de cada indivíduo. Além disso, explicarei como
a abordagem dos direitos naturais que irei articular
tem implicações fortemente libertárias. De fato, a
maioria das poderosas articulações da doutrina
liberal e libertária clássica derivam da teorização dos
direitos naturais – do pai fundador do liberalismo
clássico, John Locke, no século XVII ao filósofo
libertário mais conceituado das últimas décadas,
Robert Nozick.
66

A razão para essa impressionante sobreposição


de pensamento sobre direitos naturais e conclusões
libertárias ou liberais clássicas é que a doutrina dos
direitos naturais adequadamente articulada produz a
exigência de respeito por princípios à liberdade
individual que está no cerne das convicções políticas
libertárias. A doutrina dos direitos naturais
adequadamente articulada reforça o respeito ao
princípio da liberdade individual precisamente
porque começa com o valor último da vida e do bem-
estar de cada indivíduo.
A estratégia geral que emprego para a defesa
dos direitos naturais é apelar para um individualismo
moral mais amplo. A ideia básica desse
individualismo moral é o valor separado, último e
autônomo da vida e do bem-estar de cada indivíduo.43
O individualismo moral tem duas facetas principais.
A primeira, o individualismo de valor, lida com o
objetivo de que os indivíduos têm motivos para seguir
em suas vidas. De acordo com o individualismo de
valor cada um deles tem razão para atingir seu bem-

43 Essa ideia central funciona de diferentes formas


em Locke e Nozick. Ver também Loren Lomasky, Persons,
Rights, and the Moral Community (Oxford, UK: Oxford
University Press, 1987); and Douglas Rasmussen and
Douglas Den Uyl, Norms of Liberty (University Park:
Pennsylvania State University Press, 2005).
67

estar pessoal; é isso que cada pessoa, em última


análise, tem motivos para promover.
A segunda faceta, o individualismo dos direitos,
lida com os direitos que os indivíduos devem cumprir
no curso de sua busca por seus objetivos. De acordo
com o individualismo de direitos, cada indivíduo tem
o direito natural de buscar seu próprio bem a seu
próprio modo escolhido; cada indivíduo tem um
direito original (linha de base) de não ser subordinado
aos fins dos outros. Além disso, através de várias
ações e interações com os outros, os indivíduos
podem adquirir direitos de propriedade específicos e
direitos contratuais. Todos esses direitos devem ser
respeitados por outras pessoas no curso de sua busca
por seus próprios fins.
Assim, a visão básica do individualismo moral
é de que cada indivíduo tem um objetivo final distinto
ou fim próprio – a obtenção do bem-estar pessoal. No
entanto, cada pessoa é moralmente constrangida nos
meios que podem ser usados na busca desses fins.
Um indivíduo pode muito bem ter motivos para
buscar riqueza, mas é moralmente impedido de fazê-
lo escravizando os outros. Um indivíduo pode muito
bem ter motivos para buscar a criatividade estética,
mas é moralmente impedido de fazê-lo cortando as
orelhas dos outros para criar uma decoração de
parede. Essas restrições morais sobre como os
indivíduos podem buscar seus fins correspondem aos
68

direitos naturais e adquiridos das pessoas. Tais


direitos – os direitos, por exemplo, de não serem
escravizados, de não ter suas orelhas cortadas, de
não expropriar a propriedade justamente adquirida –
fornecem a cada indivíduo um domínio moralmente
protegido no qual ela pode perseguir seus objetivos
como quiser (desde que respeite as restrições
estabelecidas pelos direitos dos outros). Este capítulo
concentra-se nos direitos naturais (ou seja, originais)
das pessoas e não na propriedade adquirida ou nos
direitos contratuais. Sua tese-chave é que os
indivíduos têm direitos naturais para perseguir seus
próprios fins da maneira escolhida, precisamente
porque cada indivíduo tem, em seu próprio bem-
estar, um objetivo digno de sua própria busca.
A próxima seção prepara o cenário para o
restante deste ensaio, descrevendo uma parte
específica do mal e o que naturalmente pensamos
sobre isso. As três seções a seguir articulam o
individualismo de valor e a maneira como ele mina as
concepções comuns de justiça social. A próxima
seção fornece a transição do individualismo de valor
para o individualismo de direitos e é seguida por uma
explicação do caráter “deontológico” do
individualismo de direitos. A penúltima seção trata
brevemente de alguns problemas que não foram
abordados. A seção final resume e conclui.
69

UM EXEMPLO HORRÍVEL
Em Cleveland, entre 2002 e 2004, Ariel Castro
sequestrou três jovens mulheres, até a fuga de uma
delas em maio de 2013 que acabou levando ao resgate
das outras duas. Castro as manteve em cativeiro, as
espancou e estuprou repetidamente, ameaçou matá-
las e – no caso de uma mulher – usou violência e fome
para induzir abortos.44 Se sabemos alguma coisa
sobre certo e errado, sabemos que as ações de Castro
estavam profundamente erradas. Este não é um
julgamento sobre a ilegalidade das ações de Castro. É
um julgamento sobre a criminalidade moral da
conduta de Castro. É porque achamos que esse tipo
de conduta é moralmente criminosa – antecedente e
independente de sua criminalização legal – que
favorecemos sua criminalização legal e
consideraríamos escandaloso caso tal conduta não
fosse legalmente proibida.
Considere algumas outras coisas que sabemos
sobre a conduta de Ariel Castro. Sabemos que a
injustiça de sua ação era, fundamentalmente, uma
questão do mal que ele fez àquelas jovens mulheres.

44 Veja Ariel Castro Kidnappings, Wikipedia, . Veja


também John Glatt, The Lost Girls: The True Story of the
Cleveland Abductions and the Incredible Rescue of
Michelle Knight, Amanda Berry, and Gina DeJesus (New
York: St. Martin’s Press, 2015); e o filme da
Lifetime, Cleveland Abductions, 2015.
70

Certamente, seus parentes e amigos foram


severamente, embora indiretamente, prejudicados.
No entanto, as vítimas principais foram as três jovens
mulheres. Os procedimentos legais foram
propositadamente contra Castro pelas violações que
infligiu àqueles três seres humanos em particular,
não pelos danos indiretos causados a seus amigos e
familiares.
Na medida em que faz sentido falar sobre a
utilidade social global ou o equilíbrio geral da
felicidade sobre a infelicidade em toda a sociedade,
podemos dizer com confiança que as ações de Castro
reduziram a utilidade social global ou pioraram o
equilíbrio geral de felicidade ou bem-estar. No
entanto, o crime moral de Castro não consistia em
reduzir sua utilidade social líquida global ou em
piorar o equilíbrio geral da felicidade sobre a
infelicidade. Primeiro, se seu crime consistisse em
reduzir sua utilidade social geral ou em produzir um
equilíbrio geral menos favorável de felicidade sobre a
infelicidade na sociedade, sua vítima teria sido a
sociedade em geral. Mas suas vítimas eram aquelas
jovens mulheres específicas, não alguma abstração
social conjurada. A criminalidade da conduta de
Castro residia em seu tratamento a essas mulheres.
Em segundo lugar, o tratamento de Castro sobre
essas mulheres permaneceria moralmente criminoso,
mesmo que – supondo mais uma vez que faça sentido
falar dessa maneira – o tratamento dado a elas
71

realmente elevasse a utilidade social geral ou o


equilíbrio geral da felicidade sobre a infelicidade.
Suponha que Castro teria sido profundamente
infeliz se não tivesse sequestrado, espancado e
estuprado suas vítimas e que o sequestro,
espancamento e estupro delas lhe proporcionaram
enorme prazer. Suponha que o ganho total para
Castro fosse maior – se faz sentido falar dessa
maneira – do que o sofrimento total que ele impôs. Ou
caso você duvide que alguém possa ser um conversor
tão eficiente da miséria dos outros em seu próprio
prazer, suponha que Castro compartilhasse o acesso
real ou virtual àquelas mulheres com vinte ou mais
de seus amigos mais íntimos e o ganho total para ele
e seus amigos excedesse a perda total para as
mulheres. A verdade dessa suposição não iria, no
mínimo, derrubar nosso julgamento de que a conduta
de Castro era profundamente errada. Nossa
condenação moral de Castro é baseada na natureza
de seus atos. É por isso que essa condenação não é
refém de mais informações sobre os ganhos para
Castro ou seus amigos que sua conduta poderia ter
gerado.
Nem a ilicitude do comportamento de Castro
depende de seu propósito sórdido. Suponha que o
propósito real de Castro fosse chamar atenção vívida
para o fracasso dos departamentos de polícia em
procurar conscientemente mulheres jovens
72

desaparecidas. Suponha que ele fosse realmente


repelido pelo que tinha que fazer para despertar a
nação para a necessidade de buscas mais rápidas e
persistentes por mulheres jovens misteriosamente
desaparecidas. Apesar dessa repulsa, ele continuou –
até mesmo organizando a fuga das mulheres e sua
posterior tentativa de obter atenção (e nunca
revelando seu verdadeiro e nobre propósito). Este
propósito secreto não mitigaria de modo algum as
transgressões morais que cometeu, mesmo que
conseguisse reduzir a incidência de longo prazo do
tipo de conduta em que se engajava.45
Tampouco a conduta de Castro foi injusta
porque foi contrária ao fato de ele ter concordado em
evitar tal conduta. O comportamento de Castro estava
profundamente errado, embora ele nunca tenha
entrado em tal acordo. Em suma, a ilicitude da
conduta de Castro não dependia do fato de essa
conduta ser condenada por qualquer autoridade
política ou pela diminuição da utilidade geral ou
felicidade da sociedade ou por violar algum acordo ou
contrato em que Castro tivesse entrado.
Boa parte do que se entende sobre dizer que as
três vítimas de Castro tinham direitos naturais contra
o sequestro, estupro e espancamento é simplesmente

45 Nossa percepção sobre ele mudaria de ser um

monstro de mente fraca para o fato de ser um monstro de


mente elevada.
73

que elas tinham reivindicações morais contra tal


tratamento que eram antecedentes e independentes
de qualquer declaração por parte das autoridades
políticas, qualquer inconveniência social ou qualquer
acordo para evitá-los. A afirmação geral dos direitos
naturais é a atribuição a todos os indivíduos de tais
reivindicações morais antecedentes e independentes
contra a sujeição a certas formas de tratamento (por
exemplo, ser morto, escravizado, abusado ou
mutilado).
O que é sobre a natureza de sua conduta em
relação àquelas mulheres que torna o comportamento
de Castro obviamente tão errado? Podemos, é claro,
fornecer uma lista dos direitos morais naturais das
mulheres que Castro violou – direito à liberdade, à
integridade corporal, e assim por diante. Mas aqui
estamos procurando algo mais profundo que ajude a
explicar nossa atribuição desses direitos a essas
mulheres e a todas as pessoas. Aqui estão algumas
respostas plausíveis e sobrepostas a nossa pergunta.
Castro subordinou essas mulheres a sua vontade; ele
as transformou em instrumentos para seus
propósitos de maneiras que interferiram radicalmente
suas vidas, de acordo com seus próprios propósitos.
Ele as tratava como seres que existiam apenas como
meios para seus fins, e não como seres que,
moralmente falando, terminam em si mesmos.
74

VALORIZAR O INDIVIDUALISMO COMO


UMA CONDIÇÃO NECESSÁRIA PARA O
INDIVIDUALISMO DE DIREITOS
Parece que os indivíduos terão direitos morais
robustos uns contra os outros se, e somente se, um
valor essencial se ligar aos indivíduos e seus fins.
Seria estranho que a moralidade incluísse robustos
direitos de proteção para os indivíduos e suas
ocupações se os indivíduos, como indivíduos, não
tivessem grande importância. Loren Lomasky vincula
corretamente os direitos individuais de proteção ao
valor distinto e separado de cada indivíduo:
O Liberalismo reconheceu tradicionalmente uma
pluralidade irredutível de valores incomensuráveis. O
liberalismo atribui a cada indivíduo um valor único e
insubstituível, e porque os indivíduos são muitos,
também são valores [finais]. Os direitos são
consoantes com o individualismo porque os direitos
fornecem a proteção mais moralmente rigorosa do
valor que cada indivíduo exemplifica.46
Se as pessoas possuem direitos de proteção
robustos, elas devem de alguma forma serem
subscritas pelo valor final e separado de cada pessoa
como um perseguidor de fins. Ou, para colocar as
coisas de maneira ligeiramente diferente, esses

46Lomasky, Persons, Rights, and the Moral


Community, p. 52..
75

direitos devem, de alguma forma, ser subscritos por


cada indivíduo que tenha no próprio bem-estar um
fim de valor último e separado. Qualquer defesa
adequada dos direitos naturais que prometa
conclusões fortemente libertárias deve começar com
o individualismo de valor.
Para explicar o que está envolvido no fato de
cada pessoa ter em seu próprio bem-estar um fim de
valor separado e último, precisamos usar uma
distinção filosófica um tanto difícil entre o valor
relativo do agente e o valor neutro do agente.47
Começo aqui explicando o valor relativo do agente,
mas o contraste pode não estar totalmente claro até
que eu também explique o valor neutro do agente.
Considere o valor do bem-estar pessoal de Jennifer.
Na visão agente-relativista, assim como a realização
do bem-estar de Jen será uma realização de bem-
estar para Jen, e assim como o benefício dessa
realização será um benefício para Jen, também o
valor dessa realização de bem-estar pessoal será valor
para Jen. Nem a realização, nem o benefício, nem o
valor são flutuantes. Cada um deles existe em relação
à Jen. O valor dessa realização do bem-estar pessoal
não é um valor flutuante, mas sim um valor-para-Jen.

47 Veja Eric Mack, Moral Individualism: Agent-

Relativity and Deontic Restraints, Social Philosophy and


Policy 7 (1989): 81–111.
76

Outro indivíduo, por exemplo, Benjamin, pode


prontamente reconhecer que a realização do bem-
estar de Jen é benéfica para Jen sem pensar que
qualquer benefício abstrato esteja associado a essa
percepção e sem pensar que ele tenha razão para
promover esse benefício abstrato. Da mesma forma,
Ben pode prontamente reconhecer que a realização do
bem-estar de Jen é valiosa para Jen sem pensar que
há um tipo de valorização despersonalizada associado
a essa percepção e sem pensar que ele tem alguma
razão para promover essa valorização
despersonalizada.
É claro que, no entendimento agente-
relativista, a realização do bem-estar de Ben é
benéfica para Ben e tem valor para Ben. Assim como
Jen e Ben podem reconhecer que o valor-para-Jen de
seu bem-estar pessoal fornece à Jen motivos para
perseguir esse fim – e ainda assim podem fornecer a
Ben sem razão. Jen e Ben também podem reconhecer
que o valor-para-Ben de seu bem-estar pessoal
fornece a Ben motivos para perseguir esse fim – e
ainda assim pode fornecer à Jen sem tal motivo.48
Assim, na visão agente-relativista do valor do
bem-estar, esse valor é profundamente
individualizado. Há o valor para Jen do bem-estar de

48 Cada um terá razão para promover o bem-estar

do outro, na medida em que o bem-estar do outro é um


componente de seu próprio bem-estar.
77

Jen, o valor para Ben do bem-estar de Ben, e assim


por diante para cada pessoa. Não há valor de bem-
estar despersonalizado como tal. Quando o bem-estar
de Jen é percebido, as coisas ficam melhores ao longo
da dimensão valor-para-Jen. Da mesma forma,
quando o bem-estar de Ben é percebido, as coisas
ficam melhores ao longo da dimensão valor-para-Ben.
O valor prospectivo para Jen fornece à Jen a razão –
razão relativa do agente – para promover o que vai
perceber esse valor, enquanto o valor prospectivo
para Ben fornece a Ben uma razão relativa do agente
para promover o que vai perceber esse valor. No
entanto, o fato de Jen ter uma razão relativa do agente
para promover aquilo que tem valor para ela não
implica, de modo algum, que Ben tenha também
razão para promover esse estado valioso para Jen.49
Em contraste, na visão de que o bem-estar de
cada indivíduo tem valor de agente neutro, o bem-
estar humano despersonalizado como tal tem valor.
Cada instância do bem-estar humano tem valor total.
O valor do bem-estar de um indivíduo não está
essencialmente vinculado a esse indivíduo como valor
para esse indivíduo. Em vez disso, cada indivíduo é
um local no qual o valor neutro do agente (isto é,

49O bem-estar de Jen também pode ser um


componente do bem-estar de Ben. Nesse caso, as coisas
também são melhores ao longo da dimensão valor-para-
Ben quando o bem-estar de Jen é realizado.
78

despersonalizado) do bem-estar humano pode ser


engendrado. Os indivíduos fornecem os receptáculos
em que essa coisa neutra do agente, bem-estar
humano, pode ser acumulada e armazenada. E o
valor neutro do agente de qualquer dado bem-estar
prospectivo fornece a todos igualmente a razão neutra
do agente para promover essa instância de bem-estar,
isto é, para adicionar ao inventário mundial do valor
do bem-estar.
No ponto de vista do agente-neutralista, cada
agente terá motivos para fazer sua parte específica no
programa de ação que maximiza o bem-estar
humano, mesmo quando isso envolve sacrificar seu
próprio bem-estar ou o bem-estar de alguns outros
indivíduos. Embora possa ser psicologicamente
natural que cada agente espere ser um local no qual
o bem-estar seja realizado e não eliminado, cada
agente não terá mais razão para favorecer que ele seja
um local de bem-estar do que qualquer outra pessoa
sendo o destinatário desse estado valioso neutro do
agente.
A compreensão neutra do valor do bem-estar
humano por parte do agente não pode acomodar a
ideia básica de que cada indivíduo tem em seu próprio
bem-estar um fim de valor último separado. Pois, na
interpretação de agente neutro, o próprio bem-estar
de um indivíduo não tem uma posição distinta como
um fim racional; o bem-estar prospectivo de cada
79

indivíduo é apenas uma possível instância do bem-


estar humano genérico. Não há pluralismo de fins
últimos, e não há nada moralmente insubstituível
sobre qualquer indivíduo ou seu bem-estar. Em vez
disso, há uma única medida – o bem-estar humano
como tal – aplicada a todas as discussões racionais
sobre quais resultados seguir.
O único fim último é o único fim centralizado
em alcançar as compensações socialmente ótimas do
bem-estar de algumas pessoas para o bem-estar dos
outros. Em última análise, dado o entendimento
agente-neutralista, cada indivíduo tem razão para
sacrificar o bem-estar que estaria localizado em sua
vida toda vez que esse sacrifício gerar um bem-estar
mais extenso localizado em outro lugar. A única
maneira de um verdadeiro pluralismo de valores
últimos poder existir, a única maneira pela qual a
importância separada de cada indivíduo e seu bem-
estar pode obter é se o valor do bem-estar é agente-
relativista, não agente-neutralista.
Lembre-se do experimento mental sobre um
Ariel Castro socialmente consciente que julga
corretamente que seu controle e abuso físico e sexual
de mulheres jovens (combinado com seu eventual
julgamento e condenação) reduzirá substancialmente
o número de jovens submetidas a esse tratamento. Na
interpretação agente-neutralista, se essas mulheres
reconhecerem a eficácia do esquema de Castro, a
80

razão exige que se ofereçam para participar. Além


disso, se elas recusarem o convite de Castro para
participar de seu esquema para maximizar o valor
neutro do agente (ou minimizar o desvalor neutro do
agente), parece que a razão exige que ele proceda de
acordo como fez, ou seja, forçar suas participações.
Moralmente falando, na interpretação neutra
do valor do bem-estar humano, todos (incluindo
aquelas mulheres) são um meio para o fim de
promover o bem-estar humano em geral. Se,
moralmente falando, os indivíduos são meios para um
fim abrangente e abrangente além de suas próprias
vidas e bem-estar, é difícil ver como eles poderiam
possuir direitos morais que os protegem contra serem
forçados a servir a esse fim.

CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS SOBRE O


VALOR DO INDIVIDUALISMO DE VALOR
Todas as versões do individualismo de valor
sustentam que cada indivíduo tem a razão última
para promover a realização do bem-estar genuíno.
Diferentes versões do individualismo de valor refletem
diferentes concepções de bem-estar individual. Mas a
característica comum central de toda versão é uma
individualização – e, portanto, um pluralismo radical
de – fins últimos racionais. De acordo com o
individualismo de valor, se eu procurar convencer
81

alguém a adotar uma meta específica, preciso


mostrar a ela que sua vida será aprimorada caso
atinja essa meta. Posso apenas ter que persuadi-la de
que o objetivo proposto se encaixa ou complementa
sua compreensão atual de seu bem-estar. Ou, em vez
disso, posso ter que persuadi-la a modificar sua
opinião sobre que tipo de resultados irá contribuir
para o seu florescimento. Por exemplo, posso ter que
persuadi-la de que cultivar relações de amizade e
apreciação mútua contribuirá grandemente para que
ela viva bem.
O individualismo de valor começa, portanto,
com a afirmação mais básica e não controversa sobre
a racionalidade prática – que é racional para cada
agente buscar o que é genuinamente e pessoalmente
vantajoso. Razões são considerações em nome de agir
ou tolerar de certas maneiras. Que uma ação ou
tolerância promova o bem-estar de um agente parece
ser um candidato óbvio – na verdade, o mais óbvio –
a uma razão para esse agente. Não é problemático –
nem um pouco misterioso – que o que é benéfico para
um indivíduo seja valioso para aquele indivíduo, e é
benéfico que esse indivíduo lhe forneça a razão para
alcançar a condição benéfica. Então, se a felicidade
de Jen é benéfica para ela, ela claramente tem
motivos para promover sua felicidade. No entanto, se
a felicidade de Jen não é (também) benéfica para Ben,
fica mais difícil entender por que ele deveria ter razão
para promovê-la. De fato, pode parecer bastante
82

misterioso como o simples fato de que um certo


estado de coisas é benéfico para Jen forneça uma
razão para Ben se empenhar em promovê-lo.50
Um testemunho indireto do individualismo de
valor é a afirmação mais básica e não controversa
sobre a racionalidade prática e é quando os teóricos
morais que querem rejeitar essa disputa geralmente
sentem a necessidade de começar com ele e, de algum
modo, transcendê-lo. Por exemplo, muitos teóricos
utilitaristas começam com a racionalidade da
utilidade individual ou promoção do bem-estar e
tentam passar disso para a racionalidade de
promover utilidade ou bem-estar agregado. Mais
notoriamente, John Stuart Mill se move com grande
rapidez da felicidade de cada pessoa, sendo o bem
para ela a felicidade agregada sendo o bem para
todos: “A felicidade de uma pessoa é um bem para
essa pessoa, e a felicidade geral, portanto, um bem
para o conjunto de todas as pessoas.”51 A rápida
inferência de Mill parece envolver um salto da
alegação modesta de que a felicidade de cada pessoa
tem valor para ela (ou seja, tem valor relativo do
agente), para a felicidade de cada pessoa tendo valor

50 Não ajuda dizer que algum estado sendo


prudentemente bom para Jen não explica por que Ben se
esforçaria para realizá-lo, ao passo que esse estado é
moralmente bom.
51 John Stuart Mill, Utilitarianism (Indianapolis, IN:

Bobbs-Merrill, 1957 [1861]), p. xx.


83

neutro do agente e, portanto, a felicidade de todos


acenando a todos para promovê-la.
Na obra “Uma Teoria da Justiça”, o ponto de
partida de John Rawls é a proposição básica de
escolha racional de que “uma pessoa age
apropriadamente, ao menos quando os outros não
são afetados, para alcançar seu próprio bem maior,
avançando seus fins racionais tanto quanto
possíveis”.52 Rawls rejeita a visão utilitarista de que
quando outros são afetados, cada pessoa deve se
preocupar tanto com ganhos e perdas dos outros
quanto com seus próprios ganhos e perdas. No
entanto, Rawls afirma que quando outros são
afetados, os agentes racionais que buscam seu
próprio bem se sujeitam a princípios de justiça muito
exigentes.53 As últimas seções deste ensaio indicam
como, dentro do individualismo moral, os indivíduos
estão sujeitos a restrições muito menos exigentes do
que aquelas propostas por Rawls sobre como eles

52 John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, MA:


Harvard University Press, 1971), p. 23. Essa proposição de
escolha racional é o ponto de partida para a maioria das
outras versões do contratualismo.
53 Para uma crítica devastadora do caso não-

utilitário de Rawls para aqueles princípios exigentes, veja


Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia (New York:
Basic Books, 1974), cap. 7.
84

podem tratar os outros no curso de sua busca por


valor pessoal.
Como Rawls, Robert Nozick considera se é
possível transitar rapidamente da afirmação básica e
não controversa de que é racional para os indivíduos
maximizar os benefícios sobre as perdas dentro de
suas próprias vidas separadas para a afirmação
utilitária de que é racional para os indivíduos
maximizarem os benefícios sobre perdas através das
pessoas:
Individualmente, cada um de nós escolhemos
sofrer algum sacrifício ou dor por um benefício maior
ou evitar um dano maior.[…] Em cada caso, algum
custo é suportado em prol de um bem geral maior. Por
que não, da mesma forma, sustentar que algumas
pessoas têm que arcar com alguns custos que
beneficiem mais as outras pessoas, em prol do bem
social geral?54
Por que não há compensações entre pessoas em
prol de ganhos líquidos semelhantes aos indivíduos
que avançam racionalmente o bem líquido dentro de
suas próprias vidas individuais? A resposta de Nozick
é esta:
Mas não existe entidade social como um bem
que sofra algum sacrifício para seu próprio bem.

54 Ibid., p. 32.
85

Existem apenas pessoas individuais, pessoas


individuais diferentes, com suas próprias vidas
individuais. Usando uma dessas pessoas para o
benefício dos outros, usa-a e beneficia os outros. Nada
mais. O que acontece é que algo é feito nele pelo bem
dos outros. A conversa sobre um bem social geral
consiste nisso.55
Aqui, Nozick parece tornar as coisas fáceis
demais para si, sustentando que a postura utilitarista
depende de uma crença equivocada numa entidade
social com vida e bem-estar próprios. Uma leitura
mais generosa vê a negação de Nozick de tal entidade
social como uma maneira dramática de negar a
existência de uma única dimensão ao longo da qual
se registra o valor dos ganhos e o valor das perdas de
todas as pessoas. É o seu modo de negar a existência
de um livro-razão mestre axiológico no qual todos os
ganhos e perdas para todas as pessoas são somados
e subtraídos para produzir uma avaliação moral
mestra. Em vez disso, para cada indivíduo “eu”, há
um livro-razão separado – denominado “valor e valor-
para-eu” – no qual os custos e benefícios para aquele
indivíduo são registrados: ganhos e perdas podem ser
combinados dentro de livros, mas não entre eles. Este
método de contabilidade afirma a separação das
pessoas.

55 Ibid., pp. 32–33.


86

Ao longo deste capítulo, busco ser neutro entre


diferentes concepções de bem-estar humano e,
portanto, neutro entre diferentes versões do
individualismo de valor. No entanto, uma verdade
substantiva sobre o bem-estar humano precisa ser
enfatizada para proteger o individualismo de valor
contra o que de outra forma seria uma crítica óbvia.
Essa verdade substantiva é que, pelo menos para
quase todas as pessoas, um componente importante
e profundo do bem-estar individual está nas relações
de percepção mútua, apreciação, capacidade de
resposta e preocupação com algumas outras pessoas.
Para quase todas as pessoas, a conexão com outras
pessoas, a empatia, a benevolência, a generosidade, a
amizade, o respeito mútuo e afins contribuem para
viver bem. Pelo menos em quase todos os casos, a
busca do bem-estar individual inclui, de forma
importante, a busca dessas formas de sociabilidade.
É (quase sempre) bom para alguém ser o tipo de
pessoa que, claro, pulará na piscina para salvar a
proverbial criança que está se afogando.

O INDIVIDUALISMO DE VALOR PREJUDICA


OS RANKINGS SOCIAIS E
OS TRADEOFFS SOCIAIS
Suponha que Ben proponha se comportar de
alguma forma em relação à Jen fazendo diminuir o
bem-estar dela em cinco unidades, mas que resultará
87

em um aumento de seu bem-estar em sete unidades.


Ben procura fornecer uma justificativa promotora de
valor de sua ação dizendo que, de acordo com sua
fórmula favorita para tais questões, o resultado será
socialmente melhor que o status quo. O comportamento
proposto por ele para Jen resultará em um resultado
social mais bem classificado. Jen não questiona as
afirmações factuais de Ben sobre quantas unidades
de bem-estar serão perdidas ou ganhas. No entanto,
como uma individualista de valor perspicaz, ela
rejeita a justificativa dele de promover valores,
insistindo que o resultado da ação proposta por ele
será simplesmente um ganho para ele e uma perda
para ela. “Nunca mais”, Jen insiste, porque não há
uma escala comum de valor em que as sete unidades
de ganho para ele justifique as cinco unidades de
perda dela. Ela até se aproveitou da observação de
Nozick de que “nenhum ato de equilíbrio moral pode
ocorrer entre nós; não há superação de uma de
nossas vidas pelos outros, de modo a levar a um bem
social geral maior”.56
Uma das maneiras pelas quais o individualismo
de valor dá apoio ao individualismo de direitos é que
ele abre caminho para o individualismo de direitos ao
minar todas as propostas consequencialistas – não
apenas as utilitárias – para avaliar ações, políticas ou
instituições com base em se elas produzem ou

56 Ibid., p. 33.
88

diminuem o rendimento máximo classificado dos


resultados sociais disponíveis. Suponha que três
resultados sociais gerais – I, II e III – estejam
disponíveis, cada um resultando de uma de três ações
(ou políticas ou estruturas institucionais), e cada
resultado envolva recompensas (em unidades de
bem-estar) para três indivíduos. – A, B e C.
Recebemos a seguinte matriz:

Qual desfecho social é melhor? Defensores de


diferentes fórmulas para classificar os resultados
sociais globais fornecem respostas diferentes. De
acordo com o defensor da maximização do bem-estar,
o resultado I é o melhor. De acordo com o defensor de
maximizar o retorno mínimo de bem-estar57, o
resultado II é o melhor. De acordo com o defensor do
bem-estar igual, o resultado III é o melhor.
No entanto, de acordo com o individualismo de
valor, a questão sobre qual resultado global é melhor
não tem uma resposta válida. De acordo com o

57Este é o “princípio da diferença” de Rawls aplicado


ao bem-estar e não à renda.
89

individualismo de valor, tudo o que pode ser


validamente dito é que o resultado I é o melhor para
A, o resultado II é o melhor para B e o resultado III é
o melhor para C. (Quando o individualismo de valor
ouve a alegação de que algum resultado geral é
melhor, ele imediatamente pergunta: “Melhor para
quem? ”) Nenhum julgamento “melhor geral” está
disponível porque os ganhos para um ou dois
indivíduos da realização de um determinado
resultado não podem ser pesados contra as perdas
para um ou dois indivíduos da não realização de
algum outro resultado disponível. Isso acontece
porque os ganhos e perdas para A ocorrem ao longo
da dimensão valor-para-A, enquanto os ganhos e
perdas para B ocorrem ao longo da dimensão valor-
para-B, e os ganhos e perdas para C ocorrem ao longo
do valor-para-C. Como essas são dimensões distintas
de valor – o valor-para-A, o valor-para-B e o valor-
para-C são sui generis – os ganhos e perdas para
qualquer um desses indivíduos são incomensuráveis
com os ganhos e perdas dos outros indivíduos. Não
há moeda comum (por exemplo, o valor neutro do
agente) para esses ganhos e perdas; não há taxa de
câmbio entre essas moedas distintas.

DO INDIVIDUALISMO DE VALOR AO
INDIVIDUALISMO DE DIREITOS
90

Temos nos concentrado em uma função


negativa do individualismo de valor, a saber, seu uso
para refutar as justificativas promotoras de valor que
impõem sacrifícios aos indivíduos em favor de alguma
suposta otimização do resultado social. Não obstante,
é crucial ver que tais refutações dessas diversas
justificativas promotoras de valor não fazem em si
mesmas qualquer coisa para estabelecer que a
conduta proposta é ilícita ou que viola os direitos
daqueles visados por essa conduta. Uma coisa é
desmerecer uma justificativa proposta para um
caminho de conduta; Outra coisa é mostrar que a
conduta em questão é ilícita ou que viola direitos. Algo
mais precisa ser dito para fundamentar o julgamento
de que o impostor de sacrifícios erra ou viola os
direitos das pessoas sobre as quais os sacrifícios são
impostos.
Para ter uma ideia do que pode ser esse algo
mais, vamos considerar como o argumento de Nozick
vai além do desmascaramento de impor perdas a
alguns em prol da otimização social. Lembre-se que
na fase de desmascaramento (discutida
anteriormente), Nozick afirma:
Existem apenas pessoas individuais, pessoas
individuais diferentes, com suas próprias vidas
individuais. Usando uma dessas pessoas para o
benefício dos outros, usa-a e beneficia outras pessoas.
Nada mais […]. A conversa de um bem social geral
91

consiste nisso […] [A pessoa que é usada] não obtém


algum bem em desequilíbrio do seu sacrifício, e
ninguém tem o direito de forçá-la a ele.58
O fato de nossas “existências separadas”
implica que “nenhum ato de equilíbrio moral pode
ocorrer entre nós; não há superação moral de uma de
nossas vidas pelos outros, de modo a levar a um bem
social geral maior.”59
No entanto, Nozick segue adiante com uma
distinção implícita entre o que segue estritamente o
fato da separação das pessoas – que não pode haver
equilíbrio moral – e o que reflete esse fato. Restrições
do lado moral são reflexo da separação das pessoas e
da falta de fundamento do equilíbrio moral. Essa
separação é subjacente a essas restrições laterais.
Como Nozick coloca (com o meu sublinhado
adicionado):
As restrições do lado moral sobre o que podemos
fazer, afirmo, refletem o fato de nossas existências
separadas. Eles refletem o fato de que nenhum ato de
equilíbrio moral pode ocorrer entre nós; não há
superação moral de uma de nossas vidas pelos outros,
de modo a levar a um bem social geral maior. […] Essa
ideia básica, a saber, que existem indivíduos
diferentes com vidas separadas e, portanto, ninguém

58 Nozick, Anarchy, p. 33.


59 Ibid., p. 33 [emphasis in original].
92

pode ser sacrificado por outros, subjaz à existência de


restrições laterais.60
Em suma, a separação das pessoas e a
impossibilidade de equilíbrio moral fundamentam-se
e refletem-se na existência de restrições morais.
Intuitivamente, o pensamento é que o próprio fato do
valor separado da vida e do bem-estar de cada pessoa
que mina o equilíbrio moral e a superação moral
também reforça a proposição de que impor perdas a
um indivíduo (não-consentidor) para proporcionar
ganhos a outros o prejudica.
Nozick vai um pouco além dos termos “reflete”
e “subjaz” quando diz que usar uma pessoa para
impor um custo à ela para proporcionar um benefício
à outra “não respeita suficientemente e não leva em
conta o fato de que ela é uma pessoa separada, que a
sua é a única vida que tem.”61 Se considerarmos
suficientemente o fato de que “ela é uma pessoa
separada, que é a única vida que tem” – isto é, se
formos respeitosos a (responsivo a) esse fato –
seremos circunspectos em nossa conduta para com
esse indivíduo. Vamos tratar esse indivíduo como
possuidor de direitos. Nozick, portanto, avança em
direção a uma afirmação que eu estarei fazendo, a
saber, o fato de que “ela é uma pessoa separada, que
a sua é a única vida que tem” é uma razão para

60 Ibid.
61 Ibid.
93

sermos limitados em nossa conduta para com ela.


Mais especificamente, é uma razão para evitar tratar
esse indivíduo como um meio para nossos próprios
fins.
É um defeito grave no argumento do próprio
Nozick que ele não reconheça explicitamente que uma
coisa é desmascarar justificativas para a imposição
de sacrifícios e outra coisa é para fundamentar a
ilicitude de impor esses sacrifícios. Ainda assim, acho
que a facilidade com que se passa da fase de
desmascaramento para a conclusão de que as
imposições desmentidas fazem mal aos indivíduos a
quem se impõem sugere fortemente que Nozick está
correto.62 Uma apreciação suficiente do
individualismo de valor para refutar argumentos
consequencialistas a favor de imposições também
apoia o julgamento de que tais imposições são
transgressões morais contra aqueles que estão
sujeitos a elas.

62 Em sua crítica da separatividade de pessoas ao


utilitarismo, Rawls também se move imediatamente em
desmascarar a justificativa utilitária para impor sacrifícios
aos indivíduos à conclusão de que é injusto impor um
sacrifício a A em prol de conceder um ganho maior a B. A
conflação de pessoas “sujeita os direitos assegurados pela
justiça ao cálculo dos interesses sociais”. Rawls, Theory of
Justice, p. 30.
94

Então, volto-me agora para o meu próprio


raciocínio em nome da proposição de que alguém
tendo um bem-estar e um fim último de si mesmo
fornece a todos os outros, motivos para serem
circunspectos em sua conduta em relação a ele. Esta
é a proposição: a separação das pessoas e a
impossibilidade de equilíbrio moral fornecem razões
para restrições morais. Ben está sob certas restrições
morais em sua conduta em relação à Jen – e Jen tem
direitos naturais correlatos contra Ben para que ele
cumpra as mesmas restrições – é simplesmente uma
questão de Ben ter razão para ser cauteloso em seu
comportamento à Jen. A ideia de Jen possuir tais
direitos naturais contra Ben não é mais misteriosa do
que a ideia de Ben ter tais razões para ser restringido
em sua conduta em relação à Jen.
Discussões padronizadas sobre as bases para
atribuir direitos morais naturais às pessoas citam
características como autoconsciência,
intencionalidade, capacidade de criar e comprometer-
se com projetos de longo prazo, e a capacidade de
viver vidas significativas e autodeterminadas.63 Eu
acredito que características como estas são condições
paradigmáticas necessárias para a razoável
atribuição de direitos às pessoas precisamente
porque essas condições são necessárias para o fato
moralmente seminal sobre as pessoas, ou seja, que

63 Nozick, Anarchy, pp. 48–51.


95

cada uma delas tem na obtenção de seu bem-estar


pessoal – no florescimento de suas vidas – um fim
último próprio. Por que acreditar, no entanto, que
esse fato fornece a todos os outros indivíduos razão
para restringir o tratamento de todos os outros?
Suponha que Ben concorde que Jen tem um
fim próprio na realização de seu bem-estar. Este fato
tem uma importação óbvia de diretivas para Jen. Diz
a ela qual objetivo final é racional para ela promover
– que resultado orientador ela tem motivos para
buscar. Mas esse fato sobre Jen tem alguma diretriz
para Ben? Parece haver três possíveis respostas
básicas. A resposta “sem diretriz importada” diz que
esse fato sobre Jen, como tal, fornece a Ben nenhum
motivo para se envolver ou evitar qualquer conduta
em relação à Jen. A resposta “adição” diz que a
diretiva que importa para Jen sobre esse fato é que
seu bem-estar deve ser adicionado ao bem-estar de
Ben para formar um fim mais abrangente que Ben
deve promover. A resposta da “restrição” diz que a
diretiva que importa para Jen sobre esse fato é que
Ben não deve impedir que ela busque seu próprio
bem-estar (da maneira que escolheu).
Aqui está a análise contra a resposta “sem
diretriz importada”. O individualismo de valor afirma
a realidade de uma multiplicidade de indivíduos, cada
um dos quais possui fins racionais. Ben não é a única
fonte independente ou centro de valor. Ele não é o
96

único ser que tem propósitos próprios para cumprir.


O solipsismo normativo é falso e Ben sabe que é falso.
Então, quando Ben olha para o mundo, ele vê
entidades de dois tipos notavelmente diferentes. Ele
vê objetos que não têm fins ou propósitos próprios e
que ele naturalmente supõe estarem moralmente
disponíveis para o uso dele (ou de outros), e ele vê
entidades que, como ele próprio, se dedicam
apropriadamente a seus fins separados e distintos.
Seria incrível que essa diferença marcante entre essas
entidades não fornecesse a Ben a razão para tratar as
entidades dos dois tipos de maneira diferente.
Considere alguns exemplos. Enquanto Ben
caminha, ele percebe um graveto no caminho. Não
interrompendo seu passo normal, ele pisa no graveto
e quebra-o. Enquanto continua a caminhar, ele
percebe o pescoço de uma pessoa em seu caminho.
Interrompendo seu passo normal, ele não pisa no
pescoço e evita quebrá-lo. Um observador pergunta a
Ben por que ele se comportou de maneira diferente no
segundo caso. Ele responde que, no segundo caso, a
ruptura do pescoço teria destruído a vida de um ser
com fins racionais próprios, com um bem próprio que
ela persegue propriamente. A resposta dele fornece
uma razão – uma consideração em nome de – sua
discriminação entre o graveto e o pescoço. Se Ben não
tivesse discriminado entre o graveto e o pescoço, nós
pensaríamos que ele não tinha processado
adequadamente – não tinha levado suficientemente
97

em conta – a diferença entre um mero objeto e uma


entidade com fins próprios. Se ele sinceramente
professar que a pessoa cujo pescoço está no caminho
não lhe dá razões para não pisar nela, nós
consideraremos que ele tem o defeito de
processamento cognitivo característico dos
psicopatas.
Suponha que o não psicopata Ben entre no que
acredita ser um parque de diversões de Westworld. Tal
parque é povoado por autômatos brilhantemente
programados que parecem ser seres humanos
perigosos que procuram, de maneiras inteligentes,
mutilar e matar visitantes. Ele procura a diversão da
simulação de vida ou morte com os habitantes – que,
quando vencidos, “sangram” e “expiram” de forma
convincente. Após sua aventura de 48 horas, que
incluiu “matar” ou “aleijar” um bom número de
habitantes que encontrou, sai da arena. Ele é
recebido por um esquadrão de resgate que informa
que eles estão prestes a entrar na área para libertar
os habitantes que são seres humanos inocentes que
foram sequestrados e depositados em Westworld por
agentes do Departamento Federal de Entretenimento
(liderados por Ariel Castro). Nesse ponto, Ben lembra
que alguns dos que destruiu gritaram algo sobre
terem sido sequestrados e sobre como não o
machucariam se ele não os machucasse.
Infelizmente, ele interpretou esses pronunciamentos
como parte da inteligente programação dos
98

autômatos. Ele agora está horrorizado com o que fez


e tem boas razões para estar.
As circunstâncias das ações homicidas de Ben
– especialmente o grau em que estava certo de que
estaria lidando com autômatos – poderiam desculpá-
lo substancialmente. Mas observe que todos nós – e,
muito provavelmente, especialmente Ben –
acreditaremos que, em tais circunstâncias, Ben
precisará desesperadamente de desculpas. Pois, o
que fez prejudicou aqueles que ele matou ou mutilou.
Eles foram injustiçados precisamente porque eram na
realidade pessoas com vidas próprias para seguir.
Quando ele testemunha na audiência para
determinar se será inocentado, Ben diz: “Se soubesse
que eram pessoas como eu – seres com vida própria,
não objetos disponíveis para minha diversão – não os
atacaria. Saberia que atacá-los não respeitaria
suficientemente e levaria em conta o fato de que cada
um deles era “uma pessoa separada” e que “suas
vidas são únicas”.64 Concluo que a resposta “sem
diretriz importada” é um erro.
Isso nos deixa agora com as respostas “adição”
e “restrição”. Lembre-se que, de acordo com a
primeira, a diretiva de que Jen tem em seu bem-estar
um fim de valor último e que seu bem-estar deve ser
adicionado com o bem-estar de Ben para formar um

64 Ibid., p. 33.
99

fim mais abrangente que Ben promova. O amigo da


resposta de adição não está meramente dizendo –
como o individualismo de valor poderia – que quando
indivíduos particulares com seus fins próprios
encontram outra com outros fins próprios, às vezes,
incorporam aspectos do bem-estar uns dos outros
nos seus próprios e, portanto, adquirem razão para
se preocuparem com o bem-estar uns dos outros. Em
vez disso, de acordo com o adicionador, o simples fato
de que o bem-estar de Jen tem valor exige que o bem-
estar dela se junte ao de Ben para constituir um fim
mais abrangente que Ben tem motivos para
promover. O simples fato do valor do bem-estar de
Jen (juntamente com o valor do bem-estar de todos
os outros) exige que Ben sirva ao bem-estar dela (e a
todos) sob alguma fórmula para classificar os
resultados sociais gerais. Na visão da adição, a
importância do simples fato do valor do bem-estar de
cada pessoa é que é racional para cada um servir aos
propósitos de todos (de acordo com a fórmula
preferida para classificar os resultados sociais gerais).
Mas isso, na verdade, é uma negação de que
cada pessoa tem propósitos geradores de razão
próprios. De fato, a resposta da adição deve estar
errada, porque o valor do bem-estar de cada pessoa é
essencialmente valor para essa pessoa. A diretriz
importada do fato moralmente seminal que Jen tem
na realização de seu bem-estar – um fim de valor
último – não pode ser que Ben (e todos os demais)
100

tenham razão para promover essa realização. Por


isso, a diretriz importada desse fato deve ser que Ben
(e todos os outros) têm razão para ser restringido em
sua conduta em relação a Jen. Isto é, aquele fato
sobre Jen provê Ben (e todos os outros) com razão
para não interferir com sua busca de seu bem-estar
por seus próprios meios escolhidos. (Esses meios são
restringidos pela restrição semelhante à Jen de que
ela não interfira na perseguição dos fins próprios dos
outros).65 Respeitamos ou honramos os outros como
agentes com fins e propósitos específicos separados,
não pela promoção de seus fins como fazemos pelos
nossos fins mas, sim, por não sacrificá-los aos nossos
fins e, mais genericamente, por não interferir na
busca que eles escolheram para seus próprios fins e
propósitos.
O individualismo de direitos é a afirmação de
tais direitos com base em que a resposta apropriada
à importância moral separada dos outros como seres
com propósitos últimos próprios como a não-
interferência nos outros em sua busca (similarmente
não interferindo) de seus próprios fins em seus
próprios caminhos escolhidos. Para explorar o
prestígio da terminologia kantiana, é porque cada

65 Para um argumento mais técnico do valor dos


direitos individuais, veja meu texto Prerogatives,
Restrictions, and Rights, Social Philosophy and Policy 22
(Winter 2005): 357–93.
101

pessoa é um fim-em-si no sentido que é central para


o individualismo de valor, que cada pessoa é um fim-
em-si no sentido que é central para o individualismo
de direitos.

DIREITOS MORAIS COMO


REIVINDICAÇÕES DEONTOLÓGICAS
Eu vou falar um pouco mais sobre a substância
da restrição moral de que alguém tem razão para
respeitar as interações de uma pessoa com outras
pessoas em breve. Mas primeiro precisamos destacar
o contraste entre as metas que temos motivos para
avançar e as restrições (ou princípios ou regras) que
temos motivos para obedecer. A exigência para Ben
de que ele não interfira na busca (igualmente contida)
de Jen de seus próprios fins pessoais é uma restrição
moral a ele em vez de uma meta determinada. Pois a
exigência não diz a Ben qual resultado ele deve
promover (ou dificultar). Ela simplesmente restringe
os meios pelos quais Ben pode buscar seus fins
escolhidos. Mesmo que seja quase certo que valha a
pena para Jen que Ben siga essa restrição lateral,
esse valor prospectivo não é a base para a restrição.
Da mesma forma, mesmo que seja provavelmente
valioso para Ben obedecer à restrição, esse valor
prospectivo não é a base para a restrição. Em vez de
serem descartadas por causa de seu desvirtuamento
para o sujeito, o agente ou a sociedade em geral,
102

certas formas de transacionar com Jen são


descartadas por causa de sua própria natureza –
como atos que interferem na busca de Jen por seus
próprios fins.
Uma vez que as restrições morais (e os direitos
correlativos a elas) não dependem do desvio (para o
sujeito, o agente ou para a sociedade em geral) que
surge da sua violação, as restrições laterais (e os
direitos correlativos a elas) permanecem no local,
mesmo que sua violação tenha valor (para o sujeito, o
agente ou a sociedade em geral). É por isso que os
direitos podem servir de princípios fundamentais
para ordenar as relações humanas entre diversos
indivíduos que podem não endossar os fins ou
concepções de bem-estar um do outro. Na linguagem
filosófica padrão, as restrições morais laterais e os
direitos correlativos a elas são reivindicações morais
deontológicas, e não consequencialistas.
Os teóricos consequencialistas estão cônscios
da ideia de que todo o certo e errado nas ações deve
ser uma questão das boas ou más consequências
dessas ações – no entanto, a bondade ou a maldade
das consequências são medidas. Eles rejeitam a ideia
de que alguns tipos de ações podem estar errados em
virtude de seu caráter, e não em virtude de seus
resultados. É um grande problema para essa postura
o fato de que constantemente condenamos
razoavelmente as ações com base em seu caráter e
103

não com base na investigação de suas consequências.


Nós condenamos Ben escravizando Jen sem qualquer
indagação sobre se a escravização (como a maioria
das escravidões) tem ou não consequências ruins. Se
descobrirmos que dentro de algum sistema particular
de escravidão, a proporção de felizes proprietários de
escravos para escravos infelizes é muito maior do que
pensávamos não nos levaria a revisitar nossa
condenação a esse sistema de escravidão. Nós
condenamos que Ben garanta a sentença e punição
de Jen, que ele sabe ser inocente do crime, sendo ou
não essa sentença e punição por si só consequências
ruins. Os teóricos consequencialistas tentam
desesperadamente mostrar que todas as falsas
sentenças e punições têm consequências ruins por si
só e, portanto, podem ser condenadas por eles. Mas
como consequencialistas, por que não seguir o fluxo
consequencialista e abraçar alegremente socialmente
o expediente das falsas sentenças e punições? A
resposta é que os consequencialistas reconhecem
implicitamente o caráter ilícito e violador de direitos
de falsas sentenças e punições.
A visão consequencialista de que as ações
podem ser avaliadas como certas ou erradas apenas
com base em suas consequências depende da visão
antecedente de que toda ação é executada em prol de
suas consequências (antecipadas). Se isso estivesse
correto, a única maneira de avaliar uma ação seria
determinar se ela efetivamente promove
104

consequências desejáveis. No entanto, é falso que as


pessoas ajam apenas por causa das consequências. A
cada minuto do dia, as pessoas realizam ou evitam as
ações com base em seu caráter percebido. Isto é o que
significa ser um seguidor de regras. Como observa
Hayek, “o homem é tanto um animal que segue regras
quanto um buscador de propósitos”.66 É por isso que
a investigação moral tem duas dimensões distintas: a
busca de objetivos que racionalizamos e a busca de
regras (e direitos) que temos motivos para cumprir no
curso de nossa busca de objetivos.

MAIS ETAPAS NA TEORIZAÇÃO DOS


DIREITOS NATURAIS
O direito natural contra a interferência na
busca de seus próprios fins nas formas escolhidas é
altamente abstrato; ele precisa ser mais bem
articulado para fornecer uma orientação mais
determinada. Uma maneira natural de proceder é
identificar diferentes maneiras fundamentais pelas
quais os indivíduos podem ser interferidos e atribuir
a todas as pessoas um direito natural contra cada um
desses modos de interferência. Provavelmente, a
maneira mais central e importante pela qual os
indivíduos podem ser impedidos de se dedicarem aos

66 F. A. Hayek, Law, Legislation, and Liberty,


vol.1 (Chicago: Chicago University Press, 1973), p. 11.
105

seus próprios fins é privar os indivíduos do controle


discricionário sobre suas próprias pessoas, isto é,
sobre o exercício de suas próprias faculdades mentais
e físicas. A proteção moral contra esse modo de
interferência tem sido tradicionalmente articulada
como o direito natural de autopropriedade.
No entanto, interferências na busca das
pessoas por seus próprios objetivos não são
esgotadas por violações do direito de
autopropriedade. Como as pessoas precisam usar
recursos extrapessoal e exercer controle
discricionário contínuo sobre tais recursos a fim de
efetivamente avançar em seus fins, as pessoas podem
ser interferidas de forma inadmissível, sendo
impedidas de usarem os recursos (que já não esteja
sendo usado por outros) e de adquirir e exercitar
controle discricionário sobre recursos extrapessoais.
A proteção moral contra esse modo de interferência
assume a forma de um direito natural de propriedade
– um direito de usar e adquirir direitos de propriedade
sobre partes extrapessoais do mundo.
As pessoas também podem ser impedidas de
avançar seus próprios projetos por meio de engano
(fraude). A proteção moral contra este modo de
interferência assume a forma de um direito natural
de ter acordos celebrados (contratos) com outros num
modo de realização. É claro que a maneira precisa
pela qual esses direitos básicos serão codificados em
106

lugares diferentes e em momentos diferentes


dependerá de entendimentos e convenções sociais
habituais. Assim, por exemplo, as condições exatas
sob as quais uma pessoa é culpada de uma invasão
ou violação de contrato variam de um lugar para
outro.
Indivíduos operam dentro de uma estrutura
moral na qual o avanço de seus próprios objetivos é
limitado por uma mistura de direitos possuídos pelos
outros – formas finamente codificadas de direitos
naturais de outros, direitos de propriedade
adquiridos e direitos contratuais. A insistência
deontológica de que cada indivíduo tem razão para
respeitar os direitos dos outros, independentemente
se respeitar instâncias particulares são benéficos
para aquele indivíduo e que estaria melhor se a
moralidade não o incomodasse e o sobrecarregasse
com a exigência de respeitar os direitos dos outros.
No entanto, para cada indivíduo, essa estrutura
moral também inclui todas as instâncias protetoras
de seus próprios direitos naturais e direitos
adquiridos. Além disso, uma ordem social centrada
no respeito mútuo pelos direitos um do outro tem a
característica atraente de ser uma ordem na qual
cada um reconhece a alta posição moral de cada um
e recebe um reconhecimento semelhante dos outros.
Mais ainda, a crença generalizada na força
moral das regras associadas aos direitos das pessoas
107

– por exemplo, não apreender ou destruir a


propriedade dos outros, ou não descumprir com
contratos – é crucial para a existência generalizada da
interação cooperativa voluntária. Jen e Ben, em geral,
desistirão de saquear o outro e cada um deles
geralmente cooperará, pois ambos fecharão acordo
apenas se cada um estiver confiante de que o outro
irá retribuir. E essa confiança dependerá
frequentemente de cada parte acreditar que a outra
está comprometida com a regra relevante e, portanto,
desistirá de cálculos sobre quanto ele ou ela poderia
ganhar induzindo a outra parte a seguir a regra
enquanto ele ou ela descumpre.
A crença generalizada na força moral das regras
relevantes sustenta a cooperação mutuamente
benéfica ao afastar as pessoas da tentativa
geralmente autodestrutiva de se beneficiar da boa fé
de outra pessoa, ao mesmo tempo que não suporta o
custo da própria boa fé. Assim, em vez de inibir os
indivíduos e limitar sua obtenção de bem-estar
pessoal, essas regras restritivas facilitam formas cada
vez mais elaboradas e vantajosas de cooperação
voluntária.
Não abordei muitas questões cruciais sobre as
implicações da abordagem atual dos direitos naturais
para a doutrina libertária. Aqui, mencionarei alguns
que provavelmente ocorrerão ao leitor. A primeira é a
importância dos direitos morais interpretados como
108

reivindicações deontológicas para o antipaternalismo


baseado em princípios. Antipaternalismo baseado em
princípios é a visão de que um indivíduo pode ser
prejudicado quando é forçosamente proibido de
prosseguir com alguma ação voluntária, mesmo que
seu bem-estar seja promovido por essa proibição
forçada. Tal intervenção paternalista bem-sucedida –
intervenção que é realmente boa para o sujeito – só
pode ser condenada pelos motivos deontológicos de
que ela deixa de honrar o sujeito como um agente com
vida própria para viver.
Os teóricos dos direitos naturais de Locke a
Nozick endossaram corretamente uma “condição
lockeana” segundo a qual os possuidores de
propriedade não podem (isoladamente ou em
conjunto) usar suas propriedades de forma a tornar o
ambiente econômico de Jen menos receptivo à ela na
busca de seus fins do que seu ambiente econômico
seria na ausência de propriedade privada. A base
teórica para tal ressalva é que se pode negar o uso
discricionário de seus próprios poderes, tanto pela
interferência direta na pessoa, quanto pela privação
das oportunidades de implantar esses poderes. A
cláusula lockeana torna explícito o requisito de que
proprietários de imóveis não usem suas propriedades
de forma a reduzir as oportunidades de outros. Como
uma afirmação empírica, tal condição raramente será
violada porque o livre desenvolvimento das economias
109

da propriedade privada tende fortemente a aumentar


as oportunidades econômicas para todos.
Os teóricos dos direitos naturais de Grotius67 a
Nozick endossaram corretamente uma cláusula de
necessidade (ou catástrofe) de acordo com a qual um
indivíduo em circunstâncias terríveis que não são de
sua própria autoria pode escapar dessas
circunstâncias usando a propriedade de outro sem o
consentimento do proprietário. A base teórica para tal
cláusula é o individualismo de valor que fundamenta
o individualismo de direitos. A honra deontológica de
cada indivíduo como um ser com fins próprios
distintos – que toma a forma de atribuir fortes direitos
morais a todos os indivíduos – não pode
plausivelmente impor obrigações a tais indivíduos
como congelar até a morte em uma nevasca ao invés
de arrombar uma cabine deserta desocupada. No
entanto, a estrutura precisa de tal cláusula de
necessidade não será tratada aqui. Finalmente,
menciono o fato óbvio de que este ensaio não explorou
de forma alguma as implicações da teorização dos
direitos naturais para a legitimidade ou ilegitimidade
do Estado.68

67 Hugo Grotius, The Rights of War and


Peace (Indianapolis: Liberty Fund, 2005 [1625]), bk. II,
chap. II., sec. VI.
68 Eu ofereço minhas argumentações dos direitos

naturais sobre esses tópicos em Self-Ownership, Marxism, and


110

CONCLUSÃO
Defendi a abordagem dos direitos naturais à
filosofia política situando a afirmação dos direitos
naturais básicos dentro de um individualismo moral
mais amplo. O argumento começa com o
individualismo de valor – a visão de que cada
indivíduo tem na realização de seu próprio bem-estar
um fim de valor último. Esse individualismo de valor
mina as compensações entre ganhos para alguns e
perdas para outros. Mina as fórmulas para alcançar
justiça social que exigem que os interesses de alguns
sejam sacrificados pelos interesses de outros. No
entanto, a crítica dessas compensações e fórmulas de
justiça social não explica, como tal, a injustiça de
impor sacrifícios a alguns para o benefício de outros.
O que explica isso é o fato de que a posse de fins

Egalitarianism—Part I: Challenges to Historical Entitlement,


Politics, Philosophy, and Economics 1 (February 2002):
119–46; Self-Ownership, Marxism, and Egalitarianism—Part II:
Challenges to the Self-Ownership Thesis, Politics, Philosophy,
and Economics 1 (June 2002): 237–76; The Natural Right of
Property, Social Philosophy and Policy 27 (Winter 2010):
53–79; Non-Absolute Rights and Libertarian Taxation, Social
Philosophy and Policy 23 (Summer 2006): 109–41;
and Nozickan Arguments for the More-than-Minimal
State, em Cambridge Companion to Anarchy, State and Utopia, ed.
Ralf M. Bader and John Meadowcroft (Cambridge, UK:
Cambridge University Press, 2011), pp. 89–115.
111

pessoais últimos de cada indivíduo fornece a todos os


outros agentes motivos para serem cautelosos em
relação a esse agente. Mais especificamente, fornece
a todos os outros agentes a razão de não impedir que
outros indivíduos busquem seus próprios fins de
maneira escolhida (exceto por meios que interferem
na busca dos fins próprios dos outros).
Assim, todos os indivíduos têm direitos
naturais para não serem interferidos em sua busca
(sem interferir) de bem-estar pessoal. Mais
especificamente, todos os indivíduos têm direitos
naturais de autopropriedade, direitos naturais para
adquirir e exercer controle discricionário sobre
recursos extrapessoais e direitos naturais para o
cumprimento de acordos feitos entre si. Tais direitos
fornecem o arcabouço moral fundamental para uma
sociedade na qual indivíduos livres podem se engajar
em esforços cooperativos voluntários para seu
benefício mútuo.
112

CAPÍTULO 3 - ÉTICA
KANTIANA E
LIBERTARIANISMO

O SISTEMA ÉTICO DE IMMANUEL KANT,


DEVIDAMENTE ENTENDIDO, JUSTIFICA AS
INSTITUIÇÕES POLÍTICAS LIBERTÁRIAS.
Immanuel Kant (1724-1804) foi um dos
filósofos mais influentes de todos os tempos. Seu
trabalho foi tanto exemplar do Iluminismo quanto, em
alguns aspectos, profundamente crítico dele. Ele fez
contribuições importantes a todos os principais
subcampos da filosofia, e poucas investigações
filosóficas desde seu tempo foram capazes de
contornar as questões que ele levantou. Resumir o
trabalho de tal figura pode ser difícil, mas deve-se
dizer primeiro que Kant era acima de tudo um
defensor da livre investigação e do poder da razão
humana. Embora ele identificasse certos tópicos
particulares sobre os quais acreditava que a razão era
obrigada a permanecer em silêncio, ele não negou o
poder dela em nenhum outro caso. Pelo contrário,
afirmou-a.
Além disso, Kant era um individualista ético
que apoiava o livre comércio, a propriedade privada e
113

um padrão objetivo para a conduta correta e errada.


Ele ansiava por um futuro de regimes jurídicos cada
vez melhores, que respeitassem cada vez mais a
autonomia e a dignidade de todos os seres humanos,
e instou todas as nações a uma paz justa entre si.
Em resumo, Kant era um liberal clássico. Não
apenas isso, mas mesmo naqueles lugares onde Kant
divergiu do que hoje chamaríamos de libertarianismo,
poderíamos argumentar que ele o fez apesar de seus
compromissos filosóficos mais profundos, e não por
causa deles. Com a ajuda de mais reflexão,
poderíamos até dizer que um kantiano melhorado
seria significativamente mais libertário do que o
próprio Kant. É importante ressaltar que o próprio
sistema de Kant estava explicitamente aberto a esse
tipo de desenvolvimento e crescimento, e é uma
marca de sua perspicácia filosófica ter deixado a porta
aberta para esse tipo de melhorias futuras.
Vamos começar com a ética de Kant. O que é,
Kant perguntou, que nos permite pensar sobre
questões éticas em primeiro lugar? Pode-se encontrar
alguma coisa que conceitualmente esteja subjacente
a todas, ou quase todas, afirmações sobre a
moralidade? Em outras palavras, existe uma base na
qual a ética repousa? E se encontrarmos uma base,
como podemos saber que é objetiva e duradoura?
Kant considerou as respostas contemporâneas
a essas perguntas insatisfatórias. Ele demonstrou
114

que a maioria dos outros sistemas éticos baseava-se


no que ele denominou de imperativos hipotéticos.
Imperativos hipotéticos são declarações da forma “Se
você quer x, você deve y”. Afirmações deste tipo
inevitavelmente derivam sua força moral do ouvinte
já preferindo o resultado declarado, x.
Imperativos hipotéticos podem nos dizer
bastante sobre os meios para atingir um fim
específico, mas eles não podem nos dizer nada sobre,
por exemplo, por que temos fins em primeiro lugar.
Eles também não são úteis a todo tempo e lugar.
Algumas pessoas, confrontadas com circunstâncias
diferentes ou possuindo valores diferentes, não
encontrarão uma razão convincente para agir. Como
podemos encontrar um terreno comum, não apenas
com algumas pessoas, mas com todas elas?
Por exemplo, se você quer entender física, você
deve estudar matemática. Mas isso pressupõe que a
física vale a pena ser compreendida. Pode ser – mas
se sim, por quê? E para quê? Essas perguntas podem
ser respondidas, pelo menos para algumas pessoas,
mas o simples fato de que podemos respondê-las nos
diz que a física não é um fim em si mesma. Nós
respondemos a elas apenas invocando outros fins, e
assim devemos continuar nossa busca.
Kant levou essa objeção a extremos
notavelmente grandes: por exemplo, se quisermos ser
felizes – um objetivo comum na ética – então
115

poderemos encontrar vários cursos de ação que nos


tornarão assim. Mas, Kant argumentou, a felicidade
em todos os casos consiste simplesmente em
conseguir o que queremos – então devemos ser mais
específicos. O que é que queremos? E com base em
que queremos isso? Devemos nomear o objeto que
desejamos, em vez de ofuscar o estado emocional que
resulta de obtê-lo.69 Isso também não é apenas uma
objeção abstrata, porque claramente nem todos são
felizes pelas mesmas coisas. Algumas pessoas são até
mesmo felizes pela conquista do que parece
claramente ser coisas más: o assassino que tem
prazer em matar pode ser motivado pela felicidade tão
bem quanto o poeta que sente prazer no verso. Então,
o que é que todos nós devemos desejar, em todas as
circunstâncias? O que é que nunca é errado querer?
A resposta, disse Kant, era a boa vontade. O
cultivo de uma boa vontade e a subsunção de todos

69 Veja Julie Lund Hughes, The Role of Happiness in

Kant’s Ethics, Aporia 14 (2004): 61–72. Como Kant escreveu,


equiparar o bem a prazer “opõe-se mesmo ao uso da
linguagem, que distingue o agradável do bom, o
desagradável do mal e exige que o bem e o mal sejam
sempre julgados pela razão e, portanto, pelos conceitos
que podem ser comunicados a todos, e não por mera
sensação, que é limitada a sujeitos individuais”. Immanuel
Kant, Critique of Practical Reason, em Kant’s Critique of Practical
Reason and Other Works on the Theory of Ethics, 4th rev. ed.,
trans. Thomas Kingsmill Abbott (London: Longmans,
Green and Co., 1889), p. 111.
116

os outros desejos ao desenvolvimento dela, era para


Kant o trabalho da ética, o fim para o qual todos os
outros fins apontavam. A investigação consciente e
racional sobre o bem era em si o maior bem que
poderíamos ter, e todos os atos que tendiam a
encorajar ou manifestar uma boa vontade eram, por
essa razão, considerados bons também.
Crucialmente, a boa vontade é baseada em
nossa capacidade de autonomia, uma palavra que
Kant usou para denotar nossa capacidade de
estabelecer regras éticas para nós mesmos. Agentes
éticos são todos aqueles que procuram suprir sua
própria conduta e sua própria vontade, com uma lei
fundamentada. Bons agentes éticos expressarão e
agirão na vontade de impor essas leis sobre si
mesmos; Este projeto é a única coisa que podemos e
devemos desejar como um fim em si mesmo. (Kant
deu mais um passo e argumentou que a faculdade
humana da razão existia por uma questão de
expressar essa lei ética, embora esse passo não seja
relevante para nossos propósitos, e é altamente
contestado entre os filósofos até os dias atuais, que
tendem a duvidar de que a natureza imbua quaisquer
faculdades com propósitos embutidos.)
Em qualquer caso, uma lei ética
verdadeiramente fundamental teria pelo menos três
atributos importantes: (a) seria de natureza objetiva
e, portanto, não estaria sujeita a caprichos ou desejos
117

arbitrários; (b) basear-se-ia apenas na razão e,


portanto, inteligível para todos os agentes éticos; e, (c)
seria de um tipo que poderíamos deliberadamente nos
sujeitar a isso. Como Kant escreveu no “Fundamento
da Metafísica da Moral”, “A base da obrigação não
deve ser buscada na natureza do homem, ou nas
circunstâncias do mundo em que ele é colocado, mas
a priori simplesmente na concepção da razão pura.
”70 A própria razão seria a base da ética.
A teoria ética de Kant, portanto, não é nem uma
consequencialista nem uma lei natural, mas é o que
os filósofos chamam de uma versão deontológica. Não
é consequencialista, porque suas leis não derivam de
qualquer consideração sobre o que pode acontecer
depois que tentamos segui-las. E não é uma versão
da lei natural, ou, na melhor das hipóteses, é apenas
muito fraca, porque não elabora uma teoria da
natureza humana na qual sua moralidade é
necessariamente baseada. A ética kantiana se baseia
em nosso dever de raciocinar sozinho. A capacidade
para a razão pode ser um atributo da humanidade, e
Kant certamente acreditava que sim, mas a razão
para Kant é universal e objetiva e não apenas um dos
atributos da humanidade. Como tal, nenhuma
reivindicação sobre a natureza humana é necessária
para que o fundamento ético de Kant seja

70 Immanuel Kant, Fundamental Principles of the


Metaphysic of Morals, em Kant’s Critique, p. 29.
118

estabelecido, e nenhuma mudança de tempo, lugar


ou circunstância pode alterá-lo.
Um kantiano poderia até dizer que as versões
da lei natural que se referem à natureza humana são,
por esse mesmo fato, compostos de imperativos
hipotéticos: todos assumem implicitamente a forma
“se eu sou humano, então devo […]”, uma forma que
os torna hipotéticas. O que quer que se segue depois
dessa declaração pode ser um sábio conselho prático;
pode ser verdade para todos os humanos; pode até
fazer o praticante euforicamente feliz. Mas não seria
uma lei moral fundamental. A ética deve considerar,
mas não deve ser fundamentada, em quaisquer
imperativos hipotéticos.
De fato, os agentes em uma versão da ética
kantiana não precisam ser biologicamente humanos.
Eles devem simplesmente ser capazes de raciocinar e
de apreender a razão, e desejam dar a si mesmos uma
lei fundamentada para governar suas ações. Tal ser
poderia ser um alienígena espacial, um computador
hiperinteligente ou um deus, e não faria diferença
essencial. Uma característica potencialmente
atraente da ética de Kant, portanto, é que ela está
aberta à inclusão de novas espécies de agentes
morais, caso alguma seja contatada ou criada no
futuro. As versões da lei natural e, em menor medida,
as versões consequencialistas, não são
necessariamente tão abertas.
119

Essa discussão nos leva a uma questão


bastante urgente: como é essa lei moral fundamental,
afinal? Começando com a necessidade de que a razão
não se contradiz, Kant chegou ao que viria a ser
conhecida como a primeira formulação do imperativo
categórico – chamado de “categórico” porque se
aplicaria a todos os agentes éticos, em todas as
circunstâncias. Ele elaborou da seguinte forma:
Aja como se a máxima de sua ação fosse tornar-
se por sua vontade uma lei universal da natureza.71
Como com todas as leis ponderadas, a lei moral
deve ser consistente. Como resultado, devemos ser
capazes de querer que suas máximas sejam
aprovadas para todos os agentes morais. Se não
posso querer que uma máxima se aplique a todos,
então devo rejeitar qualquer máxima que esteja
considerando.
Por exemplo, não posso razoavelmente querer
que todas as pessoas devam roubar, pois essa
máxima não pode ser universalizada
consistentemente. Não é apenas porque um mundo
cheio de ladrões seria um lugar miserável, embora
certamente seria. Em vez disso, o roubo pressupõe o
conceito de propriedade legítima, e não posso

71 Immanuel Kant, The Metaphysics of Ethics, 3rd ed.,

Henry Calderwood, trans. J. W. Semple (Edinburgh: T. &


T. Clark, 1886 [1796]), p.34.
120

consistentemente querer a existência de propriedade


legítima e sua violação ocasional, ad hoc. Agora
somos capazes de entender, através da razão e sem
apelo às consequências, que o princípio moral
subjacente ao roubo envolve uma contradição
intencional. Por conseguinte, deve ser rejeitado.
Muitos princípios similares de conduta são
igualmente descartados, como os leitores reflexivos
apreciarão rapidamente.
É importante lembrar que a primeira
formulação nos pede para considerar máximas, ou
princípios, e não ações individuais: se eu acordar às
seis da manhã e comer uma tigela de aveia,
certamente não devo insistir para que todos no
mundo façam exatamente o mesmo. Mas, na primeira
formulação, devo ainda considerar quais máximas, se
houver, estão por trás de minhas ações. Eu poderia
dizer que as máximas são coisas como “esforce-se
para ser pontual em seu trabalho” ou “coma o
suficiente de forma que não faça mal a si mesmo”. Eu
posso prontamente, sem contradição, determinar
qualquer uma delas deve ser seguida por todos.
Note que não posso fazer o mesmo para os
opostos dessas máximas. Não é simplesmente porque
consequências ruins viriam do atraso ou da gula,
embora talvez acontecessem. O problema real é que
tentar moldar uma máxima do atraso ou da gula
implicaria a criação de uma inconsistência em algum
121

lugar em minhas máximas. Como é possível que eu


não chegue ao trabalho ao mesmo tempo que deveria?
E como eu poderia querer comer de maneiras que
tendem a ferir a única coisa inquestionavelmente boa,
que é a boa vontade? Nenhuma delas pode ser
universalizada; a primeira se contradiz, enquanto a
segunda contradiz o cultivo da boa vontade.
A necessidade de universalização também
proíbe várias coisas que Kant tem frequentemente e
erroneamente sido acusado de defender,
particularmente em círculos libertários.72 Por
exemplo, não pode haver um possível dever de
autossacrifício puramente pelo bem dos outros. Isto é
assim por pelo menos dois motivos. Primeiro, tal
dever não pode ser consistentemente universalizado.
Formular uma máxima consistente que determinaria
o altruísmo puro para todos os agentes morais é
claramente impossível. A razão simples é que sempre
deve existir alguém que seja o beneficiário. Do
beneficiário, nenhum sacrifício comparável é
solicitado. E segundo, agir puramente pelo bem

72 Ayn Rand desprezou Kant. Pode ser que se


problema com Kant tenha surgido não de sua ética ou
política, mas de sua metafísica e epistemologia. Essa
análise, embora plausível, seria ruim para os poucos
lugares relativamente claros em que Rand tentou criticar
Kant; neles, ela faz principalmente objeções éticas.
Questões metafísicas e epistemológicas, enquanto isso,
estão além do escopo de nossa investigação.
122

antecipado do outro, ou pelo de um coletivo, seria agir


por uma razão meramente consequencialista, que é
proibida. Como o próprio Kant escreveu:
Desejos benevolentes podem ser ilimitados, pois
não implicam nada. Mas a questão é mais difícil com a
ação benevolente […] já que nosso amor-próprio não
pode ser separado da necessidade de ser amado pelos
outros (para obter ajuda deles em caso de
necessidade), nós, portanto, nos tornamos um fim para
os outros; e essa máxima nunca pode ser obrigatória,
exceto por ter o caráter específico de uma lei universal
e, consequentemente, por meio de uma vontade, de que
também devemos seguir nossos outros fins. [Mas]
aquele que deve sacrificar sua própria felicidade, suas
verdadeiras vontades, a fim de promover a dos outros,
seria uma máxima autocontraditória se fosse feita uma
lei universal. Este dever, portanto, é apenas
indeterminado; tem certa latitude dentro da qual se
pode fazer mais ou menos sem sermos capazes de
atribuir seus limites definitivamente.73
Em suma, Kant condenou o altruísmo
ilimitado, recomendando uma utilidade limitada e

73 Kant, Critique of Practical Reason, p. 199;


anteriormente na p. 198, Kant insistiu que nossa própria
perfeição era um dever de um tipo similar. Um campo se
abre para a prática da virtude, que não é governada nem
pelo puro altruísmo nem pelo puro egoísmo, pois ambos
os extremos são logicamente insustentáveis.
123

bem fundamentada. É bom ser útil, porque um dia


você também pode desejar ajuda, e o título moral para
ajudar virá de sua própria fidelidade à máxima de
ajuda. Mas não imagine que essa máxima tenha
alcance ilimitado. Podemos provar, por pura lógica,
que não é possível.
Kant, no entanto, reservou um papel central
para o conceito de dever. Como já vimos, ações que
aparentemente se conformavam à lei moral não eram
suficientes para tornar um agente moral. É preciso
fazê-las porque se sabe que elas estão certas, e não
apenas na esperança de obter um ganho ou evitar
uma perda, seja para si mesmo ou para qualquer
outra pessoa. Nosso dever é, em última análise, um
dever impessoal, um dever devido apenas à razão, e
nem a si mesmo nem a outros.
A primeira formulação pode assim ser
entendida como uma espécie de teste para as
máximas morais interiores. Essas máximas precisam
ser refinadas com o tempo, à medida que se
reconciliam umas com as outras e se tornam cada vez
mais claras. Poderíamos até pensar na primeira
formulação como descrevendo um tipo de projeto de
pesquisa em andamento, combinado com o comando
ético de que todos os que são capazes de compreender
o imperativo categórico são, por esse mesmo fato,
obrigados a continuar buscando e raciocinando.
124

Pode parecer, no entanto, que a primeira


formulação dê pouca orientação clara sobre a política
em particular. A segunda formulação de Kant do
imperativo categórico pode nos ajudar um pouco
mais:
Portanto, aja de maneira a tratar a humanidade,
seja em sua própria pessoa ou na de qualquer outra,
em todos os casos como um fim, nunca como meio
apenas.74
Intimamente relacionado a esta segunda
formulação está sua terceira formulação:
O ser muito racional deve agir como se estivesse
em suas máximas, em todos os casos, como membro
legislador no reino universal dos fins.75
Os filósofos se intrigaram por mais de dois
séculos exatamente sobre o que Kant quis dizer ao
afirmar que essas três formulações eram todas
reafirmações uma da outra. (Infelizmente, Kant
nunca explicou totalmente essa afirmação.) Uma
maneira de pensar sobre isso pode ser simplesmente
que nossas máximas sempre mais cedo ou mais tarde
implicam seres racionais – no mínimo, elas implicam
a nós mesmos – e, como resultado, elas devem sempre
proceder de uma correta compreensão dos atributos

74 Kant’s Critique, p. 68.


75 Kant’s Critique, p. 75.
125

dos seres racionais. Se nossas máximas falharem a


esse respeito, serão inconsistentes e, portanto,
impossíveis de universalizar. Ao honrarmos a busca
ética em nós mesmos, devemos fazer isso pelos
outros; devemos reconhecer que eles estão em uma
busca semelhante à nossa. Essa busca exige que
procuremos e nos envolvamos pela universalidade – e
reconheçamos que todos os outros seres racionais
deveriam fazer o mesmo. Todos nós devemos
considerar um ao outro como membros legisladores
em um reino universal de fins. Assim, a razão e a
capacidade de raciocínio imbuem os seres humanos
com uma dignidade que nos torna algo mais que
meros instrumentos ou animais.
As implicações políticas agora entram num foco
melhor. Em comum com Aristóteles, Kant sustentava
que a busca pelo bem é um fim em si mesmo,
independentemente do quê se possa encontrar na
busca. Como resultado, não devemos usar qualquer
buscador ético meramente como uma ferramenta
para nossos propósitos. Esses últimos propósitos,
sem dúvida, repousarão sobre imperativos
hipotéticos. Por definição, eles serão específicos para
nós, em nossas vidas estreitas, e assim serão menos
importantes que a busca pelo bem. Na tentativa de
cumprir nossos objetivos particulares, atropelamos a
autonomia dos outros, o que é uma parte necessária
da busca deles pelo bem e isso não devemos fazer.
126

Aqui, então, temos a base (a) para a


comunalidade da dignidade humana e (b) para as leis
que tratam indivíduos com um igual respeito inicial.
Um Aristóteles ou um Einstein podem ser
superlativamente inteligentes, mas essas
inteligências não lhes conferem maior participação na
dignidade humana – e nenhuma preferência inerente
à lei – quando comparada a uma pessoa com
inteligência média ou abaixo da média. Aqueles com
talento excepcional não devem ser considerados
super-homens, porque é a capacidade de empreender
o próprio projeto ético que confere dignidade humana,
ao invés de qualquer realização particular ao longo do
caminho.
Agora começamos a ver como a ética de Kant
pode levar a algo como o libertarianismo. Poderia
algum conjunto básico de requisitos necessários para
tratar outras pessoas como fins em si mesmos – e
nunca apenas como um meio para algum fim em
particular – ser instanciado em lei, com a exclusão de
todos os outros tipos de lei? Tal regime poderia exigir
– admitidamente talvez com bastante frequência – que
as pessoas se abstenham de se comportar de certas
maneiras; isto é, elas devem se abster de se
comportar de algumas maneiras que envolvam tratar
os outros apenas como um meio para um fim. É
plausível que se abstenham do roubo de propriedades
legitimamente obtidas. A fortiori, elas não devem
assassinar ou escravizar. Não devem lidar umas com
127

as outras desonestamente ou restringir a livre


investigação intelectual e moral das outras. E assim
por diante.
É provável que não seja possível legislar de uma
forma que exclua todas as violações do imperativo
categórico, particularmente porque, como vimos,
muitas de suas violações são interiores e
imponderáveis. “Você realmente agiu com boa
vontade? ” É uma pergunta que, em muitos casos,
podemos efetivamente apenas fazer a nós mesmos e,
mesmo assim, não ter uma resposta pronta. É
também uma questão que poderíamos preferir, por
razões prudenciais, não confiar a nenhum agente
externo.
Ainda assim, pelo menos um conjunto grosseiro
de proibições ao uso de outros agentes morais apenas
como ferramentas é, em muitos aspectos,
congruentes com os objetivos liberais clássicos
padrões. Um liberal clássico poderia igualmente dizer
que os deveres positivos comandados pelo imperativo
categórico – como o dever de tratar os outros como
fins em si mesmos – não são passíveis de serem
promovidos pela legislação: se alguém trata o outro
como um fim meramente porque o direito civil
ordenou, então certamente não se tornou uma pessoa
mais moral.
O regime em questão potencialmente
enfrentaria muitos limites: de maneira plausível,
128

jamais seria permitido ordenar indivíduos a construir


uma ponte, ir à guerra ou até mesmo pagar impostos.
Fazê-lo por si só constituiria uma violação do
imperativo categórico, porque trataria os cidadãos
apenas como um meio para um fim maior, o fim
desejado pelos planejadores do governo. Assim como
nenhum indivíduo poderia consistentemente possuir
um poder moral para comandar os outros, também
nenhum governo poderia possuí-lo.
O argumento acima segue de perto a
justificativa que Robert Nozick deu para sua própria
forma de libertarianismo em seu livro de
1974, Anarchy, State, and Utopia, uma das mais
importantes e lidas obras da filosofia política
libertária.76 É completamente errado afirmar, como
alguns fizeram, de que o libertarianismo de Nozick era
“sem fundamentos”.77 As fundações de Nozick eram
kantianas. Lamentavelmente, seu tratamento de Kant
no capítulo três da obra é fragmentado e não
sistemático. Nozick geralmente preferiu questionar ao
invés de expor e neste capítulo parece ter presumido
uma familiaridade com o trabalho de Kant que
filósofos acadêmicos certamente teriam, mas que os
ativistas libertários talvez não o fizessem. No entanto,

76Robert Nozick, Anarchy, States, and Utopia (New York:


Basic Books, 1974).
77 Veja Thomas Nagel, Libertarianism without
Foundations, Yale Law Journal 85 (1975): 136–49.
129

pode-se mostrar que Nozick começou com um


respeito kantiano pelas pessoas como fins em si e
concluiu que esse respeito implicaria
necessariamente uma ordem social politicamente
libertária, com direitos negativos robustos que não
deveriam ser violados. Vamos agora recapitular seu
argumento.
Nozick primeiro fez uma distinção na ética
entre restrições e objetivos. Objetivos são aquelas
coisas que os agentes tentam atingir ou maximizar;
as restrições proíbem certos métodos que os agentes
poderiam usar na busca de seus objetivos. Nozick
observou que a filosofia moral utilitarista se
preocupava quase inteiramente com objetivos, como
a maximização da felicidade, e que o utilitarismo
geralmente não considerava as restrições. Como
resultado, os relatos utilitaristas dos direitos
individuais tendiam a ser pouco ou nada
convincentes: geralmente é muito mais fácil articular
direitos como restrições ao comportamento de outros
agentes do que como objetivos a serem maximizados.
Por exemplo, não se pode quantificar facilmente a
liberdade de culto, um passo que seria necessário
para que a liberdade de culto fosse tratada como um
objetivo a ser maximizado pelos agentes racionais. No
entanto, é totalmente simples dizer que os agentes
devem ser moralmente restringidos de impor
coercitivamente uma forma particular de culto.
130

Nenhuma quantificação é necessária, ou até mesmo


útil.
Nozick observou em seguida que o utilitarismo
é comumente considerado deficiente na medida em
que parece abençoar o uso de indivíduos em direção
a seus objetivos de formas que colidam com intuições
fortemente mantidas. Por exemplo, um utilitarista
poderia intencionalmente punir um homem inocente
apenas para apaziguar uma multidão enfurecida,
contanto que a punição causasse felicidade mais
agregada do que a abstenção.
O senso comum pediria que considerássemos
onde a justiça estava nessa situação, e um kantiano
discerniria a razão desse pedido: a punição teria sido
empreendida sem um pensamento para o dever ético,
ou, em outras palavras, para a universalização da
máxima. Não é possível que todas as pessoas
inocentes sejam punidas ou que as punições sejam
sempre arbitrárias em relação à culpa. Qualquer um
desses fatores seria inconsistente. A única coisa que
alguém poderia consistentemente desejar aqui, seria
que o inocente nunca deveria ser punido. O
utilitarismo teria que operar com máximas
inconsistentes, na medida em que aparentemente
puniria, às vezes, os inocentes, em busca da miragem
da felicidade.
A objeção de Nozick ao utilitarismo forma um
paralelo claro com a objeção de Kant a sistemas
131

semelhantes em sua época. Tanto Kant quanto Nozick


se queixaram de fato de que os sistemas repousavam
de forma insatisfatória sobre meros imperativos
hipotéticos, como a busca da felicidade. Como
consequência necessária, os sistemas que defendiam
a maximização da felicidade como uma meta – sem
restrições laterais – logo levariam seus defensores a
recomendar, com efeito, o uso de pessoas apenas
como ferramentas. Este é precisamente o tipo de ação
que a segunda formulação proíbe mais claramente.
Nozick, em seguida, especulou sobre como uma
sociedade poderia ser criada para proibir o uso de
pessoas como ferramentas de forma mais geral.
Observou que a filosofia política está preocupada
“apenas com certas maneiras pelas quais as pessoas
não podem usar outras; principalmente, agressão
física contra elas.”78 (A filosofia moral,
presumivelmente, permaneceria livre para toda a
conduta humana, mas, ao fazê-la, muitas vezes
permaneceria um esforço privado.) Mas embora o
escopo da filosofia política seja estreito, invocar a
segunda formulação de Kant pode ameaçar eliminar
completamente a política. Nozick escreveu:
As restrições do lado moral sobre o que podemos
fazer, afirmo, refletem o fato de nossas existências
separadas. Eles refletem o fato de que nenhum ato de

78 Nozick, Anarchy, p. 32.


132

equilíbrio moral pode ocorrer entre nós; não há


superação moral de uma das nossas vidas pelos
outros, de modo a levar a um bem social geral maior.
Não há sacrifício justificado de alguns de nós para os
outros. Essa ideia básica, a saber, que existem
indivíduos diferentes com vidas separadas e que
ninguém pode ser sacrificado pelos outros, subjaz à
existência de restrições laterais, mas também,
acredito, leva a uma restrição libertária que proíbe
agressão contra outra pessoa.79
Os Estados rotineiramente quebram essa
restrição lateral. Constantemente, em qualquer época
e lugar, os Estados usam as pessoas apenas como
ferramentas. Muito possivelmente sejam incapazes de
fazer o contrário. Para falar mais precisamente, os
agentes do Estado estabelecem metas que desejam
alcançar e obrigam os cidadãos a tentar alcançá-las,
apesar da dignidade e autonomia deles. O Estado,
como o conhecemos, estão, portanto, sob severa
acusação moral. Longe de exigir nosso respeito,
nossos líderes políticos devem ser desprezados.
Parece que todo o objetivo de sua existência é tratar
as pessoas apenas como ferramentas e não como
agentes morais.
Aqueles que desejam defender as ações do
Estado são assim obrigados, como argumentou

79 Ibid., pp. 33–34 [ênfase do original].


133

Nozick, a negar todas as restrições laterais (talvez


negando a própria filosofia moral kantiana e
substituindo por alguma regra mais maleável); ou
oferecer uma explicação diferente das restrições
laterais que é menos libertária; ou argumentar que a
individualidade e a dignidade das pessoas são
compatíveis com o início da coerção contra elas, uma
coerção que não equivale a tratá-las como
ferramentas, ou coisas, ou burros de carga. Talvez
nos seja permitido tratar os humanos como
ferramentas, mas apenas em alguns sentidos. É difícil
entender, no entanto, como esse tratamento pode ser
possível sem uma negação indiscriminada da
primeira formulação do imperativo categórico. Na
falta disso, porém, um kantiano estrito deve
considerar o Estado moderno como ilegítimo.
No geral, Nozick estava preparado para aceitar
esse resultado, e grande parte do restante de seu livro
é dedicado a propor e defender visões da vida social
que não envolvam o uso de pessoas como
ferramentas. A exploração dele das alternativas foi
sutil, atenciosa e notavelmente atenta ao processo.
Isto é, ele era uniformemente suspeito ao longo de seu
trabalho de teorias que se moviam rapidamente em
direção a – ou que meramente descrevia – um estado
final estático que deveria ser considerado
imediatamente como justo. Como veremos, essa
atenção ao processo – à história e ao desenvolvimento
– foi outro traço que ele compartilhou com Kant.
134

No entanto, em uma nota de rodapé famosa,


Nozick sugeriu uma exceção à necessidade de direitos
individuais entendidos como restrições laterais.
Talvez porque essa exceção seja tão singular, que tem
sido querida pelos estatistas desde então. Ele
escreveu: “A questão de saber se essas restrições
laterais são absolutas ou se podem ser violadas para
evitar um horror moral catastrófico, e no caso da
última, como seria a estrutura resultante, é algo que
espero evitar em grande parte”.80
Nós, que nos propomos a defender mais
sistematicamente uma base kantiana para a
liberdade individual, não devemos evitar a pergunta
de Nozick; se o fizéssemos, poderia se tornar mais
uma “pequena lacuna” por meio da qual “a liberdade
de todo homem pode, com o tempo, se extinguir”.81
Porém, se estamos sendo estritamente
kantianos, não está claro exatamente como a
fidelidade ao imperativo categórico em nossas
limitações políticas poderia causar um horror moral
catastrófico – isto é, um horror que depende apenas
da existência de nossos compromissos morais. Duas
outras possibilidades parecem muito mais prováveis.
Embora ambas sejam terríveis, em nenhuma delas

80 Ibid., p. 30.
81 John Selden, citado em F. A. Hayek, The
Constitution of Liberty (Chicago: University of Chicago Press,
1960), p. 205.
135

podemos dizer com justiça que nossa moral é a


culpada.
A primeira é que cometemos o erro não moral
de proceder a partir de imperativos hipotéticos
equivocados. Por exemplo: se quisermos evitar a
peste, devemos punir a feitiçaria. Este é, obviamente,
um erro terrível, mas não é um erro de moralidade. É
um erro de conhecimento, porque procede da crença
equivocada de que as bruxas causam pragas. O
imperativo categórico pode nos direcionar a estudar
tais questões empíricas, mas não pode nos fornecer
conclusões, por mais elementares que sejam. Aquelas
que devemos encontrar por nós mesmos.
Como seres racionais que apreenderam o
imperativo categórico, sim, somos obrigados a jamais
violá-lo conscientemente. Mas o simples fato de
compreender o imperativo categórico não nos dá todo
o conhecimento necessário para agir de maneira a
evitar todas as consequências ruins. Nem sequer
promete. O melhor que o imperativo categórico pode
fazer por nós é nos comandar a aprender maneiras
melhores de agir, dado o constante jogo de
contingências ao nosso redor. A moralidade vivida
pode e deve ser guiada pelo imperativo categórico,
mas sempre será justificada, pelo menos
parcialmente, com referência a imperativos
hipotéticos também. E alguns deles, infelizmente,
podem estar tragicamente equivocados. Nenhum
136

deles é um motivo para abandonar o próprio


imperativo categórico. O próprio Kant parece estar
bem ciente desse fato. Ele denominou a capacidade
de selecionar bem entre possíveis imperativos
hipotéticos de prudência, e não viu nada de errado
em obedecer aos conselhos de prudência. Pelo
contrário, foi uma parte fundamental de seu sistema
moral.82
A segunda possibilidade ocorre quando
estamos equivocados em nossa crença de que um
conjunto de eventos na verdade constitui um horror
moral catastrófico. Tais eventos podem não ser
horrores morais catastróficos, mas sim falsos
positivos. Por exemplo, a igualdade social das
mulheres já foi considerada um horror moral. E ainda
hoje, parece uma das implicações mais claras

82 Kant escreveu: “Daí resulta que os imperativos da


prudência não ordenam, estritamente falando, de modo
algum, isto é, não podem apresentar ações objetivamente
como praticamente necessárias; que eles são antes
considerados como conselhos (consilia) do que preceitos
(præcepta) da razão, que o problema de determinar
certamente e universalmente que ação promoveria a
felicidade de um ser racional é completamente insolúvel e,
consequentemente, nenhum imperativo a respeito é
possível, o que deveria, no sentido estrito, ordenar fazer o
que faz feliz”. Podemos buscar a felicidade, mas não
devemos entender essa busca de basear-se em um
comando categórico. Kant, Fundamental Principles of the
Metaphysic of Morals, p. 47.
137

possíveis do próprio imperativo categórico. Se a


história de horrores morais catastróficos for qualquer
indicação, nossa capacidade de identificá-los está
completamente distante comparada com nossa
propensão a gerar falsos positivos. A mistura das
raças, amor entre pessoas do mesmo sexo, fertilização
in vitro, vacinação, anestesia, maconha, jazz e
inúmeros outros foram caracterizados como horrores
morais catastróficos, e nenhum deles é nada disso.
Mais uma vez, a ética deontológica não pode ser
culpada por essas coisas, porque nada nelas é
censurável.
Antes de deixarmos o tratamento
predominantemente kantiano de Nozick sobre a
filosofia política libertária, devemos admitir que o
próprio Nozick tinha mais dúvidas. Em seu
livro Philosophical Explanations, Nozick parece ter
duvidado de alguns aspectos relevantes do
kantianismo. Seguindo uma sugestão de Walter
Kaufmann, Nozick questionou se o imperativo
categórico de Kant deveria ser chamado de categórico.
Não seria, perguntou ele, apenas mais um imperativo
hipotético, um com a condição implícita de faça isso
se você quer ser racional? E se você não quiser ser
racional? “Só um filósofo pensaria que isso é um
138

argumento decisivo”, brincou. “Quem mais pensaria


que o insulto final é ser chamado de irracional?”83
Existem várias maneiras de escapar dessa
questão. Uma das mais simples é assinalar que
quaisquer interlocutores que procedam ao longo
destas linhas teriam, assim, perdido sua
reivindicação de nossa consideração fundamentada.
As pessoas que deliberadamente renunciam à razão
não têm o direito de nos dar suas razões e esperar que
prestemos atenção a elas. Como essas pessoas
declaram que não estão implantando a razão,
nenhuma conversa útil pode ocorrer entre nós. Ainda
menos podem legislar para os demais no reino dos
fins, fins estes em que afirmam não serem sequer
uma parte.
Voltemos agora a Kant, que não era
politicamente radical, mesmo que o trabalho de
Nozick sugira que ele deveria ter sido. A política de
Kant era um liberalismo clássico distintamente
moderado, que até aprovava a taxação involuntária,

83 Robert Nozick, Philosophical


Explanations (Cambridge, MA: Harvard University Press,
1981), p. 354. Mas ele tinha escrúpulos com escrúpulos;
o imperativo em que Nozick se instala, algumas centenas
de páginas depois, ainda assim admitiu um “parentesco”
com Kant, e é uma pergunta justa se Nozick de fato não
retrocedeu a uma reafirmação do imperativo categórico.
Veja p. 462.
139

alegando que só ela possibilitava a sociedade civil. A


teoria política de Kant incluía um aspecto significativo
de contrato social, mas também era sensível ao fato
de que as sociedades humanas estão sujeitas a
mudanças no curso da história, tanto para melhor
quanto para pior. Kant enxergava isto como a tarefa
contínua da filosofia esclarecida de gradualmente
resolver os defeitos encontrados nas sociedades de
sua época. Os libertários modernos estão aptos a
achar sua abordagem deficiente, mas entre as
deficiências, encontrarão muito para elogiar e
ponderar.
De acordo com seu pensamento ético, Kant
proclamou que o princípio supremo da lei deveria ser
o seguinte:
Toda ação é certa e justa, cuja máxima permite
aos agentes a liberdade de escolha de se harmonizar
com a liberdade de todos os outros, de acordo com uma
lei universal.84
Podemos apreciar imediatamente que a
preservação da escolha prática – que permite a
perspectiva de harmonia social – era central para a
concepção de justiça de Kant. Ele se moveu deste
princípio muito rapidamente para uma fórmula

84 Immanuel Kant, The Metaphysics of Ethics, 3rd ed.,

ed. Henry Calderwood, trans. J. W. Semple (Edinburgh: T.


& T. Clark, 1886 [1796]).
140

bastante semelhante à lei posterior da igualdade de


liberdade, cujas variantes são encontradas em
Herbert Spencer, John Stuart Mill, John Rawls e
outros. Como Kant escreveu:
Portanto, atue para que o uso de sua liberdade
não circunscreva a liberdade de qualquer outro.85
A fórmula não é tão ampla quanto a de Spencer,
que concedia a cada indivíduo a máxima liberdade
compatível com uma liberdade semelhante em outros.
Mas podemos discernir aqui uma distinção nítida,
como é comum na tradição liberal clássica, entre
liberdade, que é respeitosa com a mesma em outros,
e licença, que não é. Mas por que existem leis que são
socialmente promulgadas e, portanto, (obviamente)
exteriores à vontade? A resposta de Kant revela muito
sobre sua teoria social em geral e, particularmente,
sobre o caráter evolutivo dessa teoria:
A própria noção de lei consiste na possibilidade
de combinar a co-ação mútua universal com a
liberdade de cada pessoa.86
A lei existe para facilitar a cooperação – mas
apenas sob a condição de não obliterarmos a
liberdade de ninguém. A lei não existe para alcançar
um determinado resultado na sociedade, mas para

85 Ibid., p. 179.
86 Ibid., p. 180.
141

permitir tanto a cooperação voluntária quanto a


liberdade individual, com as quais muitos projetos
diferentes podem ser realizados.
Em sua obra “Ideia de uma história universal
de um ponto de vista cosmopolita”, Kant chegou a
sugerir que tanto a liberdade quanto a cooperação
eram necessárias para que a humanidade alcançasse
seu destino como espécie – uma ideia de que perdoo
nossos leitores por reduzi-la, pelo menos no início.
Certamente soa profundamente não-libertária. No
entanto, em um exame mais detalhado, o destino que
Kant imaginou pode não ser tão ameaçador. O que
Kant tinha em mente pelo destino da espécie pode até
se assemelhar ao que F. A. Hayek chamou de ordem
espontânea:
Os meios que a Natureza emprega para
promover o desenvolvimento de todas as capacidades
implantadas nos homens são o seu antagonismo
mútuo na sociedade, mas apenas na medida em que
esse antagonismo se torne, por fim, a causa de uma
Ordem entre eles regulada pela Lei.87

87 Immanuel Kant, Idea for a Universal History from a


Cosmopolitan Point of View, 4th proposition, em Kant’s
Principles of Politics, Including His Essay on Perpetual Peace: A
Contribution to Political Science, trans. William Hastie
(Edinburgh: T. & T. Clark, 1891 [1784]).
142

É irrelevante se a “Natureza” faz emergir essa


ordem, ou se a ordem surge por sua própria vontade,
ou mesmo se essas duas possibilidades sejam apenas
maneiras diferentes de dizer a mesma coisa. O
essencial é que a humanidade possa se desenvolver
ao máximo apenas no contexto de uma ordem social
contínua, que perdura por muitas vidas e permite
uma medida de competição pacífica. Uma forma de
competição pacífica surgirá imediatamente para os
liberais clássicos, a saber, o processo de mercado.
Outras, no entanto, podem existir, e vale a pena
perguntar como pelo menos dois sistemas sociais, a
ordem de mercado e o socialismo, podem se sair de
uma perspectiva kantiana.88 Vamos considerar as
atitudes de Kant em relação ao processo de mercado,
ou pelo menos o que podemos inferir sobre elas, antes
de passar para o que um libertário kantiano teria a
dizer. Primeiro, consideraremos algumas das
objeções de um socialista kantiano.
Não se pode apropriadamente pertencer à
tradição liberal clássica sem uma descrição robusta
da propriedade privada que implique seu uso e

88 A competição é de fato possível sob o socialismo,


embora fora do processo de mercado. Competições nas
artes, atletismo e afins certamente existiram sob regimes
socialistas. Se eles são preferíveis a suas contrapartes
capitalistas, é uma questão que não precisamos explorar,
embora eu suspeite que os socialistas possam ser gratos
por nosso silêncio.
143

transferência relativamente irrestritos. Para ser


chamado de liberal em qualquer sentido, essa
explicação também deve fornecer razões sólidas
similares para rejeitar o uso e transferência de
pessoas. E, de fato, Kant tinha exatamente isso em
conta. A teoria da instituição da propriedade de Kant
foi, em muitos aspectos, mais fundamentada
historicamente do que a de Locke, ou mesmo a de
Hume. Também se encaixa bem com o projeto
intelectual e ético que delineamos acima – a
apreensão gradual das leis éticas da razão e a
reconciliação da vontade com os ditames da razão.
Kant acreditava que os direitos de propriedade
tipicamente surgiam gradualmente, de reivindicações
repetidas, reconvenções, adjudicações e
reafirmações, e não de qualquer ato definitivo de
acordo ou designação, seja pelo Estado ou por
indivíduos.89 Essa visão orientada para o processo
nos ajuda a ganhar novas perspectivas sobre vários
problemas complexos, incluindo a compensação por
erros históricos. Pode ser comprovado, por exemplo,
que, contrariando a máxima do direito comum em
relação à propriedade adquirida indevidamente, a
legitimidade pode surgir com o tempo. Dada a origem
inicialmente arbitrária (e muitas vezes criminosa) de

89 Este resumo segue de perto Marcus


Verhaegh, Kant and Property Rights, Journal of Libertarian
Studies 18 (Summer 2004): 11–32.
144

quase todos os títulos de terra, não haveria outro


caminho a seguir de qualquer forma. Devemos
admitir que todo o mundo é roubado e depois
estabelecer uma instituição para redistribuir tudo, ou
admitir que os erros do passado são melhor corrigidos
gradualmente. Instituições que redistribuem tudo são
muito perigosas na prática para serem confiáveis, e
assim nossa escolha se torna clara.
De uma condição sem dono, a terra na teoria de
Kant pode primeiro ser apropriada por qualquer
pessoa com meios para defendê-la. Nenhuma mistura
de trabalho é necessária para fazer uma reclamação.
Esta reivindicação provisória, no entanto, não era, em
nenhum sentido, um direito absoluto. Nisto Kant
diferiu de Locke de duas maneiras. Locke, lembre-se,
insistia que a mistura de trabalho era necessária para
estabelecer a propriedade. E a partir desse ponto,
Locke afirmou que a propriedade estava resolvida e
era absoluta.
Em nenhum ponto a vida real parece
corresponder bem à tese lockeana. Em ambos, a
descrição de Kant parece descrever a apropriação
inicial com maior precisão histórica. Na melhor das
hipóteses, existe uma obrigação limitada de não
interferir na terra que é desta maneira apenas
provisoriamente controlada por outros. Mas essa
obrigação pode ser violada se um requerente de terras
se recusar, por exemplo, a entrar em um estado de
145

sociedade civil com seus vizinhos. Não seria


necessário ter bárbaros nas nossas fronteiras. De
fato, essa mesma consideração levou Kant a acreditar
que a implementação de um contrato social era
moralmente obrigatória, apesar da relativa
imparcialidade do contrato. Qualquer coisa
constituiria uma melhoria em relação à falta de
sociedade civil.
Este entendimento certamente é rejeitado entre
os libertários, mas não está claro para mim como é
fundamental para o pensamento social de Kant.
Afinal, contratos deste tipo podem ser
excepcionalmente raros. 90 Em qualquer caso, a
obrigação provisória de respeitar os direitos de
propriedade se solidifica com a entrada na sociedade
civil, que os seres racionais devem reconhecer como
desejáveis. Ela se solidifica ainda mais com o tempo
e o uso sob um regime justo de leis.91 Como escreveu
o acadêmico moderno Marcus Verhaegh:
A melhor metáfora para o relato de Kant do
movimento fora do estado de natureza é o
desarmamento – o desarmamento encenado e
negociado. Todos nós temos o dever de reduzir os
conflitos violentos e o potencial de conflito violento,

90 Veja Kevin E. Dodson, Autonomy and Authority in


Kant’s Rechtslehre, Political Theory 25 (February 1997): 93–
111.
91 Verhaegh, Kant and Property Rights, p. 20.
146

caminhando para um cenário em que as disputas de


propriedade são decididas pela regra da lei correta, e
não pelo poder militar em curso e em competição. Mas
antes do desarmamento total – o mundo totalmente
cosmopolita – a força militar desempenha um papel
significativo na definição dos limites da propriedade
correta.92
Infelizmente, a força militar ainda é necessária.
E ainda seria necessária, acreditava Kant, até que um
regime mundial de paz perpétua fosse estabelecido,
no qual todos os países gozassem de um governo
republicano, bem como a renúncia aos exércitos de
guerra e permanentes. Essa ordem social cosmopolita
seria uma das maiores conquistas da civilização
humana. Kant também achou que seriam necessárias
muitas gerações. Enquanto isso, os governos devem
fazer o melhor para avançar em direção a isso.
Em contraste com suas fortes afirmações sobre
as necessidades interiores da razão, Kant foi
relativamente modesto em suas afirmações sobre a
natureza da história e seus desdobramentos. Ele não
alegou ter discernido um conjunto de leis históricas
que operariam como necessárias, mesmo que, à
primeira vista, ele pareça ter feito isso e, assim,
permanecer condenado como um historicista. Pelo
contrário, Kant foi deliberadamente vago quanto às

92 Ibid., p. 21.
147

instituições da futura sociedade cosmopolita, que


nem ele nem nenhum de nós poderia discernir em sua
totalidade. Diferentemente de Marx ou Hegel, Kant
também deixou espaço para – e de fato atribuiu um
lugar central – à liberdade da ação individual, que, se
permitida a operar, acabaria instanciando a
sociedade cosmopolita do futuro. Os agentes ativos
aqui serão indivíduos livres, não classes sociais,
espíritos nacionais ou forças sociais impessoais, e as
alegações que Kant fez sobre o futuro eram poucas e
qualificadas.
Como, então, os direitos de propriedade e o
direito cosmopolita se relacionam com o projeto ético
de Kant? Não nos tornará necessariamente pessoas
boas; nada impede que o indivíduo proprietário tenha
uma vontade ruim. Tampouco os direitos de
propriedade são necessários para a posse da
liberdade ética interior, pois sempre temos a
capacidade de querer o bem – ou não -,
independentemente de quão insatisfeito ou pobre
alguém possa ser. Uma pessoa boa pode viver e ser
boa, sob um governo ruim ou em destituição. Os
traços são nesse sentido bastante independentes.
Mas os direitos de propriedade somente nas
coisas – e nunca nas pessoas – podem nos ajudar a
obedecer mais perfeitamente aos deveres negativos
claramente implícitos na segunda formulação do
imperativo categórico: ao conceder aos indivíduos a
148

capacidade de adquirir, modificar e alienar a


propriedade, também permitimos que usem a
propriedade para seus próprios fins e declaramos, por
assim dizer, nossa máxima de que apenas coisas
irracionais devem ser usadas como ferramentas – e
nunca as pessoas. Um regime cosmopolita de
propriedade privada que exclui a escravidão traça,
assim, uma linha clara entre o reino dos fins, que é
reservado para as pessoas, e o reino dos meios, que
se sobrepõe amplamente à categoria legal de
propriedade. Essa conformidade exterior, acreditava
Kant, poderia levar as pessoas à apreensão interior
da lei moral.93

93 A visão de Kant de uma transição gradual – da


apropriação violenta defendida violentamente a uma
sociedade civil cosmopolita defendida apenas pela razão –
antecipa grande parte do liberalismo alemão subsequente,
particularmente a visão anarcocapitalista do sociólogo
Franz Oppenheimer do início do século XX. A “cidadania
livre” de Oppenheimer tem uma forte semelhança com – e
parece compartilhar todas as qualidades essenciais da lei
cosmopolita de Kant, com a única exceção de que
Oppenheimer acreditava na eventual obsolescência do
próprio governo. Assim, embora não seja frequentemente
apreciado hoje, uma tendência significativa do
anarquismo de mercado foi diretamente inspirada pela
teoria social kantiana. Veja Franz Oppenheimer, The State:
Its History and Development Viewed Sociologically, trans. John M.
Gitterman (Indianapolis, IN: Bobbs-Merrill, 1914; repr.,
London: Forgotten Books, 2012).
149

Sob um regime cosmopolita de propriedade,


nós também obtemos um tipo semelhante de
autonomia externa para nós mesmos. Grande parte
do projeto cosmopolita parece ter como objetivo fazer
com que o exterior se pareça mais com o interior. Ele
visa expandir nossa liberdade de ação no mundo
fenomenal, isto é, o mundo das experiências
exteriores, para se assemelhar mais com a liberdade
de ação no mundo interior da mente. O que fazemos
com nossa propriedade, note, pode ser bom ou ruim,
mas ao menos teremos garantido um dos
fundamentos de levar uma vida externa moralmente
boa, que é a capacidade de autogoverno. (Para Kant,
a crescente capacidade de se autogovernar como um
adulto, uma regra independente do Estado, também
era a essência do Iluminismo).94 Sob as instituições
livres, a obediência à lei escrita e a obediência à lei
moral podem agora começar a harmonizar, mesmo
que, como advertiu Kant, nossas reivindicações
atuais de propriedade possam não ser totalmente
resolvidas ou justas. Com o tempo, elas podem ser,
se continuarmos a desejar.
Até agora, falamos muito sobre propriedade,
mas pouco sobre comércio. Um liberal clássico
poderia até se perguntar qual seria o limite da
propriedade, caso não fosse permitida a transferência

94Immanuel Kant, What Is Enlightenment? trans. Mary


C. Smith [1784].
150

ou o processo de mercado operar. Nosso silêncio,


porém, é por uma razão bastante forte: o próprio Kant
parece ter se preocupado pouco com a economia. Ele
raramente empregou exemplos que procedessem do
que poderíamos chamar de comportamento
econômico no sentido estrito, isto é, aqueles que
envolvam compra e venda. Seus pensamentos sobre
o assunto parecem ter sido poucos, e somos deixados
para extrair inferências a partir de um conjunto de
dados escassos.
Quando Kant escreveu sobre troca de mercado,
no entanto, certamente não escreveu para condenar
a prática em todos os casos. Em vez disso, condenou
apenas tipos específicos de troca, incluindo casos de
fraude; discriminação de preços; e a venda de órgãos,
como dentes, uma prática comum na época. (Dos
três, não é de todo claro que as duas últimas
condenações devam subsistir.) Kant também estava
ciente dos escritos de Jean-Jacques Rousseau, que
condenava o comércio, muitas vezes de forma
bastante explícita, e é evidente que, embora Kant
tivesse todas as oportunidades, ele se recusou a
concordar.
Ao todo, no entanto, muito trabalho ainda
precisa ser feito para teorizar o processo de mercado
do ponto de vista da ética kantiana. Fundamentos
importantes foram estabelecidos pelo filósofo
contemporâneo Mark D. White, que sugere que os
151

deveres negativos de Kant – aquelas coisas que somos


obrigados, em um sentido absoluto, a não fazer aos
outros – e os deveres positivos de Kant – aquelas
coisas que somos obrigados, num sentido limitado, a
fazer por benevolência aos outros – são ambas
compatíveis com uma sociedade de mercado. As
primeiras possibilitam uma sociedade de mercado, e
as últimas tornam ela agradável. White estabelece um
paralelo com esses dois tipos de deveres com os
mundos descritos nas duas grandes obras de Adam
Smith, “A Riqueza das Nações” e “A Teoria dos
Sentimentos Morais”. O primeiro considera o domínio
do dever meramente negativo, enquanto o segundo
examina nosso dever positivo de beneficência.
Embora a ética de Smith não fosse deontológica como
a de Kant, a abordagem ainda parece promissora.95
Contra tudo isso, entretanto, às vezes foi
sugerido pelos estudiosos socialistas da ética de Kant
que o imperativo categórico realmente proíbe todas,
ou pelo menos muitas, trocas no mercado. Na compra
e venda, não trato a minha contraparte meramente
como um meio para um fim? Eu não fiz um mero
objeto do padeiro? Não o tratei com a mesma precisão

95 Veja Mark D. White, Adam Smith and Immanuel Kant:


On Markets, Duties, and Moral Sentiments, Forum for Social
Economics 39 (April 2010): 53–60. Veja também Mark D.
White, Kantian Ethics and Economics: Autonomy, Dignity, and
Character (Stanford, CA: Stanford University Press, 2011).
152

na qual teria tratado uma máquina de venda


automática, que é, sem dúvida, uma ferramenta?
(Dificilmente parece que as conversas rotineiras,
quase mecânicas, que acontecem no curso de uma
transação comercial típica constituiriam uma grande
melhoria, da mesma forma que alguém falando
distraidamente com uma máquina de venda
automática!) As coisas parecem ficar ainda piores em
relação à compra e venda de mão de obra, na qual o
capitalista pareceria pesar a opção de empregar um
trabalhador contra a escolha de “empregar” uma
máquina, que constituiria, para seus propósitos, um
substituto perfeito. Esta não seria uma falha fatal no
projeto de justificar o processo de mercado na ética
kantiana?
Se fosse uma falha, então o fato de que as
trocas no mercado parecessem necessárias para nós
indicaria não mais do que um fracasso de nossa
própria vontade, com a correspondente necessidade
de retificá-las. Talvez devemos até mesmo nos
resignar ao horror moral catastrófico de defender o
socialismo (que, teríamos de admitir, classificamos
erroneamente). Isto poderia ser dito por socialistas
kantianos e alguns outros.96 De fato, nada menos que

96 A figura para essa interpretação de Kant é de


Hermann Cohen, embora se deva admitir que ela parece
sugerir quase imediatamente a todos os céticos libertários
do kantismo. Hermann Cohen, Ethik des Reinen
153

uma autoridade como Ludwig von Mises argumentou


que “fora do misticismo de Kant do dever […] é fácil
traçar o desenvolvimento do pensamento socialista”.
Os leitores já devem perceber que a lealdade de
Kant ao dever não era, pelo menos, abertamente
mística, mesmo que não seguissem ou concordassem
com seu argumento. Em nenhum momento Kant
apela ao incognoscível ou a uma mente superior; o
apelo é, supostamente, apenas para o poder da razão.
Existem várias outras razões pelas quais Mises estava
simplesmente errado nessa passagem, e por que a
ordem social cosmopolita de Kant não precisa ser – e
talvez não deva ser – um socialismo.
Primeiro, como o próprio Kant argumentou, os
únicos deveres perfeitos que devemos a outros
agentes morais autônomos – isto é, os únicos deveres
que são absolutos ou categóricos – têm caráter
negativo. São ações das quais devemos ter certeza de
nos abster. Já vimos que não temos o perfeito dever
de ajudar os outros, muito menos de fornecer-lhes
qualquer conjunto particular de recursos,
categoricamente e sem levar em conta as
circunstâncias. Os socialistas kantianos devem,
portanto, contar com o fato de que todas as formas de
socialismo não-voluntárias implicarão deveres
exatamente desse tipo impróprio. Em comum com

Willens (Berlin: Bruno Cassirer, 1904; repr. Charleston,


SC: Nabu Press, 2010).
154

todas as outras formas de Estado moderno, os


Estados socialistas usam necessariamente as
pessoas como ferramentas.
Segundo, para o próprio Kant, a provisão de
bens econômicos parece não ter sido uma questão de
ética, mas de prudência e habilidade. A questão de
qual sistema econômico – o socialismo (voluntário) ou
o capitalismo (voluntário) – supriria melhor as
necessidades materiais do mundo, não é, portanto,
uma questão a ser resolvida com referência apenas ao
imperativo categórico. Em vez disso, a ciência
econômica pode e deve resolvê-la de forma
independente, embora guiada pelas restrições laterais
que surgem do imperativo.
Terceiro, devemos considerar a reciprocidade:
se estou tratando o padeiro como uma ferramenta –
bem, ele não está fazendo exatamente o mesmo
comigo? Ele não me trata como um meio de se livrar
de seu pão excedente? Posso ser substituído por uma
máquina de compra? Talvez sim. Mas como é possível
que nos tratemos uns aos outros apenas como
ferramentas? Se sou tratado como uma ferramenta,
então sou roubado da minha autonomia. Mas se sou
roubado da minha autonomia, como posso também
tratar meu colega, que supostamente me domina,
como uma ferramenta? É difícil ver como posso agir
no sentido ético, e muito menos agir mal, quando fui
privado da minha agência. A presença de
155

reciprocidade, então, sugere que a vontade de


nenhuma das partes foi violada pela outra.
Em quarto lugar, se admitirmos que as bolsas
de valores tratam pelo menos um agente envolvido
apenas como uma ferramenta, como podemos
diferenciar trocas de mercado de formas de
cooperação não mercantis, que parecem ser
igualmente acusadas? Em que sentido os
participantes de um socialismo voluntário não tratam
uns aos outros como meramente um meio para um
fim? O imperativo categórico não exige que todos nós
vivamos como eremitas; de fato, Kant recomendou
entusiasticamente a cooperação de muitos tipos
diferentes.
Devemos agora procurar alguma maneira de
formular o ato essencial de cooperação que não
dependa de máximas que sejam vítimas do imperativo
categórico. Note que não será suficiente
simplesmente dizer que nossas relações cooperativas
dizem respeito apenas à disposição das ferramentas,
e que, como resultado, apenas imperativos
hipotéticos estão em jogo. A questão em pauta é saber
se tratamos inadmissivelmente nossos colegas na
troca como ferramentas em si mesmos.
Pode-se dizer que a cooperação de todos os
tipos assume a seguinte forma, seja no mercado ou
fora dele: juntos, dois agentes autônomos concordam
em formular um plano, segundo o qual usarão seus
156

recursos combinados. Ambos os agentes desejam


igualmente que o plano seja executado sobre
quaisquer alternativas disponíveis. Dado que o plano
representa a primeira escolha de cada agente, parece
difícil afirmar que o plano não represente o que os
participantes querem. Note que esta conclusão é
verdadeira se uma troca de mercado ocorreu ou não;
observe também que tanto o comprador quanto o
vendedor obtêm sua primeira escolha de todas as
opções disponíveis, mesmo quando a venda não é
realizada.
Nesta reconstrução, uma máquina de venda
automática ainda é uma ferramenta, mas é uma
ferramenta que o comprador e o vendedor concordam
em usar juntos para realizar uma distribuição de
recursos acordada. Um padeiro ainda é um agente
autônomo, aquele que propõe um plano de ação para
todos os que entram em sua loja. E um capitalista,
que deve escolher entre trabalho humano e trabalho
maquinal, não trata necessariamente um trabalhador
apenas como uma máquina. Ao contrário, ele escolhe
entre dois planos diferentes, os quais em vários
pontos implicam que os seres humanos trabalhem
voluntariamente para receber: ou o trabalhador o faz
diretamente, ou então o trabalhador(es) que fez a
máquina desempenha esse papel indiretamente. Em
todos os casos, há uma cooperação de vontades.
157

Muito trabalho ainda precisa ser feito aqui, em


parte por causa da profunda aversão dos liberais
clássicos modernos à ética kantiana e em parte por
causa da negligência da economia de Kant. Mas a
escola austríaca deve muito a Kant, apesar dessa
negligência, sobretudo na epistemologia. Como
resultado, o projeto de reconciliar ainda mais a ética
de Kant com o libertarianismo provavelmente será
proveitoso para os estudiosos que são tão inclinados.
O projeto nem sempre será fácil. Kant negou
categoricamente um direito que os liberais clássicos
geralmente enfatizam, o direito de resistência ao
Estado. Mas, assim como a questão de se alguém
pode obrigar a obediência a um contrato social inicial,
é possível argumentar que a rejeição de Kant ao
direito de resistência é uma parte periférica de seu
pensamento social. É realmente, como Kant pensou,
sempre o sujeito que quebra o contrato social? E
nunca o Estado? Um contrato que uma das partes é
incapaz de violar seria altamente desigual e poderia
até violar o imperativo categórico. Um kantiano
melhorado talvez devesse rejeitá-lo de imediato,
exatamente como Robert Nozick fez.
Finalmente, a liberdade de expressão
desempenhou um papel especial na teoria social de
Kant. Enquanto os libertários modernos estão aptos
a colapsar a liberdade de expressão em simplesmente
outro aspecto dos direitos de propriedade – embora
158

talvez psicologicamente importante – para Kant, a


capacidade de exercer a razão publicamente,
considerando os assuntos atuais e o governo, era
mais do que um uso especial de sua propriedade. Foi
também uma parte fundamental da vida em uma
sociedade civil. A capacidade era vital por dois
motivos. Em primeiro lugar, Kant acreditava que era
a única defesa substancial dos cidadãos contra o
poder soberano nos casos em que o soberano age
erroneamente. E segundo, o bom governo em si só
poderia surgir por meio de um processo de
deliberação, no qual todas as opiniões fossem
ouvidas, com franqueza e sem medo de punição.
Agora, não precisamos sustentar, como fez
Kant, que os indivíduos não têm direito próprio de
revolução contra um soberano, a fim de acreditar que
o direito de expressar nossas queixas exige um status
especial em uma sociedade governada, em oposição a
um apátrida. Mesmo uma ligeira consideração pela
consequência nos permitirá chegar a essa conclusão
de qualquer maneira. Essa consideração pela
consequência pode não fazer parte do fundamento da
lei moral. Mas também não é proibido pela lei moral,
e a entrada na sociedade civil pode requerê-la à
maneira de um imperativo hipotético.
Muito trabalho ainda precisa ser feito para
fundamentar o pensamento social libertário na ética
kantiana, mas é claramente um projeto viável e
159

contínuo, que já promete libertar o pensamento social


libertário de muitos dos problemas que o cercam em
algumas de suas outras formulações.
160

CAPÍTULO 4 -
CONTRATUALISMO E
LIBERTARIANISMO

PESSOAS RAZOÁVEIS ACEITARÃO


INSTITUIÇÕES POLÍTICAS LIBERTÁRIAS
PORQUE NOS DEIXARÃO VIVER JUNTOS EM PAZ
ENQUANTO PERSEGUIMOS NOSSOS
DIFERENTES VALORES E ESTILOS DE VIDA.
A ideia geral da teoria do contrato social existe
há muito tempo. Há uma visão clara disso na
República de Platão, por exemplo, muito antes dos
esforços mais recentes e famosos de Hobbes, Locke,
Rousseau, Kant e, mais tarde, John Rawls e David
Gauthier. O que é essa ideia geral, e ela é de quê? E
como isso se relaciona com o libertarianismo? Essas
questões serão discutidas neste capítulo.
Contrato social é uma teoria sobre os
fundamentos de uma certa classe de teorias
normativas – morais e políticas. Começamos
explicando o ponto de uma teoria fundacionalista e
das vantagens desse tipo de teoria particular.
Passamos então para a natureza especificamente
moral e política da teoria resultante, concluindo com
o argumento do libertarianismo como a produção
161

básica da teoria. Teorias desse tipo realizam algo


importante – mas não se aproximam de tudo, e
também reconheceremos seus limites.

CONTRATO SOCIAL COMO FUNDAMENTO


NORMATIVO
O próprio tema dos “fundamentos” de uma
teoria normativa tem sido e continua a ser disputado
por filósofos. Como o próprio nome sugere, o termo
refere-se às premissas básicas sobre as quais a teoria
se fundamenta. Seria preciso uma discussão muito
completa para explorar os muitos caminhos dessa
teoria ao longo dos anos, um projeto que dificilmente
poderemos empreender aqui. Mas vários pontos
básicos podem ser notados. O primeiro é que muitos
teóricos acham que não existem “fundamentos”. Uma
teoria fundacionalista sustenta que há certas (uma
ou algumas) premissas gerais básicas, ou tipos de
premissas, que sustentam uma teoria sobre o que é
justo e injusto, certo e errado – sustentação no
sentido de que as verdades da teoria derivam
daquelas poucas ou de uma premissa normativa,
mais premissas factuais relevantes, sujeitas a testes
empíricos.
Uma questão separada é se essas premissas
normativas básicas são, elas próprias, sui generis –
ou elas podem, por sua vez, derivar de algum tipo de
162

fato? A última visão, é claro, convida às acusações de


cometer a “falácia naturalista” que obcecou os
filósofos morais no século XX. Qualquer teórico que
tente esta última rota deve responder a essa
acusação. Nós vamos, de fato, fazer isso nesta
exposição.
Como dito, os filósofos tendem a negar o
fundacionalismo na teoria moral e política. E essa
atitude produz uma resposta geral: se não existem
fundamentos, então como você entra em qualquer
discussão quando discordamos, como tantas vezes
fazemos, sobre esses tópicos? Se nada que você possa
dizer claramente conta, e pode ser demonstrado que
conta, a favor ou contra qualquer coisa, então a
perspectiva de resolução é nula. Isso é ruim? Sim, diz
o teórico do contrato social. E provavelmente todos
concordariam que, se isso puder ser feito, seria bom;
o que eles negam é que seja possível.
A próxima coisa a dizer é que um fundamento
é evidentemente inútil se não for melhor ou mais
“sólido” do que aquilo que se propõe a “fundamentar”.
Não devemos nos fundamentar em terreno movediço.
Essa observação é especialmente importante em
relação a quase todas as propostas atuais sobre
fundamentos. Um exemplo importante e altamente
pertinente é um tipo de teoria chamada
“intuicionista”, segundo a qual há de fato afirmações
morais “básicas” no sentido de que nenhuma outra
163

razão pode ser desenvolvida em favor de tais


alegações. As pessoas podem até afirmar que essas
alegações são “autoevidentes”. O problema com isso,
no entanto, é que é impossível encontrar quaisquer
declarações morais que não tenham sido rejeitadas
por alguns. De fato, existem “amoralistas”, céticos da
moral, que afirmam que não existe tal coisa como
moralidade. O que o intuicionista diz para eles? O
que, isto é, poderia causar alguma impressão –
poderia apelar para as faculdades racionais do cético?
O teórico do contrato social afirma que há algo que
podemos dizer proveitosamente. Esse teórico também
tem uma resposta ao “relativista”, que insiste que a
moralidade é meramente “relativa”, como a cultura ou
a personalidade, e assim por diante.
Se uma teoria do contrato social vai funcionar,
ela deve estar fundamentada em fatos –
características reais da vida humana e social. Deve
haver generalidade e semelhança suficiente para que
a teoria alcance claramente todos, e não apenas
alguns. E deve ser uma receita que faça sentido
racional para todos – todos devem ser capazes de
entender por que essa receita, esse princípio, é o
caminho a seguir. Isso é possível? Veremos.
A teoria do contrato social sustenta que a
moralidade, vista racionalmente, é fundada, de
alguma forma, no acordo ou, pelo menos, na
concordância racional – acordo do tipo que qualquer
164

pessoa racional pode ver razão para fazer. E isso


fornece recursos importantes para respostas a céticos
e dissidentes (se funciona): se você concorda que algo
ou outro está ou pode estar certo, então você não está
em condições de se virar e negar. Teríamos que
distinguir entre acordos históricos reais, tipificados
por contratos comerciais, tratados e assim por diante,
e acordos hipotéticos – acordos que se fariam com a
reflexão. E, especialmente importante, devemos
procurar um acordo em ação. Qualquer coisa
meramente feita no papel ou em palavras não tem
interesse, a menos que, de alguma forma, se baseie
na ação real e na disposição de agir.
Tal acordo obviamente não pode ser uma
espécie de Convenção Constitucional da Pan-
humanidade, na qual todos nós nos reunimos e
assinamos algum documento formal. Pode, no
entanto, ser um reconhecimento de uma estrutura
racional subjacente. Eu chego a um acordo em ação
como o resultado da apreciação de senso comum de
nossa condição. David Hume é a fonte de um grande
exemplo: quando dois homens remam em um barco,
eles caem em um ritmo e um nível de esforço que os
leva em uma direção. Nenhuma discussão inicial e
nenhuma “contratação” foram necessárias.
Como um exemplo mais moderno e
amplamente reconhecido, considere a “regra da
estrada”: ao dirigir em uma rua ou estrada de mão
165

dupla, mantenha-se à direita (ou à esquerda, se essa


for a regra reconhecida localmente). Aqui, o mérito de
seguir a regra é evitar as colisões danosas ou fatais
que podemos esperar. É um mérito que qualquer um
pode entender e, em condições reais, praticamente
todos virtualmente sempre aderem. As raras exceções
são discutíveis: passar um veículo mais lento, o que é
bom quando é seguro. Então a questão “é seguro
neste caso?” torna-se relevante. Isso pode ser uma
questão de desacordo, mas agora existem critérios
claros para apelar na decisão – não estamos apenas
à deriva. Outro mérito do exemplo é que ele explica o
que pode ser “relativo”, mesmo que isso não atrapalhe
a produção normativa. O que é relativo é de que lado
da estrada devemos continuar. Junte um grupo de
pessoas onde elas estão dirigindo ou andando ou
cavalgando, e logo você as encontra aderindo a um
lado ou outro; quando o fazem, é irracional que um
recém-chegado vá contra a regra.
Uma estrutura muito mais séria, que chegou a
uma imensa quantidade de discussão nos círculos
matemáticos, sociais-científicos e filosóficos durante
quase um século, é o dilema do agora familiar
prisioneiro. Nos casos de duas pessoas que são a
norma em discussão, este pequeno gráfico
esquematiza a ideia (deixe A e B serem as duas partes,
e os números ordenam, por suas próprias
preferências, os resultados para aquele par de
escolhas) . Então (a) cada um de nós escolhe uma
166

escolha entre duas alternativas, x e y, e o que


acontece com cada um de nós depende do que cada
um de nós escolhe; (b) se nós dois escolhermos a
alternativa x, cada um terá seu segundo melhor
resultado; se nós dois escolhermos y, ambos
obteremos o terceiro melhor resultado, o que é muito
pior para cada um. (c) Mas se eu escolho x e você y,
eu pego o meu melhor e você o seu pior; e se você
escolher x e eu escolher y, então vice-versa.
Assumimos que somos ambos agentes livres,
escolhendo como desejarmos. O que fazemos?

O problema é que, quando escolhemos


diferentemente, um ganha muito – às custas do outro.
Então escolhemos o mesmo – mas qual? Na ausência
de qualquer tipo de confiança ou consideração, cada
um é impelido a escolher a opção “mais segura”, y:
isso evita o pior resultado, que seria o quarto – mas o
resultado para nós dois, no caso o terceiro, é pior do
que o segundo, o que poderíamos ter se pudéssemos
confiar no outro para escolher esse caminho. Esse é
o dilema: cada um vai para o melhor e, ao fazê-lo,
167

acaba mal – de uma forma que poderia ter sido


evitada.
Evitar esse desfecho pior, diz o teórico do
contrato, é o objeto da moralidade. Ele nos diz para
cooperar em vez de discordar, levando a melhores
resultados para nós dois. A regra da moralidade é
cooperar se a outra parte estiver disposta a retribuir.
Mas se ele não fizer isso, você tem o direito de retirar
sua cooperação.
O dilema do prisioneiro parece estar em ação
em inúmeras situações na vida real. E um caso muito
geral disso, argumenta o teórico do contrato social, é
o mais básico de todos. Para ver o que é e por que é
importante, passamos para o grande filósofo que,
mais do que qualquer outro, deu destaque a esse tipo
de teoria: Thomas Hobbes (1588-1679) –
implementado na época contemporânea por David
Gauthier.97 O problema diz respeito à liberdade – sua
e minha (A e B). Liberdade é a ausência de violência
ou coerção interpessoal; mais geralmente, de
intervenção negativa – intervenção para piorar a vida,
ou situação, da pessoa que sofreu a intervenção.
Estamos em liberdade (do tipo “social” que é o
assunto desses capítulos) quando tal intervenção
negativa não é ameaçada.

97 David Gauthier, Morals by Agreement (Oxford, UK:


Oxford University Press, 1986).
168

HOBBES E A “CONDIÇÃO NATURAL DA


HUMANIDADE”
Se um contrato social é ter muito alcance de
aplicação, o que seria sobre os seres humanos e suas
interações que o tornaria assim? Essa pergunta tem
uma resposta geral. Em inúmeras ocasiões da vida,
as pessoas podem ganhar com o custo de outras
pessoas. A maneira mais saliente é a violência física
real. A bate em B na cabeça e sai com a carga de
vegetais de B. E existem outras maneiras, familiares
a todos, em que alguém pode fazer mal a outra pessoa
– mentindo, trapaceando e defraudando, estão entre
as mais importantes – e pode trazer ganhos às custas
dos outros.
O que os torna tão onipresentes é uma certa
semelhança geral ou comparabilidade entre as
pessoas. Hobbes coloca o dedo sobre isso quando
afirma uma espécie de igualdade humana, dizendo
que “quanto à força do corpo, o mais fraco tem o
suficiente para matar o mais forte”.98 Como pode ser
preciso muito pouca força para matar alguém, o que
ele diz é obviamente plausível. Somente bebês, os
decrépitos ou os severamente incapacitados – ou
casos locais especiais em que um tem o outro “em um

98 Thomas Hobbes, Leviathan (New York: Dutton,


1953 [1651]), chap. 13, p. 101.
169

canto” – oferecem casos em que esse tipo de


“igualdade” não é óbvio. É verdade que nossos níveis
relativos de força variam enormemente. Mas quase
nunca é impossível para A matar B se A estiver
realmente determinado a fazê-lo. E em situações
sociais, é claro, podemos tornar a vida miserável para
certas outras pessoas – ou mesmo para muitas delas
– de muitas outras maneiras.
Isso é o que é possível. Mas é provável? Alguma
reflexão sobre essa questão é necessária. A maioria
de nós hoje em dia vive em circunstâncias sociais
relativamente seguras. E, no entanto, mesmo aqui e
agora, jornais diários denunciam violência, por
pessoas próximas ou distantes. Tal violência ocorre
apesar de vivermos em sociedades com,
normalmente, bons sentidos morais, e agências
governamentais – especialmente a polícia – tentando
tornar as vidas dos violentos difíceis também. Mas e
se não tivéssemos nada disso – nem governos com leis
e polícia nem pessoas educadas para serem decentes
e civis?
A pretensão de Hobbes à fama dos teóricos é
muito forte, embora a relação de seus argumentos
atuais com o raciocínio mais fundamental dos
contemporâneos seja inferencial e conjectural, é
claro, ao invés de explícita – porque a teoria dos jogos
não surgiu como um estudo formal até meados do
século XX. O cerne da questão é este: Hobbes,
170

apelando estritamente à razão prática deliberativa


individual, e numa compreensão da razão bastante
incontroversa, desenvolve uma imagem de como as
coisas seriam na ausência do Estado – horrível, ele
sustenta. Ele então afirma uma “Lei da Natureza” com
uma série de leis subordinadas (que deveriam contar
como teoremas em vez de leis posteriores, pois ele
afirma, plausivelmente, que todas as posteriores
seguem a primeira), segundo as quais os homens
racionais buscam a paz. No entanto, na ausência do
Estado, argumenta, a paz não estará disponível.
Assim, os homens racionais criarão o Estado,
concedendo autoridade a um governo cujas leis
herdarão a autoridade da Lei da Natureza. É uma
ideia brilhante – caso funcione. Se funciona – ou não,
então o que poderia funcionar em vez disso – é a
questão.

QUESTÃO DE PARÂMETRO: ESTADOS DE


NATUREZA E OUTROS
Se quisermos lidar um com o outro na forma da
teoria dos jogos, precisamos calcular nossos ganhos
e perdas de algum ponto de partida. Se pensarmos
em termos de uma “grande teoria social”, que mostre
como a moralidade deriva (talvez evolua) de uma
condição anterior na qual não obteve, então o
pensamento natural é começar com a “condição
natural da humanidade” – As palavras de Hobbes,
171

que agora normalmente reformulamos como o “estado


de natureza”. O que Hobbes afirma é que, nessa
condição “natural”, as pessoas perceberão que não
têm proteção contra a violência alheia e se voltarão
contra ela, em autodefesa, se não existir nada mais,
e assim teremos a terrível condição que ele descreve
como uma “guerra de todos contra todos”.
Várias questões surgem sobre essa ideia, das
quais duas são especialmente pertinentes aqui.
Primeiro, a frase “condição natural da humanidade”
poderia se referir a uma condição histórica hipotética.
Se sim, qual condição? Podemos discutir isso em
conjunto com a segunda questão: o componente “da
natureza” é especificamente político, como Hobbes
tende a tratá-lo? Ou é moral? As respostas corretas
para essas perguntas, vou sugerir aqui, são que a
condição em questão não precisa ser histórica, e que
deve ser moral e não especificamente política.
Explico:
Se a ideia era contar uma espécie de história
universal do homem pré-histórico, então o projeto
hobbesiano fica em maus lençóis. Pois os
antropólogos concordam esmagadoramente que a
maioria das comunidades humanas primitivas não
tiveram governos, falando estritamente.99 E, no

99 Carles Boix, Political Order and Inequality: Their

Foundations and Their Consequences for Human Welfare (New York:


Cambridge University Press, 2015).
172

entanto, contra Hobbes, elas têm moralidades


(rudimentares) e, além disso, são predominantemente
pacíficas. Locke, em suma, é mais correto do que
Hobbes. Para defender a necessidade do governo
como o remédio específico necessário, o caso deve ser
refinado, como feito por George Klosko100 – e será
controverso.
Mas o argumento pode ser reformulado de uma
maneira muito mais poderosa e fundamental.
Podemos imaginar, sem ter que teorizar muito, como
a vida social poderia ser se fôssemos destituídos de
qualquer senso de moralidade. Como Hobbes coloca,
“as noções de certo e errado, justiça e injustiça não
têm lugar”. Ele de fato continua dizendo:
Onde não há poder comum, não há lei; onde não
há lei, não há injustiça. É consequente também à
mesma condição, que não existe propriedade, nenhum
domínio, nenhum meu e teu distinto; mas somente
aquilo que todo homem pode pegar; e por tanto tempo
quanto ele poderá mantê-lo.101
Mas note que essas inferências não são
consequentes, como Hobbes diz, da “condição
natural”: elas são, antes, uma definição dessa
condição. Não estamos supondo como as coisas

100 George Klosko, Political Obligations (New York:

Oxford University Press, 2005).


101 Hobbes, Leviathan, cap. 14, p. 105.
173

podem ser, mas chamando a atenção para certas


características familiares da vida social que podemos
– com esforço – imaginar, e então plausivelmente ver
que tal condição social seria tão difícil de imaginar
quanto impossível. A “condição natural” é aquela em
que ainda não existem regras sociais amplamente
reconhecidas.
E qual seria o problema? Aqui, Hobbes aponta:
o problema básico é a violência. Certamente não é a
ausência de um Estado, com seu infinito potencial
para mais violência. As pessoas muitas vezes podem
ganhar (ou supor que podem ganhar) tirando
vantagem dos outros, levando suas posses ou suas
próprias vidas para servir aos nossos propósitos.
Como devemos evitar tais coisas? O começo de uma
resposta, pelo menos, é adotar regras – literalmente,
para descartá-las. Em vez de avaliar nossas ações
puramente em termos de sua probabilidade de
progredir em nossos objetivos, em vez disso,
perguntamos o que nossos companheiros têm razão
para tolerar de nós e nós deles. E a isso, Hobbes tem
uma resposta brilhantemente simples: devemos
buscar a paz, não a guerra; os métodos de guerra
(violência) devem ser reservados para defesa, contra
aqueles que se recusam a respeitar os outros. Tudo o
mais é paz, que é simplesmente a ausência de guerra.

O AQUI E AGORA
174

O que está acontecendo aqui? E,


especialmente, como isso se aplica, não no vácuo
hipotético que imaginamos, mas na vida cotidiana
agora? Embora essa seja uma questão que leve a
muitas complicações, ainda existe uma maneira
relativamente plausível e direta de elaborar as
implicações da ideia de Hobbes.
Primeiro, não estamos no “estado de natureza”
primitivo. Nos confrontamos com o pano de fundo de
muito do que concordamos.
No aqui e agora, enfrentaremos, grosso modo,
dois tipos de pessoas: (a) as pacíficas que estão
prontas para respeitar as vidas, as pessoas, as
liberdades e as propriedades dos outros; e (b) pessoas
que estão prontas para “invadir e saquear”, para usar
a linguagem colorida de Hobbes – isto é, enganar,
mentir, roubar e talvez causar ferimentos físicos ou
até mesmo a morte para conseguir o que querem. O
que fazemos sobre esses últimos? Como nos
comportamos em relação aos primeiros?
Responder a segunda pergunta é fácil: eles
respeitam nossas pessoas, nós respeitamos as deles.
As três primeiras leis hobbesianas dizem
essencialmente:
1. Não faça guerra aos pacíficos, mas seja
pacífico em retorno (e sinta-se no direito de combater
175

a violência com medidas defensivas, possivelmente


incluindo violência, em troca).
2. Não “reserve liberdades para si mesmo que
você não concederá a outras pessoas”. Portanto, na
medida em que tenhamos concordado com as regras
entre nós, façamos o que essas regras exigem; e, na
medida em que não fizermos, procuramos aqueles
com os quais gostaríamos de cooperar de maneira
mais substancial do que simplesmente evitando
matá-los ou prejudicá-los, e elaborando os acordos
que desejamos. Assim, por exemplo, podemos
comprar e vender no “mercado” – lojas, imóveis e toda
a miríade de serviços da vida moderna, onde podemos
“pagar com nosso dinheiro e fazer nossa escolha”.
Aqui, é uma questão de entender os termos e viver
para eles. E então:
3. Em geral, devemos manter nossos acordos
quando os fizermos. Observe que não há necessidade
de fazer acordos específicos. Há apenas o
fundamental que possibilita a vida social, como já foi
esboçado – a primeira lei que clama pela paz. Mas se
fizermos um determinado acordo com outra pessoa,
então temos deveres: devemos a essa pessoa que
cumpramos os termos e a pessoa nos deve para fazer
o que foi acordado. (A segunda e a terceira leis podem
ser mostradas como dedutíveis da primeira, mas não
faremos esse exercício aqui.)
176

Esses são todos os preceitos que normalmente


não são difíceis de interpretar na vida moderna – com
uma classe muito grande de exceções: as “leis” dos
Estados em que vivemos. Agora, aqui, o problema é
quando não concordamos, em nenhum detalhe, para
a grande maioria delas e, na verdade, nem sequer
sabemos mais do que uma minúscula fração das
milhares de leis que nossos vários níveis de governo
aprovaram. Agora, quando o poder do Estado tem
sido e é empregado para criar uma certa instituição
ou conjunto de maneiras de fazer as coisas, e vemos
sérios defeitos e problemas nos sistemas em que
operam – o que fazemos?
Pois, de longe, para a maior parte de nós na
maior parte do tempo, essa questão é resolvida com
“engolir” e aceitar, provisoriamente, as leis como elas
são, a fim de manter as autoridades afastadas, tanto
quanto possível, de nossa porta. Mas, claramente,
não podemos, como fez Hobbes, concordar com as
regras do Estado como se elas fossem devidas a um
acordo que realmente fizemos com determinadas
pessoas para selecionar uma pessoa ou um pequeno
grupo de pessoas como o “governante”, a autoridade
em todos os detalhes de nossas vidas, seguidos por
uma subordinação vitalícia aos seus decretos.
O status moral do Estado é considerado um
problema enorme pelo seu status ambíguo. Muitos, é
claro, falam que o que as leis de um Estado dizem
177

para fazer é, na verdade, moralmente correto. Alguém


pode ser perdoado por se perguntar se aqueles que
dizem isso realmente pensaram nisso. Olhamos para
a Alemanha nazista, a Rússia stalinista, o Alabama
pré-direitos civis – e depois para a miríade de casos
problemáticos na vida moderna. E dificilmente
podemos engolir o dito hobbesiano de que o que o
governo diz ser, na verdade, “lei” – verdadeiramente
tem a força da Lei da Natureza de Hobbes. “Pro
inferno se isso for verdade!” – deve ser nossa reação.
Mas como vivemos aqui e porque muitas
pessoas seguem essas regras, em geral temos que
viver com essas regras e reclamar da melhor maneira
possível em cartas ao editor, livros e documentos,
reuniões públicas e assim por diante – alguns de nós,
isto é, os que vivem nos melhores Estados
contemporâneos, onde podemos fazer tais coisas sem
graves consequências como prisão ou ser envenenado
por um agente do governo, ou […] e, claro, votar em
eleições na esperança de melhorar coisas.
Esta curta excursão sobre o Estado
simplesmente pretende ilustrar por que há uma
resposta clara à nossa questão sobre o status e o
caráter de qualquer acordo fundamental: ele é moral,
não necessariamente político. É subjacente, é
antecedente à legislação e ao decreto.
178

AS “CIRCUNSTÂNCIAS DA JUSTIÇA”
Vamos agora voltar ao básico mais uma vez e
perguntar: o que há na vida humana que torna as leis
hobbesianas da natureza tão plausíveis quanto um
conjunto de regras para a vida social? Esta questão,
em geral, tem resposta, e Hobbes e seu sucessor,
Hume, elaboraram as respostas com poder e clareza.
São as seguintes:
1. Os únicos possuidores de poderes racionais
de decisão por meio da deliberação são pessoas
individuais.102 Cada pessoa procede à luz de seus
próprios interesses percebidos (ou “valores” – para os
propósitos atuais, os termos são os mesmos) e
poderes. Escolhemos entre as opções em ação que
nossos corpos, ambientes e circunstâncias sociais
disponibilizam, com base em nossos desejos ou
interesses percebidos, e tentamos fazer o melhor por
eles.

102 Apresentamos aqui o grande assunto da vida


animal “abaixo” do nível humano, onde a barreira é pelo
menos a da comunicação pronta. Nós, em geral,
simplesmente não podemos conversar com animais, ao
passo que podemos conversar com praticamente qualquer
outro ser humano adulto, pelo menos através de uma
tradução bastante confiável. E se não podemos sequer
concordar com algum ser animado, obviamente não há
muito o caso de exigir que mantenhamos esse acordo.
179

2. Esses interesses e poderes são enormemente


variáveis de um para outro. Os poderes,
crucialmente, incluem tipicamente força suficiente e
vontade de infligir ferimentos graves em praticamente
qualquer um dos nossos companheiros, juntamente
com muito mais. E nossos interesses, dados tanto
nosso poder quanto nossas opções ambientalmente
disponíveis, são tais que às vezes nos levam a pelo
menos um conflito experimental com pelo menos
alguns outros.
3. Somos todos dependentes de nossos
ambientes físicos para alimentação, aquecimento
(isolamento de temperaturas extremas) e ar (limpo),
no mínimo. Especialmente, os requisitos de sustento
e controle da temperatura ambiente podem ser
atendidos apenas comendo uma certa quantidade de
material orgânico de vez em quando e fazendo roupas
e algum tipo de abrigo. A natureza não cuida desses
requisitos por conta própria: nossos esforços e
envolvimento cognitivo também são necessários.
Os requisitos podem levar os humanos a
conflitos, onde, como Hobbes coloca, ambos
desejamos a mesma coisa que não podemos ter (“ter”
o suficiente para nos manter “contentes”); isso é o que
significa dizer que os recursos são “escassos”.
Crucialmente, entretanto, nossa situação ambiental é
tal que a contribuição humana para recursos nos
permite, com níveis adequados de cooperação se
180

disponível, expandir a oferta para superar essas


carências. Escassez, em outras palavras, não é fixa e
uma soma zero, mas passível de mais ou menos
controle nas mãos dos humanos – especialmente nos
cooperativos.
4. Embora todos os seres humanos,
provavelmente, tenham algumas simpatias com os
outros, a maioria tem simpatia relativamente
limitada: quando a pressão chega, não podemos
esperar que as pessoas rotineiramente “amem o
próximo”.
5. E, finalmente, a moralidade também não é
“natural”: pelo menos, não tem poder natural
suficiente para lidar com as potenciais dificuldades
decorrentes das quatro primeiras condições.
Isso junto no mostra que os seres humanos têm
algo a ganhar com a cooperação pacífica, e muito a
perder sem ela. A condição 3, especialmente, dadas
as outras, nos leva à beira da guerra ou da paz. Qual
caminho devemos seguir? Hobbes, a humanidade em
geral e libertários em particular, dizem que a paz é o
caminho a percorrer. A saída é “negativa”: “buscar a
paz” significa, simplesmente, não agredir, não usar
violência; de maneira mais geral, não procure se
tornar melhor fazendo com que outras pessoas
piorem. Você pode fazer isso somente se essas
pessoas já tiverem feito algo para merecer ação
defensiva de você.
181

Por outro lado, essa regra fundamental não nos


direciona imediatamente para alimentar os famintos,
ajudar os necessitados ou resgatar os que estão em
perigo. Se e por que essas são coisas que devemos
fazer, é uma questão para investigações futuras. Mas
se deveríamos matar pessoas sempre que isso sirva
aos nossos interesses, não é um “item adicional”.
Manter isso na sua lista de opções é, de fato,
encabeçar-nos no caminho da “guerra de todos contra
todos”. Que devemos fazer guerra contra os guerreiros
é racional. Fazer guerra ao pacífico, no entanto, é
outra questão: mesmo que pareça racional fazê-lo,
não é claramente racional subscrever uma
moralidade geral que o permita.
Note que os contratualistas não estão dizendo
que todas as pessoas racionais sempre serão caras
legais. Estamos dizendo que é racional que as pessoas
aceitem publicamente e apoiem um programa geral
de aprovação da paz e da desaprovação da guerra. A
marca de aceitação disto é, primeiro, que nós vivemos
sendo pacíficos; e, segundo, que pregamos o que
praticamos, encorajando os outros a serem pacíficos
também. A moralidade é, em parte, ação e, em parte,
promoção de uma “agenda” – um programa de
educação pública, inculcação. O contrato social
propõe a identificação de uma visão exclusivamente
racional da moralidade, baseada na razão prática
individual que reage ao fato da vida social.
182

INTERESSES PESSOAIS E OUTROS


INTERESSES
A teoria do contrato social é geralmente
caracterizada como baseando a moralidade no
“interesse próprio”. Isso é um mal-entendido, e um
importante, mas também compreensível. A ação
racional consiste em escolher os melhores meios para
o próprio conjunto geral de fins. Mas entre esses fins,
todos eles estão exclusivamente preocupados com o
benefício do próprio agente? Certamente não.
Normalmente, como há muito tempo é reconhecido
(por exemplo, pelo bispo Joseph Butler), temos
interesses em várias outras pessoas, especialmente
entes queridos, como cônjuge e filhos, mas também
amigos, colegas de trabalho em causas comuns e
muito mais. De fato, as pessoas muitas vezes estão
prontas para fazer grandes sacrifícios, inclusive de
suas próprias vidas, por essas pessoas. A ideia de que
a racionalidade como tal é autointeressada no sentido
de “egoísta” está bastante equivocada.
O que não está errado é que nossos interesses
são nossos. A não age para promover os interesses de
B, ou C, mas dele mesmo, mesmo que A realmente
escolha promover o interesse de B ou C. Esse é o
elemento de verdade na caracterização.
183

Mas o contrato social nos convoca a adotar


princípios que seriam aceitáveis para todos, não
apenas para si mesmo. E, por essa razão, a
moralidade não pode ser devotada a nenhuma pessoa
ou subconjunto próprio de pessoas, como os adeptos
de uma perspectiva religiosa particular. E uma vez
que qualquer proposta de uma pessoa para promover
o bem de outra pessoa dependeria do acordo de outra
pessoa, na medida em que ela figura como uma
exigência moral, os elementos de consideração pelos
outros em perspectivas particulares de pessoas não
afetam o resultado geral. Assim como não posso
simplesmente dar-lhe um certo presente sem sua
aceitação, não posso incluí-lo como beneficiário de
alguma provisão no contrato social, a menos que você
esteja preparado para aceitá-lo.
Espero que isso tenha esclarecido a questão do
interesse próprio. Mas isto levanta uma questão
diferente e muito importante: a da motivação. A
questão é: por que eu aceitaria uma exigência moral
que às vezes me obrigaria a sacrificar algum interesse
meu? É aqui que o contrato social se dá melhor do
que todas as outras teorias sobre os fundamentos da
moral. Aceito tal exigência porque, se não o fizer, você
e os outros terão a liberdade de desconsiderar seu
comportamento em relação a mim. Se me sinto livre
para matá-lo, então você está livre para me matar.
Estou pronto para aceitar essa implicação? Não é
provável!
184

É importante que a resposta possa ser sim.


Toda teoria tem que enfrentar a perspectiva de que
algumas pessoas alegarão não ver utilidade para a
moralidade. Com essas pessoas, tudo o que podemos
dizer é que nós, o resto da humanidade, estamos em
princípio em guerra contra eles – porque eles, afinal,
estão em guerra conosco. Podemos esperar – e muitas
vezes realmente esperamos – tornar a vida pior para
essas pessoas. O contrato social respeita todos os
interesses que são compatíveis com a busca dos
interesses alheios também. Assim, e somente assim,
todos nós nos damos bem e progredimos como
comunidade.

O PLURALISMO DE VALOR E O CONTRATO


SOCIAL
Pessoas diferem. Elas diferem em sua
composição física e mental, e essa diferença inclui
seus perfis pessoais ou complexidades particulares
de valores que estão inclinadas a seguir. Isso é
pluralismo de valores: reconhecimento da diversidade
de valores entre as pessoas. Muitas vezes é chamado
de “pluralismo moral”, mas essa expressão é
ambígua. O contrato social básico não é plural, mas
unitário, o mesmo para todos – esse é o seu ponto.
Não permite uma variedade de requisitos morais
conflitantes. Por outro lado, os estilos de vida,
práticas, gostos e buscas das pessoas – suas
185

“filosofias de vida” – são de fato plurais, e são


precisamente o que a moralidade permite. De certa
forma, cada um de nós tem um desses perfis, um
perfil particular distinto e exclusivo do indivíduo.
(Para ilustrar o ponto, sua fome é um desejo por
comida em seu estômago, não no meu, mesmo que o
tipo específico de comida que desejamos seja
exatamente o mesmo. Mas, é claro, normalmente
também é diferente nesse sentido.)
O contrato social é projetado para acomodar a
maior variedade possível de interesses compatíveis
com as atividades de todos os outros. Assim, por
exemplo, a tolerância para diversos comportamentos
sexuais, ou crenças religiosas, e muito mais, para os
quais o liberalismo em geral é notado, é parte e
parcela da perspectiva do contrato social. E isso, de
fato, é a fonte de sua universalidade. Todos têm o
mesmo requisito: abster-se de obrigar seus
companheiros a se conformar com qualquer estilo de
vida, religião ou qualquer outro elemento de valores
em que o indivíduo esteja interessado. Podemos
tentar persuadir por meio de argumentos ou
exemplos, mas não forçar os outros a fazer as coisas
do nosso jeito.

POLÍTICO OU MORAL?
186

Como foi observado anteriormente, a tradição


do contrato social tem sido principalmente exposta
em termos especificamente políticos. Todos nós, por
causa disso, concordamos em aceitar um governo –
um monarca, na maioria das versões até
recentemente – e viver de acordo com os requisitos
desse governo. Mas então surge a pergunta: tem
certeza de que gostaria de concordar com essa regra?
Aceitamos as regras de Adolf Hitler? É certamente
óbvio que isso é questionável ao extremo. Não apenas
o governo, mas o bom governo, é certamente o que
escolheríamos se tivéssemos a nossa escolha.
(Escolheríamos? Isso é realmente um quebra-cabeça
– veja mais abaixo). E essa escolha implica que
devemos ter alguns critérios para o “bom” governo.
O que um governo deveria tentar fazer para que
se tornasse uma escolha? Qualquer resposta para
isso tem que ser uma resposta moral. Nós todos
concordamos que o que os governos fazem é isto ou
aquilo. Quando vemos que é sobre isso que a escolha
deve ser feita, torna-se óbvio que o contrato social
deve ser visto em termos morais, em vez de
necessariamente ou especificamente em termos
políticos. É uma questão logicamente aberta se, nas
palavras de Thoreau, “aquele governo é melhor do que
187

nenhum governo”.103 O governo, para ser legítimo,


deve respeitar nossos direitos. Não é a fonte desses
direitos, a princípio; em vez disso, é – se está fazendo
seu trabalho – obrigado a protegê-los, para todos nós.

MORALIDADE
Para determinar se o governo é moral, primeiro
precisamos entender o que o conceito de moralidade
implica.

MORALIDADE – RACIONAL E DE OUTRA


FORMA
Então, o que é moralidade? Existem vários tipos
de respostas para essa questão bastante ambígua.
Primeiro, é claro, a moralidade é um fenômeno social:
é um conjunto de controles de comportamento
geralmente aceitos e geralmente impostos pela
comunidade. As pessoas lidam com as ações umas
das outras e respondem – verbalmente ou não – ao
longo de certas linhas gerais, variando de uma
comunidade para outra.

103 Henry David Thoreau, Civil Disobedience,


em Collected Essays and Poems, ed. Elizabeth Hall Witherell
(New York: Penguin/Library of America, 2001), p. 203.
188

Segundo, a moralidade pode ser pensada como


um conjunto de regras, requisitos e princípios –
expressos como “tal e tal está certo” ou “você deve
fazer isso e aquilo!” – onde “você” é essencialmente
todo mundo, e as pessoas, os “nós” que fazemos as
avaliações e entregamos os “comandos”, são, da
mesma forma, quase todos. No entanto, queremos
usar o senso de moralidade como aquele conjunto de
regras ou princípios, se houver, que passa nos testes
da razão: o conjunto filosoficamente melhor, ao invés
de qualquer conjunto antigo que as pessoas possam
ter. E aqui, “melhor” é, esperamos, pensado como
“verdadeiro”, não fosse a aplicabilidade da noção de
“verdade” como uma das questões que os filósofos
discutem, por fim, em suas reflexões sobre o tema da
moral. Mas tudo o que precisamos dizer é: uma
moralidade “verdadeira” ou “certa” é aquela que todos
os indivíduos racionais podem aceitar como cânone
geral para regular as relações interpessoais.
Claramente, o contrato social, como as outras
teorias proeminentes do assunto, é principalmente
uma entrada na terceira categoria. Todo filósofo moral
supõe que o conjunto de preceitos favorecidos que ele
defende também é encontrado, pelo menos em
alguma medida, na prática real. Mas, tendo em vista
a diversidade de moralidades entre as comunidades
humanas, essa suposição dificilmente pode ser
mantida de maneira muito completa. O contrato
social, se eu e meus antecessores nesse sentido
189

estiverem corretos, será refletido amplamente em


quase todas as comunidades, mesmo que tais
moralidades sejam encontradas junto com
acréscimos cuja credibilidade possamos ter dúvidas.
Toda comunidade desaprova o simples assassinato,
mesmo quando pratica o apedrejamento de amantes
ou mulheres que exponham mais de cinco
centímetros de tornozelo, e assim por diante. Toda
comunidade desaprova mentir e trapacear, apesar de
seus líderes mentirem e trapacearem repetidamente.
Grande parte da moral cotidiana, especialmente
quando nos afastamos muito da casa do filósofo, não
se sai muito bem na corte da razão. Mas esta
observação não significa que a teoria moral seja inútil
ou impossível. A crítica racional é possível e é
importante.

MELHOR PARA TODOS


Todo mundo tem alguma ideia do que é bom ou
ruim no dia a dia, alguma ideia do que é melhor e do
que é pior. Se, então, perguntarmos o que idealmente
gostaríamos da sociedade ao nosso redor, há uma
resposta óbvia: cada pessoa, A, espera que as ações
de outras pessoas que lhe afetam façam o bem (o que
essa pessoa fundamentalmente valoriza) do que o
inverso. É claro que essa conclusão significa que os
outros esperam o mesmo de A. E assim, um
pensamento óbvio sobre uma moralidade proposta é
190

o seguinte: ela conduz ao bem de todos? Se assim for,


então todo mundo teria razão para seguir junto com
isso.
O utilitarismo é a teoria de que nossas ações –
ou pelo menos nosso conjunto de regras morais
concretas – devem, como um todo, conduzir ao “bem
máximo” da sociedade, onde isso é entendido como o
saldo de bens e males sobre toda a comunidade. Essa
definição de utilitarismo identifica uma característica
que torna a teoria vulnerável, pois parece que a teoria
poderia sancionar a imposição de males graves em
algumas pessoas a fim de promover o bem de algumas
outras pessoas, desde que o o bem promovido as
últimas supere a soma ponderada dos males com os
primeiros. Tão forte é essa crítica que os utilitaristas
certamente dedicam uma boa dose de teorização para
mostrar que o problema pode de alguma forma ser
evitado.
A visão do contrato social, pelo contrário, não
tem esse problema específico. Como todos têm direito
de veto, as regras básicas não sancionam os males de
alguns como um preço a ser pago pelo bem dos
outros. Ou aqueles sacrificados de boa vontade
seguem juntos, caso em que eles vêem o bem dos
outros como parte de seu próprio bem, ou então eles
não seguem junto e a ação é anulada.
O contrato social, então, exige regras para que
elas sejam, supostamente, melhores para todos. Mas
191

essa abordagem também é enganosa. Muito poucas


ações humanas afetam a todos. E todas as ações
humanas, na medida em que são deliberadas e
intencionais, e pelo menos, espera-se, funcionam
para o bem do agente. Ninguém poderia
racionalmente insistir em benefício universal de
alguém. Mas nós podemos insistir na universalidade
de nenhum dano para todos. Normalmente, o dano
aos outros é fácil de evitar, ao passo que o benefício
para os outros não é tão fácil de alcançar; nem temos
muito motivo para produzir tal benefício.
Em vez disso, buscamos o nosso bem e,
portanto, promovemos-o em cooperação com outros
que buscam o deles, e assim encontramos maneiras
de avançar mutuamente nosso benefício: atos da
parte de cada um que beneficiam alguns de alguma
forma e outros de maneiras diferentes, ambos sendo
acordado pelo outro. Dessa forma, reconciliamos a
diversidade da natureza humana com a necessidade
de restrição moral. E isso, nós acreditamos, é “o
caminho a percorrer” para a sociedade em geral. Se
insistirmos apenas em abster-nos de intervir
negativamente na vida dos outros, o caminho está
aberto – em direções multifacetadas – para benefício
de muitos. E como todos estão sujeitos à mesma regra
e à mesma motivação geral, podemos esperar que o
ideal de benefício universal seja realmente realizável
– não um sonho utópico, mas uma expectativa
cotidiana.
192

Isto é, desde que as pessoas não sejam


malignas. Mas algumas delas são; contra essas, a
teoria insiste em nosso direito universal de defesa –
de e por si mesmo em primeira instância, e em
conjunto com nossos companheiros que estão sob
ameaça ou estão prontos para ajudar em segunda
instância. Aquelas que concordam com nada,
concordam em desacordar – descartando nada. Se
elas são perigosas para os outros, então os outros
farão o possível para serem pelo menos similarmente
perigosos para elas. Elas estão, como dizemos,
“pedindo por isso”. As únicas coisas que podemos
excluir da sociedade como um todo são as coisas que
cada um de nós deseja evitar em nosso próprio nome.
A razão pela qual o objeto do contrato social não
está no governo de primeira instância torna-se, como
refletimos, claro, de duas maneiras. Em primeiro
lugar, há um grande número de governos e nações a
serem governadas. Se houvesse um único
supercontrato, seu objeto seria um governo mundial
ideal? Ou subscreveria todo governo que existe, com
falhas e tudo mais? O segundo tem a ver com
contrato. Moralidade é sobre a paz, mas o governo é
sobre a guerra – coerção, violência, controle social. Os
agentes do Estado são de dois tipos: maquiavélicos ou
– com muito mais frequência – dissimulados que
alegam estarem usando toda essa coerção por
excelentes razões, mesmo quando enchem os bolsos
às nossas custas. Os “acordos” que os governos
193

querem não são contratos sociais, mas alianças com


alguns outros governos contra outros, e acordos entre
amigos em potencial que ajudarão no apoio ao
programa de extração desse governo em particular.

DO LIBERALISMO AO LIBERTARIANISMO
“Liberalismo” é uma noção muito discutida e
muito contestada. Grande parte da discussão, no
entanto, se deve à falta de definição – até mesmo uma
insistência de que uma definição clara é impossível.
Mas uma compreensão razoavelmente clara e
bastante clara da ideia nos permite entender e ver o
que é certo sobre ele. É o seguinte:
O liberalismo é exemplificado por sistemas
normativos que sustentam dois pontos: (a) que o
único propósito aceitável de regras, leis e intervenções
gerais deve ser o bem daqueles que são
intervencionados; e (b) que são essas pessoas, em vez
de quaisquer supostas autoridades, que
fundamentalmente adotam esses valores. Os
indivíduos, então, são os detentores básicos dos
valores que as instituições e personagens
intervencionistas devem respeitar. (Podemos dizer
que eles são os “criadores” de valor, mas essa
afirmação é enganosa e nos leva a discussões
metaéticas desnecessárias.) Ambos são essenciais.
Os chamados liberais dos dias atuais tendem a
194

pensar que eles, os especialistas, os teóricos ou os


políticos eleitos, sabem o que as pessoas querem
melhor do que essas próprias pessoas.
No primeiro ponto, os liberais contrastam com
Trasímaco na República de Platão, que declara para
a Cleptocracia: o objetivo do governo, diz ele, é extrair
o máximo dos governados. O governo é para o bem
dos governantes, e não dos governados.
O segundo contrasta com o próprio Platão e
com todos a quem podemos nos referir como
“conservadores” (um termo cujo uso popular está
relacionado, mas não é idêntico a isso), que insistem
que alguém mais sabe o que é melhor para nós do que
nós. Nosso bem não é o que dizemos, mas o que ele
(ou aquilo, onde “aquilo” se refere a alguma
instituição ou grupo supostamente autoritário) diz.
A liberdade e a dignidade do indivíduo seguem
a partir dessas duas características básicas. E elas,
por sua vez, levam à teoria do contrato social. Pois se
cada um de nós buscar fundamentalmente nossos
próprios valores, e ainda assim desejarmos a proteção
de restrições contra as intervenções dos outros, então
teremos que protegê-los com base em acordos
mutuamente agradáveis: aqueles que deixam cada
um de nós melhor e nenhum outro pior. E, de longe,
o principal respeito em que podemos esperar essa
melhora é renunciar ao método de promover nosso
benefício que consiste em extraí-lo forçosamente dos
195

outros. Não, então, à escravidão imposta, mas troca


livre. Isso é libertarianismo.

LIBERTARIANISMO
Para entender como o princípio libertário pode
ser aplicado à teoria do contrato social, primeiro
precisamos esclarecer e definir os fundamentos do
libertarianismo.

LIBERTARISMO: O QUÊ E PORQUÊ


A essência do libertarianismo é que declaramos
paz: cada pessoa tem o direito de não ser agredida por
outros. Portanto, há um dever geral de não agressão.
(É cansativo, mas necessário, lembrar aos leitores de
que ações defensivas justificadas não são “agressivas”
– são respostas racionais às agressões de outros.)
Note que essa segurança não é baseada na
“autopropriedade” como é frequentemente dito; pois
isso é a autopropriedade. Possuir a si mesmo é ter o
direito de decidir o que se vai fazer, o que é o mesmo
dos outros deverem se abster de intervenções
agressivas entre si. Mas isso é literalmente baseada
em nossa capacidade de promover nosso próprio bem,
mais a capacidade percebida dos outros em interferir
nessa promoção, e de nossa parte interferir na deles.
Assim, todos nós nos beneficiamos da paz mútua.
196

PARETO
O contrato social pressupõe um tipo geral de
igualdade. Mas não é a igualdade na capacidade de
produzir bens; é, antes, uma igualdade grosseira de
capacidades amplamente agressivas – de nossas
capacidades de tornar a vida pior para os outros. É
essa capacidade que é, socialmente falando, nosso
principal problema. E é isso que nos leva a adotar o
critério de troca de Pareto. Uma troca é considerada
Pareto superior se pelo menos uma das partes estiver
em melhor situação, e todas as outras não estiverem
piores. É claro que, em uma troca cara a cara, cada
parte age para promover seu próprio benefício, e
assim cada um está ou pelo menos se supõe estar
melhor com o resultado. Mas enquanto isso, existe
todo mundo, que possivelmente pode ser afetado pela
nossa interação. E o contrato social exige que
respeitemos todos os interesses das outras pessoas,
ou seja, não as piorando através de nossas ações. E
assim o contrato social sanciona todas e apenas as
transações que deixam pelo menos algumas em
melhor situação e nenhuma pior do que no status quo
antes da troca.
Nossa perspectiva largamente hobbesiana é
que a troca benéfica fundamental com todos os outros
é a paz pela paz – eu não te prejudico; você não me
prejudica – o que é melhor para todos do que a
197

“guerra de todos contra todos”, na qual não podemos


esperar ou confiar na tolerância de outros. (Também
é melhor que a guerra de alguns contra alguns, se a
paz é possível.) Nada sobre essas trocas, no entanto,
exige que o grau de benefício que cada um obtenha
de uma dada troca seja “igual”, se pudermos medir as
quantidades cuja igualdade está em questão. Tem
sido uma pedra no caminho do utilitarismo, desde a
sua concepção, de que não existe uma maneira óbvia
de apresentar uma “medida” interpessoalmente
válida. Mas que cada um de nós, estimando
subjetivamente nossas situações, calcule que
melhoraremos nossas vidas a partir da transação,
comparando, não é geralmente difícil – na verdade, o
simples fato de que cada parte aceita voluntariamente
é considerada uma razão presumivelmente suficiente
para se supor isso. É importante ressaltar que
podemos chegar a formas evidentes e transmissíveis
socialmente de indicar nossa concordância com os
arranjos propostos. Tudo o que precisamos nessa
questão é uma comunicação eficaz. Nós criamos a
linguagem de promessas e contratos para fazer o
trabalho, e geralmente funciona. (Onde isso falhar,
precisaremos de meios de negociação e adjudicação
para resolver possíveis disputas).

DIREITOS E DIREITO GERAL DA


LIBERDADE
198

Dizer que alguém, A, tem um “direito” é


imaginar que existe alguém, B, sobre quem esse
direito de A impõe um dever, que é um custo para
aqueles a quem é imposto. Note que todos esses
direitos são: imposições de deveres. Um suposto
direito que não impõe restrições a ninguém, como o
chamado direito de natureza de Hobbes,
simplesmente não é um direito de modo algum. Os
direitos, como a moral em geral, são sobre nossas
inter-relações: as pessoas se relacionam umas com as
outras. Se algum teórico pretende afirmar os direitos
dos animais, montanhas e assim por diante, o que ele
está tentando fazer é impor deveres a nós. Montanhas
e focas não podem falar por si mesmos e, do ponto de
vista daqueles que não veem nenhum benefício em
aceitar os direitos propostos de montanhas ou focas,
o defensor tem uma batalha difícil. E como o contrato
social é estritamente imaginário – não é uma
convenção política – e todo mundo tem poder de veto,
é uma batalha perdida no nível dos direitos
fundamentais, que é o que procuramos aqui. Se os
animais tiverem direitos, terão de estar bem a
jusante.
Onde é proclamado que alguém tem um direito
moral fundamental, B é todo mundo. Os direitos
morais são direitos de todos contra todos. O direito
fundamental proposto pelo libertarianismo é o da paz
de todos nós, isto é, a abstenção de agressões. Abster-
se de agressões é um custo para os outros na medida
199

em que supõem que possam se beneficiar de tais


agressões. Para obter um acordo unânime de todos
com todos, pelo menos em teoria, precisamos,
portanto, mostrar que todos são mais equilibrados
aceitando esse custo em troca dos benefícios da
segurança contra violações de seus companheiros. O
que valeria a pena aceitar esse custo deve ser que a
paz seja vista pelos outros como melhor que a guerra.
Se eles não entenderem, então teremos, é claro,
guerra. Essa é a linha de fundo e o respeito pelo qual
Hobbes tem a ideia certa. A vida social sem restrições
é perigosa e provavelmente não é lucrativa. Com eles,
podemos avançar juntos. Sem eles, temos a infeliz
previsão hobbesiana: a vida desprovida dos benefícios
da civilização e “desagradável, brutal e curta”.
E assim podemos admitir que o direito
fundamental geral da liberdade é tido por todos e
apenas por aqueles para quem a paz é preferível à
guerra. Podemos argumentar que essa liberdade é
para todos literalmente, mas contra aqueles que
avançam com armas, o argumento terá que esperar.
Ainda assim, é discutível de que uma consequência
desta declaração é que a imoralidade como uma
opção viva será menos lucrativa à medida que a
tecnologia militar e a organização social avançam.
Espera-se que a guerra de todos contra todos se
torne, à medida que o tempo passa, a guerra de
alguns contra o resto de nós – e, francamente, que
200

nós que preferimos longevidade, conforto e vidas


interessantes vença.
Seguindo o princípio mais simples – a primeira
Lei da Natureza de Hobbes, clamando pela paz e pela
renúncia e proibição de guerras de agressão –
adotamos a moralidade básica racionalmente mais
plausível.

LIBERDADE E PROPRIEDADE
Pensadores libertários e liberais clássicos têm
sido distintos em proclamar um direito de
propriedade como parte e parcela do conjunto básico
de direitos morais ao qual todos devemos ter direito.
Por exemplo, na versão de Locke, a Lei da Natureza
convoca todos a “não prejudicar ninguém em sua
vida, saúde, liberdade ou propriedade”.104 (Uma
análise cuidadosa mostrará que sua lei é equivalente
à primeira Lei de Hobbes também, mas não
precisamos buscar isso aqui.) O que precisamos
fazer, no entanto, é sua quarta proposta, que levanta
muitas sobrancelhas. O direito básico da paz é
facilmente visto para proibir os ataques às nossas
pessoas, sim – mas por que também em nossas
propriedades? Evidentemente, Locke ressalta, com

104 John Locke, Second Treatise of Government (North


Carolina: Hayes Barton Press, 2006 [1690]), seção. 6, p. 8.
201

razão, que nossas propriedades incluem, na verdade


começam com, nós mesmos, uma afirmação que,
como apontado anteriormente, é realmente
equivalente ao próprio princípio da liberdade. Mas
propriedade externa? Casas, carros, televisores?
Minas de carvão? 747s? Como esses itens chegam ao
conjunto protegido?
O começo da sabedoria aqui é entender que um
ataque à sua propriedade é um ataque – um ataque a
você. Se você tentar se defender do meu ataque, então
tenho que atacar não o seu aparelho de TV, mas a sua
pessoa. A questão então se torna, por que você
deveria ceder aos meus ataques ao invés de se
defender? Pois é a isso que uma negação de direitos
de propriedade equivale.
A resposta é em grande parte também fornecida
por Locke, mas como não se trata de uma história do
assunto, mas de uma exposição teórica, não
buscaremos a exegese aqui. Em vez disso, seguimos
a divisão habitual de como “adquirimos” as coisas. A
pode valer-se de x para seu próprio uso (a)
simplesmente encontrando x, ficando lá, ocupando-o
(como quando é um pouco de terra); ou (b) fazendo x,
caso em que seria necessário que o material de que x
faz parte também seja de alguma forma dele e não de
outra pessoa; ou (c) outra pessoa, B, poderia apenas
dar x para A, por amor, digamos. E então (d) A poderia
obter x pela troca: A anteriormente tem y, B tem x,
202

cada um preferiria o que o outro tem agora ao que ele


ou ela tem, e então eles fazem uma troca de acordo.
Esta troca transfere a propriedade de um para o outro
de uma forma completamente pacífica. E finalmente,
é claro, (e) A pode simplesmente tirar isso de B. Mas
esta quinta maneira, nós acreditamos, é excluída por
nosso princípio. A questão é como?
E a resposta curta é que o que aqui é chamado de
“roubo”, ou mais apropriadamente desapropriação
contra a vontade do possuidor anterior é um caso de
agressão, porque agressão é intervenção, contra sua
vontade, na vida e atividades de outra pessoa de uma
forma que o deixa em pior situação. (A ideia liberal
nos permite considerar que “deixar B em pior
situação” e “contra a vontade de B”, para tais casos,
são equivalentes, observando que B está sempre livre
para mudar de ideia sobre o que é adequado para seu
benefício.)
A agressão é “fazer guerra” – exatamente o que
o princípio libertário-hobbesiano proíbe. Se x está
previamente dentro da “posse” de B, e aconteceu sem
nenhuma agressão anterior por B contra qualquer
outra pessoa, a separação forçada de x de B é injusta
– uma violação do direito de B.
A maioria dos humanos é simpática. Se a
pessoa que nos ataca está, digamos, em necessidade
desesperada, a maioria de nós está pronta para
ajudar. Mas não estamos prontos para simplesmente
203

entregar nossas coisas valorizadas e legitimamente


obtidas (por exemplo, nossa renda) a todos os
visitantes. E o princípio libertário diz que podemos
não ser forçados a fazê-lo. Nisto, o libertário difere
radicalmente de todas as outras orientações políticas
e morais.

UMA BREVE NOTA SOBRE O SOCIALISMO


Uma comparação com o que podemos chamar
amplamente de teorias “socialistas” é útil aqui. O
princípio libertário difere de qualquer ideia socialista
da seguinte maneira. Os socialismos em geral
proclamam o igualitarismo, no sentido de que
ninguém é capaz de avançar mais do que ninguém: a
condição de progresso para A é que A compartilha
com B, C, e assim por diante, em um grau
supostamente “igual” – naturalmente, herdando
assim os problemas clássicos de medição de
utilidades que atormentam o utilitarismo desde o
início. E assim, em sua versão político-econômica, os
socialistas pedem apropriação pelos agentes do
público para “redistribuição” ao longo da linhagem
igualitária particular sendo pressionada pela versão
em questão – por exemplo, “de cada um de acordo
com sua habilidade, para cada um de acordo com a
sua necessidade.”
204

Em contrapartida, o libertarianismo permite


qualquer ação de A que avance o bem-estar de A, por
muito tempo, meramente, caso isso não piore os B’s.
Ações específicas, ou programas específicos de ação,
não precisam literalmente melhorar a situação de
todos, ou mesmo de qualquer outra pessoa além do
ator individual (ou de quem quer que esse ator esteja
tentando beneficiar). Então, considere a hipotética
pessoa desesperada descrita anteriormente: nós a
prejudicamos recusando-se a ajudar? Não. Nós não
tornamos essa pessoa pior do que no status quo, em
que ela já está desesperada. Depois da nossa recusa,
a pessoa ainda está desesperada. Mas, é claro,
enquanto isso, poderíamos ter oferecido um emprego
remunerado ou uma ajuda temporária até que a
pessoa fique de pé. Podemos até ter persuadido
muitas pessoas a se juntarem a uma rede de seguros
para aliviar justamente esses casos.
Mas o contrato social fundamental de outra
maneira atende ao critério igualitário como declarado
e, os libertários afirmam, o satisfaz melhor do que
qualquer socialismo: todos nós estamos melhores em
ter a moralidade libertária, mesmo se todos não estão
necessariamente melhores porque alguém não está
fazendo qualquer ação certa em particular. A razão é
que, em nossa hipotética condição prévia de total
amoralidade, as pessoas não são proibidas de
prejudicar os outros de várias maneiras, incluindo
matar.
205

Claramente, viver em uma sociedade onde


ninguém mata é uma grande melhoria. Se todo
mundo está tendo uma inibição internalizada contra
tal impulso serve na verdade para evitar esses
impulsos, então ter uma moralidade, que é
essencialmente um conjunto de inibições
internalizadas, levará à condição mais segura em
questão. E isso é uma grande melhoria. Além disso,
diz o libertário – ao contrário do que você pode pensar
– estamos todos melhores vivendo sob o princípio
libertário do que sob qualquer princípio
aparentemente mais “generoso”. Uma sociedade em
que somos obrigados a fazer muito pelos outros,
mesmo quando isso não traz nenhum benefício para
nós mesmos ou para aqueles de quem gostamos, é
mais oneroso do que aquela em que somos todos
livres para ajudar tanto quanto nos importamos, mas
também não ajudar se não nos importamos com (isso
não significa estar livre das desaprovações dos
outros, mas pelo menos livre de suas espadas e
correntes). Enquanto, como atesta a história de forma
tão contundente, as sociedades que impõem enormes
ônus a todos permanecem ou se tornam pobres – tão
pobres que seus cidadãos típicos estão em situação
pior do que os desafortunados em sociedades livres.
As imposições da moralidade do bem-estar social
soam vazias – exatamente como as promessas dos
políticos, com as quais todos estamos familiarizados.
206

LIBERTARIANISMO IGUALITÁRIO BASEADO


NA “SORTE”
Alguns teóricos argumentam que, como não
criamos o conjunto de recursos naturais sobre o qual
acabamos recorrendo para transformar em bens
utilizáveis para melhorar nossas condições, então
devemos considerar que esses recursos básicos são,
de alguma forma, propriedade pública. (O próprio
Locke começa dessa forma, depois reconhecendo
imediatamente que considerar isso representaria um
grande problema para quaisquer ideias de aquisição
legítima por parte dos indivíduos.) A ideia do
libertarianismo igualitário baseado na “sorte” é que
devemos distribuir o valor dos recursos naturais não
desenvolvidos igualmente entre todos, no interesse da
justiça, mas depois disso, tudo deveria ser livre
mercado. O que não podemos fazer é concordar, por
exemplo, com a Sharia, cujo “pacote completo [de
acordo com um porta-voz islâmico] incluiria moradia,
comida e roupas gratuitas para todos, embora, é
claro, qualquer um que quisesse enriquecer seu
trabalho pudesse fazê-lo.”105
Afinal de contas, de acordo com as razões do
igualitarismo baseado na sorte, nenhum de nós fez
algo para merecer quaisquer ativos que possamos ter,
ou que nossos ambientes ofereceram, por natureza.

105 Citação de Graeme Wood em What ISIS Really


Wants?, Atlantic, March 2015, p. 86.
207

Antes de nascermos, não há uns “nós” que tenha


merecimento, e depois, isso é tarde demais: aqui
estamos nós, tendo emergido deste útero específico,
neste ambiente natural e social em particular, nada
disso poderia ter sido feito por nós. Então, como
podemos “merecer” isso?
Agora, alguém pode ser tentado a ir de
“ninguém merece mais do que qualquer outra pessoa”
(o que certamente é verdade) para “então isso deve ser
igualmente para todos” (o que claramente não é). Mas
o raciocínio é falacioso. Se a ideia é que é uma
condição necessária alguém legitimamente ter x por
merecer x, e então é observado que, no início,
ninguém merecia nada, logo o que deve ser
igualmente distribuído não é tudo – é nada. E assim
fica a loucura. E depois disso, é apenas um passo
rápido para perceber que deveríamos considerar
como tendo direito (para usar a bela distinção de
Robert Nozick [NdoT: entitled]) ao que quer que seja
apenas parte de nós ou anexado a nós ou de qualquer
maneira que nos seja “dado” pela natureza, ou por
nossos próprios esforços, de alguma forma esculpida
ou extraída da natureza. Pois privar-nos do que
possuímos – por mais que passemos a possuí-lo
enquanto não for por violência – é agredir-nos. E essa
privação, para lembrar mais uma vez, é precisamente
o que é proibido pela lei básica. (Nota: poder-se-ia ter
recebido da natureza alguma doença física horrível,
digamos. Nos alegraríamos se ficássemos de fora de
208

alguns dos dotes da natureza. Proibir os outros de


tomá-los, se pudessem, seria sem sentido).

E OS MAIS POBRES? MERCADOS LIVRES


DA POBREZA
Especialmente aqui no Ocidente rico, muitos
torcem as mãos sobre o sofrimento, como deve ser,
dos pobres do seu país ou do mundo. E perguntam
como esses pobres devem ser atendidos na ausência
de assistência do Estado. Há duas respostas
excelentes para isso, além de uma terceira muito
fundamental.
1. Não é óbvio que os mais abastados devam
alguma coisa aos pobres; se existe algo, é bastante
óbvio que eles não devem. Pois não são as atividades
dos relativamente ricos que tornaram os pobres
pobres. Má governo, má sorte e vários fatores
circunstanciais são responsáveis por quase todos os
casos.
2. A essa altura, a maioria dos pobres do
mundo é pobre por causa das incursões de governos,
geralmente militares – sejam do próprio país ou
vizinhos. Obviamente, a primeira coisa a fazer é tirar
esses homens armados das costas – seja lá o que deve
ser feito.
209

3. A generosidade do Estado é sempre extraída


dos contribuintes, muitos dos quais estarão sempre
indispostos. Uma solução não coerciva é sempre
preferível. E tal solução é essencialmente
universalmente disponível: os pobres estão prontos
para trabalhar por salários mais baixos, tornando a
interação lucrativa com eles uma opção viva. Sempre
que a política mundial permite tal “exploração”
benéfica, podemos esperar que isso aconteça. E isso
certamente resolverá o problema, como já aconteceu
nos países ricos outrora, como acontece agora, por
exemplo, na China moderna, que, depois de
abandonar os absurdos do maoísmo, adotou
efetivamente soluções de mercado, elevando os
padrões de vida de mais de meio bilhão de pessoas da
extrema pobreza à classe média asiática em poucas
décadas – algo que o socialismo não mostrou
potencial para realizar.
Acrescentamos que a pobreza nas nações
“ricas” é trivial comparada com a da África e do sul da
Ásia. No entanto, essas nações desafortunadas
também estão melhorando ao longo do tempo, apesar
de seus governos terríveis. Já as áreas afortunadas
cujos governos têm razoáveis simpatias ao mercado
livre – Coréia do Sul, Cingapura, Hong Kong – estão
muito acima do nível oferecido aos cidadãos da Coréia
do Norte, por exemplo. Eles realmente se juntaram às
economias ricas do mundo.
210

Esta é a solução definitiva para a “pobreza”.


Não é necessário manipular e extorquir os
contribuintes. Nós, é claro, deveríamos considerar
como uma virtude ajudar os outros, inclusive os que
estão mal, que naturalmente são os principais
candidatos à assistência filantrópica. Mas tal
assistência é necessariamente temporária e ocasional
– especialmente útil em resposta a desastres como
tsunamis e terremotos. Caso contrário, o mercado é
nosso recurso fundamental e suficiente. Os pobres
não precisam “estar sempre conosco” – a menos que
você insista em contar como “pobres” os que estão nos
décimos ou quintos mais baixos ou o que quer que
seja da distribuição real de renda, seja ela qual for.
Mas fazer isso, por mais politicamente popular,
banaliza o problema na medida em que é um.

CONCLUSÃO
O contrato social é mal interpretado como um
acordo entre um determinado grupo de pessoas para
estabelecer um governo. Corretamente visto, como
uma explicação da lógica subjacente e gênese da
moralidade, é a abordagem fundamentalmente
racional para esse assunto e, em consequência, para
o governo. É assim porque explica – deriva – a moral
dos fatos muito gerais da natureza e da sociedade
humana, em termos compreensíveis a todas as
pessoas normais. Prossegue a partir da premissa
211

óbvia de que todos possuímos interesses e


habilidades, que vivemos entre outros de situação
amplamente semelhante nesses aspectos, e que
podemos nos comunicar e alcançar soluções
cooperativas para problemas sérios de suprimento.
Nenhuma outra teoria moral o faz sem recorrer a
mistérios e opacidades. E a leitura mais natural e
óbvia de nossas situações nos impele à visão
libertária como nossa perspectiva moral
fundamental. É essa base que nos permite progredir
na vida social. Nada mais pode ser razoavelmente
perguntado.
212

CAPÍTULO 5 - RAWLSIANISMO
E LIBERTARIANISMO

O SISTEMA ÉTICO DE JOHN RAWLS,


DEVIDAMENTE ENTENDIDO, JUSTIFICA AS
INSTITUIÇÕES POLÍTICAS LIBERTÁRIAS.
John Rawls (1921–2001) foi sem dúvida o
filósofo político mais importante do século XX. Seus
trabalhos sistemáticos, A Theory of Justice e Political
Liberalism, prepararam o palco para uma miríade de
debates dentro da filosofia política.106 Os livros
também estabeleceram uma forma de igualitarismo
liberal. Embora rawlsianos e libertários concordem
com a prioridade básica de certos direitos liberais
centrais, como liberdade de expressão e liberdade de
religião, eles discordam dramaticamente sobre o
alcance das liberdades econômicas. Os rawlsianos
argumentam que apenas a liberdade de escolher uma
ocupação e o direito à propriedade pessoal (não bens
de capital) são liberdades fundamentais que os
Estados devem proteger.

106 John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge:


Harvard University Press, 1999); Political Liberalism, ed.
expandida (New York: Columbia University Press, 2005).
213

Libertários e liberais clássicos adotam um


esquema muito mais amplo de direitos, incluindo o
direito de estabelecer seus próprios preços para bens
e serviços, o direito contra regulamentação
governamental, o direito à liberdade de contrato e o
direito de possuir e operar capital privado.
Então, o que um capítulo sobre Rawls está
fazendo em um livro sobre argumentos para o
libertarianismo? A resposta é que os argumentos
rawlsianos podem ser usados para defender o
liberalismo clássico. De fato, existem dois métodos
distintos, contrastantes e um tanto incompatíveis de
fundamentar as instituições liberais clássicas na
filosofia política rawlsiana. Os dois métodos se
correlacionam fortemente com as linhas de raciocínio
nos dois livros de Rawls, A Theory of Justice e Political
Liberalism. John Tomasi usa a estrutura de A Theory of
Justice para defender o que chama de “justiça do livre
mercado”, que difere da teoria de Rawls, “justiça como
equidade”, expandindo a lista de liberdades
econômicas para incluir aquelas celebradas pelos
liberais clássicos. Em contraste, Gerald Gaus seguiu
a linha de argumentação que Rawls definiu no Political
Liberalism. Gaus oferece uma forte defesa dos
mercados dentro da estrutura “liberal política” ou
“razão pública liberal” inspirada em Rawls.
Neste capítulo, vou me concentrar em explicar
as defesas tomasianas e gausianas do liberalismo
214

clássico comparando-as com as abordagens de Rawls


em A Theory of Justice e Political Liberalism,
respectivamente. Tomasi segue mais diretamente
Rawls, enquanto as primeiras versões de Gaus da
razão pública liberal antecedem Political Liberalism,
mas mostram fortes semelhanças com a abordagem
rawlsiana. No final, vou explorar sua compatibilidade.
Importante, não vou rever críticas libertárias da
posição de Rawls. O objetivo deste capítulo é
estritamente limitado ao uso de ferramentas
rawlsianas para justificar as instituições libertárias.
Eu prossigo em cinco partes. A primeira analisa
as características básicas do projeto de Rawls em A
Theory of Justice, e a segunda explica a defesa de Tomasi
do liberalismo clássico que revisa este projeto. A
terceira seção analisa as características básicas da
transição de Rawls para Political Liberalism e a ideia de
razão pública. A seção seguinte descreve a defesa
Gausiana mais complexa do liberalismo clássico
baseada na razão pública liberal. Na última seção,
apresento um argumento a favor da defesa gausiana,
mas também argumento que a teoria de Gaus permite
que a justiça de mercado de Tomasi seja a teoria
correta de justiça e forma uma base para o ativismo
político em uma política pública justificada.

PROJETO DE RAWLS EM A THEORY OF


JUSTICE
215

Rawls é bem conhecido por seu papel


proeminente em reviver a teoria do contrato social nos
Estados Unidos no final do século XX. Seu trabalho
seguiu – e ajudou a deslocar – quase um século de
pensamento político, que incluía, proeminentemente,
visões utilitaristas e marxistas.
Rawls argumenta que uma sociedade é justa
quando sua estrutura básica é regulada por
princípios que seriam selecionados através de um
experimento mental. Ele imagina as pessoas em uma
“posição original”, encarregada de escolher entre
diferentes princípios de justiça. Sua escolha é
limitada pelo “véu da ignorância”, que lhes nega
informações que possam influenciar a seleção de
princípios de maneiras que normalmente
consideramos inadequadas, como se basear na raça
ou classe de alguém. Os princípios de justiça
selecionados formarão as regras para distribuir o que
Rawls chama de “bens primários” ou bens que
qualquer pessoa com um plano racional de vida
desejaria, como direitos, liberdades, renda e riqueza.
Esses bens incluem (a) direitos e liberdades básicas,
(b) liberdade de movimento e livre escolha entre uma
ampla gama de ocupações, (c) os poderes dos cargos
e posições de responsabilidade, e (d) renda e riqueza.
De forma mais elusiva, Rawls inclui entre os bens
primários (e) as bases sociais do auto-respeito, que
ele entende como “o reconhecimento pelas
instituições sociais que dá aos cidadãos um senso de
216

autoestima e a confiança para realizar seus


planos”.107
Criticamente, o véu da ignorância de Rawls
proíbe as pessoas de escolherem concepções de
justiça baseadas em características profundas de
suas identidades que normalmente não parecem
bases inapropriadas para determinar o que a justiça
exige. Por exemplo, Rawls nega que as pessoas
possam apelar para suas concepções de bem, como a
cosmovisão ou religião, ao selecionar princípios de
justiça.
Mais radical ainda, Rawls negou que as pessoas
em uma sociedade justa pudessem apelar para seus
talentos naturais, como a capacidade matemática ou
musical de uma pessoa, para reivindicar uma maior
parcela de bens primários. Por exemplo, Jane não
pode reivindicar uma parcela maior de bens
primários, mesmo que produza um excedente de bens
usando seus talentos naturais. Imagine que Jane
invente um programa de computador que reduz
substancialmente os custos de sua empresa, e essa
invenção leva a garantia de uma renda maior de seu
trabalho. Na visão de Rawls, embora a constituição
ou as leis particulares de uma sociedade possam
permitir que ela mantenha sua renda, ela não tem

107 John Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, ed. E.

Kelly (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2001),


pp. 58–59.
217

direito básico a isso em virtude de usar seus talentos


naturais. A razão é que talentos naturais são
imerecidos. Rawls alega que a distribuição de talentos
naturais é arbitrária do ponto de vista moral, o que
significa que os talentos naturais são distribuídos
aleatoriamente pela natureza e, portanto, não de
acordo com a justiça ou a equidade. Esta última
alegação levantou piadas libertárias, e com razão,
mas as duas versões do liberalismo clássico inspirado
por Rawls mostram que a estrutura de Rawls pode
progredir mesmo se a posição de Rawls sobre os
talentos naturais estiver equivocada.
Central para a teoria de Rawls é que os grupos
na posição original não são pessoas do mundo real.
Em vez disso, sua escolha é um modelo do processo
de equilíbrio reflexivo, em que as pessoas teorizam
juntas a fim de harmonizar seus julgamentos
considerados sobre as exigências da moralidade e da
justiça. O que os grupos escolhem é, portanto, o
melhor caminho, ou uma das melhores maneiras,
para identificar a concepção de justiça com a qual as
pessoas do mundo real são racionalmente
comprometidas. A teoria de Rawls não é uma teoria
hipotética do consentimento da política, onde a
justificação da ordem política está enraizada no que
as pessoas concordariam sob certas condições, mas
que de fato não concordaram. Para Rawls, nenhuma
afirmação normativa importante é feita pelo
consentimento de pessoas hipotéticas. Em vez disso,
218

o consentimento hipotético é uma heurística para


identificar princípios de justiça que oferecem a
explicação mais ampla e coerente dos julgamentos
morais e políticos que compartilhamos.
Quando os grupos escolhem, sua escolha é
racional e razoável, no sentido de que sua escolha
segue os cânones da escolha racional e é
adequadamente imparcial ou sem viés. Observe
também que os grupos não escolhem para nós. Em
vez disso, escolhem princípios para governar uma
sociedade bem ordenada, que modela pessoas como
nós que vivem em condições favoráveis. Uma vez que
os grupos selecionam princípios de justiça, Rawls
argumenta que os princípios devem ser testados
contra um modelo de sociedade psicológica e
sociologicamente realista para ver se as regras podem
se autoestabilizar entre pessoas dispostas a serem
justas.
Rawls quer garantir que as pessoas que
normalmente trabalham possam vir a cumprir os
princípios da justiça, porque reconhecerão que isso é
bom para elas. Só então os princípios da justiça
estarão de acordo com nossa expectativa pré-teórica
de que os verdadeiros princípios da justiça sejam
aqueles que possam sobreviver ao escrutínio público.
Apenas instituições, isto é, não precisam esconder
sua base normativa. As pessoas devem poder acessar
os fundamentos de suas instituições e cumpri-los
219

com base na aprovação deles, dado sua concepção de


justiça e bem.
A ideia básica é que os princípios corretos da
justiça devem promover a estabilidade social de
maneira pública, em contraste com visões, como o
utilitarismo, que podem exigir que os governos
escondam seus princípios utilitaristas para não
desestimular os cidadãos a cumprir os ditames do
governo. Então, novamente, a construção de Rawls
não envolve partes que escolhem princípios para nós.
Em vez disso, a construção tenta localizar princípios
da justiça que satisfaçam nossos julgamentos sobre
justiça, tanto nossos juízos substantivos sobre o que
é e não é justo, quanto nossos julgamentos
procedimentais sobre a natureza da justiça, como
institucionalizar a justiça de forma que seja estável
para seres humanos em funcionamento.
Os libertários às vezes interpretam
erroneamente Rawls como um teórico do
consentimento hipotético. Isso levou a muita
confusão. Como podemos ver, a visão real de Rawls é
diferente, mais rica e mais plausível.
Rawls então argumenta que os grupos
escolherão dois princípios da justiça, conhecidos
juntos como “justiça como equidade”:
Primeiro Princípio: Cada pessoa tem a mesma
reivindicação imprescindível de um esquema
220

totalmente adequado de liberdades básicas iguais,


cujo esquema é compatível com o mesmo esquema de
liberdades para todos.
Segundo Princípio: As desigualdades sociais e
econômicas devem satisfazer duas condições:
1. Elas devem ser anexadas a cargos e posições
abertas a todos sob condições de igualdade justa de
oportunidades.
2. Elas devem ser para o maior benefício dos
membros menos favorecidos da sociedade (o princípio
da diferença).108
Os grupos escolhem esses princípios porque os
princípios protegerão e promoverão a capacidade
deles de exercer seus dois poderes morais: seu poder
de ser racional e seu poder de ser razoável. O primeiro
poder moral é exercido quando as pessoas formam
um plano racional de vida, enquanto o segundo poder
é exercido quando as pessoas formulam e vivem uma
concepção de justiça.
O primeiro princípio garante que as pessoas
possam reivindicar e exercer as liberdades básicas
necessárias para exercer seus dois poderes morais,
protegendo a liberdade de expressão, religião e
imprensa, entre outras, e protegendo os direitos
processuais, como o direito a uma justiça justa. Os

108 Ibid., pp. 42–43 [ênfase adicionada].


221

cidadãos também devem ter os meios para realizar o


“valor” dessas liberdades, isto é, para poder exercê-
las de maneiras significativas regularmente. Este
princípio tem prioridade léxica sobre o segundo
princípio; o segundo princípio nunca substitui o
primeiro.
O segundo princípio garante que as pessoas
possam desfrutar do valor dessas liberdades em
igualdade de condições. A igualdade justa de
oportunidades protege contra o domínio de qualquer
grupo social, ao passo que o princípio da diferença
assegura que mesmo os mais pobres tenham acesso
aos bens primários necessários para exercer seus
dois poderes morais.
Importante para todo o projeto, Rawls afirma
que a escolha baseada em nossos dois poderes morais
deriva de nossa concepção compartilhada de pessoa.
Pessoas razoáveis têm visões diferentes sobre o que é
a pessoa humana, mas concordam em pelo menos
algumas características comuns, e essas
características comuns formam a base do projeto
rawlsiano.
Observe como a teoria da justiça de Rawls é
igualitária. Sim, Rawls protege um grande número de
liberdades tão fortemente quanto pode. Mas sua lista
de liberdades inclui apenas duas liberdades
econômicas: o direito de escolher livremente a
ocupação e o direito à propriedade pessoal. Isso
222

significa que o Estado não pode ordenar que as


pessoas realizem trabalhos; tampouco pode
expropriar os bens pessoais – isto é, não-capitais – de
pessoas. Mas nenhuma outra liberdade econômica é
protegida. Portanto, em princípio, um rawlsiano pode
apoiar vastas quantidades de redistribuição
governamental, regulamentação e até mesmo de
produção econômica socialista.
Em relação ao segundo princípio, as discussões
libertárias da visão de Rawls tenderam a enfocar o
princípio da diferença. Mas a justa igualdade de
oportunidades é, em muitos aspectos, mais
igualitária, e é lexicalmente anterior ao princípio da
diferença, na medida em que os conflitos entre os dois
princípios devem sempre resolver em favor da
igualdade justa de oportunidades.
A justa igualdade de oportunidades, para
Rawls, significa que as desigualdades sociais só
podem ser justificadas se promoverem igualdade
justa de oportunidades. A única razão pela qual o
Estado pode permitir que você se torne rico, influente
ou poderoso é se você o fizer sob um sistema de regras
que promova oportunidades iguais para todos. Sua
riqueza, influência e poder desiguais – não
importando quão nobre e virtuosamente
conquistados ou merecidos – podem ser eliminados,
mesmo que surjam dentro de um sistema social que
ofereça oportunidades grandes, mas desiguais, a
223

todos. A menos que as oportunidades sejam iguais,


elas são injustas. Rawls permite apenas uma exceção:
oportunidades usadas para colocar os menos
favorecidos em melhor situação.
O princípio da diferença é, a meu ver, um pouco
mais suave. Isso exige que as desigualdades de bens
primários maximizem a posição dos membros menos
favorecidos da sociedade. Novamente, mesmo que
você adquira mais riqueza por meio de atividades
produtivas que beneficiem a todos e não explorem
ninguém, o Estado não é moralmente obrigado a
proteger essa riqueza. Seus esforços levando à
desigualdade devem ocorrer dentro de um sistema de
regras que maximiza a posição dos membros menos
favorecidos da sociedade. Poucas teorias de justiça
distributiva são mais igualitárias.
As implicações institucionais da posição de
Rawls são similarmente igualitárias. Rawls analisa
cinco tipos de regimes: (a) o capitalismo laissez-
faire com um mínimo social (como uma renda mínima
garantida), (b) um Estado de bem-estar capitalista
(com seguro social mais amplo, regulação e poder do
governo), (c) a democracia de propriedade (onde a
propriedade do capital é constantemente
redistribuída dos grandes detentores de capital), (d) o
socialismo liberal (direitos liberais básicos mais a
propriedade governamental dos meios de produção),
e (e) o socialismo de economia de comando. O laissez-
224

faire não consegue realizar os princípios da justiça


porque não garante a capacidade das pessoas de
usufruir do “valor” de suas liberdades, especialmente
de suas liberdades políticas, pois os ricos e poderosos
irão dominar a política. Embora os Estados de bem-
estar social tenham melhores resultados, também são
vulneráveis a grandes desigualdades políticas e,
portanto, serão dominados pelos ricos. O socialismo
da economia de comando viola as liberdades básicas,
como a liberdade de ocupação. Sobra-nos apenas a
democracia de propriedade e o socialismo liberal, os
quais envolvem enormes quantidades de intervenção
do governo na economia.
Rawls reconhece problemas econômicos no
capitalismo, mas ignora os problemas da democracia
de propriedade e do socialismo liberal. O capitalismo
é vítima da desigualdade, insuficiência e permite que
os ricos governem. A democracia de propriedade e o
socialismo liberal podem ser assumidos como se
trabalhassem largamente como pretendem. Isso
porque a obra de Rawls está situada dentro da teoria
ideal, onde escolhemos uma concepção de justiça
para as pessoas que vivem em condições favoráveis e
que estão preparadas para cumprir suas instituições
políticas, desde que os outros façam o mesmo. Por
que Rawls não aplicou as mesmas suposições ao seu
modelo de capitalismo é uma questão importante, na
qual Tomasi tenta remediar.
225

Em suma, a justiça como equidade parece ser


tanto altamente igualitária quanto profundamente
estatista.

A JUSTIÇA DO LIVRE MERCADO DE


TOMASI
Depois de tudo isso, você deve estar se
perguntando como o aparato de Rawls poderia ser
usado para apoiar posições libertárias. É uma boa
pergunta. Vou deixar de lado as tentativas de mostrar
que o capitalismo satisfaz melhor o princípio da
diferença do que o socialismo. Alguns perseguiram
essa linha de pensamento, argumentando que o livre
mercado maximiza, de fato, por exemplo, a riqueza e
a renda dos menos favorecidos. Esta é uma tentativa
superficial de usar ideias rawlsianas para justificar as
conclusões libertárias. A correção é muito fácil. Em
vez disso, precisamos considerar novamente as
motivações básicas da teoria da justiça de Rawls e ver
se elas levam onde ele acredita que elas fazem.
Entrando no livro recente de John Tomasi, Free
Market Fairness.109 Tomasi assume muitas
características da metodologia de justiça de Rawls,
como o raciocínio da posição original e o véu da

109John Tomasi, Free Market Fairness (Princeton, NJ:


Princeton University Press, 2012).
226

ignorância. Ele adota a teoria ideal, argumentando


que identificar concepções de justiça requer
encontrar um conjunto de princípios gerais para
governar uma sociedade bem ordenada. Isso quer
dizer que uma sociedade bem ordenada contém
pessoas que vivem em condições favoráveis e estão
preparadas para cumprir uma concepção de justiça.
Tomasi também assume muitos aspectos da
concepção de Rawls sobre a pessoa, embora descreva
essa concepção como uma “auto-autoria
responsável”, que não é o mesmo. No entanto, como
Tomasi gasta pouco tempo contrastando as duas
ideias, não explorarei as diferenças aqui.110
Tomasi também argumenta que os partidos
escolherão liberdades básicas baseadas em sua
concepção compartilhada da pessoa como auto-
autora responsável. Essas liberdades básicas têm
uma prioridade especial semelhante sobre outras
considerações de justiça. A principal diferença de
Tomasi e Rawls vem da lista de liberdades
econômicas que Tomasi endossa. Tomasi acusa o
liberalismo rawlsiano de “excepcionalismo
econômico” que destaca algumas liberdades
econômicas para a proteção como direitos básicos. O
programa de pesquisa de Tomasi, a democracia de
mercado, do qual a justiça do livre mercado é uma
variante rawlsiana, não endossa direitos de

110 Ibid., p. 94.


227

propriedade “absolutos”. Em vez disso, “afirma uma


concepção ampla da liberdade econômica como parte
de um esquema mais amplo de direitos e liberdades,
projetado para permitir aos cidadãos exercer e
desenvolver seus poderes morais”.111
A crítica de Tomasi chama nossa atenção aos
argumentos de Rawls para proteger uma pequena
lista de liberdades econômicas e, em seguida, tenta
mostrar que esses argumentos também apoiam a
expansão da lista. Em outras palavras, Tomasi afirma
que liberdades econômicas amplas e libertárias
devem ser tratadas em pé de igualdade com a
liberdade de ocupação e o direito à propriedade
pessoal. Tomasi argumenta, por exemplo, que se o
direito de escolha ocupacional é um direito básico,
“fica claro como as outras liberdades de trabalho
podem ser excluídas”.112 Liberdades amplas de
trabalho incluem os direitos de vender, negociar ou
doar seus trabalhos . Ou seja, as pessoas têm direitos
básicos para determinar as condições de suas vidas
profissionais em geral. O direito de possuir
propriedade produtiva também pode ser justificado
com base em uma analogia com o direito à
propriedade pessoal: ambos os direitos de
propriedade “podem fornecer segurança pessoal a

111 Ibid., p. 69.


112 Ibid., p. 77.
228

uma pessoa” e podem servir para expressar a


identidade do proprietário.
Uma das ilustrações de Tomasi sobre este
último ponto é a Amy’s Pup-in-the-Tub, uma pequena
empresa de propriedade e operada por uma mulher
na área de Rhode Island, cujos valores são expressos
em seu trabalho. Amy adora animais, especialmente
cachorros, e ela obtém grande significado de fazer
com que ela viva cuidando deles. Tomasi também
argumenta que as pessoas deveriam ser livres para se
engajar em “planejamento financeiro de longo prazo”
para evitar diminuir “a capacidade dos cidadãos de se
tornarem agentes totalmente responsáveis e
independentes”.113 Assim, mesmo pessoas cujos
valores e compromissos não estão ligados ao seu
trabalho devem ter o direito básico de desfrutar do
fruto desse trabalho, ou seja, sua renda.
A segunda linha de argumentação de Tomasi
em defesa de conclusões libertárias é que o respeito
pela auto-autoria responsável requer uma “condição
de adequação distributiva”, onde
[…] uma defesa de qualquer versão do
liberalismo é adequada apenas se incluir a alegação
de que as instituições que estão sendo endossadas

113 Ibid., p. 81.


229

provavelmente trarão alguma distribuição desejada de


bens materiais e sociais.114
Esta condição pode ser igualitária, se a
distribuição deve satisfazer algum padrão que rege as
“propriedades relativas dos cidadãos”, onde alguma
equalização é exigida pela justiça. Mas também
poderia ser uma visão suficiente, onde a distribuição
deve assegurar que todas as pessoas tenham acesso
a uma quantidade mínima de recursos.115 Ou a
condição poderia exigir a maximização dos recursos
disponíveis. No entanto, é necessária uma condição
de adequação distribucional.
Para que você não pense que Tomasi está
rejeitando o libertarianismo, Tomasi afirma que
quase todos os liberais clássicos e libertários aceitam
uma condição de adequação distributiva e
argumentam que os regimes de livre mercado
satisfazem a condição.116

114 Ibid., p. 126.


115 Assim, “suficientearianismo” refere-se a um
princípio de justiça que a todos seja dado recursos
suficientes para viver vidas minimamente decentes.
Compare isso com o igualitarismo, que requer equalização
de recursos mesmo entre pessoas que já têm o suficiente.
116 Veja Tomasi, Free Market Fairness (pp. 127–42)

para uma descrição de sua revisão de figuras importantes,


tais como Herbert Spencer, Milton Friedman, e F. A.
230

A terceira base de Tomasi para as conclusões


liberais clássicas é sua alteração da lista tradicional
rawlsiana de bens primários. Rawls argumenta que
os bens primários são todos e apenas aqueles
essenciais para as pessoas desenvolverem e
exercitarem os dois poderes morais que alguém
desejaria, independentemente do seu plano racional
de vida. Lembre-se de que os bens primários incluem
direitos e liberdades, juntamente com as bases
sociais do respeito próprio. Assim, o segundo
princípio de Rawls, que distribui bens primários, tem
um papel na distribuição de direitos, liberdades,
poderes e posições básicas em vez de, digamos,
dinheiro.
No entanto, Tomasi argumenta que o
compromisso de Rawls para maximizar a parcela de
bens primários usufruídos pelos menos favorecidos é
ambíguo entre diferentes listas de bens primários.
Algumas listas incluirão grandes melhorias nos
direitos e liberdades e pequenas melhorias nas bases
sociais do respeito próprio. Outras listas escolherão o
reverso. Alguns bens de princípio de diferença (bens
de DP, como Tomasi os denomina), então, são rivais,
e não está claro como trocá-los.
Tomasi argumenta que, em alguns casos,
pessoas razoáveis preferirão mais riqueza a mais

Hayek, e filósofos políticos libertários contemporâneos,


como Loren Lomasky e David Schmidtz.
231

democracia no local de trabalho. Ou seja, pessoas


razoáveis podem preferir ter chefes, mas renda mais
alta, enquanto outras podem preferir o contrário. Se
assim for, devemos atender a níveis de riqueza social
para maximizar o pacote de bens primários. E porque,
como afirma Tomasi, o capitalismo é um gerador de
riqueza tão eficaz, temos um argumento de que o
princípio da diferença exige o capitalismo (que não é
o mesmo que a abordagem de correção fácil
mencionada anteriormente). Tomasi não pretende
afirmar, no entanto, que a justiça no livre mercado
exige negociação de direitos e liberdades. Em vez
disso, maximizar a riqueza ajuda os menos
favorecidos a desfrutar de seus direitos e liberdades.
A alteração e o desenvolvimento que Tomasi
propõe para a lista de bens primários alterará as
recomendações do princípio da diferença e a
igualdade de oportunidades.117 Os liberais “elevados”
de Rawls dão lugar de destaque às liberdades
democráticas no local de trabalho entre esses bens,
mas Tomasi argumenta que a justiça no mercado se
concentra muito mais na maximização da riqueza,
combinada, talvez, com um mínimo social de algum

117 Tomasi também argumenta que a ênfase


rawlsiana na proteção da liberdade política pode ser
voltada para os fins liberais clássicos, mas, por razões de
espaço, omito essa discussão.
232

tipo.118 Alega que a justiça do livre mercado afirma os


ideais liberais tradicionais de igualdade formal de
oportunidades e, ao fazê-lo, assegura que “a cada
cidadão, independentemente do status de nascimento
ou classe econômica, é devido cuidados de saúde de
alta qualidade e educação como uma questão de
justiça.”119
Mas Tomasi nega que a justiça deva ser
executada pelo modo “direto” de construção social – a
forma de intervenção governamental direta e
deliberada que tenta projetar resultados sociais. Em
vez disso, os liberais clássicos confiam em um modo
“indireto” de construção social que “enfatiza os
mecanismos de mercado em busca de um sistema de
qualidade de educação e saúde para todos”.120 A
“estratégia democrática de mercado é criar sistemas
com o máximo número de pontos de decisão”.121

118 Samuel Freeman usa o termo “liberais elevados”


para descrever os liberais social-democratas e igualitários,
cuja concepção de liberalismo é a mais evoluída e inclusiva
dos insights da tradição liberal como um todo. Veja
Freeman, “Capitalism in the Classical and High Liberal
Traditions,”, Social Philosophy and Policy 28 (2), pp. 19–55,
2011. Tomasi assume o termo de Freeman em seu
trabalho.
119 Tomasi, Free Market Fairness, p. 241.

120 Ibid., p. 242.


121 Ibid.
233

Finalmente, Tomasi usa a teoria ideal de Rawls


para mostrar que a justiça do livre mercado, bem
como a justiça e a equidade, implica tipos ideais de
regime, mas muito diferentes da democracia de
propriedade e do socialismo liberal. Os dois tipos de
regime são o “laissez-faire democrático” e “governo
limitado democrático”. O primeiro é mais
radicalmente libertário; Tomasi associa-o à oposição
de Murray Rothbard ao poder do Estado.122 O laissez-
faire democrático envolve um governo bastante
limitado e procura usar os mecanismos de mercado
com a maior frequência possível para satisfazer as
demandas abstratas da justiça no mercado livre.
“Assinala o ponto alto de otimismo sobre os
mecanismos de mercado (e ceticismo quanto à
tomada de decisões políticas).”123 O governo limitado
democrático é mais fraco: embora “entusiasticamente
capitalista, esse tipo de regime permite um grau
maior de intervenção governamental direta nos
assuntos econômicos”.124 Tomasi associa essa visão
com F. A. Hayek e Milton Friedman.
O ponto de teorização ideal é duplo. Em
primeiro lugar, permite-nos evitar as falhas comuns

122 Isso apesar da conhecida hostilidade de


Rothbard à democracia e apesar de sua hostilidade ao
Estado em geral.

123 Tomasi, Free Market Fairness, p. 116.


124 Ibid., p. 117.
234

dos seres humanos que não devem poluir nossa


concepção de justiça, mesmo que essas falhas devam
alterar nossas recomendações institucionais. Em
segundo lugar, permite-nos ver como nossas
propostas institucionais preferidas se vinculam ao
nosso compromisso com a justiça sob condições
favoráveis. Satisfazer esses dois compromissos
permite que a teorização ideal nos dê ideais
inspiradores que possam estabelecer a superioridade
moral de algumas concepções de justiça sobre outras.
Muitos libertários são cautelosos com a teoria ideal,
vendo-a como uma estratégia de fuga para socialistas.
Mas Tomasi argumenta que a teoria ideal favorece o
libertarianismo125 – uma reviravolta importante.

A VOLTA AO LIBERALISMO POLÍTICO


Depois da publicação de A Theory of Justice (TJ),
Rawls tornou-se cada vez mais convencido de que a
sociedade bem ordenada que descreveu era
“irrealista”.126 Na Parte 3 de TJ, Rawls presumira que
os membros de uma sociedade bem ordenada
concordariam com uma concepção parcial do bem.
Consequentemente, poderia demonstrar que a noção

125 Jason Brennan também argumenta que a teoria


ideal justifica o libertarianismo. Veja seu Why Not
Capitalism? (Nova Iorque: Routledge, 2014).
126 Rawls, Political Liberalism, p. xviii.
235

de uma sociedade bem ordenada de TJ é estável,


mostrando que essa concepção parcial do bem era
congruente com a justiça como equidade. Tal
sociedade seria inerentemente estável porque cada
pessoa acredita que a conformidade com instituições
que manifestam justiça como equidade é compatível
com seu bem e o bem de outros, e assim a
conformidade é a melhor resposta às ações dos
outros.
Rawls passou a acreditar que os cidadãos só
compartilhariam a afirmação desses bens se tivessem
uma concepção compartilhada da pessoa como um
agente moral livre e igualitário. Mas pessoas razoáveis
e racionais podem rejeitar essa concepção da pessoa
e, assim, rejeitar a justiça como equidade como uma
estrutura apropriada para regular seu
comportamento. Justiça como equidade, portanto,
não seria mais estável no caminho certo, pois alguns
agentes seriam praticamente racionais para desertar
das instituições que manifestam justiça como
equidade. É verdade que o Estado poderia impor à
justiça como equidade em uma população relutante,
mas Rawls achava que uma concepção de justiça
deveria receber o apoio voluntário de seus membros,
caso contrário essa concepção tinha uma falha
significativa.
O problema enfrentado por TJ é que sua noção
de uma sociedade bem ordenada, regulada por uma
236

concepção de justiça, permite o livre uso da razão


prática. As pessoas podem raciocinar livremente
sobre o que é melhor e mais importante na vida. Mas
isso leva as pessoas a afirmarem uma variedade de
visões de mundo, filosofias e crenças religiosas
incompatíveis. Algumas das doutrinas rejeitarão a
justiça como equidade e a concepção da pessoa na
qual a justiça como equidade é baseada. E as pessoas
que detêm essas doutrinas começarão a discordar da
ordem social que percebe a justiça como equidade, e
seu comportamento seguirá o mesmo caminho. A
estabilidade, portanto, vai colapsar.
O colapso da estabilidade levou Rawls a
reformular sua teoria. Primeiro, Rawls converteu a
justiça como equidade em uma “concepção política da
justiça”127, cuja concepção do cidadão é
“independente” dos detalhes das doutrinas
abrangentes e razoáveis predominantes em uma
sociedade bem ordenada. Uma concepção política da
justiça deve ser compatível com cada razoável
doutrina abrangente para que um “consenso
sobreposto” possa se formar em torno da concepção
política. Um consenso sobreposto ocorre quando
todas as doutrinas abrangentes razoáveis em uma

127 Ibid., p. xlii.


237

sociedade convergem ou se sobrepõem a uma


concepção política da justiça.128
Rawls também relaxa a relação de congruência.
Um cidadão não precisa endossar uma concepção
política da justiça como parte de seu bem pessoal.
Posições razoáveis precisam ser apenas “congruentes,
ou de apoio, ou então não em conflito com” valores
políticos, ou os valores que fazem parte de uma
concepção política compartilhada de justiça.129
No Political Liberalism (PL), estabilidade, agora
chamada “estabilidade pelas razões certas” pode
ocorrer mesmo se diversas doutrinas abrangentes
simplesmente falharem em fornecer aos cidadãos
razões suficientes para rejeitar justiça como
equidade. De fato, a justiça como equidade apenas
precisa “superar normalmente” as doutrinas e valores
privados de cada cidadão.
Para demonstrar que um consenso sobreposto
é possível, Rawls tenta mostrar que as pessoas
compartilham concepções de cidadania e de
sociedade política, independentemente de suas
doutrinas abrangentes razoáveis. Pessoas razoáveis

128 Embora em trabalhos posteriores, como a


introdução à edição em brochura do Political Liberalism,
Rawls permita que um consenso sobreposto se forme em
torno de um conjunto de concepções políticas liberais
razoáveis. Veja p. xxvi.
129 Ibid., p. 169.
238

concebem os cidadãos como livres e iguais e a


sociedade como um empreendimento cooperativo
para ganho mútuo. Como resultado da partilha
desses ideais, os cidadãos vão querer respeitar os
princípios que cada pessoa razoável pode aceitar. A
implicação dessa motivação é que a justificação
política toma a forma descrita pelo “princípio liberal
de legitimidade” de Rawls, que definiu da seguinte
forma:
Nosso exercício do poder político é plenamente
apropriado apenas quando exercido de acordo com
uma constituição que os cidadãos, como livres e iguais,
podem razoavelmente esperar que apoiem à luz de
princípios e ideais aceitáveis à sua razão humana
comum.130
Ao compartilhar concepções políticas do
cidadão e da sociedade, os cidadãos de uma
sociedade bem ordenada deveriam estar
comprometidos com o princípio liberal da
legitimidade, que diz que a coerção estatal só pode ser
justificada por razões que se baseiam em valores
políticos compartilhados. Em outras palavras, as
razões devem ser públicas. Ao usar razões públicas
em discussões sobre justiça e questões
constitucionais, os cidadãos podem assegurar-se
mutuamente de que suas atividades políticas são

130 Ibid., p. 137.


239

compatíveis com sua concepção política


compartilhada de justiça. Os cidadãos são obrigados
a cooperar somente quando os outros fazem o mesmo,
então devem ter expectativas estáveis de que os
outros estão dispostos a cooperar. O uso de razões
públicas, em virtude da modelagem a recursos
normativos compartilhados, torna-se não apenas um
sinal de respeito mútuo, mas também um sinal de
garantia mútua. Rawls então especifica uma ética da
cidadania que se baseia em torno de seu “dever de
civilidade”, que exige que os cidadãos, ao discutirem
questões constitucionais ou questões de justiça
básica, ofereçam razões públicas para suas posições.
As noções de uma concepção autônoma da
pessoa, uma concepção política da justiça,
concepções compartilhadas de cidadania e sociedade,
a ideia de um consenso sobreposto, a importância da
publicidade e das razões públicas, e o dever de
civilidade, tudo flui da tentativa de Rawls de esboçar
a estrutura de uma sociedade bem ordenada e estável
pelas razões certas. As principais ideias em PL e sua
motivação estão agora em vista.
Nas primeiras versões do liberalismo político de
Rawls, ele assumiu que as pessoas endossam a
mesma concepção de justiça, a saber, justiça como
equidade. Mas o fato da existência do pluralismo
razoável, admitiria mais tarde, também levaria a um
desacordo razoável sobre a justiça. Paul Weithman
240

argumenta que essa admissão veio muito tempo


depois que ele começou a “reformular a justiça como
equidade”.131 O pluralismo sobre a justiça, então, não
era uma parte importante da virada política de Rawls.
Mas veremos que o pluralismo da justiça é uma parte
importante para determinar se a estrutura do
liberalismo político é compatível ou mesmo favorável
ao liberalismo clássico.
A razão para isso é que, para as últimas
formulações de liberalismo político de Rawls, ele
reconheceu que diferentes concepções políticas
liberais de justiça poderiam ser legítimas para uma
sociedade bem ordenada. Essas concepções devem
compartilhar um “critério de reciprocidade” na
cooperação social e reconhecer os ônus do
julgamento, ou as características do raciocínio
político e moral que levam as pessoas racionais e
informadas de boa vontade a discordarem sobre
questões de importância fundamental. As concepções
também devem ter três características comuns:
Primeiro, uma especificação de certos direitos,
liberdades e oportunidades (de um tipo familiar de
regimes democráticos); segundo, uma prioridade
especial para essas liberdades; e terceiro, medidas
que asseguram a todos os cidadãos, qualquer que seja

131 Paul Weithman, Why Political Liberalism? On John

Rawls’s Political Turn (Oxford, UK: Oxford University Press,


2013), p. 7.
241

sua posição social, meios adequados para todos os


fins para fazer uso inteligente e efetivo de suas
liberdades e oportunidades.132
Observe quão amplo é esse alcance, pelo menos
em princípio: a imparcialidade do livre mercado de
Tomasi se encaixa dentro desse escopo. A visão de
Tomasi especifica os direitos, liberdades e
oportunidades relevantes e dá-lhes prioridade léxica;
e sua condição de adequação distributiva destina-se
a assegurar que todos os cidadãos tenham acesso a
meios para fazer uso efetivo de seus direitos e
liberdades. Suspeito que rawlsianos encontrem uma
maneira de negar que a justiça de livre mercado de
Tomasi é uma concepção política liberal razoável. Mas
pelo que Rawls diz, não há motivos para descartá-la.
Nem mesmo o foco especial do PL na liberdade política
pode fazê-lo, pois Tomasi se baseia no valor da
liberdade política para fundamentar seu argumento
em favor das instituições liberais clássicas. Talvez
Tomasi tenha a concepção errada da justiça, mas sua
visão, em termos rawlsianos, é certamente razoável.
Rawlsianos objetarão que Rawls rejeitou o
libertarianismo em PL porque não tem “nenhum
papel especial para a estrutura básica” da sociedade,
onde uma estrutura básica é “as principais
instituições políticas, sociais e econômicas de uma

132 Rawls, Political Liberalism, p. xlvi.


242

sociedade e como elas se encaixam em um sistema


unificado de cooperação social de uma geração para
a próxima”.133 O problema com o libertarianismo é
que ele vê o Estado como apenas mais uma
“associação privada”, e então “não há lei pública
uniforme que se aplique igualmente a todas as
pessoas, mas sim rede de acordos privados.”134 Desta
forma, o libertarianismo “rejeita as ideias
fundamentais da teoria do contrato”.135
Não aceito aqui a crítica de Rawls ao
libertarianismo nozickiano,136 mas deve ficar claro
que algumas versões do libertarianismo defendem
uma lei pública uniforme aplicada igualmente a todas
as pessoas e que tem um lugar especial para a
estrutura básica em sua teoria. A visão de Tomasi é
um exemplo, assim como a maioria das formas de
liberalismo clássico constitucionalista, como as
apresentadas por Hayek e Friedman. Assim, os
rawlsianos das versões posteriores do PL estão
provavelmente comprometidos com a posição de que
algumas formas de libertarianismo são concepções

133 Ibid., p. 11.


134 Ibid., p. 264.
135 Ibid., p. 255.
136 Mas para algumas das minhas discussões, veja

“The Later Rawls’s Critique of Libertarianism”, Bleeding Heart


Libertarians (blog), 3 de agosto de 2012.
243

políticas razoáveis de justiça. Esse é um resultado


interessante e surpreendente.

A ORDEM DA RAZÃO PÚBLICA DE GAUS


Liberais clássicos podem usar ferramentas
rawlsianas para reforçar o caso do liberalismo
clássico à luz dos desenvolvimentos de Rawls no PL.
De fato, a linha de argumentação que flui a partir do
PL, concernente às implicações da diversidade e do
raciocínio diverso, pode ter fortes implicações liberais
clássicas. Porém, como o leitor descobrirá, o
raciocínio pode se tornar sutil e complexo.
Em “The Order of Public Reason” (OPR), Gerald
Gaus argumenta que o raciocínio kantiano imparcial,
tal como a abstração de posição original de Rawls,
não pode, por si só, gerar um conjunto de regras ou
princípios unicamente justificados, por causa de
razoável (o que ele chama de “avaliativo”) pluralismo.
Gaus afirma que devemos “desistir da esperança de
que possamos construir uma descrição convincente
dos membros do ‘reino dos fins’ que os levará a
concordar com a mesma regra”.137 Em vez disso,
devemos permitir discordâncias extensas em
julgamentos pessoais, reconhecendo a existência de

137 Gerald F. Gaus, The Order of Public Reason: A Theory

of Freedom and Morality in a Diverse and Bounded World (New


York: Cambridge University Press, 2011), p. 43.
244

múltiplas “propostas elegíveis ótimas”. O raciocínio


imparcial da variedade rawlsiana pode estabelecer
apenas os limites de desacordo razoável; não pode
produzir uma escolha determinada de princípios,
como a justiça como equidade.
A maior parte do OPR tenta explicar como
membros livres e iguais do público podem convergir
em um conjunto determinado de regras sociais. Gaus
prossegue baseando-se na tradição do pensamento
moral que se estende “de Hobbes a Ferguson, Hume
e Smith a F.A. Hayek e aos teóricos contemporâneos
do jogo”, todos alegando, de uma forma ou outra, que
“moralidades são fatos sociais com histórias”.138 A
moralidade, nessa visão, é a saída dependente do
caminho da evolução cultural e moral. O raciocínio
imparcial de Rawls é indeterminado, portanto Gaus
argumenta que a evolução social é necessária para
levar os membros do público a convergirem para um
membro do conjunto de propostas elegíveis, aquelas
propostas para as quais nenhum membro razoável do
público tem motivo suficiente para rejeitar.
É importante ressaltar que Gaus usa o
raciocínio de posição original porque ajuda a avaliar
se as regras e os princípios nos quais convergimos são
justificados. Se lançarmos um teste rawlsiano de
justificação pública, “a visão evolucionista não pode

138 Ibid., p. 44.


245

distinguir moralidades positivas autoritárias de não-


autoritárias”.139 A solução para a indeterminação do
raciocínio político rawlsiano, então, é “avaliar nossas
regras evoluídas da perspectiva de razão pública:
devemos procurar determinar se o resultado do
processo evolucionário social está dentro do conjunto
ideal elegível” de regras, princípios e assim por
diante.140 Podemos usar o raciocínio da posição
original para descartar muitas propostas de leis
justificadas e políticas, e até mesmo princípios de
justiça, mas tal raciocínio não produzirá uma única
melhor escolha. Consequentemente, devemos
permitir que processos não-racionais, como a
evolução social, convirjam em um dos resultados
invictos, como nos não refutados, do raciocínio da
posição original.
O trabalho de Gaus leva a razão pública às
conclusões liberais clássicas em virtude de seis
características dessa visão: (a) o foco em justificar
convenções morais em vez de apenas a lei; (b) um
relato moderado do raciocínio idealizado pelas partes
contratantes, o que gerará enorme diversidade entre
as doutrinas e razões pelas quais as pessoas
endossam; (c) a justificativa de um direito à
propriedade privada; (d) a refutação do socialismo; (e)

139 Ibid., p. 46.


140 Ibid., p. 424.
246

o direito contra a coerção legal; e (f) uma ênfase na


teoria não ideal.

CONCENTRE-SE EM JUSTIFICAR
CONVENÇÕES MORAIS
Único entre os liberais da razão pública, Gaus
afirma que a moralidade social deve ser justificada,
além das leis. Uma moralidade social é “o conjunto de
regras sociais-morais que exigem ou proíbem a ação
e, portanto, fundamenta os imperativos morais que
dirigimos uns aos outros para participar ou abster-se
de certas linhas de conduta”.141 A moralidade social
tem várias características distintivas.142 Estrutura a
interação social e ajuda as pessoas a coordenar seus
comportamentos e cooperar para o ganho mútuo.
Embora a moralidade social restrinja nossos objetivos
através da punição social e do ostracismo, em última
análise, estende nossa capacidade de alcançar nossos
objetivos. As pessoas não cumprem as regras que
compõem a moralidade social – regras “sociais-
morais” – por razões meramente instrumentais, mas
sim porque as regras são vistas como imperativos

141 Ibid., p. 2.
142 Descrevo essas características em detalhes em
“OPR, Ch.I.1: Social Morality,” Public Reason (blog), 17 de
janeiro de 2011.
247

morais genuínos. Finalmente, as regras sociais-


morais exigem que o indivíduo adie ao julgamento de
outros que aplicam as regras quando seu julgamento
privado conflita com o deles.
Eu acredito que Gaus se concentra na
moralidade social por duas razões. A primeira é que
as leis e normas morais compartilham características
críticas e, portanto, levantam problemas
justificatórios semelhantes. 143 Tanto a lei quanto a
moralidade impõem exigências aos indivíduos de que
eles podem ficar melhor sem elas. Os problemas de
justificação moral e política, então, surgem pela
mesma razão: as normas podem restringir a liberdade
individual sem uma causa.
A segunda razão para se concentrar na
moralidade social é nova no trabalho de Gaus. Gaus
observa que o problema com soluções
especificamente hobbesianas e lockeanas para o
problema da justificação moral é que são
“inerentemente políticas” e assim “politizam as
resoluções de todas as disputas morais”.144 Essa

143 Antes The Order of Public Reason, Value and


Justification detalha seu mais extensivo esforço. Veja Gerald
F. Gaus, “Part II. A Theory of Moral Justification,” em Value and
Justification: The Foundations of Liberal Theory (New York and
Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1990), pp.
251–378.
144 Gaus, The Order of Public Reason, p. 24.
248

teoria implica uma forma pouco atraente de estatismo


onde a autoridade estatal invade todos os domínios
em que o conteúdo da moralidade social é
contestado.145 Portanto, o foco na moralidade social é
fundamental para evitar a politização de todos os
conflitos morais – e, assim, evitar uma forma forte de
estatismo.
O foco na moralidade social é crítico para a
defesa do liberalismo clássico por Gaus, porque
assume que a fonte última da ordem social não é o
Estado, mas as convenções morais locais que
evoluem, como uma ordem espontânea, de nossa
agência moral normal e interação rotineira. A
moralidade social tem até uma prioridade especial
sobre a lei porque pode resolver problemas sociais
sem recorrer à coerção. O objetivo da política é
realizar funções que a moralidade social não
coercitiva não pode. Assim, há uma presunção em
nome de soluções sociais para o conflito social, em
vez de soluções políticas.

VISÃO MODERADA DO RACIOCÍNIO


IDEALIZADO

145 Ibid., p. 24, n. 48. Notavelmente, Gaus admite

que seu “relato de inspiração lockeana no Liberalismo


Justificatório” é vítima do mesmo erro.
249

A próxima característica da principal linha de


argumentação do OPR diz respeito ao tipo de razões
que podem bloquear a justificação da coerção e as
formas de coerção que nossas objeções minam. Gaus
usa a linguagem da “derrota” aqui, de modo que as
justificativas refutadas são “derrotadas” e algumas
razões servem como “invalidadoras” da coerção.146 O
relato de Rawls da justificação pública apela para
conceitos grosseiros, como uma concepção política da
justiça e um consenso sobrepostos de doutrinas
abrangentes razoáveis.147 As concepções políticas e
doutrinas abrangentes são vastos conjuntos de
normas e regras. Gaus fraciona essas duas ideias em
algumas menores: conjuntos de regras sociais e
morais, como vimos, e conjuntos de diversas razões
intrapessoalmente relacionadas.
Gaus fragmenta concepções políticas em
regras, em parte porque pensa que apenas regras
podem resolver o problema da indeterminação. As
concepções políticas da justiça de Rawls são muito
mais gerais no escopo, de modo que as avaliações das
práticas sociais dependem de apelar a princípios que
só podem ser justificados partindo de um julgamento
filosófico sofisticado. A avaliação baseada em regras
não requer tais complexidades. Consequentemente,

146 Gaus segue os epistemólogos tradicionais ao

empregar a linguagem da derrota.


147 Rawls, Political Liberalism, p. xxxix.
250

os princípios não são a base primária da avaliação


moral.148 Gaus segue Hayek ao sustentar que os seres
humanos são tanto seguidores quanto os que buscam
a meta. Portanto, muitas de nossas ações são guiadas
pelas regras a seguir, muito mais do que as motivadas
pelos princípios. Nossas formas comuns de avaliação
moral dizem respeito a regras e não a princípios.
Assim, as regras, e não os princípios, fornecem “guias
mutuamente entendidos para a vida social”
disponíveis a todos os agentes normais, não meros
especialistas morais.149
A mudança de doutrinas para razões é
semelhante. Primeiro, as doutrinas abrangentes de
Rawls são visões sistemáticas do mundo, Deus, certo
e errado, bom e mau, justo e injusto. Como tal, as
doutrinas são relações complexas de muitas razões de
ação. Consequentemente, usá-las para avaliar as
regras sociais-morais seria excessivo. Além disso, a
maioria dos cidadãos não possui doutrinas
abrangentes por causa das exigências cognitivas de
aceitar e viver por elas. Os liberais da razão pública
exigem uma unidade mais local de justificação para
regras – razões.
Em ambos os casos, Gaus apela a modelos
atraentes de cognição humana para estabelecer os

148 Embora eles possam ajudar. Veja Gaus, The Order

of Public Reason, p. 296.


149 Ibid., p. 272.
251

padrões de julgamento e avaliação envolvidos na


razão pública. Nós avaliamos regras com base em
razões. Uma implicação adicional é que qualquer
visão de nossas razões suficientes deve envolver uma
idealização moderada, onde julgamos as razões pelas
quais as pessoas apelam ao que elas endossariam se
tivessem se envolvido em uma quantidade respeitável
de coleta e processamento de informações.150 Para
resolver nossos problemas sociais devemos modelar o
raciocínio dos agentes de maneira realista, dada a
natureza limitada da racionalidade humana,
preservando nossos compromissos no mundo real, os
quais formas mais radicais de idealização podem
destruir.
A implicação de avaliar as regras com base nas
razões que as pessoas afirmariam sob condições de
idealização moderada é que as razões justificativas
variam dramaticamente entre as pessoas, dados seus
diferentes pontos de vista, histórias e compromissos
racionais. Além disso, Gaus se recusa a restringir

150 The Order of Public Reason de Gaus contém sua


crítica das concepções-padrão de idealização (pp. 235-44).
Para Gaus, um agente tem razão suficiente para endossar
uma regra ou lei se e somente se uma “quantia respeitável”
de bom raciocínio levasse o agente a afirmar R como
invicto. Veja ibid., P. 250. Uma quantidade respeitável de
raciocínio é determinada pelo grau de raciocínio que os
membros do público esperam um do outro, um padrão
modesto frequentemente determinado contextualmente.
252

razões justificatórias ao conjunto de razões


compartilhadas ou acessíveis, outro afastamento da
maioria dos motivos da razão pública.151 Muito mais
razões, então, podem ser usadas para se opor à
coerção e derrotar com sucesso a justificativa para
isso.
Por exemplo, é muito mais fácil derrotar uma
lei que obriga as pessoas a assumirem empregos
mandados pelo Estado, dadas todas as diferentes
razões que podem plausivelmente anular o mandato,
e as poucas razões que se revelariam suficientes para
justificar o mandato a uma ampla variedade de
pessoas. Regras morais e leis coercitivas não podem
ser justificadamente impostas a pessoas se esses
indivíduos tiverem razão suficiente para rejeitar essas
regras e leis. Dada a idealização moderada e que
preserva a diversidade, então, cidadãos diferentes
terão razão suficiente para rejeitar uma grande
quantidade de leis e políticas, a ponto de podermos
acabar sem leis ou políticas justificadas (embora
Gaus pense que a nossa necessidade de viver juntos
é suficientemente forte para que as preocupações
sobre a anarquia moral possam ser respondidas). Isso
significa que uma enorme gama de leis e políticas que
rawlsianos propõem será derrotada pelas diversas
razões dos membros do público.

151Veja a crítica de Gaus do requisito de motivos


compartilhados. Ibid., Pp. 283-87.
253

O ponto da discussão anterior, às vezes técnica,


é explicar em detalhes por que a razão pública
gausiana se inclina na direção liberal clássica. A
razão pública gausiana reconhece muito mais fontes
de diversidade entre os cidadãos, e essa diversidade
traz mais de uma série de objeções bem-sucedidas às
leis coercitivas. Combinando relatos do que deve ser
justificado (regras), o grupo a quem a coerção é
justificada (agentes moderadamente idealizados), e
suas objeções à coerção (objeções tão diversas quanto
as pessoas que as oferecem) mostra uma mudança
dramática na qual a atitude liberal deve ter em
direção à coerção. Estamos agora em posição de
ceticismo quanto à justificação de leis coercivas. Isso
tenderá a se manifestar em formas de libertarianismo
moderado.

JUSTIFICAÇÃO DO DIREITO À
PROPRIEDADE PRIVADA
Assim, na razão pública gausiana,
raciocinadores diversos e racionais afirmam regras
morais distintas e conflitantes, e não concordarão
sobre quais regras são as melhores para governar sua
vida social comum. Mas Gaus insiste que esses
raciocinadores não enfrentam um conjunto “nulo” de
regras justificáveis. Em vez disso, os raciocinadores
frequentemente enfrentam o problema de muitas
propostas qualificadas (invictas).
254

Na Parte 2 do OPR, Gaus usa três dispositivos


conceituais para restringir a indeterminação ao
conjunto ótimo elegível (OES): (a) o modelo
deliberativo abstrato que mapeia a ordem da
justificação pública, (b) uma descrição da evolução
social que irá gerar convergência social em um
membro do OES, e (c) uma “concepção de teste” de
justificação pública que limita a determinação de se
uma regra atualmente praticada está no OES para
casos em que a regra se tornou moralmente
controversa.
Vamos começar nossa explicação do direito à
propriedade privada de Gaus, explicando a ideia do
modelo deliberativo abstrato, que é semelhante à
posição original de Rawls. O modelo deliberativo
abstrato de Gaus sustenta que diversos membros do
público determinam o que é publicamente justificado
em uma série de etapas ou em uma ordem que
procede de determinações mais abstratas para outras
mais concretas.152 Ele então argumenta que os
membros do público concordarão em certos direitos
básicos, adotando a “perspectiva de agência”.153 Isto
é, eles endossarão uma série de direitos pelo
raciocínio como agentes nus, despojados de algumas
de suas características individuadoras. Ao fazê-lo, os

152 O extenso detalhamento do modelo deliberativo

é desenvolvido em ibid., Cap. 5.


153 Ibid., pp. 337–41.
255

membros adotarão uma presunção em favor da


liberdade, do respeito pela autarquia (ação
autodirigida, mas não da autonomia plena), direitos a
não serem coagidos, liberdade de pensamento,
direitos contra danos e direitos à assistência.154
Em seguida, na ordem da justificação, estão os
direitos jurisdicionais, direitos que devolvem escolhas
coletivas a membros individuais do público. Os
direitos de privacidade e os direitos de propriedade
privada são os direitos jurisdicionais por
excelência.155 Em suma, as restrições sobre o
conjunto ótimo elegível seguem uma ordem do mais
abstrato (características formais das regras) pelo
relativamente abstrato (os direitos abstratos da
agência) ao mais concreto (direitos jurisdicionais).
Os direitos abstratos da agência são apenas
isso – abstrato. Envolvem direitos que todos os
liberais, e na verdade a maioria dos não-liberais,
endossam. Entre eles estão os direitos à assistência,
que são uma espécie de direito positivo. Libertários
são obrigados a recuar. Mas é importante notar que
Gaus permite que os compromissos de membros
libertários e conservadores do público derrotem
deveres de ajuda mais extensos por causa de sua
crença de que algumas pessoas são indignas. Mesmo
assim, aqui entra um elemento da razão pública

154 Ibid., pp. 341–59.


155 Ibid., pp. 374–86.
256

gausiana que não é totalmente libertária. Para Gaus,


isso é bom, pois sua teoria não deveria ser coextensão
dos compromissos abrangentes de um pequeno grupo
sectário dentro das ordens liberais.
Para nossos propósitos, a característica mais
importante da ordem de justificação é a noção de um
direito de jurisdição, que atribui direitos aos
indivíduos e grupos para governar domínios sociais
particulares e específicos de acordo com seus
próprios desejos e escolhas. A razão pública deriva de
formas mais monistas de raciocínio moral, como as
características de Rousseau, Kant e dos primeiro
Rawls. Mas uma vez que introduzimos a diversidade
na razão pública, fica claro que dificilmente
poderemos concordar quando tomarmos decisões
coletivas. Como resultado, temos razão para “dividir”
o espaço moral para que as pessoas possam fazer
suas próprias escolhas quando isso é mais
importante para elas. Os direitos jurisdicionais são
partições morais, “esferas individualizadas de
autoridade moral em que o julgamento do detentor do
direito sobre o que deve ser feito fornece aos outros
razões morais para agir”.156 Assim, os direitos
individuais jurisdicionais são um tipo de justificação
pública, um conjunto de métodos institucionais que

156 Ibid., p. 373.


257

podemos usar para resolver disputas que não


podemos resolver coletivamente.
O direito jurisdicional mais fundamental é o
direito à propriedade privada, pois os direitos de
propriedade privada “economizam na justificativa
coletiva”.157 Para a propriedade, argumenta Gaus, é
justo ter um espaço social legítimo no qual os padrões
avaliativos de um agente não apenas têm reinado
livre, mas também impõe obrigações aos outros para
não interferirem. Gaus nega que o direito de
jurisdição à propriedade privada seja totalmente
extenso ou absoluto; Os membros não libertários do
público terão diversas razões para derrotar tais
reivindicações de autoridade radical.158
No entanto, Gaus argumenta que “membros do
público endossarão um sistema de direitos de
propriedade” que, em geral, “não são facilmente
ignorados e extensos, incluindo a propriedade
privada em bens de capital”.159 Gaus nega que a razão
pública demande a propriedade de trabalhadores do
capital, porque a razão pública não pretende
promover um ideal controverso de autonomia, mas
sim preservar a agência moral de diversas pessoas em

157 Ibid., p. 374.


158 Note que os socialistas fazem alegações de
autoridade com maior probabilidade de serem derrotadas.
Gaus não destaca os libertários aqui.
159 Gaus, The Order of Public Reason, p. 377.
258

condições de desacordo. Consequentemente, aqueles


que insistem na propriedade dos trabalhadores como
uma condição de autonomia estão simplesmente
insistindo em suas próprias doutrinas sectárias.

DIREITOS CONTRA A COERÇÃO LEGAL


Agora nos voltamos para o caso de Gaus por um
direito contra a coerção legal. Para Gaus, os direitos
de agência estão entre os nossos direitos mais
fundamentais, e incluem o direito de não ser coagido
na ausência de uma justificativa convincente.
Libertários podem se alegrar aqui, mas não tão
rápido: Gaus alega que pessoas razoáveis discordam
sobre quais formas de ordem social são mais
coercitivas, então algumas visões não libertárias
sobre a coercividade do mercado podem apresentar
problemas para reivindicações de direitos de
propriedade libertários. No entanto, há certos casos
básicos óbvios de coerção, como as formas usadas
pela polícia, que todos reconhecem como coercivas. A
legislação também é tipicamente coercitiva.
Gaus então argumenta que, na medida em que
temos um esquema estabelecido de liberdades
básicas (que incluem um direito de propriedade
privada), esses direitos estabelecem uma base contra
a qual a coerção deve ser justificada. Se o governo
propõe usar a coerção para forçar você a usar um
259

capacete de motocicleta ou expulsá-lo de sua casa e


se você tem o direito publicamente justificado de
tomar suas próprias decisões com relação a essas
questões, então o direito contra coerção legal proíbe a
ação do Estado.
Gaus também observa que a legislação
justificada publicamente, apesar de justificar o uso
da coerção legal, deve ser avaliada contando sua
coação como uma das razões para se opor à lei
(mesmo que essas razões sejam finalmente anuladas).
Os Estados não estão isentos desse padrão.160 Gaus
enfatiza que o direito contra a coerção legal é um
direito de que a coerção seja proibida na ausência de
uma justificativa pública. Além disso, a coerção de
uma lei continua a contar contra, mesmo quando os
fatores que favorecem a lei são mais fortes.
Deve ficar claro que um direito contra a coerção
legal empurra a razão pública para uma direção ainda
mais liberal clássica. Não só existe um forte direito
contra o Estado de não ser coagido na ausência de
uma justificativa pública, mas também o custo da
coerção ainda deve figurar na justificativa de uma lei
que pensamos ser, em todos os aspectos, justificada
publicamente. Dadas as razões diversas e
moderadamente idealizadas do público, o direito
contra a coerção legal será poderoso, inclusive

160 Ibid., pp. 479–81.


260

quando se trata da proteção dos direitos de


propriedade privada.

REFUTAÇÃO DO SOCIALISMO
Gaus também argumenta que o socialismo e os
Estados fortemente igualitários são quase sempre
inelegíveis como sistemas de governança política e
econômica. Vamos começar considerando o
socialismo de Estado. Mesmo que se justifique a
redistribuição substancial da riqueza, “os sistemas
socialistas ainda estariam fora do conjunto
socialmente elegível”,161 porque o socialismo exige
necessariamente a tomada coletiva de decisões e,
portanto, requer consenso sobre como as várias
partes da economia devem ser administradas. O
direito de propriedade privada é publicamente
justificado porque é uma solução para a incapacidade
dos membros do público em concordar com padrões
comuns. O socialismo, entendido como propriedade
governamental dos meios de produção, requer um
acordo onde nenhum pode ser razoavelmente
esperado.
Um segundo argumento contra o socialismo é
empírico por natureza, que é que “a propriedade
privada extensa – incluindo bens de capital e finanças

161 Ibid., p. 512.


261

– é, para todos os fins práticos, um requisito para


uma ordem social e política que proteja as liberdades
civis”.162 Rawlsianos, argumenta Gaus, falham em
apreciar como é difícil divorciar os bons aspectos dos
mercados da propriedade privada. Gaus afirma:
“Nunca houve uma ordem política caracterizada pelo
profundo respeito pela liberdade pessoal que não se
baseasse em uma ordem de mercado com
propriedade privada generalizada dos meios de
produção”.163
Os rawlsianos estão aptos a reclamar que tal
ordem permite uma desigualdade econômica
suficiente para minar a liberdade democrática.
Antecipando essa resposta, Gaus apela para a
evidência empírica de que a liberdade política e a
liberdade econômica estão correlacionadas. Gaus
argumenta que existem poucas evidências para
apoiar a afirmação de que as desigualdades
econômicas encontradas nas democracias liberais
hoje colocam em risco as instituições democráticas.
Agora, contra o libertário, devo enfatizar que
Gaus rejeita tanto o anarquista de mercado quanto o
libertarianismo mínimo ou de pequeno Estado,
porque muitos membros adequadamente idealizados
do público se opõem ao libertarianismo e se opõem às
leis coercitivas que institucionalizam formas mais

162 Ibid., p. 513.


163 Ibid., p. 514.
262

radicais de libertarianismo. Uma ordem puramente


capitalista não permitiria a redistribuição de riqueza,
nenhuma produção governamental de bens públicos
ou qualquer regulamentação que não fosse o efeito
regulador de acordos e contratos. Mas muitas
pessoas razoáveis, se não a grande maioria delas,
acreditam, com justificativa epistêmica, que um
Estado menos-que-mínimo não pode ser
publicamente justificado, porque coercitivamente
proibiria as pessoas de decidir coletivamente ampliar
o poder do Estado. Como resultado, eles têm objeções
respeitáveis aos tipos de coerção necessários para
limitar o Estado tanto quanto os libertários
gostariam.
A razão pública também não pode proibir a
redistribuição, uma vez que o argumento contra um
estado mais igualitário “só é bem sucedido se a
justificação da propriedade não dependa de questões
sobre redistribuição justificada e/ou concepções de
justiça social dentro dos padrões avaliativos dos
Membros do Público”.164 Mas isso é implausível, já
que essas questões não são, possivelmente, “questões
remotamente independentes”.165
Voltando agora ao liberalismo redistributivo
igualitário, Gaus argumenta que, apesar de rejeitar o
libertarianismo, os liberais da razão pública devem,

164 Ibid., p. 521.


165 Ibid., p. 522.
263

no entanto, sustentar que, em muitos contextos, a


tributação é coercitiva, e a coercividade da tributação
aumenta à medida que a alíquota aumenta.
Consequentemente, o direito contra a coerção legal
fornecerá razões cada vez mais fortes para se opor à
tributação à medida que a alíquota do imposto
sobe.166 Além disso, na produção de bens públicos, o
Estado está vinculado a um padrão paretiano de
finanças públicas e política pública. Os programas
públicos devem razoavelmente esperar que avancem
os padrões de avaliação de todos, ou raramente são
justificados; isto é, os programas devem ser melhorias
de Pareto.
Além disso, Gaus argumenta que a avaliação da
política exige um sentido claro de seus benefícios e
custos, o que pode exigir que as contas contenham
suas próprias diretrizes de financiamento (uma
recomendação que Gaus adota seguindo o
economista sueco Knut Wicksell), que na prática
limitaria substancialmente o processo de políticas
públicas. Gaus então adiciona as regras de votação
da supermaioria ao mix, limitando ainda mais o
governo. Todas essas restrições são barreiras à
justificação pública de um estado fortemente
redistributivo.

166 Ibid., pp. 523–24.


264

Em conseqüência, Gaus conclui que o


liberalismo da razão pública
[…] não leva ao socialismo, ou a um liberalismo
igualitário completo, ou ao libertarianismo [entendido
como estado mínimo ou libertarismo anarquista – KV],
mas à abordagem mais sutil da legislação que
encontramos no quinto livro dos Princípios de Mill,
permitindo que haja um número de tarefas que o
governo justificadamente realiza, mas com uma forte
inclinação geral em direção a um governo menor, em
vez de mais “autoritário” (isto é, coercitivo).167
O argumento para essa posição, afirma Gaus,
repousa em cinco afirmações centrais:
1. Indivíduos são livres e iguais.
2. Pessoas livres e iguais têm o direito moral
de não serem forçadas ou coagidas sem
justificação.
3. Um membro do público sustentará que
quanto maiores suas estimativas de
coerção, mais forte deve ser a
justificativa.
4. Membros livres e iguais do público
razoavelmente discordam em muitas
questões que envolvem graus de coerção,
mas muitas pessoas razoáveis acreditam
que os grandes Estados com altas taxas

167 Ibid., p. 526.


265

de tributação e instituições
redistributivas são mais coercitivos.
5. Somente as leis que podem ser
justificadas para todos os membros do
público podem conciliar a coerção com o
respeito pela liberdade e igualdade de
todos.168
Consequentemente, o liberalismo da razão
pública deve “inclinar-se” contra Estados coercitivos,
e os liberais da razão pública são responsáveis por
mostrar que suas propostas favoráveis não usam
coerção, pelo menos não além do que pode ser
justificado, dado o direito legal contra a coerção.169

ÊNFASE NA TEORIA NÃO IDEAL


A característica final da visão de Gaus que leva
a razão pública em uma direção mais libertária é a
ênfase na teoria não ideal. A justificativa pública
gausiana é identificada com uma “concepção de teste”
de avaliação, onde o objetivo de um modelo de razão
pública não é reconstruir as instituições sociais a
partir do zero, mas sim nos ajudar a avaliar nossas
práticas do mundo real de uma maneira que esteja de

168 Ibid., pp. 526–27.


169 Ibid., p. 527.
266

acordo com nossos padrões e compromissos


normativos do mundo real.
A avaliação moral para Gaus, seguindo Hayek,
deve partir de nossas práticas sociais reais e depois
“testar” essas práticas por meio do modelo
deliberativo.170 Em outras palavras, a justificação
pública não começa perguntando se todo o nosso
conjunto de instituições coercivas incorpora um
compromisso com princípios gerais da justiça. Pelo
contrário, testamos regras reais através de um teste
de justificação pública apenas quando surgem
desafios ou preocupações sobre as regras.
Além disso, Gaus não assume que cidadãos e
autoridades políticas cumpram integralmente a lei;
ele limitou o raciocínio da posição original e permite
muito mais realismo econômico do que outros liberais
da razão pública. É provável que os leitores deste
volume já concordem com a afirmação de que
modelos econômicos formais e dados empíricos
favorecem o libertarianismo ou alternativas,
permitindo que o comportamento não-ideal e os
dados do mundo real se tornem justificativas
públicas, o liberalismo da razão pública é empurrado
ainda mais para uma direção liberal clássica. Os
libertários frequentemente entendem o caso do
libertarianismo como um compromisso com a

170 Ibid., p. 425.


267

teorização não ideal, onde os fracassos do governo são


impossíveis de serem ignorados. A esse respeito,
então, a ênfase de Gaus deveria ser bem-vinda.

QUAL LIBERTARIANISMO RAWLSIANO?


O leitor notará que passei muito mais tempo
desenvolvendo a posição gausiana do que a posição
tomasiana. Fiz isso em parte porque Tomasi não está
reconstruindo a razão pública a partir do zero, mas
sim modificando a justiça como equidade para
acomodar as liberdades econômicas liberais clássicas
e uma perspectiva liberal clássica mais ampla sobre
a vida política.
Mas também me concentrei mais em Gaus
porque acho a visão gaussiana mais plausível. Rawls
estava certo ao mudar de uma A Theory of
Justice para Political Liberalism por causa dos problemas
do pluralismo razoável sobre o bem e a justiça.171
Gaus plausivelmente desenvolve a razão pública em
uma direção que acomoda a diversidade, o que

171 É importante ressaltar que as preocupações de


Rawls com relação ao pluralismo sobre a justiça
posteriores ao desenvolvimento do Political Liberalism, mas
o reconhecimento do pluralismo da justiça torna-se crítico
na introdução à edição em brochura e seu artigo posterior
“The Idea of Public Reason Revisited,” University of Chicago Law
Review 64 (Verão 1997): 765–807.
268

considero uma extensão natural de um projeto


amplamente rawlsiano. A justiça de livre mercado de
Tomasi, portanto, será vítima das mesmas
preocupações da justiça como equidade. Pessoas
razoáveis discordam sobre o que a justiça exige;
assim, não podemos usar o raciocínio rawlsiano para
reivindicar justiça como equidade ou justiça de livre
mercado. Em última análise, Gaus preparou o terreno
para a próxima versão do projeto rawlsiano, um
Rawls 3.0 que acomoda o pluralismo razoável sobre o
bem e a justiça, e outras formas de diversidade
também. O projeto de Tomasi está associado ao Rawls
1.0, o Rawls de A Theory of Justice.
Mesmo assim, o modelo gausiano não exclui os
apelos à própria concepção de justiça em moldar uma
política pública justificada. É um grande bem na
razão pública gausiana que as pessoas apelem para
suas concepções sectárias de bem e justiça, e não
meramente para derrotar leis que não podem ser
publicamente justificadas. Apelo a diversos valores,
argumenta Gaus, ajuda a sociedade a descobrir
maneiras novas e melhores de viver juntos.172 Assim,
os defensores da justiça de livre mercado não
precisam desistir de sua opinião, mas devem aceitar
que a justiça de livre mercado não pode reivindicar
um status especial em governar a estrutura básica de

172 Veja Gerald Gaus, The Tyranny of the


Ideal (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2016).
269

uma sociedade. A justiça de livre mercado pode


abranger os princípios corretos da justiça, mas não
os princípios corretos no sentido totalmente
rawlsiano, já que não podem sobreviver à justificação
pública devido a um profundo desacordo sobre a
justiça, e assim não podem estabilizar uma ordem
social diversa da maneira correta. Assim, esses dois
libertarianismos rawlsianos estão em tensão. A
justiça de mercado livre não pode formar a base de
uma ordem de razão pública, mas pode fazer parte
dessa fundação.
270

CAPÍTULO 6 - ÉTICA DA
VIRTUDE E LIBERTARIANISMO

AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
LIBERTÁRIAS SÃO MAIS PROPÍCIAS À VIDA
VIRTUOSA, E AS PESSOAS VIRTUOSAS ESTARÃO
INCLINADAS A DEFENDER OS PRINCÍPIOS
LIBERTÁRIOS.
A tarefa deste capítulo é argumentar que uma
fundação moral para o libertarianismo pode ser
encontrada na ética da virtude. Para fazer isso, devo
classificar o tipo de ética da virtude que mais se
presta a esse tipo de relação justificatória, porque
existem muitos tipos diferentes. E devo deixar claro o
que quero dizer com “libertarianismo”, porque aqui
também há uma pluralidade de entendimentos, e
alguns deles tornarão esse relacionamento
justificatório mais plausível do que outros.

ÉTICA DA VIRTUDE
O que é tipicamente pensado para diferenciar
uma ética da virtude de outras formas de ética é que
ela focaliza a preocupação moral no caráter do agente,
e não em suas ações. Ainda menos se preocupa com
os estados do mundo que essas ações produzem,
271

como na maioria das visões consequencialistas.


Acredita-se que as virtudes sejam traços de caráter
relativamente estáveis: os modos como somos e os
outros nos conhecem como pessoas. Vícios também
são traços estáveis de caráter. O que os diferencia das
virtudes é que os traços virtuosos são aqueles que
valorizamos – aqueles que julgamos positivamente,
poderíamos dizer – enquanto os vícios são aqueles
traços repugnantes para nós. No modo ético da
virtude de compreender a moralidade, esses traços de
caráter estáveis são o foco principal da avaliação
moral.
Seria um erro inferir que as ações, ou os
estados do mundo que delas decorrem, não importam
a ética da virtude. Certamente importam. Mas seu
lugar em uma teoria ética da virtude é determinado
pelo papel que desempenham na compreensão das
disposições ou traços que são, potencialmente,
virtuosos ou cruéis. Eles não têm peso moral
independente do papel que desempenham na
compreensão do valor moral desses traços. Embora
certamente nos importemos com bons eventos e
catástrofes, o que importa moralmente é o que
fazemos diante de tais estados do mundo, como
pessoas com o caráter que criamos para nós mesmos.
Como obviamente nos preocupamos com o
caráter das pessoas, esperamos que as teorias morais
mais plausíveis estabeleçam um lugar teórico
272

substancial para elas. E a maioria dessas teorias


estabelecem. Em uma teoria consequencialista como
a de John Stuart Mill, por exemplo, a virtude é uma
propensão para produzir bons resultados –
resultados que podem ser avaliados como
moralmente valiosos pelos princípios básicos da
teoria, independentemente das ações ou do caráter
que os produziu.173 Embora Mill tenha uma teoria da
virtude, nela a virtude depende logicamente dos
critérios anteriores que estabeleceu para avaliar os
estados do mundo e as ações que os produziram. Algo
similar poderia ser dito de Kant (embora, é claro, sua
teoria não seja consequencialista) sobre o tipo de
lugar que destina a virtude. O que é distintivo da ética
da virtude é a inversão de prioridades. É o caráter que
importa primeiro, e explicamos o significado moral de
ações e estados de coisas consequentemente.
Assim descrito, existem muitas formas de ética
da virtude. E embora possa haver convergência em
quais características aparecem nas listas de virtudes
e vícios, também há muitas diferenças, e até
diferenças mais profundas, nas razões pelas quais
algumas características aparecem na lista de virtudes
e outras na lista de vícios. Nem todas oferecem o
mesmo grau de apoio ao libertarianismo. Então

173 John Stuart Mill, Utilitarianism, ed. George Sher

(Indianapolis, IN: Hackett Publishing Company, 2001


[1861]), cap. 2.
273

preciso ser específico sobre a forma da ética da


virtude que tenho em mente.

ÉTICA DA VIRTUDE EUDEMONISTA


Uma forma venerável de ética da virtude – uma
forma que remonta a Sócrates, Platão e Aristóteles –
dá um lugar teórico primário à eudaimonia.
Eudaimonia é mais ou menos felicidade, mas é
necessário cuidado aqui. Usamos a felicidade para
significar muitas coisas, do humor do momento a
uma qualidade de vida. O que os gregos têm em mente
com a eudaimonia é muito menos sobre a primeira e
muito mais sobre a segunda. Você pode ser feliz no
sentido de ter uma vida boa, mesmo que agora você
não esteja de bom humor. É essa qualidade de vida
que os gregos chamam de eudaimonia. Quando
desejamos a todo casal recém-casado toda felicidade,
estamos divulgando a ideia que os gregos pretendem
com a eudaimonia.
Como a eudaimonia molda uma ética da
virtude? Ela fornece o critério pelo qual determinamos
quais disposições ou características contam como
virtudes. Aqueles traços que contribuem positiva e
significativamente para nossas vidas felizes e contam
como virtudes; vícios são apenas aqueles que não.
Isso não significa que a ação virtuosa seja
empreendida apenas para o benefício dessas vidas
274

felizes; a ação virtuosa tem seus próprios objetivos (na


opinião de Aristóteles, sempre os “bons e nobres”).
Em vez disso, o trabalho da eudaimonia é criterioso.
Não devemos supor que tal critério seja fácil de ser
encontrado, simples ou incontestável. Uma visão
adequada das virtudes é um fruto duramente
conquistado da vida e da reflexão. No entanto, dois
membros de qualquer explicação plausível – virtudes
que são invariavelmente reconhecidas como traços
que contribuem para uma boa vida humana –
merecem discussão aqui, porque são cruciais para o
que se segue. São sabedoria prática (grego: phronesis)
e justiça (grego: dikaiosune). O que precisa ser
explicado é como cada uma contribui para uma vida
boa e o que especificamente requer.
Aristóteles pensa na sabedoria prática como a
capacidade de deliberar e agir bem sobre “que tipos
de coisas conduzem à boa vida em geral”.174 Seu
argumento para a centralidade da sabedoria prática
para a boa vida começa com o tipo de seres que
somos. Nós somos, argumenta, criaturas que vivem
nossas vidas implantando a racionalidade prática.175
Podemos, é claro, implantar a racionalidade prática

174 Aristóteles, Nicomachean Ethics, bk. VI, cap. 5,


in The Complete Works of Aristotle: The Revised Oxford Translation,
vol. 2, ed. Jonathan Barnes, trans. W. D. Ross with
revision by J. O. Urmson (Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1984), pp. 1729–867.
175 Ibid., bk. I, cap. 7.
275

de maneiras que não conduzam a boas vidas;


somente quando conseguimos viver bem, o que
fazemos conta como sabedoria.
Outras criaturas vivem suas vidas de maneiras
diferentes. As girafas vivem de folhagens que outros
herbívoros não conseguem alcançar. As gazelas vivem
de pastagens e de filhotes de predadores. Os leões
vivem capturando gazelas desatentas ou fracas.
Essas formas de vida são distintas e reconhecíveis, o
tipo de coisas que aprendemos nos museus de
história natural. Na mesma linha, os humanos vivem
implantando capacidades que só nós parecemos ter.
Razões para planejar e estabelecer fins, bem como
forjar relações de cooperação com outras pessoas da
nossa espécie. O raciocínio bastante direto de
Aristóteles, então, é que, se é assim que vivemos, viver
bem é uma questão de implantar bem essas
capacidades. É excelência na razão prática ou
sabedoria prática. E a excelência na sabedoria
prática, por sua vez, é entendida como o que visa com
sucesso a viver bem. As duas ideias devem ser
entendidas em conjunto.
O significado para nós da racionalidade prática
– e, quando bem-sucedida, da sabedoria prática – é
refletido nas redes de fins que moldam nossas vidas.
Os fins são objetivos e podemos e temos inúmeros
fins. Os recursos necessários para realizá-los são
escassos, de modo que o empreendimento de viver
276

uma vida buscando um fim é aquele que exige um


julgamento contínuo e incessante das compensações.
Alguns dos fins podem ser indeterminados, de modo
que o julgamento é necessário até mesmo para saber
em que consistiria a busca bem sucedida de tal fim.
(Quando nos casamos, por exemplo, começamos
apenas com uma ideia nebulosa de como é o fim de
um bom casamento. Descobrimos o que isso significa
em detalhes apenas por meio do casamento – e pelo
curso de inúmeros julgamentos e experiências.) Fazer
esses julgamentos bem – de maneira a viver o tipo de
vida que aspiramos viver – é o que constitui a
sabedoria prática como uma virtude. Não é fácil, e não
pode ser realizado a não ser pela aplicação da
racionalidade prática, com virtude de caráter, às
nossas vidas.
A sabedoria prática tem outro aspecto
importante. Aristóteles acredita que desenvolvemos e
mantemos as virtudes (ou, infelizmente, os vícios)
pela força do hábito. Claro, começamos com uma
educação moral de nossos pais e professores.
Nenhum de nós começa do zero, e é por isso que
importa tanto que tenhamos um bom começo. Temos
paixões e apetites, mas – precisamente porque temos
capacidade de racionalidade prática – à medida que
essa capacidade se desenvolve, podemos escolher o
que vamos fazer. E, mais importante, há um ciclo
de feedback aqui: as escolhas que fazemos moldam
nossas paixões e apetites. É por isso que o hábito é
277

tão importante: como adultos, é assim que moldamos


quem nos tornamos. Então, o que fazemos nos faz o
que somos. O que nos tornamos reflete o exercício de
escolha de nossa parte; mais uma vez, o trabalho da
razão prática. Nós exercemos a escolha não apenas
em determinar o que fazer, mas também em decidir o
que ser.
O fato de vivermos exercitando a racionalidade
prática é óbvio e importante, mas é igualmente óbvio
e importante que vivamos socialmente. Os humanos
não vivem nem prosperam independentemente. Nós
vivemos com outros da nossa espécie. Como
administramos nossas relações com os outros, então,
também é centralmente importante para nossa vida.
Muitas das virtudes do caráter têm relação com essas
relações, mas nenhuma o faz com maior importância
do que a justiça.
A melhor compreensão da natureza da virtude
da justiça, creio, mudou um pouco desde os primeiros
teóricos gregos. Platão concebeu a justiça como
“tendo e fazendo sua própria”.176 Justiça na cidade
(ou polis) significava cada tipo de cidadão executando
sua própria tarefa. A justiça no indivíduo significava
que as partes racionais, apaixonadas e apetitosas

176 Platão, Republic, em Complete Works, ed. John


Cooper, trans. G.M.A. Grube with revision by C.D.C. Reeve
(Indianapolis, IN: Hackett Publishing, 1997), pp. 971–
1223.
278

da psique desempenhavam seu papel apropriado.


Aristóteles via a justiça como sendo mais diretamente
ligada à ação: pensava que o sentido “estreito” da
justiça (isto é, o sentido em que a justiça é algo mais
específico do que apenas fazer a coisa certa) poderia
ser entendido de duas maneiras. Primeiro, como uma
questão de proporcionalidade: iguais, argumentou,
merecem tratamento igual, e desiguais merecem
tratamento desigual.177 Segundo, há retificação: se eu
roubar $100 de você, ou fazer você $100 pior, a
justiça exige que meu benefício seja negado e que você
seja restaurado. Ou seja, a justiça exige que eu
desista de $100 e você o recupere.
É difícil argumentar com esses insights, mas a
filosofia moral fora da ética da virtude fez progressos
na compreensão do que nos é devido de maneiras
que, acredito, devemos ler na virtude da justiça.
Considere a escravidão, uma prática que os antigos
pelo menos toleraram, se não (como no caso de
Aristóteles), endossaram de imediato. A escravidão é
manifestamente injusta (por mais tempo que levasse
a humanidade para chegar a essa conclusão), e
parece que nenhuma pessoa justa se envolveria em
escravidão ou toleraria sua institucionalização. No
entanto (como o próprio caso de Aristóteles
demonstra), não está claro como a justiça dos antigos
gregos poderia demonstrar isso. Parece haver mais da

177 Aristóteles, Nicomachean Ethics, bk. V.


279

virtude da justiça do que as concepções de Platão e


Aristóteles conseguiram captar.
Uma maneira de colocar o que está faltando é
dizer que a pessoa justa reconhece a posição moral
dos outros de maneiras que excluem a escravidão. O
que exatamente essa posição moral pode vir a ser um
pouco controversa, mas existem elementos
fundamentais reconhecíveis em nossa prática
cotidiana.
Um desses elementos é o direito e seu
reconhecimento. Claro, as pessoas têm direitos legais,
mas esses direitos dependem dos regimes legais em
que vivem. Nós também temos direitos morais e
direitos legais. Temos a capacidade de exigir que os
outros não façam certas coisas para nós – para nos
escravizar, para nos prejudicar, em muitos casos
mentir para nós, quebrar a fé conosco, e assim por
diante. Como Aristóteles indicou, temos a capacidade
de exigir proporcionalidade de vários tipos em como
somos tratados (para sermos tratados como somos
devidos) e reclamar se os outros nos tratam mal de
várias maneiras. Dizer que alguém tem direitos é dizer
que ele ou ela tem um tipo de posição que a pessoa
justa deveria reconhecer.
Um segundo elemento (e não relacionado) é a
responsabilidade. Suponha que você me prejudique;
você me bate na cara. Agora, a lei pode ou não ter algo
a dizer sobre tal acontecimento, mas normalmente
280

pensamos que a moralidade certamente existe. Um


utilitarista pode dizer que o problema com isso é que
você não consegue maximizar a maior utilidade. Um
teórico do comando divino poderia dizer que, ao fazer
isso, você viola a lei de Deus. Mas apenas deixado
nisso, mesmo que qualquer uma dessas afirmações
seja verdadeira, não pode ser toda a verdade. Você fez
algo comigo: você me agrediu. Crucialmente, você é
responsável por mim pelo mal que você me fez.
Qualquer teoria moral que deixe de fora os tipos de
relações entre nós em que somos responsáveis uns
pelos outros pela maneira como tratamos uns aos
outros é inadequada. Esse tipo de prestação de
contas é também um reflexo da posição de que uma
pessoa justa deve reconhecer os outros como tendo.
Finalmente, parte de nossa posição moral é
nossa capacidade de mudar nossas relações morais
com os outros de maneira a refletir direitos,
obrigações e responsabilidades. Considere, por
exemplo, nossa capacidade de prometer ou contratar.
Se fizermos um acordo em que vou buscá-lo no
aeroporto por $50, então cada um de nós transmitiu
os direitos para o outro que nós não tivemos
anteriormente. Eu tenho um direito contra você que
você me pague $50, enquanto você tem um direito
contra mim que estou lá para buscá-lo quando você
chegar. Cada um de nós é responsável perante o outro
por fazer o que ele ou ela concordou em fazer. Cada
um de nós tem esses direitos porque (e apenas
281

porque) o outro deu. Uma parte importante de nossa


posição moral, parte do que a pessoa justa reconhece,
é essa capacidade de mudar nossas relações morais
com os outros dessa maneira.
Todos esses elementos e mais são parte do que
poderíamos chamar de aspecto “operacional” de ser
uma pessoa justa. Muitos de seus elementos foram
reconhecidos desde que as pessoas começaram a
teorizar sobre o que significava ser virtuoso. Outros
foram mais recentemente reconhecidos. Mas, no
fundo, há mais a ser uma pessoa justa do que apenas
esses componentes operacionais, embora esteja
certamente ligado a esses componentes. A pessoa
justa vê os outros de um modo diferente do que a
pessoa injusta. Considere a atitude de um predador
humano (talvez um psicopata). Para essa pessoa, os
humanos são presas. Certamente, os seres humanos
são muito diferentes de outras possíveis presas: eles
têm capacidades racionais avançadas. São (talvez)
melhores em detectar o tipo de ameaça que um
predador representa para eles e são certamente
capazes de se defender contra e talvez retaliar contra
tal predador, com mais força do que qualquer outra
presa em potencial. Assim, o predador é cauteloso em
suas capacidades de razão e ação. Suas capacidades
figuram no raciocínio do predador apenas
taticamente ou estrategicamente, como formas
potenciais de influenciar seus esforços para
conseguir o que ele quer.
282

A pessoa justa a quem chamaremos de


Sócrates, ao contrário, vê os outros como tendo
capacidades racionais avançadas e muito mais. Mas
sua consideração pelos outros não é meramente
tática ou estratégica, como é para o predador.
Sócrates vê os outros como fontes de razões e
obrigações, nas formas que acabamos de inspecionar
e mais, por causa do tipo de seres que são. Outros
são importantes para Sócrates, poderíamos dizer,
pelo bem deles, e não pelo bem dele. Nos termos de
Aristóteles, as razões que Sócrates tem para
considerá-las são finais – são fins – em vez de serem
meramente instrumentais para seus próprios
propósitos.178
Afirmei que a sabedoria e a justiça práticas
contam como virtudes centrais e importantes na visão
que estamos explorando aqui, mas também que o que
conta como uma virtude é uma questão do que
contribui para nossa felicidade. A importância da
sabedoria prática para a felicidade é evidente:
consiste na capacidade de usar efetivamente a
racionalidade prática para viver uma boa vida. Mas e
a justiça? Afinal de contas, muitos entenderam que
as exigências da moralidade (e especialmente da

Essa é a famosa forma de Kant captar a maneira


178

como ele acredita que devemos considerar os outros.


Embora essa formulação seja sua, a estrutura dos fins é
naturalmente (e originalmente) de Aristóteles.
283

justiça) representam restrições à nossa busca pela


felicidade. Por que pensar que é uma parte
importante de uma visão do tipo de virtude que
contribui para a felicidade?
O coração da resposta a essa questão está na
nossa essencialidade social. Não somos indivíduos
atomísticos; como Aristóteles reconheceu, nós
prosperamos na companhia de outros da nossa
espécie. As relações que temos com os outros não se
referem apenas a como fornecemos nossas
necessidades materiais (como Marx focalizou), mas
também dizem respeito às nossas relações com os
outros como agentes racionais, planejadores, como
seres que apreendem e agem com base em razões.
Nossas relações com os outros incluem e ocorrem
dentro do “campo” dessas capacidades racionais.
Temos interesses nas razões que os outros nos
fornecem e que nós fornecemos a eles (podemos
chamá-los de “interesses normativos”). Todas essas
dimensões da nossa vida social têm que correr bem
para sermos felizes e elas são a província da virtude
da justiça. Para que possamos prosperar, precisamos
viver em uma rede de reconhecimento dos outros
como tendo o tipo de posição que nos impede de
escravizá-los, prejudicar ou mentir para eles, e assim
por diante. Em outras palavras, precisamos ver os
outros da maneira como argumentei que a pessoa
justa vê os outros.
284

Considere um exemplo (do filósofo T. M.


Scanlon). Suponha que você tenha um amigo, alguém
que você até agora considerou um bom amigo. Mas
agora (vamos supor) você tem algum distúrbio
hepático grave, incurável e precisa de um
transplante. E seu amigo lhe diz: “Você e sua amizade
são tão importantes para mim que farei qualquer
coisa para obter o fígado de que você precisa. Se não
conseguir encontrar um doador, vou matar alguém
para conseguir esse fígado para você.” Algo está
claramente errado com esse amigo; de fato, é provável
que você não se considere mais um amigo dele, muito
menos um amigo próximo, por muito mais tempo.
A toxicidade desse tipo de injustiça é
incompatível com a amizade. O erro da forma como o
seu antigo amigo está disposto a agir vai matar as
conexões vitais que desfrutamos com os outros,
conexões que sustentam nossas amizades e fazem
nossas vidas valerem a pena. Um pouco de reflexão
revelará que esses tipos de sensibilidade e formas de
responsabilização subscrevem todas as relações que
temos com outros seres humanos. A menos que
estejamos vivendo o tipo de vida humana deformada
que os eremitas vivem, a justiça é essencial para a
felicidade.
Em resumo, então, o tipo de ética da virtude
que esbocei – uma teoria da virtude eudemonista –
sustenta que devemos aspirar a ser pessoas
285

virtuosas. Devemos fazê-lo para viver uma boa vida,


mas o ponto é que as virtudes são as chaves para
essas vidas. E embora a lista de virtudes possa em si
ser uma questão de alguma contenção, não há
nenhuma alegação plausível de que entre os
elementos mais importantes dessa lista não estão a
sabedoria e a justiça prática. Então, agora, a questão
é, se isso é tudo verdade, qual é a conexão com a
teoria política libertária? Por que pensar que nossa
vida política deveria ser ordenada como os libertários
acreditam, se de fato tal ética da virtude é a
explicação correta da moralidade?

LIBERTARIANISMO
Essa história depende, obviamente, do que os
libertários acreditam, então devemos começar por aí.
E, de fato, minha concepção do que está no coração
do libertarianismo difere um pouco da história
padrão. Se começarmos com o que é distintivo nessa
concepção, as conexões com a virtude serão mais
aparentes.
Frequentemente (talvez em geral), o
libertarianismo é entendido como uma visão baseada
no princípio da não-agressão: o uso da força ou
violência contra as pessoas ou suas propriedades
nunca deve ser iniciado e é permitido somente em
resposta à agressão de outros. Esse princípio é, até
286

onde sei, verdadeiro; Suas limitações não resultam de


sua falsidade. O problema é que não pode ser
fundacional: pode ser informativo apenas contra o
pano de fundo de uma teoria posterior identificando
para nós o que conta como agressão e o que não é.
Exemplos deste ponto são simples e óbvios.
Posso arrancar de você o livro que você está
carregando? Provavelmente não; isso parece ser
agressão. Mas isso não acontece se você acabou de
arrancar o livro de mim, e nesse caso não estou
iniciando a força, mas respondendo a ela. Isto é, é
claro, a menos que tenha roubado o livro de você
anteriormente, e nesse caso você estava respondendo
à agressão, e agora estou agravando minha agressão
inicial contra você. Se estou ou não agredindo você
depende inteiramente das condições de fundo do
nosso encontro. Em particular, depende dos nossos
direitos: se estou agredindo você de uma forma que o
princípio da não-agressão proíbe, realmente depende
se tenho o direito de usar a força contra você. O
princípio da não-agressão não pode responder à
questão de saber se tenho ou não esse direito, por isso
não pode ser fundamental. Embora essa
característica do princípio da não-agressão seja
frequentemente reconhecida pelos autores que a
utilizam, acredito que indique que devemos procurar
em outro lugar por princípios normativos que
realmente podem ser fundamentais para a teoria
libertária.
287

Eu acho essa base na ideia de igualdade de


autoridade para obrigar (ou apenas igualdade de
autoridade). Se eu puder obrigar você de alguma
forma, você também deve ser capaz de me obrigar
dessa maneira. Que nenhum de nós tenha qualquer
autoridade para impor obrigações aos outros de uma
maneira que não possam retribuir tem sido um
princípio central no pensamento liberal desde John
Locke, e fornece o tipo certo de subscrição ao
princípio da não-agressão. É claro que esse princípio
se aplica (como os liberais, como Locke observou)
apenas àqueles que têm a capacidade de viver e agir
racionalmente. Não concedemos essa autoridade
àqueles que estão sob controle da insanidade, nem
aos filhos até que sejam maiores de idade para se
unirem à comunidade de agentes morais plenos.
Deixando essas reservas de lado, se começarmos com
a capacidade de nos comprometermos mutuamente,
ou ambos temos a liberdade de agredir uns aos outros
na maneira como o princípio da não-agressão se
concentra, ou nenhum de nós temos. Não vou fazer
uma pausa aqui para justificar a última dessas
interpretações. Os casos de início da força são errados
ou injustos em todos e apenas nos casos em que a
pessoa agredindo tem a obrigação de não usar a força,
e a pessoa que está sendo agredida tem uma
reivindicação ou direito de não ser. Queremos que a
rede de obrigações dentro da qual nos movemos,
288

agimos e nos relacionamos com os outros seja


baseada na igualdade dessas obrigações.
As queixas libertárias sobre a imposição injusta
de força ou coerção pelo Estado são sempre baseadas
em violações da igualdade de autoridade. Considere,
por exemplo, a proibição das drogas. Uma forma de
enquadrar a queixa libertária contra a proibição das
drogas é dizer que, em sua aplicação, permite a
agressão: permite que força coercitiva seja aplicada
àqueles que escolheram usar drogas que os outros
desaprovam. E isso é uma reclamação válida. No
entanto, como indiquei, não pode ser a raiz da
questão. A raiz da denúncia está em uma violação da
igualdade de autoridade. Aqueles que escrevem e
executam leis que proíbem o uso de drogas
reivindicam a autoridade para obrigar-nos a cumprir
essas leis. A lei carrega a suposição da força moral:
isto é, não é apenas a ameaça de sanções que nos
obrigam a cumpri-las, mas a ideia de que somos
moralmente obrigados a fazê-lo. Assim, a legislação
nos impõe obrigações que de outra forma não
teríamos (ou assim diz a história) para não comprar
drogas, vendê-las, usá-las e assim por diante.
Mas aqueles que reivindicam essa autoridade
não concordaram que é igual e recíproca. Ou seja, não
aceitaram a autoridade de outros para impor
obrigações a eles sobre o que podem colocar em seus
corpos. Ninguém quer estar sujeito à autoridade
289

arbitrária de outros (isto é, autoridade fundamentada


em razões que são aceitas somente pela autoridade,
não por aqueles a quem a autoridade deve ser
imposta) para impor obrigações a eles sobre como
devem tratar seus próprios corpos. Então, aqueles
que proíbem o uso de drogas reivindicam uma
autoridade desigual. O exercício dessa autoridade
putativa reflete uma desigualdade na capacidade de
obrigar os outros, e os libertários a rejeitam.
Ou considere queixas morais libertárias sobre
leis de salário mínimo. (Existem, é claro, reclamações
econômicas que deixo de lado aqui.) Aqueles que
imporiam tais leis reivindicam a autoridade para
impor obrigações a outros de não se engajarem em
acordos (contratos de trabalho, especificamente) que
em seu julgamento não deveriam ser contratados.
Mas eles não podem conceder autoridade recíproca a
outros para restringir os acordos com os quais eles
próprios podem se engajar apenas por um exercício
de julgamento. Tal estrutura moral seria uma em que
nenhum de nós seria tratado como – ou seria capaz
de agir como – agentes morais maduros.
De fato, uma vez que a estrutura geral do
problema é apreciada, é fácil ver que a fonte básica
da reclamação moral que os libertários fazem reside
na natureza do próprio Estado, na medida em que
entendemos o Estado como uma instituição que
reivindica monopólio do uso legítimo da força em um
290

determinado território. Tal monopólio é incompatível


com a igualdade de autoridade para obrigar: baseia-
se na suposição de que alguns entre nós têm
autoridade para obrigar (isto é, obrigar a cumprir
suas leis ou submeter-se ao uso da força) que não é
retribuído. Assim interpretado, o desafio moral
libertário é à autoridade do próprio Estado. Esse é um
desafio radical. Qualquer justificativa para a
autoridade do Estado deve mostrar como ela é
compatível com a igualdade de autoridade ou como
ela carrega força moral suficiente para subordinar um
compromisso à igualdade de autoridade. Ambos são
exigências bastante exigentes, como é para aqueles
que procuram usar a força em outros e que afirmam
que os outros têm a obrigação de se submeter.

DA VIRTUDE À LIBERDADE
Assim interpretado, o libertarianismo
prontamente encontra apoio da ética da virtude. Esse
apoio vem de duas direções. Primeiro, o tipo de
liberdade que o libertarianismo insiste em cada
indivíduo é uma estrutura social necessária e
apropriada para o desenvolvimento e o exercício das
virtudes, incluindo, mas não se limitando a sabedoria
prática e justiça. Segundo, e talvez mais
urgentemente, a virtude da justiça requer que
tratemos os outros como tendo o tipo de posição
institucionalizada em uma sociedade mediada por
291

princípios libertários. Vamos colocar esses pontos em


ordem.
Primeiro, o desenvolvimento da virtude e sua
realização em uma boa vida requerem liberdade da
imposição de restrições de outros, incluindo o
exercício de autoridade desigual. Devemos ser livres
para estabelecer e perseguir nossos próprios fins, em
vez de tê-los impostos a nós ou ter as compensações
entre eles ditadas a nós. Nós estamos, é claro,
obrigados a dar aos outros escopo de ação como nós
mesmos exigimos, então isso não é uma questão de
necessidade de um mundo sem limites. Tal mundo é
bastante irrelevante, para não dizer impossível, para
criaturas que vivem socialmente, como nós. Mas as
vidas que levamos precisam, dentro desses
parâmetros, serem livres de outros, impondo
unilateralmente seu julgamento sobre como devemos
viver, os fins que devemos valorizar e perseguir, e
assim por diante.
É através da escolha e da ação que nos
tornamos virtuosos, e é na agência virtuosa que
somos felizes. Ter nossa agência prática e autoridade
sobre nossas próprias vidas usurpadas pela
(putativa) autoridade dos outros é incompatível com
esse escopo de ação. Portanto, há muito pouco espaço
para a interferência do Estado nas maneiras pelas
quais os indivíduos escolhem viver suas vidas.
292

Talvez valha a pena ressaltar aqui também uma


versão eudemonista da observação que os outros
geralmente não sabem tão bem quanto a melhor
maneira de viver nossas vidas. Essa observação
produz dois tipos de objeções à intervenção no
exercício da agência prática que a virtude requer.
Uma é epistêmica: ninguém mais pode saber o que
você faz da sua vida ou como seus elementos se
encaixam para tornar sua vida. F. A. Hayek
demonstrou parte dos custos econômicos de usurpar
o conhecimento que os indivíduos têm das
“particularidades do tempo e do lugar” em que
atuam.179 Nada do que digo aqui mina o argumento
de Hayek, mas é apenas parte do problema. Além da
preocupação com o conhecimento perdido para a
produção de bem social como demonstrado por
Hayek, há a perda para o seu bem quando a sua
autoridade para exercer o seu próprio julgamento é
usurpada.
A outra objeção é moral. O tipo de interferência
no exercício do juízo prático que envolve o comando
coercitivo representa um exercício exatamente do tipo
de autoridade desigual, não recíproca, em que a
pessoa justa não se envolverá ou permanecerá. Como
vimos, nossas vidas são vividas por encontrar,
escolher, agir e fazer trocas entre fins. As escolhas

179 F. A. Hayek, “The Use of Knowledge in


Society,” American Economic Review 35 (1945): 519–30.
293

que fazemos sobre essas compensações nos tornam,


literalmente, os indivíduos que somos, e como essas
vidas são nossas, as escolhas sobre essas
compensações também devem ser nossas. É isso que
o respeito por nós mesmos e pelos outros requer, e é
o que uma pessoa justa não estará disposta a
abreviar.
Mas a preocupação com o desenvolvimento da
virtude por si só não necessariamente gera um
compromisso com uma estrutura política libertária. O
que, creio, são os requisitos da virtude da justiça.
Estes precisam de um pouco mais de análise.
Podemos começar com o que Platão achava
necessário, que é (para uma aproximação) cuidar da
própria vida e dar aos outros o que lhes é devido. É
difícil argumentar como isso sendo central para ser
uma pessoa justa. É claro que é um pouco vago em
detalhes cruciais, o que faz parte do que o torna
incontroverso nessa medida.
Esse é um ponto que Aristóteles notou, e tentou
ampliá-lo e aprimorá-lo, de maneiras úteis. Sua
versão de “dar aos outros o que lhes é devido” é o que
define como justiça na distribuição, e consiste (diz ele)
em tratar iguais igualmente e desiguais de forma
desigual.180 Essa exigência equivale a uma espécie de
pensamento “proporcional”: a ideia é que quando as

180 Aristóteles, Nicomachean Ethics, bk. V, cap. 3.


294

pessoas merecem mais de alguma coisa (ou quando


há alguma base para pensar que elas têm mais
direito), elas ganham mais, e da mesma forma quando
merecem menos ou têm menos direito. O próprio
Aristóteles observa as alegações que ele mesmo faz
sobre essa ideia, porque podemos concordar com a
receita enquanto discordamos sobre os tipos de
coisas que nos fazem merecer mais ou ter direito a
mais. Ainda assim, isso também parece uma parte
plausível do que a pessoa justa e virtuosa faz.
Mas, como argumentei, nossa concepção de
como a pessoa justa verá os outros foi enriquecida
para incluir um tipo de respeito pelos outros, por seu
arbítrio, por sua posição de igualdade moral. A pessoa
justa vê esse tipo de respeito como devido aos outros
em virtude do tipo de seres que são. Respeito e
igualdade de autoridade são compartilhados. Esses
pontos juntos parecerem impedir a pessoa virtuosa de
fazer uma quantidade significativa do que os governos
modernos exigem que seus agentes façam.
Considere o que é necessário para conduzir
uma guerra contra as drogas. Agentes do governo
invadem a propriedade e vidas (e às vezes corpos) de
outros que fizeram mal a ninguém. Intervêm em
transações consensuais entre as pessoas. A proibição
no caso de menores pode ser ainda mais draconiana.
E, é claro, no decorrer da aplicação das várias leis que
controlam o uso de drogas, adotam as medidas
295

coercitivas padrão de aprisionar os outros,


apropriando-se de suas propriedades (em multas) e
assim por diante. Nenhuma dessas ações parece cair
dentro do alcance da pessoa justa, na ausência do
aparato do Estado, que lhes confere legitimidade
putativa.
Pode o fato de que o Estado está licenciando tal
conduta o faz de alguma maneira consistente com os
juízos que uma pessoa justa faria? Se levarmos a
sério as restrições da igualdade de autoridade para
obrigar (o que, estou sugerindo, faz parte de um
aumento moderno da concepção antiga do que
significava ser justo), é difícil ver como os julgamentos
de alguns (embora investido das armadilhas do
Estado) poderia ter a autoridade para obrigar (ou
libertar da obrigação) aqueles que respondam às
exigências da virtude em seu tratamento aos
outros.181
Para dar outro exemplo (em alguns aspectos,
mais mundano), considere que, para ser legalmente
empregado, cada americano deve garantir a
permissão do governo dos EUA. Essa permissão
normalmente vem com a apresentação de um
Formulário I-9 ao Departamento de Segurança
Interna. Assim, o governo dos EUA considera ter a

181 Michael Huemer faz este caso muito vividamente

em seu argumento para o anarquismo em The Problem of


Political Authority (New York: Palgrave Macmillan, 2013).
296

autoridade de dizer a duas pessoas que pretendem


chegar a um acordo de emprego que elas podem não
fazê-lo sem sua permissão. Em outras palavras, seu
direito de fazer o que quiser com seu corpo e trabalho
– sem prejudicar de forma alguma os outros – é
limitado ao que o governo dos EUA determina que
possa ser.
Essa limitação, afirmo, é algo que nenhuma
pessoa virtuosa poderia endossar, aceitar ou praticar.
Considere as duas dimensões de apoio que indiquei
que conectam a virtude e o libertarianismo. Uma
surge do exercício da racionalidade e agência prática,
que é a espinha dorsal da própria virtude. Não
podemos ser virtuosos nem podemos viver vidas
virtuosas – as vidas que são melhores para nós
liderarmos – sem o exercício da razão e julgamento
prático. Esse exercício envolve essencialmente
determinar como promover nossos objetivos e, no
mundo social, essa determinação, muitas vezes ou
em geral, significa em combinação com os outros. E
para fazer isso com os outros de maneira eficaz, basta
que cheguemos a acordos mutuamente aceitáveis
sobre como fazê-lo. A inibição ou restrição dessas
atividades é em si mesma inimiga do desenvolvimento
da sabedoria e da virtude naqueles que estão
constrangidos.
A outra parte da história é a exigência da
justiça e o reconhecimento de uma igualdade de
297

autoridade. Em outras palavras, a pessoa justa se


recusa a aceitar relações de autoridade desiguais ou
não recíprocas. Mas essa autoridade é precisamente
a forma de autoridade exercida em subordinar o
julgamento de outro quanto aos contratos em que se
pode entrar. A autoridade daqueles que limitariam
tais contratos (para não falar de outros termos de
contrato que não infringem a posição moral de outros)
não pode ser retribuída. O ponto da autoridade que
está sendo exercida é que ela é suprema e, portanto,
desigual. Nenhuma pessoa justa poderia se envolver
em tal prática.
Agora, é claro, há ocasiões em que apenas
pessoas farão coisas que de outra forma não seriam
justas, ocasionadas por outras instâncias de conduta
injusta. A justiça retificadora envolve apenas esse tipo
de ação. Se Betty roubou $100 de Wilma, a justiça na
retificação exige que $100 sejam retirados de Betty e
devolvidos a Wilma, e essa justiça plausivelmente
permitiria que a pessoa justa o fizesse. Assim, a
pessoa virtuosa poderia, com justiça, pegar dinheiro
de Betty para acertar as coisas, ao passo que
normalmente isso seria injusto. Alguns tipos de ações
de fiscalização, como esta, não são apenas permitidas
pelos requisitos da justiça, mas também são exigidas
por ela. Pode tal argumento ser dado para licenciar as
ações estatais a que os libertários se opõem? Vale a
pena discutir aqui dois pontos.
298

O primeiro é que normalmente não pode. Não


há nada, por exemplo, na guerra contra as drogas que
tenha alguma conexão com a retificação da injustiça.
Aliás, a maior parte do que é feito em nome da guerra
contra o terror também carece de tal justificativa,
embora se possa sustentar em alguns casos, talvez
também em muitos exercícios de poderes policiais em
defesa da paz e segurança de outras pessoas.
No entanto, em segundo lugar, observe que não
há nada especial em tais casos sobre o papel do
Estado na execução dessas tarefas. O que torna essas
ações especiais permissíveis em tais casos não é que
o Estado as esteja licenciando, mas que as ações são
garantidas pelas exigências da justiça. Há questões
práticas para se ter certeza se os métodos privados de
responder a essas demandas podem ser tão ou mais
eficazes que os métodos estatais, mas o mais
importante é que não há nada de moralmente especial
sobre o Estado assumir tais funções, e essa é na
melhor das hipóteses, do ponto de vista da justiça,
pela virtude de realizar as tarefas do Estado.
Essas considerações, no entanto, não são, no
final, os problemas mais profundos para a agência
estatal, na perspectiva de serem apenas agentes. O
Estado, por natureza, reivindica o monopólio do uso
legítimo da força. Para preservar esse monopólio, o
Estado reserva para si a determinação final sobre o
que conta como legítimo. Ele reserva para si o direito
299

exclusivo ao julgamento final sobre quais os


requisitos legais sobre si mesmo e sobre seus
assuntos – e, portanto, sobre a natureza e a extensão
da estrutura moral na qual os cidadãos vivem com ele
e entre si. E isso significa que o Estado, por natureza,
está comprometido com uma relação não recíproca de
autoridade com respeito a seus cidadãos. Seus
agentes agem sob a cor dessa autoridade, de modo
que também afirmam estar em uma relação de
autoridade não recíproca, desigual, para obrigar os
outros. E essa é uma relação entre agentes morais
que um agente justo não pode aceitar nem tolerar.
Um exemplo claro pode ser visto na estrutura
da autoridade nos Estados Unidos da América (o caso
com o qual estou mais familiarizado, mas apenas os
detalhes, e não a substância, da questão diferem em
outras políticas). Embora nominalmente a autoridade
do Estado esteja no “povo”, disputas sobre como essa
autoridade deve ser entendida – sua natureza e
extensão – são determinadas na prática pelos
tribunais, incluindo (para assuntos federais) a
Suprema Corte. São os tribunais que decidem as
queixas que os cidadãos têm contra as pessoas e as
ações do Estado, e essa autoridade não é recíproca.
Por exemplo, esses tribunais decidem se os cidadãos
têm ou não o direito de contestar as operações do
governo em tribunal processando-o. Sua
interpretação das leis é final e dispositiva, pelo menos
até que decidam revisitar as questões. Aqueles em
300

posição de exercer autoridade legal estão, portanto,


comprometidos com uma relação de autoridade
desigual e não recíproca com os sujeitos das leis.
Esse tipo de assimetria ou falha de
reciprocidade não é acidental ou contingente, uma
característica que diferentes estruturas institucionais
poderiam corrigir. Está embutido na reivindicação da
autoridade monopolista de usar a força
legitimamente. Essa afirmação nunca pode ser
implementada reciprocamente entre agentes morais;
a própria ideia de monopólio é anti-recíproca.
Portanto, há um problema fundamental com a
estrutura de autoridade que é essencial para o
Estado, ao qual o agente justo deve se opor. Talvez,
como uma questão empírica, não possamos viver sem
a provisão estatal da estrutura coercitiva para
assegurar a possibilidade de ação e interação
virtuosas. (Mais sobre isto na próxima seção. Duvido
que este seja o caso, mas a evidência empírica de que
não seja possível é controversa.) Que, em suma, no
máximo, para a ética da virtude existe um mínimo (no
limite, inexistente). Essa é a conexão entre a ética da
virtude e o libertarianismo.

OBJEÇÕES
Dois tipos gerais de objeções podem ser
montados nessa estratégia de fundamentar a teoria
301

política libertária na ética da virtude. Um tipo seria


uma crítica “externa”, rejeitando a base da ética da
virtude que descrevi aqui. Como o tópico deste
capítulo é como a ética da virtude pode fornecer uma
base moral para o libertarianismo, podemos, para os
propósitos atuais, deixar de lado tais objeções.
Mais relevantes são as críticas “internas”,
sustentando que, mesmo que se aceite a ética da
virtude, não se segue que o libertarianismo mereça
apoio. Como essas críticas podem ser enquadradas?
Eu vejo quatro grandes possibilidades. Uma delas
tem uma base histórica óbvia: Platão e Aristóteles
(entre outros) foram os primeiros e ainda estão entre
os melhores proponentes de uma ética da virtude,
mas nenhum deles defende algo como um estado
libertário. Se eles não viram a inferência, por que
deveríamos? As três possibilidades restantes
recorrem a preocupações mais contemporâneas. Em
primeiro lugar, pode-se preocupar que as exigências
da ética da virtude (e da virtude da justiça em
particular) como as compreendi sejam incompatíveis
com uma sociedade estável ou pacífica. Segundo,
pode-se afirmar que outros elementos da virtude
(outras virtudes) mitigam a força libertária desses
requisitos. Finalmente, pode-se afirmar que a virtude
da justiça não traz, apesar do meu argumento, os
requisitos que citei como necessitando de arranjos
políticos libertários. Vamos colocá-los em ordem.
302

Platão e Aristóteles tinham suas próprias


diferenças quando se trata de filosofia política, mas
essas diferenças são sufocadas pela distância de
qualquer um deles à filosofia política contemporânea.
Tampouco, por exemplo, eram liberais, da mesma
forma que as sociedades ocidentais modernas e da
maneira que temos uma razão moral convincente
para endossar. (Para dar um exemplo óbvio, a política
de Aristóteles não apenas tolerava, mas também
justificava a escravidão e a subordinação das
mulheres.) Ainda assim, podemos traçar um desafio
a partir dessa visão. Para eles, uma boa constituição
política seria uma que desempenha um papel
importante em tornar os cidadãos virtuosos. Nós,
como Aristóteles, reconhecemos prontamente o papel
dos pais e professores nesse empreendimento. Se a
virtude é nossa prioridade, por que não pensar que
devemos endossar um Estado que, em geral, tenha
como principal preocupação nos tornar virtuosos?
As respostas para essa pergunta são tanto
morais quanto práticas. As preocupações morais
básicas que já demonstramos. Para assumir o papel
de formar cidadãos virtuosos, o Estado e seus agentes
devem se tornar pessoas que, por uma questão de
prática institucional, devem praticar o vício. Eles
devem, por exemplo, ver-se como tendo o direito de
impor suas concepções de virtude e uma busca
apropriada de fins válidos em seus subordinados
políticos. Eles devem estabelecer instituições (em
303

particular, instituições educacionais) que controlam


o pensamento (especialmente o que consideram ser o
pensamento não-virtuoso ou vicioso) de seus sujeitos.
(Naturalmente, nosso sistema existente de educação
pública já faz essa arregimentação, mas esse fato não
o torna congruente com as exigências da justiça.)
Crucialmente, eles devem fazer uma prática de
substituir seus próprios exercícios de racionalidade
prática pelos julgamentos dos outros.
Observe a diferença aqui entre o caso dos pais
e professores e o do Estado. Pais e professores
impõem seu próprio julgamento sobre seus filhos,
mas eles não são seres humanos adultos com plena
capacidade moral. Mas os adultos com essas
capacidades são precisamente aqueles que o Estado
precisaria para reivindicar autoridade a fim de
realizar esse objetivo “tutorial”. E, como vimos, essas
relações de autoridade não são algo que uma pessoa
virtuosa possa fazer ou endossar.182

182 Uma complicação interessante para esta história


é o pensamento de Aristóteles de que a justiça exige que
os cidadãos governem e sejam governados em troca
(Politics, bk. III, chap. 16, in The Complete Works of Aristotle: The
Revised Oxford Translation, vol. 2, ed. Jonathan Barnes, trans.
B. Jowett, pp. 1986–2130.). Esta receita pode ser, creio eu,
uma expressão de igualdade de autoridade. Contudo, para
ser assim, “governar” deve ocorrer no julgamento de casos
particulares, não em outra ação legislativa ou executiva,
pois é no julgamento que as obrigações finais dos
304

Praticamente, as preocupações são inúmeras.


Sócrates observou que poucos grandes estadistas
atenienses eram capazes de melhorar a virtude de
seus concidadãos,183 e ninguém desde então
demonstrou que eles podem fazer melhor.
Instituições de Estado são, simplesmente, más
formas de socialidade humana. Substituem a
cooperação pela coerção, força pela inteligência e, ao
fazê-lo, são corrosivas para a virtude moral.184 Estão
entre os últimos instrumentos que devemos procurar
para tornar as pessoas virtuosas. Portanto, não
devemos seguir Platão e Aristóteles no rastreamento
das implicações políticas da ética da virtude.
E quanto às preocupações mais
contemporâneas? A primeira é motivada pelo
pensamento de que existem más pessoas no mundo –
pessoas que atacam os outros por meio do roubo ou
da violência, de maneiras bastante não virtuosas (até
mesmo viciosas). Não devemos fingir que todas as
pessoas são virtuosas ou justas. Igualmente, porém,

indivíduos para com as normas que as governam são


determinadas.
183 Platão, Gorgias, in Complete Works, pp. 791–869.
184 Uma das mais claras acusações dessa tendência

é uma das primeiras. Em Gorgias, de Platão, Platão faz


Sócrates mostrar a tendência sistemática contra a busca
da verdade entre aqueles que mais valorizam a capacidade
de persuadir os outros, como os políticos (entre outros)
devem fazer.
305

não devemos pensar que a pessoa justa ou virtuosa


deva simplesmente “se acostumar” contra a injustiça
e o vício. O pensamento organizador da virtude da
justiça – de que ela está dando aos outros o que lhes
é devido – é compatível com respostas vigorosas (e
forçadas) à transgressão. Pode justificar a punição,
embora seja incerto que tipos de arranjos penais
possam ser compatíveis com o escopo completo da
virtude da justiça, incluindo não subordinar o
julgamento dos outros ao seu próprio, mas tratá-los
como de autoridade recíproca. Mesmo que a punição
não possa ser justificada pelos justos, a justiça
permite (ou requer) resistência à injustiça e
restituição às vítimas. A justiça “retificadora”, como
Aristóteles a entendeu, retoma exatamente essa
ideia.185 Mais genericamente: pessoas justas
envolvem os outros na reciprocidade e apoiam essa
reciprocidade nas instituições e arranjos sociais que
governam suas vidas. Nada nesse quadro exige que
tolerem a vitimização de si mesmos ou dos outros.
Uma motivação para a próxima objeção seria
que de alguma forma as virtudes possam entrar em
conflito, de modo que a justiça possa entrar em
conflito com alguma outra virtude (digamos,
generosidade ou compaixão), de tal maneira que as
exigências da justiça sejam reduzidas pelas
exigências de outra virtude. Agora, na concepção da

185 Aristóteles, Nicomachean Ethics, bk. V, cap. 4.


306

ética da virtude que estou considerando, as virtudes


são pensadas como não apenas incapazes de conflito,
mas também mutuamente implicantes – exigindo
umas às outras para serem plenamente realizadas.186
Mas pode-se afirmar que a justiça entendida
adequadamente seu escopo restringe os tipos de
limitações de autoridade que (eu argumentei) apoiam
o libertarianismo.
Neste ponto, essa preocupação se funde com a
última das críticas enumeradas acima. Não devemos
pensar, por assim dizer, que a justiça requer o que eu
disse que precisa. Pode não ser protegido por outras
virtudes, mas pode exigir outras coisas de nós. Talvez
ser um indivíduo justo requer o apoio de um sistema
social que forneça uma rede de segurança social para
os indigentes. Ou talvez, mais geralmente, seja
necessário um Estado para fornecer leis, adjudicação
e defesa para todos; e parte do que a pessoa justa vê
é que deve apoiar esse Estado financeiramente e de
outras formas que exige dele, e que deve subordinar
seu próprio julgamento a ele.
Eu não tenho uma resposta direta a tais
preocupações. O que forneci aqui é apenas um esboço
de uma concepção do que a justiça exige de nós como
indivíduos, e há seguramente outras concepções. No

186 Aristóteles, Nicomachean Ethics, bk. VI, cap. 13.


307

entanto, três pontos gerais podem ser feitos para


abordar essa possibilidade.
Primeiro, só porque as virtudes são
mutuamente vinculantes, pessoas justas não estarão
imunes às reivindicações que lhes são exigidas. Elas
mesmas responderão às reivindicações e apoiarão e
se envolverão em instituições que combatem essa
necessidade. O que não farão é supor que têm o
direito de impor a outros que não concordam com seu
julgamento sobre quais necessidades merecem
atenção – ou quais medidas podem ser mais bem
tomadas para satisfazer tais necessidades. Pessoas
justas não vão supor que têm autoridade para obrigar
os outros à luz de tais convicções, de uma forma que
não podem retribuir. Elas provavelmente não
suporão, isto é, que o Estado seja o canal certo para
exercer uma preocupação adequada com as
necessidades dos outros, nem que seja apropriado
impor uma obrigação legal a outros de estarem
sujeitos às medidas que a pessoa justa julgar
apropriada.
Segundo, a maioria das teorias que imporiam
tal obrigação aos cidadãos (isto é, algum dever que
apenas as pessoas possam reconhecer como
incumbidas a elas como parte do que é ser virtuoso)
começa com suposições ou afirmações sobre o como
o Estado justo (ou sociedade justa) seria. Então, as
reivindicações sobre as obrigações dos cidadãos para
308

apoiar tais instituições seguem. Se tomarmos o tipo


de ética da virtude que esbocei aqui a sério, essa é
uma maneira tendenciosa de proceder.
As exigências da justiça da virtude baseiam-se
no que é necessário para vivermos com os outros da
nossa espécie em relacionamentos que nos permitem
ser virtuosos e viver bem. Uma concepção de
cidadania ou obrigação para com o Estado que entra
em conflito com tais exigências (isto é, começando
com a suposição de que um Estado deve satisfazer
certas exigências de justiça) carece da autoridade
teórica para minar o que sabemos sobre viver uns
com os outros em famílias, amizades, parcerias,
comunidade. Somente se não levarmos a sério as
exigências da virtude, poderemos deixar de lado tais
preocupações.
Finalmente, a questão da autoridade do
julgamento permanece. É uma base – na verdade,
sem dúvida a base – de concepções liberais de
legitimidade política de que somos moralmente
iguais, de que nenhum de nós tem autoridade para
dirigir ou subordinar os outros de maneiras que não
podem ser recíprocas, mesmo com base no que parece
para nós estar certos, sermos comandados por Deus
e assim por diante. Pensar de outra forma, sabemos,
é uma receita para o conflito e a guerra e, em última
análise, não teremos pessoas virtuosas e nem felizes
em consequência disso. As exigências da justiça
309

baseiam-se em parte nesse reconhecimento. Mas essa


autoridade de comando é o que é necessária para que
o Estado faça seu trabalho distintivo. Se alguns de
nós devem ter a posição moral de ter autoridade não
recíproca sobre os outros, esse ônus exigirá que você
explique – e terá de ser uma boa explicação. Uma
ética da virtude eudemonista abre espaço para que
compreendamos como podemos ver a nós mesmos e
àqueles que nos rodeiam como comprometidos em
viver vidas boas e em regular nossas interações de
acordo com a conduta justa. Se levarmos isso a sério,
veremos que os limites libertários da autoridade do
Estado são mais do que justificados.
310

CAPÍTULO 7 - OBJETIVISMO E
LIBERTARIANISMO

APESAR DE NEGAR O RÓTULO DE


“LIBERTÁRIA”, A ÉTICA DE AYN RAND FORNECE
UMA JUSTIFICATIVA PARA AS INSTITUIÇÕES
POLÍTICAS LIBERTÁRIAS.
Ayn Rand nasceu em 1905 na Rússia pré-
comunista e viveu as revoluções de Kerensky e
Bolchevique. Os comunistas expropriaram a farmácia
de seu pai, deixando a família para suportar muitos
momentos difíceis e a jovem Rand para aprender em
primeira mão os males do totalitarismo. Rand decidiu
ser uma escritora de ficção quando tinha nove anos
de idade. Suas maiores influências literárias foram
Victor Hugo, pelo que ela mais tarde chamou de seu
“realismo romântico”, e Fiodor Dostoiévski, por sua
acuidade psicológica.
Rand se apaixonou pelo Ocidente que viu nos
filmes americanos e europeus, e a América se tornou
seu modelo de país livre quando estudou sua história
no ensino médio. Ela imigrou para os Estados Unidos
em 1926, onde aperfeiçoou suas habilidades no
idioma inglês escrevendo roteiros, contos e peças de
teatro. Finalmente publicou quatro romances best-
sellers e inúmeros ensaios, comentários e colunas.
311

Para entender a filosofia ética e política de


Rand, é preciso ler não apenas sua não-ficção, mas
também sua ficção. We the Living mostra como o
totalitarismo exalta o pior e destrói o melhor. The
Fountainhead (A Nascente) retrata o homem ideal como
alguém de visão e integridade – um homem que vive
sua própria experiência e consegue superar as forças
da ignorância e da mediocridade. Atlas Shrugged (A
Revolta de Atlas) fornece um vislumbre de um mundo
ideal, a Atlântida, e um olhar em câmera lenta sobre
a gradual desintegração de uma sociedade governada
pela “aristocracia parasita”: burocratas, empresários
e intelectuais medíocres em um jogo perpétuo de
favores, contra-ataques, e ameaças, para destruir
aqueles que se envolvem em competição “injusta”,
destacando-se em seu trabalho sem nenhum favor
político.
É em parte devido aos seus romances que Rand
tem a influência fora da academia. Também é em
parte devido a seus romances que não tem essa
influência dentro da academia. Enquanto muitas
pessoas acham sua representação de personagens
heroicos inspiradora, muitas outras acham que é
rígida e não é convincente. Sua não-ficção também
divide os leitores. Alguns são persuadidos por suas
ideias genuínas e estilo polêmico; outras são
desconsideradas por seu estilo e pela falta de
consciência de possíveis objeções a seus argumentos.
Também é deixada de lado por suas interpretações
312

errôneas e julgamentos precipitados da maioria dos


filósofos.
Rand chama sua filosofia de “Objetivismo” para
enfatizar a importância de reconhecer (a) que a
realidade é “objetivamente absoluta”, existindo
independentemente de nossos desejos ou medos, e (b)
que a razão, em vez de sentimentos ou revelação, é
nosso único meio de conhecimento e sobrevivência.187
O nome Objetivismo também enfatiza a importância
de reconhecer que os valores são objetivos e não
subjetivos ou intrínsecos. O subjetivismo sustenta
que os valores são determinados inteiramente por
nossos desejos e sentimentos, independentemente da
natureza do mundo externo, enquanto o intrínseco
sustenta que são inerentes ao mundo externo,
independente de nossa natureza.188 Por contraste, o
Objetivismo sustenta que os valores dependem tanto
de nossa natureza como seres racionais e da natureza
do mundo externo em que vivemos.
Na ética, Rand defende o egoísmo ético – a visão
de que precisamos da moralidade para nosso próprio
bem, e não para o bem geral ou para o bem dos
outros. Também argumenta que o egoísmo ético é o

187 Ayn Rand, “Introducing Objectivism,” Objectivist


Newsletter, August 1962, p. 35.
188 Ayn Rand, “What Is Capitalism?” Capitalism: The

Unknown Ideal (New York: New American Library, 1967), pp.


21ff.
313

fundamento indispensável da liberdade, porque a


liberdade é necessária para nossa própria
sobrevivência e felicidade como seres racionais que
pensam e agem por escolha. A única alternativa ao
egoísmo ético, ela alega, é o altruísmo, cuja essência
é o auto-sacrifício, e nós não precisamos de liberdade
para sacrificar nossas vidas e nossa felicidade. Esta
não é, naturalmente, a compreensão padrão do
altruísmo na literatura acadêmica, em que o
altruísmo é geralmente definido como algo a favor do
outro, mas não necessariamente à custa dos próprios
desejos ou objetivos racionais. A concepção de
egoísmo ético de Rand também difere das concepções
contemporâneas. Começarei explicando essa
concepção e depois discutirei sua defesa da liberdade,
do capitalismo e do estado mínimo.
De acordo com o egoísmo ético, princípios
morais e virtudes nos dizem que tipo de pessoa ser e
como agir a fim de promover nosso próprio bem. Mas
e se avançarmos em nosso próprio bem nos obriga a
atropelar outras pessoas? Uma forma de egoísmo
ético diz: “Bem, então, você deve atropelar outras
pessoas”. Mas um mundo desses egoístas logo
acabaria se matando. E uma teoria ética que deixa os
que a praticam mortos não é nem muito egoísta nem
muito ética. Não é de admirar, então, que isso não
314

seja o que Rand entende por egoísmo ético.189 O que,


então, ela quer dizer? Em outros lugares, argumentei
que os ensaios e romances de Rand apoiam mais de
uma interpretação, mas aqui vou me limitar à mais
plausível.190
Rand argumenta que a ética “é um código de
valores para guiar as escolhas e ações do homem – as
escolhas e ações que determinam o propósito e o
curso de sua vida” e que é “uma necessidade objetiva
e metafísica da sobrevivência do homem”.191 Por essa
interpretação, Rand não alude apenas a
sobrevivência física, mas “sobrevivência enquanto
homem”, isto é, “os termos, métodos, condições e
objetivos necessários para a sobrevivência de um ser
racional durante toda a sua vida – em todos os
aspectos da existência que são abertos à sua
escolha.”192 O objetivo final de cada indivíduo é sua
própria sobrevivência e felicidade. Mas como todo
indivíduo, com razão, tem esse objetivo, a busca de
cada indivíduo deve ser compatível, em princípio, com

189 Michael Huemer, no entanto, atribui esse tipo de


egoísmo a Rand em Critique of the ‘Objectivist Ethics.
190 Neera K. Badhwar e Roderick T. Long, “Ayn

Rand,” Stanford Encyclopedia of Philosophy, rev. ed., (Stanford,


CA: Stanford University, 2016).
191 Ayn Rand, “The Objectivist Ethics,” The Virtue of

Selfishness: A New Concept of Egoism (New York: New American


Library, 1964), pp. 13, 23.
192 Ibid., pp. 25, 27.
315

a busca de objetivos finais dos outros indivíduos. O


“bem humano”, declara ela, “não requer sacrifícios
humanos e não pode ser alcançado pelo sacrifício de
alguém para outrem”.193
Em que sentido, porém, a sobrevivência ou a
felicidade, por meios imorais, não é um “bem
humano”? Como apenas os seres humanos agem
imoralmente, parece que o bem alcançado por meios
imorais é muito mais um bem humano. Além disso,
por que o bem de uma pessoa pode ser alcançado ao
sacrificar a de outra pessoa? Inúmeras pessoas
ganharam sua riqueza e eminência através de fraude
ou violência. A resposta a essas perguntas é que Rand
está pensando em “bem humano”, “sobrevivência
enquanto homem” e “felicidade” em termos
parcialmente moralizados, embora ela nunca
reconheça esse ponto.
A felicidade, de acordo com Rand, é o estado de
vida existencial e psicologicamente “bem-sucedido”. É
“um estado de alegria não contraditória – uma alegria
sem penalidade ou culpa”, alcançável apenas pelo
“homem que deseja apenas objetivos racionais,
buscando nada além de valores racionais e
encontrando sua alegria em nada além de ações
racionais”.194 A felicidade aqui não é um sentimento
que temos episodicamente, mas um estado de vida

193 Rand, “Objectivist Ethics,” p. 31.


194 Ibid., pp. 27, 32.
316

objetivamente válido e emocionalmente positivo – o


que Aristóteles chama de eudaimonia. Rand sustenta
que a busca da felicidade é inseparável da atividade
de manter a vida através da busca racional de
objetivos racionais.195
Como a racionalidade é uma virtude – na
verdade, a principal virtude que envolve todas as
outras virtudes – a busca racional de objetivos
racionais torna a virtude parcialmente constitutiva do
objetivo final da sobrevivência enquanto homem e
felicidade. (Note que, diferentemente dos atos
virtuosos, a virtude como tal é um traço de caráter,
uma disposição valorativa para caracteristicamente
pensar, sentir e agir de certas maneiras. Rand nunca
torna isso explícito, mas retrata com clareza
suficiente em seus retratos de seus heróis fictícios).
Mas a visão de que a virtude é parcialmente
constitutiva do objetivo final da sobrevivência e da
felicidade contradiz sua alegação repetida de que a
virtude não é um fim em si mesma, mas um meio ou
instrumento para a sobrevivência e a felicidade? Por
razões que dou agora, a resposta é “não
necessariamente”.
Às vezes, quando um filósofo diz que a virtude
ou moralidade é um fim em si mesmo, ele quer dizer
que não tem nenhuma conexão necessária com

195 Ibid., pp. 29, 32.


317

qualquer outra coisa que nos interessa: felicidade,


sobrevivência ou as coisas que produzem ou
capacitam. Kant é o principal defensor dessa posição.
Moralidade é uma coisa e os bens deste mundo são
outros. Rand está certamente certa de que, nesse
sentido, a virtude não é um fim em si mesma – ou, se
fosse, praticamente ninguém se importaria com isso.
Às vezes, porém, quando um filósofo diz que a virtude
é um fim em si mesma, quer dizer que ela é
parcialmente constitutiva do fim último de uma boa
vida humana, sem negar que a virtude também tenha
valor instrumental. Esta posição é defendida por
Aristóteles e pelos neo-aristotélicos. Roderick Long e
eu argumentamos em outro trabalho que esta é
também a posição apoiada por muitas das
declarações de Rand e por sua representação de seus
heróis.196
A virtude é claramente parcialmente
constitutiva da felicidade de seus heróis, que
frequentemente arriscam a vida e sofrem por causa
de seus princípios morais, porque a alternativa – trair
seus princípios – seria ainda pior para eles. A
felicidade humana exige sucesso nos projetos que

196 Neera K. Badhwar, Is Virtue Only a Means to


Happiness? An Analysis of Virtue and Happiness in Ayn Rand’s
Writings (Poughkeepsie, NY: Objectivist Center, 2001). Long
toma uma posição similar. Veja Roderick T. Long, Reason
and Value: Aristotle vs. Rand (Poughkeepsie, NY: Objectivist
Center, 2000).
318

valem a pena, mas, ainda mais importante, exige um


senso de orgulho justificado em si mesmo, e o orgulho
justificado exige virtude. É por isso que Howard
Roark, do The Fountainhead, pode ser visto agindo em
seu próprio interesse quando rejeita os pedidos que o
tornariam o arquiteto mais rico e mais procurado do
país – apenas pelo valor de sua visão arquitetônica.
Roark escolhe integridade acima desse tipo de
sucesso.
Os heróis de Atlas Shrugged renunciam ainda
mais quando se afastam do mundo. Nos dois
romances, os heróis de Rand têm sucesso no trabalho
e no amor, porque é uma parte importante do projeto
de Rand mostrar que, em uma sociedade decente, a
virtude é eficaz, que nos ajuda a ter sucesso em
nossos objetivos valiosos.
Essa interpretação da visão de Rand da virtude
como instrumental e parcialmente constitutiva da
felicidade é, como veremos, também a única
interpretação que é compatível com a defesa da
liberdade de Rand e dos direitos individuais.

LIBERDADE
O argumento de Rand para a liberdade é
baseado em direitos e não consequencialista ou
contratualista. Em outras palavras, seu argumento é
baseado na premissa de que todos nós temos direitos
319

por nossa própria natureza como seres que devem


escolher pensar e agir, em vez de partir da premissa
de que a liberdade traz as melhores consequências ou
que as pessoas concordaram ou concordam com um
sistema de liberdade.
Ao mesmo tempo, Rand sustenta que, de fato,
um sistema de liberdade traria as melhores
consequências e que, em parte por essa razão, as
pessoas concordariam com isso. Indivíduos são fins
em si mesmos, não são meios para os fins dos outros.
Como tal, eles têm o direito de levar sua vida e buscar
sua felicidade como entenderem, desde que não
interfiram na busca semelhante de outras pessoas.197
Rand argumenta que um direito é “um princípio
moral que define e sanciona a liberdade de ação de
um homem em um contexto social”.198 “Um direito é
aquele que pode ser exercido sem a permissão de
ninguém.”199 Tudo o que é necessário para a
liberdade de ação é a ausência de coerção física ou
fraude por outros – incluindo o governo. Todos os
direitos, portanto, são negativos, exigindo dos outros
nada mais do que a não iniciação de força ou fraude.

197 Rand, “Introducing Objectivism,” p. 35.


198 Rand, “Man’s Rights,” Virtue of Selfishness, p. 93.
199 Ayn Rand, “Textbook of Americanism,” The Ayn

Rand Column, rev. ed. (New Millford, CT: Second


Renaissance Books, 1998), p. 83.
320

Como outras concepções de direitos, a


concepção de Rand também é hierárquica. Ela afirma,
Existe apenas um direito fundamental (todos os
outros são suas consequências ou corolários): o direito
de um homem à sua própria vida. A vida é um processo
de ação autossustentável e autogerado; o direito à vida
significa o direito de se engajar em ações
autossustentáveis e autogeradas – o que significa: a
liberdade de tomar todas as ações requeridas pela
natureza de um ser racional para o apoio, a promoção,
a realização e o gozo de sua própria vida. (Tal é o
significado do direito à vida, à liberdade e à busca da
felicidade).200
E de novo,
Direitos são condições de existência exigidas
pela natureza do homem para sua própria
sobrevivência. Se a vida na terra é seu propósito, ele
tem o direito de viver como um ser racional: a natureza
proíbe-lhe o irracional. Qualquer grupo, qualquer
gangue, qualquer nação que tente negar os direitos do
homem, está errada, o que significa: é o mal, o que
significa: é anti-vida.
Rand está trazendo três pontos altamente
significativos aqui, dois absolutamente necessários
para a liberdade e o terceiro possivelmente fatal. O

200 Rand, “Man’s Rights,” p. 93.


321

primeiro ponto é que direitos são reivindicações de


tomar certas ações sem interferência ao invés de
serem dadas coisas. Eles são alvos de liberdade de
ação, não de qualquer coisa que eu precise ou pense
que preciso – mesmo que precise disso para agir. Isto
é implicado pelo próprio conceito de direitos
negativos. Por exemplo, para ganhar a vida, preciso
de um carro e tenho o direito de comprar um carro
em uma troca pacífica com alguém que queira me
vender um carro. Se não consigo encontrar alguém
que queira me vender um que eu possa pagar, posso
tentar pedir dinheiro emprestado ou pedir um carro
grátis. Se tiver sorte, conseguirei uma dessas
tentativas. Mas se eu não conseguir, paciência. Eu
não tenho direito “positivo” a um carro só porque
preciso de um.
O direito de um indivíduo é uma reivindicação
executória contra os outros – uma reivindicação que
o governo é obrigado a impor. A visão de que tenho
um direito positivo a um carro implica que o governo
deveria coagir os outros a fornecer-me um carro. Mas
tal coerção, mesmo que indireta, por meio de taxação,
viola os direitos negativos de outros de serem
deixados em paz, desde que não estejam atacando ou
cometendo fraude contra mim. Direitos positivos são
incompatíveis com direitos negativos. Portanto, eu
não tenho direito a um carro, apenas para tomar as
ações (que respeitam os direitos) necessárias para
adquiri-lo.
322

O segundo ponto que Rand está trazendo sobre


os direitos é que os direitos são detidos pelos
indivíduos, porque sua função é a proteção da
liberdade do indivíduo contra a interferência de
outros indivíduos, grupos ou governo. Os chamados
direitos coletivos ou de grupo são uma negação dos
direitos individuais, porque eles não são nada mais
do que o poder de alguns indivíduos de forçar outros
indivíduos a obedecer a seus decretos. Direitos
individuais são mantidos contra o coletivo – “a
expressão ‘direitos coletivos’ é uma contradição nos
termos”.201 De fato, o “princípio dos direitos
individuais é a única base moral de todos os grupos
ou associações”.
O terceiro ponto que Rand está trazendo é que
todos os direitos são direitos às ações que precisamos
tomar, como seres racionais, para nossa própria vida
e felicidade. Esta é a alegação problemática, pois
implica que não temos o direito de tomar ações que
são prejudiciais à nossa vida e felicidade.202 E se não
temos tais direitos, podemos ser forçados a não fazer
coisas que são ruins para nós. Suponha, por exemplo,
que herdei uma boa quantia de dinheiro e agora só
quero aproveitar os prazeres fáceis de ficar deitado

201 Rand, “Textbook of Americanism,” p. 83.


202 Alguns filósofos fizeram essas críticas. Para
referências, ver Neera K. Badhwar and Roderick Long, “Ayn
Rand.”
323

bebendo cerveja, assistindo a séries e consumindo


cocaína. Meu comportamento é claramente
autodestrutivo e irracional. Então, se todos os direitos
são direitos a ações que precisamos tomar, como
seres racionais, para nossa própria vida e felicidade,
a visão de Rand implica que não é uma violação dos
meus direitos para o governo (ou indivíduos
interessados) forçar-me a fazer algo que valha mais a
pena, como estudar ou trabalhar, sob ameaça de
punição. Mas essa não é uma visão muito respeitosa
dos direitos, e uma sociedade na qual tal coerção é
praticada não é uma sociedade que respeita muito os
direitos. E a concepção de Rand de um governo
adequado como um governo limitado também implica
que tal coerção é inadmissível. Ela argumenta que um
governo adequado deve ser confinado a apenas duas
tarefas: (a) nos proteger da violência e fraude
doméstica e estrangeira e (b) resolver disputas de
acordo com leis objetivas. Não há espaço em sua
concepção de Estado vigia noturno para a legislação
paternalista ou moral permitindo que o governo
coercitivamente impeça as pessoas de
comportamento autodestrutivo ou imoral.
Como, então, podemos reconciliar essa visão do
papel apropriado do governo com a afirmação de
Rand de que “os direitos são condições de existência
exigidas pela natureza do homem para sua
sobrevivência adequada”, onde “são” é o “são” da
identidade? Uma possibilidade é que, ao dizer isso,
324

ela esteja pensando no que dá origem a direitos e o


que os torna valiosos para a maioria de nós.203 Parece
inegável que, se os seres humanos tivessem sido
incapazes de valorizar sua própria – ou a de qualquer
outra pessoa – sobrevivência e felicidade, teríamos
sido incapazes de valorizar os direitos. Novamente, se
os seres humanos tivessem sido incapazes de pensar
e agir a longo prazo, se tivesse sido em nossa natureza
agir sempre impulsivamente, teríamos sido incapazes
de viver por princípios, ou mesmo de concebê-los.
Portanto, como os direitos são princípios que
sancionam a liberdade de ação de um indivíduo, não
teríamos direitos e nem mesmo um conceito de
direitos. Mas o fato de que a capacidade de pensar e
agir a longo prazo, valorizando a própria
sobrevivência e felicidade própria ou alheia, é
essencial para ter direitos não implica que os direitos
devem ser limitados à liberdade de tomar as ações
que são racionalmente necessárias para a nossa vida
e felicidade, ponto. Tome, por exemplo, o vagabundo
do sofá descrito acima. Um viciado em televisão tem
a capacidade de pensar e agir a longo prazo,
valorizando sua sobrevivência e felicidade a longo
prazo, mesmo que suas ações sejam irracionais e
autodestrutivas. Essa capacidade é suficiente para

203 Essa consulta “genética” é um aspecto


importante da metodologia de Rand. Por exemplo, ela
pergunta o que dá origem a valores, à necessidade de um
código de ética, ao conceito de justiça e assim por diante.
325

torná-lo um portador de direitos. Respeitar seus


direitos pode ou não lhe fazer bem, mas o respeita
como um ser autônomo responsável por sua própria
vida. Uma sociedade que respeita os direitos das
pessoas respeita até os direitos do vagabundo do sofá.
Outras declarações de Rand mostram seu
reconhecimento de que o que importa é a liberdade,
seja ela exercida racional ou irracionalmente, desde
que o exercício não viole os direitos de qualquer outra
pessoa. Como ela declara, “o direito é a sanção moral
da liberdade do indivíduo de agir de acordo com seu
próprio julgamento, por seus próprios objetivos, por
sua própria escolha voluntária e não coagida”.204
Mais uma vez, a liberdade é considerada “o requisito
fundamental da mente do homem” porque “a escolha
de exercer sua faculdade racional ou não depende do
indivíduo.”205 Ela não diz que a liberdade é necessária
apenas para fazer juízos racionais, ou apenas para
exercitar a faculdade racional.206 Mas Rand é, na
melhor das hipóteses, inconsistente neste ponto.
Voltando agora para os outros direitos
específicos que os seres humanos têm, dois dos mais

204 Rand, “Collectivized ‘Rights,’” Virtue of Selfishness,


p. 102.
205Rand, “Capitalism,” p. 17.
206Às vezes, Rand pensa na irracionalidade como o
fracasso em exercitar sua faculdade racional, em vez de
abusar dela.
326

importantes são a liberdade de expressão e a


propriedade. Tal como acontece com outros direitos,
o direito à liberdade de expressão “significa liberdade
de interferência, repressão ou ação punitiva do
governo – e nada mais”.207 Isso não significa o direito
de receber holofote ou espaço para expressar seus
pontos de vista ou, a propósito, o direito de receber
uma audiência apreciativa. O direito de propriedade
é “o direito de ganhar, manter, usar e dispor de
valores materiais”208 – não o direito de ter
propriedade, mas simplesmente o direito de agir para
obtê-la e, uma vez adquirida, usá-la, vendê-la ou
entregá-la. E todas essas ações devem respeitar os
direitos de outras pessoas. Um anel de diamante
conquistado por roubo não se torna propriedade do
ladrão, não importa o quanto ele tenha que trabalhar
para isso ou quão engenhoso seja seu plano. O direito
de usar uma propriedade também não significa que
ela possa ser usada de maneira que viole os direitos
de outras pessoas. Por exemplo, se moro em um
apartamento, não tenho o direito de tocar meu rádio
o mais alto possível à uma hora da manhã,
perturbando assim o sono dos meus vizinhos.
A próxima pergunta é: por que devemos
respeitar os direitos uns dos outros? É bom para mim

207 Rand, “The Fascist New Frontier,” Ayn Rand

Column, p. 106.
208 Rand, “Man’s Rights,” p. 93.
327

que outras pessoas respeitem meus direitos à minha


vida, liberdade e felicidade, mas por que é bom que
eu respeite os direitos dos demais? Em uma ética
egoísta, é bom que seja justificado. Uma resposta é a
resposta instrumental dada pelo filósofo inglês do
século XVII, Thomas Hobbes: devemos respeitar os
direitos dos outros porque não podemos fugir da
violação deles. Mas esta resposta não é suficiente
porque há momentos em que podemos nos safar.
Rand acrescenta outra razão: a imoralidade
requer auto-engano, o que, por sua vez, leva a
conflitos psicológicos e, se perseguido como política,
um sentimento de vazio. Mas para muitas pessoas,
um engano ocasional não causa nenhum conflito
psicológico, e para muitas pessoas até mesmo a
política de enganar, fraudar ou roubar os outros em
prol de seus próprios objetivos não causa conflito ou
sensação de vazio. Dada a variabilidade da natureza
humana, essa conclusão não deveria surpreender.
Além disso, certamente devemos respeitar os direitos
dos outros porque eles têm direitos e não porque
podem ser psicologicamente ruins para nós.
Aqui, novamente, a concepção neo-aristotélica
de Rand sobre a sobrevivência enquanto homem e da
felicidade vem em seu resgate. Viver uma vida própria
de um ser humano requer viver virtuosamente, e cada
virtude é definida parcialmente em termos de um
reconhecimento e aceitação de algum fato ou fatos,
328

uma aceitação entendida pelo agente como


indispensável para ganhar, manter ou expressar seu
valor final: uma felicidade que vale a pena ter. Por
exemplo, integridade é “o reconhecimento do fato de
que você não pode fingir sua consciência”209, um
reconhecimento que é expresso em lealdade aos
valores e convicções racionais,210 e honestidade é “o
reconhecimento do fato de que você não pode fingir
existência”, um reconhecimento que se expressa na
veracidade do pensamento e do discurso.211 A justiça
é o reconhecimento do fato de que devemos dar aos
outros o que é devido, e parte do que é devido a eles
é o respeito por seus direitos.212
Uma questão importante sobre os direitos é se
eles podem entrar em conflito. Rand nega essa
possibilidade se eles forem adequadamente definidos

209 Ayn Rand, Atlas Shrugged (New York: Random


House, 1957), p. 936.
210 Rand, “The Ethics of Emergencies,” The Virtue
of Selfishness, p. 46.
211 Rand, Atlas Shrugged, pp. 936–37.
212 A própria Rand define a justiça mais
estritamente como “o reconhecimento do fato de que você
não pode fingir o caráter dos homens, pois você não pode
fingir o caráter da natureza […] que todo homem deve ser
julgado pelo que ele é e tratado de acordo” (discurso de
Galt). New Intellectual, p. 129). Mas o ponto que ela está
fazendo aqui é um caso especial de dar às pessoas o que
lhes é devido, e aos seres humanos são devidos respeitos
por seus direitos porque são portadores de direitos.
329

como proteções de liberdade de ação contra força


física ou fraude. Os chamados “direitos positivos”
entram em conflito com direitos negativos porque são
reivindicações de benefícios para certas pessoas, em
detrimento da liberdade de ação de outras pessoas.
Por exemplo, meu “direito positivo” de fazer com que
você faça um bolo para meu casamento gay está em
conflito com seu direito (negativo) de se recusar a
participar de um ato que você considera ser contra
sua religião. Tem sido argumentado, no entanto, que
até os direitos negativos podem entrar em conflito.
Para usar um exemplo anterior, o meu direito de usar
a minha propriedade como achar adequado implica
que tenho o direito de tocar música alta sempre que
quiser, mesmo que você também tenha o direito de
não ser incomodado à uma hora da manhã. Rand
diria que não tenho esse direito porque o som da
música não está confinado à minha propriedade. Para
parafrasear o velho ditado, meu direito de tocar
música alta à uma hora da manhã termina onde as
orelhas alheias começam.
Rand também argumenta que não apenas os
direitos, mas até mesmo os interesses racionais, não
entram em conflito, pelo menos em uma sociedade
livre.213 Em suas palavras, “não há conflito de
interesses entre os homens que não desejam o não

213 Rand, “The ‘Conflicts’ of Men’s Interests,” Virtue


of Selfishness, pp. 50–56.
330

merecido, que não faça sacrifício e nem o aceite, que


lidam uns com os outros através de trocas, dando
valor ao valor.”214 Essa harmonia de interesses
racionais de diferentes pessoas foi considerada por
alguns comentaristas essencial para a existência de
direitos e uma sociedade pacífica.
Mas qual é o argumento de Rand para a
proposição de que os interesses racionais não entram
em conflito? Parece que os conflitos de interesses
racionais são abundantes. Para tomar o caso, ela
mesma considera: duas pessoas candidatam-se a um
emprego, mas apenas uma obtém o emprego.215
Supondo que ambos são qualificados, o interesse
racional do perdedor foi frustrado porque a outra
pessoa conseguiu o emprego? É verdade que o
perdedor não foi tratado injustamente e não
sacrificou seus interesses, como Rand assinala, mas
esse ponto é irrelevante para a questão de um conflito
entre seus interesses racionais e os do outro
candidato.
Rand argumenta que, supondo que o
empregador fosse racional, a pessoa melhor teria o
emprego. Mas e se o empregador não fosse racional
nesta ocasião? Ou ele era racional, mas cometeu um
erro inocente de julgamento sobre o melhor
candidato? Independentemente das questões de

214 Rand, “Objectivist Ethics,” p. 31.


215 Rand, “Conflicts,” p. 50.
331

racionalidade ou visão, no mercado, os empregadores


praticamente jogam uma moeda para decidir quem
contratar ou fazem isso com base em fatores
irrelevantes, como gostar mais do senso de humor de
um candidato do que do outro. Não há nada de
irracional nisso quando dois (ou mais) candidatos se
mostram igualmente qualificados. Para pegar um
caso ainda mais simples: eu quero aquele cãozinho
na janela, mas você também, e você chega lá primeiro
e o compra. Frequentemente, nossos interesses
entram em conflito mesmo que sejam racionais. A
única maneira de remover a aparência de conflito é
declarar retrospectivamente que nunca tive interesse
no cãozinho. Mas isso é apenas uma racionalização
invejosa ou rancorosa, “não queria mesmo”. Por que
então teria tentado chegar à loja para comprar o
cachorrinho, ou me senti decepcionado quando não
consegui comprá-lo, se eu não tinha interesse nele?
Essas críticas, no entanto, são compatíveis com
o argumento geral de Rand de que agir
desonestamente ou injustamente para conseguir o
emprego – ou o cãozinho – não é do nosso interesse
final. Melhor quebrar a pedra em uma pedreira, como
Howard Roark, do que vender. Eles também são
compatíveis com o fato de que os interesses racionais
não necessariamente – isto é, por sua própria
natureza – conflitantes. Os conflitos são contingentes
a fatores externos, como a existência de apenas um
emprego ou um cãozinho para duas pessoas
332

racionalmente interessadas. Se os interesses


racionais necessariamente conflitassem, não haveria
direitos – na verdade, haveria uma guerra de todos
contra todos. Mas não há um bom argumento para a
afirmação de Rand de que os interesses racionais não
podem entrar em conflito. E também não reconhece
que eles podem pôr em perigo a existência de direitos.

CAPITALISMO
“O capitalismo é um sistema social baseado no
reconhecimento dos direitos individuais, incluindo
os direitos de propriedade, nos quais todas as
propriedades são de propriedade privada.”
– Ayn Rand, Capitalism: The Unknown Ideal.
Por “capitalismo”, Rand considera “um
capitalismo laissez faire pleno, puro, descontrolado e
desregulado – com uma separação entre Estado e
economia, da mesma forma e pelas mesmas razões
que a separação entre Estado e Igreja”. A interferência
do Estado em questões religiosas e a interferência da
religião em questões de Estado levaram à corrupção
do Estado e da religião, de modo que a interferência
do Estado em questões econômicas e
o lobby empresarial por favores especiais levaram à
corrupção da política e dos negócios.
O capitalismo é a “expressão político-
econômica do princípio de que a vida, a liberdade e a
333

felicidade de um homem são dele por direito moral” –


isto é, do princípio do egoísmo ético.216 A doutrina dos
direitos individuais reconhece esse princípio
protegendo a liberdade das pessoas em perseguir
seus próprios interesses, desde que respeitem os
direitos dos outros de fazer o mesmo. Ela reconhece
que ninguém pode ser forçado a se sacrificar por
causa da nação ou da sociedade, ou por outro
indivíduo.
Pelas definições de Rand, nenhuma sociedade
dita capitalista é genuinamente capitalista. Na
melhor das hipóteses, as sociedades contemporâneas
são mistas, com elementos do capitalismo e do
socialismo ou fascismo na poção.217 Numa sociedade
capitalista pura, a força pode ser usada apenas em
retaliação contra aquele que inicia a força; e, exceto
quando a ameaça é imediata, essa função de
retaliação é dada ao governo. De fato, Rand descreve
o governo como “o meio de colocar o uso retaliatório

216 Rand, “Alienation,” Capitalism: The Unknown Ideal,


p. 284.
217 Sob o fascismo, os indivíduos possuem
propriedade privada, mas o governo controla seu uso
através de regulamentações; sob o socialismo, o governo
controla a propriedade sem ter um título para ela. Veja
“Fascist New Frontier,” p. 98. Rand argumenta que os EUA
são mais fascistas do que socialistas (“The New Fascism:
Rule by Consensus,” Capitalism).
334

da força sob controle objetivo”.218 O governo não pode,


no entanto, impedir que as pessoas façam transações
pacíficas ou, de alguma forma, coagi-las a realizar
qualquer transação específica. Mas isso é exatamente
o que faz quando impede, digamos, que a Uber e seus
futuros clientes façam os contratos que desejam
fazer, ou quando exige que as empresas aumentem
seu salário mínimo.
O capitalismo é moralmente justificado porque
respeita nossa natureza racional, deixando-nos livres
para descobrir ou criar valores, bem como para trocá-
los por benefícios mútuos.219 O capitalismo
exemplifica, assim, o princípio da justiça. Também
promove o bem comum criando prosperidade, mas
isso, de acordo com Rand, não é sua justificativa.
Sempre focado na mente criativa, Rand afirma que o
principal impulsionador da economia não é o
consumidor (demanda), mas o inovador (a oferta). Ao
contrário dos imitadores – aqueles “que tentam
atender ao que eles pensam ser o gosto conhecido do
público” – os inovadores continuamente elevam “o
conhecimento e o gosto do público a níveis cada vez
mais altos”,220 mesmo que leve tempo para o público
perceber o valor do produto.

218 Rand, “Capitalism,” p. 19.


219 Ibid., p. 24.
220 Ibid., p. 25.
335

Um exemplo importante de um produto


revolucionário do nosso tempo é o computador de
Steve Jobs, o Lisa. O Lisa não conseguiu ganhar
muito mercado, mas os computadores da Apple de
Jobs logo ganharam popularidade, superando os
computadores pessoais mais baratos. No entanto,
Rand não reconhece que os inovadores também
podem usar novos métodos inteligentes para
disseminar mitos urbanos e degradar o gosto para
ganhar dinheiro. Assim, embora a Internet ofereça
aos inovadores uma plataforma para difundir o
conhecimento e divulgar produtos que melhoram a
vida das pessoas, também fornece uma plataforma
para espalhar desinformação e anunciar produtos
que são em geral prejudiciais ou que incentivam a
degradação do gosto. É claro que Rand pode afirmar
que qualquer um que faça isso é um imitador, não um
inovador; mas usar métodos novos e inteligentes para
tornar as pessoas mais ignorantes do que já são, ou
para rebaixar seu gosto, é difícil de ver como
imitativo. Portanto, seria mais correto dizer que uma
economia capitalista oferece aos inovadores a
oportunidade de aumentar nosso conhecimento e
melhorar nosso gosto – mas também oferece a eles a
oportunidade de fazer o oposto.
Rand desafia a visão generalizada de que o
capitalismo leva a guerras, alegando que o
capitalismo “proíbe a força das relações sociais”,
incluindo relacionamentos com os moradores de
336

outras nações, defendendo o livre comércio, “isto é, a


abolição das barreiras comerciais, de tarifas
protecionistas, de privilégios especiais.”221 É assim “o
único sistema fundamentalmente oposto à guerra”.
Não é de admirar, então, que “o capitalismo tenha
dado à humanidade o mais longo período de paz da
história – um período durante o qual não houve
guerras envolvendo todo o mundo civilizado – desde o
fim das guerras napoleônicas em 1815 até a eclosão
da Primeira Guerra Mundial em 1914.”222 Embora o
capitalismo puro do laissez faire nunca tenha existido,
Rand acredita que esse período se aproximou mais do
que antes ou depois.
Rand está certa de que o capitalismo genuíno
cria condições para a paz substituindo o livre
comércio pela guerra, mas sua declaração de que não
houve guerras “envolvendo todo o mundo civilizado”
de 1815 a 1914 é problemática. Pois este é também o
período em que colonizadores europeus de países da
Ásia, África e América Latina mantiveram seu
controle pela força. Em outras palavras, os países
mais capitalistas da Europa atacaram os países
menos capitalistas ou não capitalistas. E o país mais
capitalista, a Grã-Bretanha, continuou a fazer isso ao
mesmo tempo em que sua industrialização estava

221 Rand, “The Roots of War,” Capitalism: The Unknown

Ideal, pp. 38–39.


222 Ibid.
337

decolando. Esses países partiram dos princípios


pacíficos do livre comércio para conquistar, colonizar
e explorar os povos dos países mais pobres. O que o
capitalismo representa é uma coisa; se um país
capitalista adere consistentemente a seus princípios
é outra.
Rand argumenta que todas as liberdades –
econômicas, pessoais e políticas – permanecem ou
caem juntas, porque coagir pessoas em uma esfera
exige que elas sejam coagidas em outras. Exemplos
impressionantes podem ser encontrados no sul do
país. A escravidão foi, evidentemente, a violação mais
flagrante dos direitos dos indivíduos escravizados,
mas a escravidão também gerou violações dos direitos
dos proprietários de escravos e de outros brancos. A
maioria dos Estados do sul aprovou leis contra a
manumissão por medo de que os negros libertados
subvertessem a ordem de posse de escravos e
recrutassem jovens para pegar escravos fugitivos.
Eles também censuraram a fala, proibindo qualquer
conversa sobre abolição. O Norte era mais livre não
apenas economicamente, mas também politicamente
e pessoalmente.
Ainda assim, as liberdades econômicas e
pessoais nem sempre andam de mãos dadas. A
economia mais livre do Norte não impediu a maioria
dos Estados do norte de impor a segregação legal em
escolas públicas e habitações públicas, ou proibir os
338

negros de votar ou de servir em juris. Muitos Estados


do norte e do oeste proibiram a entrada gratuita de
negros do sul e proibiram as relações sexuais entre
negros e brancos.223 Todas essas leis foram
derrubadas agora em nosso sistema muito menos
capitalista.
O capitalismo gradualmente ampliou o direito
das mulheres à propriedade e participação como
agentes independentes na economia; mas graças às
mudanças culturais, as mulheres têm agora muito
mais liberdade econômica em nossa economia mista
do que no século XIX.
Em questões de preferência sexual e
reprodução também, as pessoas estão muito mais
livres agora do que antes. Por exemplo, antes de 1962,
a sodomia era crime em todos os Estados dos EUA, e
as leis anti-sodomia foram derrubadas pela Suprema
Corte somente em 2003. O federal Comstock Act de
1873 proibiu não apenas o aborto, mas também a
contracepção e até mesmo a disseminação de
informações sobre contracepção. A maioria dos
Estados tinha leis semelhantes. A primeira tentativa
aberta de disseminar informações e dispositivos de

223 Veja Douglas Harper, Slavery in the North, 2003, e Racial


Segregation in the United States; Jason Sokol, “The North Isn’t Better
Than the South: The Real History of Modern Racism and Segregation
above the Mason-Dixon Line,” Salon, December 14, 2014; and “Anti-
Miscegenation Laws.”
339

controle de natalidade foi feita apenas em 1916 – ou


seja, após o final do período que Rand considera o
período economicamente mais livre. E o aborto
continuou a ser ilegal até 1973.
Para dar outro exemplo contemporâneo, o
Índice de Liberdade Econômica muitas vezes
classifica Cingapura como uma das economias mais
livres, mas em medidas de liberdade pessoal e
política, Cingapura se sai bastante mal. Por que as
liberdades “pessoais” e a liberdade econômica muitas
vezes não andam de mãos dadas, permanece uma
questão em aberto.
A própria Rand é uma defensora consistente de
todas as liberdades. Escrevendo sobre as leis contra
o controle de natalidade e o aborto, argumenta que
eles negam às mulheres e aos homens o direito “à sua
própria vida e felicidade – o direito de não ser
considerado o meio para qualquer fim” – neste caso,
procriação, como criação de animais.224 Sobre o
racismo, escreve que é “a forma de coletivismo mais
baixa, mais primitiva e grosseira. É a noção de
atribuir significado moral, social ou político à
linhagem genética de um homem. [Afirma] que as
convicções, valores e caráter de um homem são

224 Rand, “Of Living Death,” The Voice of Reason: Essays

in Objectivist Thought(New York: New American Library,


1990), pp. 55, 58–59.
340

determinados antes de ele nascer, por fatores físicos


além de seu controle”.225

O ESTADO MÍNIMO VS. ANARQUISMO


Em uma sociedade libertária que respeita os
direitos, as relações humanas são voluntárias. As
pessoas são livres para cooperar ou seguir seu
próprio caminho pacífico, deixando os outros livres
para fazer o mesmo. Em tal sociedade, somente a
força de retaliação contra os violadores de direitos –
aqueles que iniciam a força ou a fraude – é
permissível. Mas o direito à retaliação não pode ser
deixado a todos os indivíduos sem arriscar o caos e
um colapso geral da sociedade. Exceto quando o
perigo é iminente, precisamos ceder esse direito ao
governo, que Rand define como “o meio de colocar o
uso de retaliação da força física sob controle objetivo
– isto é, sob leis objetivamente definidas”.
Como Rand acredita que a única função de um
governo é nos proteger de agressões ou fraudes
domésticas ou estrangeiras, ela afirma que toda
legislação deve ser limitada à proteção de nossos
direitos. O governo não tem o direito de proibir
pessoas de atividades pacíficas por motivos morais
(mesmo que as atividades sejam realmente imorais),

225 Rand, “Racism,” Virtue of Selfishness, p. 126.


341

ou forçá-las a apoiar programas sociais para “o bem


maior”. Fazer isso é violar seus direitos de viverem
como bem entenderem. Mas um governo pode ser
impedido de ultrapassar sua função adequada
apenas se for rigidamente controlado por lei –
somente se for “um governo de leis e não de
homens”.226 Em uma sociedade com tal governo, “um
indivíduo privado pode fazer qualquer coisa exceto o
que é legalmente proibido; um funcionário do governo
não pode fazer nada exceto o que é legalmente
permitido”.227 Esta é a maneira de subordinar “poder”
a “certo”.
Rand rejeita a opinião de que uma sociedade
livre deve ser anarquista, alegando que sem um
governo os indivíduos teriam que sair armados com
medo de ataques, ou se juntar a gangues, e a
sociedade se dissolveria em guerra de gangues.228
Mesmo se cada pessoa em uma dada sociedade seja
“totalmente racional e sem falhas morais”, a
sociedade não poderia funcionar como uma anarquia,
porque há sempre a possibilidade de discordâncias
honestas, e sua resolução exige “leis objetivas” e um
árbitro que todos os lados possam aceitar.229 Em Atlas
Shrugged, no entanto, Rand descreve sua utopia, a

226 Ibid., p. 109.


227 Ibid., p. 109.
228 Ibid., p. 108.
229 Ibid., p. 112.
342

Ravina de Galt (Galt’s Gulch), como uma sociedade sem


um governo: uma “associação voluntária de homens
unidos por nada, exceto o auto-interesse [racional] de
cada homem”, sem qualquer organização formal.230
Há um juiz para arbitrar divergências, embora ele
nunca tenha sido chamado para arbitrar. A Ravina de
Galt é, assim, uma sociedade anarquista, embora
Rand nunca diga isso. Talvez Rand diria que uma
pequena comunidade de pessoas de mentalidade
semelhante que se conhecem bem e dependem umas
das outras para todas as suas necessidades pode
conduzir seus próprios assuntos de forma pacífica e
justa, mas seria muito esperar o mesmo de pessoas
em uma grande sociedade, mesmo que sejam todos
racionais e comprometidos com a justiça.
Os anarquistas acusam, no entanto, que um
governo que detenha o monopólio da força de
retaliação é culpado de iniciar a força contra os
cidadãos que têm que aceitar sua regra,
independentemente de consentirem ou não. Um
governo monopolista também inicia a força contra
seus possíveis concorrentes. Como proteger direitos
proibindo o início da força é o eixo da moralidade
social de Rand, ela é inconsistente em rejeitar o
anarquismo.231 Além disso, um monopólio territorial

230Rand, Atlas Shrugged, p. 690.


231Roy Childs, “Objectivism and the State: An Open
Letter to Ayn Rand,” reprinted em Liberty Against Power:
343

sobre lei e força (governo) não é necessário, porque as


pessoas podem estabelecer um direito justo e efetivo.
A Lei Mercante, um corpo de leis estabelecido e
aplicado em tribunais privados pelos comerciantes de
vários países no final da Idade Média e no início do
Renascimento, ilustra a possibilidade de um sistema
jurídico voluntário eficaz.
Rand rejeita a ideia de “governos concorrentes”
(mais precisamente, agências de segurança
concorrentes) porque, diz ela, elas são incompatíveis
com um sistema único e objetivo de leis e, portanto,
com direitos e cooperação pacífica.232 Agências
concorrentes irão ou poderão ter sistemas de lei
concorrentes, sem meios de reconciliar as diferenças.
Essa crítica é rejeitada pelos anarquistas, que
apontam que a maior parte da lei ocidental surgiu de
sistemas de leis competitivamente evoluídos, como o
direito romano, a lei anglo-saxônica e a Lei Mercante.
Mas mesmo que Rand e outros estatistas mínimos
estejam certos de que o anarquismo é impraticável,
eles não têm defesa contra a objeção de que um
Estado de monopólio é culpado de iniciar a força.

Essays by Roy A. Childs, Jr., ed. J. Taylor (San Francisco: Fox


& Wilkes, 1969, 1994) e Murray Rothbard, For a New Liberty:
The Libertarian Manifesto, revised edition (New York:
Macmillan, 1978) [Rothbard 1978 available online (pdf)].
232 Rand, “Nature of Government,” p. 112.
344

CONCLUSÃO
O egoísmo ético cru é inconsistente com a
obrigação incondicional de respeitar os direitos dos
outros. Mas um egoísmo que vê a virtude como
parcialmente constitutiva do bem do indivíduo não
tem esse problema, e é esse tipo de egoísmo que Rand
defende em grande parte de seus escritos. Como
outros defensores de direitos negativos, Rand vê os
direitos como pretensões à liberdade de ação e não
aos resultados desejados ou mesmo desejáveis. Sua
defesa do capitalismo como um “ideal desconhecido”
é distinta em virtude de sua insistência (a) que o
capitalismo é o sistema político-econômico no qual há
uma separação completa entre o Estado e a economia
e (b) que esta separação é necessária para libertar o
indivíduo para buscar sua própria felicidade, criando
valores e negociando com os outros.
Rand argumenta que justiça e paz exigem um
Estado, mas o Estado deve ser mínimo, restrito à uma
proteção de nossos direitos. Quando vai além dessa
função básica, o próprio Estado se torna um violador
de direitos.
345

CAPÍTULO 8 - INTUICIONISMO
ÉTICO E LIBERTARIANISMO

A JUSTIFICAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES


POLÍTICAS LIBERTÁRIAS SEGUE LOGICAMENTE
A PARTIR DE INTUIÇÕES MORAIS
RELATIVAMENTE INCONTROVERSAS MANTIDAS
POR UMA AMPLA GAMA DE PESSOAS
RAZOÁVEIS.
Sou um defensor de duas visões filosóficas
controversas: a intuição ética e o libertarianismo. O
intuicionismo ético é uma teoria geral sobre a
natureza dos valores e nosso conhecimento. A teoria
é logicamente consistente com quase qualquer visão
moral ou política. No entanto, certas visões éticas são
especialmente naturais para um intuicionista
manter. Além disso, essas visões éticas se encaixam
naturalmente na filosofia política libertária. Então,
embora eu não afirme que o libertarianismo possa ser
derivado do intuicionismo ético, penso que o
intuicionismo libertário é uma posição muito natural
e coerente. No que se segue, pretendo explicar por
quê.
346

PRINCIPAIS PRINCÍPIOS DO
INTUICIONISMO ÉTICO
Escrevi extensamente sobre o intuicionismo em
outro lugar.233 Aqui, vou apenas oferecer um esboço
da visão. Duas ideias principais são centrais para
qualquer posição intuicionista ética.

REALISMO MORAL
O primeiro princípio do intuicionismo é o
realismo moral. Essa é a visão de que existem valores
objetivos (ou propriedades avaliativas objetivas, fatos
avaliativos objetivos, afirmações de valor
objetivamente verdadeiras). Ou seja, há pelo menos
algumas afirmações verdadeiras da forma “x é bom”,
“x é ruim” ou “x deve (ou não deveria) fazer y”, de tal
forma que essas afirmações não dependem de sua
verdade sobre atitudes dos observadores em relação
a x ou y.
Quem discordaria do realismo moral? Muitos
discordam. Alguns acreditam que o que é certo ou
errado é determinado inteiramente pelo que a
sociedade aprova ou desaprova. Assim, a verdade de
qualquer declaração de “deveria” sempre depende da
cultura de alguém. Outros acreditam que o que é

233 Michael Huemer, Ethical Intuitionism (New York:


Palgrave Macmillan, 2005).
347

bom, mau, certo ou errado depende das atitudes do


indivíduo. Outros acreditam que as afirmações
avaliativas, em geral, não são verdadeiras e nem
falsas. Finalmente, alguns acreditam que todas as
afirmações avaliativas (positivas) são falsas, porque,
na realidade, nada tem propriedades avaliativas.234
Essas visões são conhecidas, respectivamente, como
relativismo, subjetivismo, não-cognitivismo e
niilismo. O intuicionista rejeita todas essas quatro
visões.
Qual seria um exemplo de uma verdade
avaliativa objetiva? Durante a década de 1970, Ted
Bundy, um dos mais notórios psicopatas da história,
assassinou uma série de mais de trinta mulheres,
aparentemente para fins de entretenimento. (Ele foi
finalmente executado na Flórida em 1989.) O
comportamento de Bundy era, para dizer o mínimo,
extremamente ruim e errado. Essa não é uma
afirmação indeterminada (nem verdadeira e nem
falsa), e certamente não é uma afirmação falsa; é
verdade. E não é verdade porque a sociedade diz isso.
Em vez disso, se nossa sociedade de alguma forma
aceitasse o comportamento de Bundy, nossa
sociedade estaria terrivelmente desorientada. Nem é
verdade porque eu disse isso. Se eu, de alguma forma,

234 Uma afirmação positiva diz que algo tem alguma

propriedade, enquanto uma afirmação negativa nega que


algo tenha alguma propriedade.
348

aprovasse Bundy, estaria terrivelmente desorientado


também. Em geral, “as ações de Bundy eram ruins” é
verdadeiro independentemente das atitudes dos
observadores. Existem muitos exemplos
semelhantes.

INTUIÇÃO E CONHECIMENTO MORAL


O segundo princípio fundamental do
intuicionismo diz que a intuição ética nos permite
obter conhecimento de pelo menos algumas das
verdades avaliativas objetivas. Há mais de um
entendimento de “intuição ética” aqui, vou apenas
esboçar meu próprio entendimento. Na minha
opinião, uma intuição ética é um tipo de aparência.
Uma aparência é um tipo de estado mental, em que
algo parece ser o caso. Essa aparência difere da
crença, porque é possível acreditar ou não acreditar
no que parece ser o caso. Aparências geralmente
causam crenças.
Existem várias espécies de aparências,
incluindo sensoriais, mnemônicas e intelectuais. Por
exemplo, quando vejo um esquilo fora da minha
janela, tenho uma aparência sensorial na qual parece
que um esquilo está do lado de fora da janela. Quando
penso de volta sobre esta manhã, tenho uma
aparência mnemônica em que me lembro ter um
delicioso tofu mexido para o café da manhã. Quando
349

penso em geometria, tenho uma aparência intelectual


na qual me parece que o caminho mais curto entre
dois pontos deve ser uma linha reta.
Esse último é um exemplo de uma “intuição”
(no sentido técnico dos filósofos). Uma intuição é uma
aparência inicial e intelectual. Ou seja, é um estado
mental em que algo parece ser o caso da reflexão
intelectual, em que essa aparência não depende de
uma inferência para essa conclusão. Quando penso
sobre qual é o caminho mais curto entre dois pontos,
não me engajo no argumento de que deve ser uma
linha reta; em vez disso, parece imediatamente óbvio
que deve ser uma linha reta.
Uma “intuição ética” é simplesmente uma
intuição de alguma proposição avaliativa. É uma
aparência intelectual inicial de que algo é bom, ruim,
certo ou errado. Por exemplo, quando reflito, parece
óbvio que o prazer é intrinsecamente bom (bom para
o próprio bem-estar).
Todas as crenças racionais são baseadas em
aparências. Com poucas exceções, quando você
acredita que P, você acredita nisso porque lhe parece
que P, ou talvez porque lhe parece que Q, e parece-
lhe que Q suporta P (ou parece-lhe que R, e parece-
lhe que R suporta Q, e parece-lhe que Q suporta P,
etc.). Sua crença é causada e baseada em uma ou
mais aparências.
350

As exceções são casos em que você forma


crenças baseadas em emoções, desejos, saltos de fé
ou alguma fonte obviamente não racional. Nenhuma
outra alternativa existe. (Não existe, por exemplo, a
alternativa de uma crença baseada em uma série
infinita de outras crenças ou uma crença baseada em
um fato que nunca é apresentado em nenhuma
aparência).
Uma crença é justificada, na minha opinião,
desde que seja baseada em uma aparência que não
se tem motivos para duvidar. Se P parece verdadeiro
para você, e não há razões para duvidar de P ou
duvidar da confiabilidade da aparência, então faz
sentido acreditar em P.235 Crenças éticas são às vezes
justificadas, porque às vezes a pessoa tem a intuição
de que x é bom (ou ruim, ou certo, ou errado), e não
há razão para duvidar disso.
Há mais a dizer sobre o conhecimento, mas o
precedente é a parte mais importante. Quando
perguntamos: “Como sabemos x? ”, A principal coisa
que queremos saber é como estamos justificados em
acreditar em x (essa é uma condição essencial crucial
para o conhecimento). O precedente explica como às

235 Veja Michael Huemer, Skepticism and the Veil of


Perception (Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 2001),
pp. 98–115; and Michael Huemer, Compassionate Phenomenal
Conservatism, Philosophy and Phenomenological Research
74 (2007): 30–55.
351

vezes somos justificados em acreditar em verdades


avaliativas.

CONTRA A TEORIA
Além dos dois pontos essenciais acima, há um
terceiro aspecto importante da abordagem adotada
por muitos intuicionistas (inclusive por mim): os
intuicionistas tendem a ser antiteoréticos. Ou seja,
tendemos a pensar que juízos concretos,
relativamente específicos, têm precedência sobre os
julgamentos gerais e teóricos.236 A que essa
“prioridade” equivale? Quatro coisas intimamente
relacionadas podem ser ditas para explicá-la.
Em primeiro lugar, a forma como a cognição
humana normalmente funciona é a de que chegamos
a conhecer as coisas concretas e específicas primeiro,
e as gerais, as abstratas, mais tarde – se é que são.
De fato, a justificativa para uma teoria geral
geralmente depende de nossa primeira crença
justificada sobre casos específicos. Por exemplo, para

236 H. A. Prichard’s, Moral Obligation (Oxford, UK:


Clarendon, 1957) em um caso extremo; cf. Jonathan
Dancy, Moral Particularism, em Stanford Encyclopedia of
Philosophy, ed. Edward N. Zalta, 2013, . Nem todos os
intuicionistas compartilham essa visão, mas a visão é
muito mais comum entre os intuicionistas do que entre os
outros filósofos.
352

ser justificado ao aceitar alguma explicação geral do


que é a justiça, é preciso primeiro conhecer muitos
casos individuais do que seria uma ação justa ou
injusta.
Segundo, juízos específicos são geralmente
mais confiáveis e mais justificados do que
julgamentos teóricos gerais. Considere crenças sobre
o mundo físico para começar. Quase toda teoria sobre
o mundo físico que foi aceita foi errada (a física de
Aristóteles, a astronomia ptolomaica, a teoria dos
quatro elementos, etc.). Por outro lado, das crenças
sobre objetos físicos específicos (“aquele gato é
peludo”, “as maçãs estão no balcão”, “um rio está na
base do morro”, etc.), provavelmente quase todas
estão corretas. Penso que o mesmo acontece em
quase todos os campos: a maioria das teorias
abstratas é falsa, enquanto a maioria dos
julgamentos concretos é verdadeira. O histórico das
teorias filosóficas, a propósito, é especialmente ruim.
Terceiro, como um corolário dos dois pontos
anteriores, se você tem uma teoria geral que acaba
por entrar em conflito com o julgamento que você
estaria inclinado a aceitar sobre algum caso
particular, então, quase sempre, a teoria está errada.
Por exemplo, digamos que você aceite inicialmente a
teoria de que nenhuma pessoa deve violar os direitos
de outra pessoa (incluindo direitos de propriedade).
Em seguida, você considera um caso em que uma
353

pessoa atravessando o terreno de outra pessoa é uma


invasão necessária para levar alguém ao hospital
durante uma emergência médica. De imediato, a
invasão parece boa, embora seja uma violação do
direito de propriedade do proprietário do terreno.
Você pode revisar sua teoria para aceitar que a
violação dos direitos de alguém é, às vezes,
permissível, ou pode manter sua posição e insistir
que a invasão estava errada. A primeira escolha é a
correta.
Quarto, suponha que você esteja interessado
na resposta a alguma pergunta relativamente
específica (digamos, qual é a política de imigração
correta?). Normalmente, você deve tentar responder à
pergunta usando as premissas mais concretas que
fornecerão uma resposta (e que também são
altamente plausíveis). Você normalmente não deve
fazer um desvio através de alguma teoria muito geral
(digamos, uma teoria geral de quando a coerção é
justificada). Como regra geral, esses desvios o
tornarão muito menos propenso a chegar à
verdade.237 Outra maneira de colocar o ponto
metodológico é: não responda mais do que o

237Nenhuma dessas coisas é uma verdade universal


e necessária. Há indubitavelmente alguns casos em que
um julgamento teórico prevalece sobre julgamentos
concretos, em cada um dos quatro sentidos aqui
mencionados.
354

necessário. Quando perguntado se as restrições à


imigração são justificadas, você não precisa
responder quando, em geral, um ato coercitivo é
justificado, o que geralmente é o certo ou qual é a
natureza da justiça. Então não são justificadas.
Por que, então, estive abordando questões
teóricas e abstratas ao longo desta seção? Será que
realmente precisamos abordar essas questões para
descobrir qual é a melhor ideologia política?
Não, não precisamos. Você poderia seguir meu
argumento para o libertarianismo sem conhecer o
intuicionismo. Meu livro sobre filosofia política nunca
menciona o intuicionismo. Mas para este capítulo, fui
especificamente solicitado a abordar a relação entre o
intuicionismo e o libertarianismo. E é verdade que
minhas opiniões sobre esses dois assuntos são
coerentes. Mas acho que você deveria ser um
libertário independente se o intuicionismo é
verdadeiro ou não, e acho que você deveria ser um
intuicionista independente se o libertarianismo é
verdadeiro ou não.

POR QUE LIBERTARIANISMO? O


ARGUMENTO DO CETICISMO SOBRE A
AUTORIDADE
355

Eu discuti extensivamente o caso do


libertarianismo.238 Aqui, esboçarei brevemente
minhas razões para endossar uma filosofia política
libertária, com especial atenção a como essas razões
são coerentes com uma abordagem intuicionista da
ética.

O PAPEL DA MORALIDADE DO SENSO


COMUM NA FILOSOFIA POLÍTICA
Acredito que a filosofia política deva partir da
ética: para descobrir como o governo deve se
comportar em alguma situação, devemos primeiro
refletir sobre como achamos que as pessoas devem se
comportar em situações análogas, porque o governo é
apenas um certo grupo de pessoas. Além disso, a
ética, como sugeri anteriormente, deve partir de
nossas intuições éticas, isto é, das proposições éticas
que parecem óbvias na reflexão.
Às vezes, as intuições éticas de um indivíduo
entram em conflito com as intuições de outras
pessoas. Esse conflito é particularmente comum
quando se trata de intuições que se baseiam em
questões políticas controversas. De particular
importância, aqueles de diferentes ideologias políticas

238 Michael Huemer, The Problem of Political


Authority (New York: Palgrave Macmillan, 2013).
356

frequentemente terão intuições éticas conflitantes.


Por exemplo, os da esquerda e os da direita do
espectro político tendem a ter diferentes intuições
sobre o valor da igualdade: os pensadores de
esquerda acham intuitivamente que as desigualdades
de riqueza são intrinsecamente problemáticas, ao
passo que os pensadores de direita são muito menos
propensos a ver qualquer problema intuitivo nisso.
Dado o realismo moral, as intuições de alguém
devem estar equivocadas. No entanto, não temos uma
boa razão para supor que outras pessoas tenham
muito mais probabilidade de ter intuições
equivocadas do que nós mesmos. Portanto, na
pendência de mais argumentos, devemos reter o
julgamento sobre questões controversas em que as
intuições das pessoas divergem radicalmente,
especialmente quando as intuições divergem ao longo
de linhas ideológicas.
Em que, então, devemos basear nossas crenças
éticas? Uma abordagem metodológica natural é a
seguinte: devemos buscar as intuições éticas menos
controversas e tentar construir outras crenças
normativas sobre elas. No campo da política, é
especialmente importante buscar premissas
avaliativas que pareçam corretas para pessoas
razoáveis de diferentes inclinações ideológicas, sejam
da esquerda, da direita, libertárias ou qualquer outra
coisa. Nenhuma premissa é aceita por todos, mas se
357

alguma premissa ética parece óbvia para a grande


maioria das pessoas, independentemente de sua
orientação política, então essa premissa deve ser
considerada correta, a menos e até que tenhamos
boas razões para pensar de outra forma. Além disso,
as ideias apresentadas anteriormente sugerem que
estas devem ser principalmente juízos éticos
intuitivos sobre casos específicos. Se temos uma
intuição difundida e específica, esse é um ponto de
partida razoável; nenhuma outra teoria ou argumento
é necessária.

ALGUMAS INTUIÇÕES ÉTICAS SENSO


COMUM
Aqui está um exemplo. Imagine que eu moro em
uma aldeia que tem algumas pessoas pobres que não
estão sendo adequadamente cuidadas. Suponha que
eu vá à vila exigindo contribuições para uma
instituição de caridade que administro para ajudar os
pobres. Se alguém se recusa a contribuir, sequestro-
os com uma arma e tranco-os em uma gaiola por um
longo período. Qual é o status moral do meu
comportamento?
A maioria das pessoas intui que esse
comportamento estaria errado. É claro que é louvável
administrar uma instituição de caridade para ajudar
os pobres; o que não é permitido é coletar
358

contribuições pela força e prender não-contribuintes.


Não é preciso fornecer uma teoria do porque isso é
errado, nem argumentar que é errado, porque parece
errado para quase todos, independentemente de
alguém ser de esquerda, de direita, libertário ou
outro, e essa aparência é suficiente para uma crença
justificada na ausência de fundamentos específicos
para a dúvida.
Na verdade, meu comportamento nesse cenário
parece análogo ao de um governo arrecadando fundos
para programas de bem-estar social por meio de
impostos, onde aqueles que se recusarem a pagar os
impostos serão sequestrados e presos. A partir daqui,
torna-se o ônus daqueles que apoiam tais ações do
governo explicarem por que essas ações são
moralmente permissíveis, seja mostrando como as
ações do governo são realmente diferentes das ações
em meu exemplo (de uma maneira que torna o
comportamento do governo muito melhor) ou
mostrando como as ações em meu exemplo são
realmente justificadas (embora isso seja muito difícil).
Se os defensores dos programas de bem-estar social
do governo não puderem cumprir esse ônus, então
devemos concluir que os programas de bem-estar
social do governo são inadmissíveis.
Note como esse argumento difere do tipo de
argumentos tradicionalmente levantados por teóricos
libertários dos direitos absolutos, como Murray
359

Rothbard, Ayn Rand e (talvez) Robert Nozick.239 Eles


argumentam, grosso modo, que é sempre errado
iniciar a coerção e como a tributação exige o início da
coerção, a tributação deve estar errada. Em
contrapartida, defendo que, como a taxação com o
objetivo de apoiar os programas de bem-estar social é
análoga a um comportamento que pareceria errado se
fosse feito por alguém que não o governo, há uma
presunção de que tal tributação está errada. É o ônus
daqueles que apoiam programas de assistência social
refutar essa presunção.
Meu argumento, penso, tem um ponto de
partida ético mais confiável. É claro que isso também
torna o restante do argumento mais difícil, porque
precisamos ouvir o que os defensores dos programas
de bem-estar social têm a dizer em sua defesa e
porque nunca podemos ter certeza de que eles não
criarão um novo argumento para o porquê dos
programas de bem-estar social do governo serem
realmente não análogos ao comportamento
aparentemente errado do meu exemplo.
Esse tipo de argumento pode ser feito em nome
de qualquer uma das posições políticas libertárias
padrão. As políticas que os libertários defendem para

239 Veja Murray Rothbard, For a New Liberty (Lanham,


MD: University Press of America, 1978); Ayn Rand, Atlas
Shrugged (New York: Signet, 1957); e Robert Nozick, Anarchy,
State, and Utopia (New York: Basic Books, 1974).
360

o governo são apenas as políticas que quase qualquer


um defenderia para qualquer agente privado; Assim,
é fácil argumentar que deveria haver uma presunção
em favor das políticas libertárias. Considere mais três
exemplos:240
1. Imagine que declaro a todos na minha aldeia
que ninguém pode consumir certas substâncias que
determinei serem prejudiciais. Então passo por aí
sequestrando pessoas que consomem essas
substâncias e as prendo em gaiolas por anos a fio.
Este comportamento da minha parte parece
inaceitável. Mas na verdade, o comportamento é
análogo à política do governo de proibir as drogas.
Portanto, isso estabelece a presunção de que a
proibição das drogas também é inadmissível.
Observe que meus sequestros não seriam
permitidos por mostrar que as substâncias nocivas
são realmente ruins para a saúde de meus vizinhos.
Tampouco seriam permissíveis se mostrasse que

240 Eu discuti cada uma dessas questões com muito


mais profundidade em outro lugar. Para uma exposição
mais completa dos argumentos sobre a proibição das
drogas, veja Michael Huemer, America’s Unjust Drug War, em
The New Prohibition, ed. Bill Masters (St. Louis, MO:
Accurate Press, 2004), pp. 133–44. Sobre controle de
armas, veja Michael Huemer, Is There a Right to Own a
Gun? Social Theory and Practice 29 (2003): 297–324. Sobre
imigração, veja Michael Huemer, Is There a Right to
Immigrate? Social Theory and Practice 36 (2010): 429–61.
361

alguns dos meus vizinhos perderam o emprego e


perderam a vida porque amavam muito essas
substâncias nocivas. Como esse tipo de motivo não
seria suficiente para me dar o direito de sequestrar
meus vizinhos e mantê-los prisioneiros, prima facie,
eles também não dão ao governo o direito de fazê-lo.
2. Imagine que declaro que estou proibindo
qualquer um dos meus vizinhos de possuir certos
tipos de armas (embora eu próprio tenha algumas
dessas armas). Então descubro que meu vizinho ao
lado tem uma das armas proscritas. Logo, sequestro-
o com uma arma e, novamente, tranco-o em uma
gaiola. Essa ação parece errada da minha parte.
Também parece análogo ao comportamento do
governo ao promulgar e impor suas leis de controle de
armas.
É plausível que meu sequestro fosse
permissível se tivesse fortes evidências de que meu
vizinho ao lado em particular estava planejando
matar uma pessoa inocente, e prendê-lo era minha
única maneira de evitar o tiroteio. Mas não posso
sequestrar e aprisioná-lo apenas porque algumas
outras pessoas no país (uma pequena proporção de
todos que possuem tais armas) usaram os tipos de
armas em questão para cometer crimes. Assim, prima
facie, o governo também não se justifica em prender
pessoas simplesmente porque possuem armas que
outras pessoas usaram para cometer crimes.
362

3. Imagine que eu saiba que uma pessoa


faminta, Marvin, está planejando ir até o comércio
local para comprar comida. Eu sei que alguns
comerciantes estão dispostos a negociar com Marvin,
permitindo-lhe satisfazer suas necessidades. Eu, no
entanto, abordo Marvin no caminho, forçando-o a não
ir ao comércio. Como resultado, Marvin passa fome.
Esse comportamento da minha parte estaria
seriamente errado; Eu então seria responsável pela
fome de Marvin. Este exemplo é análogo às restrições
de imigração do governo. Imigrantes em potencial
gostariam de entrar no país, onde há pessoas que
estão dispostas a negociar com eles e, assim, ajudá-
los a satisfazer suas necessidades. O governo dos
EUA contrata guardas armados para impedir que
esses indivíduos entrem no país para trabalhar.
Note que meu tratamento a Marvin não se
tornaria permissível por nenhuma das seguintes
considerações: (a) Eu queria impedir que algumas das
pessoas que já estavam no mercado tivessem que
competir com Marvin economicamente, (b) eu temia
que Marvin pudesse influenciar a cultura do mercado
de maneiras que não gostaria, e (c) estava preocupado
que se Marvin chegasse ao mercado, eu mesmo daria
a ele alguma comida grátis por causa de um programa
de caridade que administro para ajudar os pobres.
Todas essas considerações seriam justificativas
absurdas para minha interferência coercitiva a
Marvin. Mas elas são análogas às justificativas mais
363

comuns oferecidas pelas restrições à imigração (os


imigrantes competem com trabalhadores norte-
americanos pobres, os imigrantes podem mudar
nossa cultura, os imigrantes consomem os benefícios
do governo). Então, prima facie, essas razões também
não justificam a intervenção coercitiva do governo.

AUTORIDADE POLÍTICA
Parece, então, que a diferença essencial entre
libertários e não-libertários é que os libertários
aplicam os mesmos padrões éticos ao comportamento
do governo que eles aplicam ao comportamento dos
agentes não-governamentais, enquanto os não-
libertários acreditam que o governo é especial de uma
forma que isenta algumas das restrições morais que
se aplicam a outros agentes.
Esse status moral especial que o governo
acredita ter tem um nome: “autoridade” – mais
especificamente, “autoridade política”. O governo
pode pegar seu dinheiro e você é obrigado a entregá-
lo, porque o governo tem autoridade. Eu não posso
pegar seu dinheiro, e você não tem obrigação de
entregá-lo para mim, porque não tenho nenhuma
autoridade. Note que aqueles que acreditam na
autoridade pensam que somos obrigados a obedecer
à lei, e o governo tem o direito de fazer cumprir a lei,
mesmo quando a lei é equivocada (dentro dos
364

limites).241 Não é apenas que você deve seguir as leis


que são realmente benéficas, sábias ou justas; você
deve ser obrigado a seguir a lei só porque é a lei.
Assim, outra maneira de descrever a motivação
central do libertarianismo é a seguinte: os libertários
são céticos quanto à autoridade. Minha defesa do
libertarianismo parte da suposição de que esse
ceticismo é justificado, a menos e até que alguém
possa articular uma explicação satisfatória para a
autoridade do governo. De fato, afirmo, ninguém
pode: todas as tentativas de explicar por que o
governo é especial, de tal modo que ele pode fazer
coisas que nenhum outro agente pode fazer,
falharam.
Obviamente, não posso discutir todas as
tentativas possíveis, embora tenha discutido as
tentativas mais importantes em outros lugares.242
Aqui, esboçarei brevemente três dessas tentativas e
como elas fracassam.
A teoria implícita do contrato social. Alguns
argumentam que o governo pode nos coagir de várias

241 Talvez se o erro na lei se tornar excessivo – por


exemplo, se você receber uma ordem de participar de um
genocídio – não terá mais que seguir a lei. Mas a doutrina
da autoridade significa que o governo tem substancial
margem de manobra, uma ampla gama dentro da qual
pode cometer erros e ainda temos que obedecê-lo.
242 Huemer, Problem of Political Authority, caps. 2–5.
365

formas, porque todos nós concordamos em conceder


ao governo esse direito, em troca de o governo nos
proteger. Esta é a teoria do contrato social.
Geralmente, diz-se que aceitamos este contrato
“implicitamente”, talvez usando serviços
governamentais ou vivendo na área geográfica que o
governo controla, ou simplesmente evitando protestar
explicitamente.
Na doutrina do contrato padrão, como se aplica
em qualquer outro contexto, existem pelo menos três
princípios importantes sobre contratos válidos:
• Ambas as partes devem ter um modo razoável
de desistir, uma parte não pode ser obrigada a
assumir custos enormes que a outra parte não tem
direito independente de impor a ele. Por exemplo, não
posso fazer uma oferta de emprego e declarar que, se
você não concordar em trabalhar para mim, deverá
sinalizar essa não concordância cortando seu braço
esquerdo; esse não é um modo razoável para poder
desistir.
• Se uma parte declarar explicitamente que não
concorda, não se pode afirmar que ele concordou
implicitamente de qualquer forma.
• Ambas as partes devem assumir obrigações
entre si, e se uma parte explicitamente repudiar suas
obrigações sob o contrato, a outra parte não estará
mais obrigada a fazer sua parte.
366

O contrato social putativo viola todos os três


princípios. Primeiro, porque os governos assumiram
o controle de todas as massas de terra habitáveis do
planeta, não há como sair por isso. Em segundo
lugar, mesmo que você afirme explicitamente que não
concorda, o governo ainda imporá suas condições a
você. Terceiro, o governo não reconhece nenhuma
obrigação de fazer nada por você. Esta posição foi
estabelecida em vários processos judiciais em que os
querelantes processaram o governo por falhar
negligentemente em protegê-los; em cada caso, o
tribunal negou sumariamente o processo alegando
que o governo não é obrigado a proteger qualquer
indivíduo específico.243
A teoria do contrato hipotético. Esta teoria é talvez
a visão mais popular entre os filósofos políticos
contemporâneos, principalmente por causa do
trabalho de John Rawls. Nessa teoria, o governo tem
autoridade porque teríamos concordado com o
contrato social, em um cenário hipotético em que
todos éramos perfeitamente razoáveis e decidimos
sobre os princípios fundamentais de nossa sociedade.

243 Convido o leitor a ler essa decisão judicial


maravilhosa: Warren v. District of Columbia, 444 A. 2d 1, D.C.
Ct. of Ap. (1981); Hartzler v. City of San Jose, 46 Cal. App.
3d 6 (1975); DeShaney v. Winnebago County, 489 U.S. 189
(1989); and Riss v. New York, 22 N.Y. 2d 579, 293 (1968).
367

Isso é importante porque o fato de concordarmos com


algum acordo mostra que o acordo é justo e razoável.
Imagine que eu faça uma oferta de emprego.
Minha oferta é tão justa e razoável que qualquer
pessoa razoável aceitaria. No entanto, você recusa.
Agora é permissível que eu force você a aceitar minha
oferta (ou seja, escravizar você), em virtude do fato de
que foi uma oferta justa e razoável, com a qual você
teria concordado em um certo cenário hipotético? Se
não, então, de que relevância moral é um contrato
hipotético?
A autoridade da democracia. Alguns afirmam que
somos obrigados a obedecer às leis porque elas foram
feitas democraticamente e, portanto, refletem a
vontade da maioria das pessoas. Agora, essa última
afirmação é ingênua; muitas leis na verdade não
refletem a vontade da maioria por uma variedade de
razões.244 Mas deixemos isso de lado e assumamos
que alguma lei particular reflete a vontade da maioria.
E daí?
Imagine que resolvo sair com um grupo de nove
amigos até um bar. Nós acumulamos uma fatura de
consumo, e surge a questão de como a fatura deve ser
dividida: deve ser dividida igualmente ou cada pessoa
deve pagar pelo que pediu? Um dos meus amigos

244 Para algumas dessas razões, veja


Huemer, Problem of Political Authority, pp. 72–73, 209–21.
368

propõe que eu pague 70% da conta, com o restante


sendo dividido entre os outros. Eu recuso. (Não pedi
nada perto de 70% das bebidas). Eles votam.
Acontece que todos na mesa, exceto eu, querem que
eu pague a maior parte da conta. Sou agora obrigado
a pagar os 70%? Os outros têm o direito de me obrigar
a fazer isso? Se não, então, de que relevância é a
vontade da maioria?
É claro que há mais a dizer sobre cada uma
dessas teorias e há mais teorias a serem
consideradas. Mas as coisas são as mesmas com
todos os argumentos em defesa da autoridade: eles se
baseiam em afirmações que, por um momento, não
seriam consideradas plausíveis em nenhum outro
contexto.
O resultado do fracasso de todos os relatos
sobre autoridade é que a presunção libertária
permanece. Isto é, como ninguém pode explicar
satisfatoriamente por que o governo deveria estar
isento das regras morais que se aplicam a todos os
outros, devemos, de fato, julgar o governo de acordo
com as mesmas regras que aplicamos aos outros.
Como as políticas libertárias parecem obviamente
corretas para qualquer agente não-governamental, o
governo também deve adotar políticas libertárias.

ESTADO MÍNIMO OU ANARQUIA?


369

Alguns libertários são estatistas mínimos: eles


acreditam que devemos ter um governo limitado para
impor os direitos negativos das pessoas de serem
livres de força e fraude. Outros libertários, inclusive
eu, são anarquistas: acreditamos que a sociedade
ideal é aquela em que as funções do estado mínimo
foram privatizadas.
Apresentar os argumentos em ambos os lados
desse debate está além do escopo deste capítulo. Aqui
vou apenas comentar sobre o locus central da disputa
e o que isso tem a ver com o intuicionismo ético. A
resposta a essa pergunta é “muito pouco” – a disputa
entre anarquistas e estatistas mínimos recorre
principalmente a questões empíricas da ciência
social, e não a quaisquer crenças diferentes
(intuitivas ou não) sobre ética.
A maioria dos estatistas mínimos acredita que
o governo é necessário para impedir uma quebra
completa da ordem social. A maioria dos anarquistas
acredita que uma sociedade pacífica e ordeira é
possível sem o governo, porque as funções de prover
segurança e resolver disputas podem ser
privatizadas. Anarquistas razoáveis concordam que
se o governo fosse necessário para prover ordem e
segurança, então a sociedade deveria ter governo. E
estatistas mínimos razoáveis concordam que se o
governo não fosse necessário para fornecer ordem e
segurança, então a sociedade não deveria ter governo.
370

A moralidade do senso comum é suficiente para


justificar o libertarianismo – isto é, para mostrar que,
no máximo, um estado mínimo é justificado – ou
assim afirmo. A moralidade do senso comum não é,
no entanto, suficiente para justificar o anarquismo.
Para justificar o anarquismo, deve-se, além disso,
apoiar a crença empírica de que a provisão privada de
ordem e segurança é viável. Esta última é uma tarefa
complicada, na qual as intuições éticas não têm,
essencialmente, nenhum papel a desempenhar. Por
isso, então, não direi mais nada.

O ARGUMENTO DO PROGRESSO MORAL


Um argumento importante para o realismo
moral é baseado no fenômeno observado do progresso
moral.

O FENÔMENO DO PROGRESSO MORAL


Ao longo do período da história da humanidade
– se olhamos para a escala de décadas, séculos ou
milênios – vemos mudanças significativas em valores
e práticas. Essas mudanças não são aleatórias; elas
parecem estar nos movendo consistentemente em
371

uma direção específica e são consistentes em todas as


sociedades em todo o mundo.245
A direção da mudança moral pode ser descrita
amplamente como uma liberalização de valores e
práticas. “Liberalismo”, como uso o termo aqui,
refere-se a uma certa orientação ética ampla (não
confundir com “liberalismo” na política americana
contemporânea), caracterizada por três valores
principais: (a) compromisso com a igualdade moral
das pessoas; (b) respeito pela dignidade e direitos das
pessoas, e (c) relutância em recorrer à força ou
violência.
A liberalização dos valores é consistente em
muitos assuntos diferentes. Por exemplo, a
escravidão disseminou-se ao longo da história
humana, mas nos últimos dois séculos foi abolida em
todas as nações do mundo. Guerras de conquista
eram comuns ao longo da história e muitas vezes
consideradas (pelo menos quando bem sucedidas)
como gloriosas e viris; No entanto, a guerra tornou-se
cada vez mais rara ao longo do último século e,

245 Veja Steven Pinker, The Better Angels of Our Nature:


Why Violence Has Declined (New York: Viking, 2011); e
Huemer, Problem of Political Authority, pp. 321–24. Para mais
detalhes do argumento proposto nessa seção, veja Michael
Huemer, A Liberal Realist Answer to Debunking Skeptics: The
Empirical Case for Realism Philosophical Studies173 (2016):
1983–2010.
372

especialmente, nas últimas décadas, e praticamente


ninguém mais considera a guerra de conquista como
honrosa.
Alguns dos maiores impérios do mundo
(principalmente o Império Britânico e o Império
Francês) foram renunciados no século passado. O
preconceito com base em raça, sexo, religião e outras
características diminuiu drasticamente nas últimas
décadas, especialmente após o movimento pelos
direitos civis.
O combate de gladiadores era uma forma
comum e aceita de entretenimento na Roma antiga, e
não parecia ocorrer a alguém na época que forçar
homens a lutar até a morte estivesse errado.
Duzentos anos atrás, os homens lutavam em duelos
para acertar questões de honra, e muitas coisas
foram vistas como razões suficientes para iniciar tal
combate mortal. Hoje, apenas uma pessoa louca
endossaria combate de gladiadores ou duelo. Ao longo
da história, quase todos os governos eram ditaduras;
hoje, a democracia tomou cerca de metade do mundo
e continua a se expandir.
Algumas dessas mudanças ocorreram nas
últimas décadas, algumas nos últimos séculos e
algumas ao longo de milênios. Mas praticamente
todas as grandes mudanças de valores estão na
direção do liberalismo, e essa tendência é mundial.
373

Pode ser a tendência mais importante e interessante


em toda a história humana.

A EXPLICAÇÃO DO PROGRESSO MORAL


O que explica a tendência? Não posso abordar
todas as explicações que alguém possa oferecer. Em
vez disso, declararei apenas o que penso ser a melhor
explicação: os valores e práticas humanas tornaram-
se progressivamente mais liberais, porque o
liberalismo é a postura moral objetivamente correta.
Ao longo da história, os seres humanos fizeram
progressos dramáticos em quase todas as áreas do
esforço intelectual. Em todas as ciências,
matemática, estudo da história e filosofia, o
pensamento humano tornou-se dramaticamente
mais sofisticado. Na maioria das áreas, sabemos
agora que as teorias que antes eram aceitas estavam
quase completamente erradas. Então, se existem
fatos éticos, poderíamos razoavelmente esperar que
na ética, também, os seres humanos progrediriam
gradualmente de teorias que estavam quase
completamente erradas para teorias que são mais
sofisticadas e precisas.
Aqui está um relato mais detalhado de como
ocorre o progresso moral. Os valores humanos são
influenciados por uma variedade de fatores, além de
intuições puramente racionais. Esses outros fatores
374

incluem instintos, emoções, tradições culturais e


interesse próprio. Os outros fatores atuam como
vieses, o que levou os seres humanos primitivos a
terem visões éticas que estavam equivocadas. No
entanto, como os seres humanos também possuem
uma capacidade de intuições éticas racionais
baseadas na reflexão intelectual, e porque alguns
indivíduos são mais racionais do que outros, haverá
periodicamente indivíduos que veem algo errado com
os valores de sua sociedade. Esses indivíduos não
veem toda a verdade moral; eles ainda são
influenciados por vários vieses, e acharão
psicologicamente difícil adotar uma posição muito
longe das normas vigentes em sua sociedade. Eles
apenas se aproximam da verdade moral em relação
ao resto de sua sociedade, porque são, por definição,
menos tendenciosos do que o membro médio de sua
sociedade. Esses indivíduos então iniciam
movimentos para reformar sua sociedade. Foi o que
ocorreu no caso do movimento abolicionista, do
movimento sufragista das mulheres e do movimento
pelos direitos civis, por exemplo. Os reformadores
morais tenderão a mover sua sociedade pelo menos a
certa distância na direção da justiça.
Uma vez que esse movimento tenha ocorrido,
uma nova norma cultural é estabelecida, uma mais
próxima da verdade moral que a antiga. Nesse ponto,
uma nova geração de reformadores morais pode
surgir, novamente vendo algo que está errado em sua
375

sociedade, e novamente adotando uma posição um


pouco mais próxima da verdade moral do que o resto
de sua sociedade adotou.
Por esse tipo de processo, a sociedade se
aproxima progressivamente da postura moral correta
ao longo do tempo. Acrescente a isso a suposição de
que o liberalismo é, de fato, a verdade moral, e temos
uma explicação para por que as sociedades em todo
o mundo terem se liberalizado ao longo das décadas
e séculos.
Essa explicação depende da suposição de que
existe uma verdade moral objetiva (ou pelo menos
universal), a qual podemos ter acesso por meio da
intuição ética. Se, como afirmo, não há melhores
explicações para a tendência histórica, então temos
razão para adotar essa suposição. Em geral, é
razoável postular as coisas necessárias para explicar
(bem) os fatos observados.

LIBERTARIANISMO COMO UM
LIBERALISMO COERENTE
Então, um dos meus principais argumentos
para o realismo moral é também um argumento para
o liberalismo como a postura moral correta. Agora,
qual é a relação entre liberalismo e libertarianismo?
A resposta é que, como uso os termos, o
libertarianismo é uma espécie de liberalismo. Além
376

disso, é a forma mais coerente de liberalismo, ou


assim devo dizer. Portanto, se o liberalismo estiver
correto, provavelmente o libertarianismo está correto.
Lembre-se de que atribuí as três atitudes
interligadas “liberais”:
1. Compromisso com a igualdade moral das
pessoas;
2. Respeito pela dignidade do indivíduo;
3. Aversão à coerção.
Todos esses valores estão em tensão com o
conceito de autoridade política. Não quero dizer que
um liberal não possa acreditar na autoridade, mas
que a rejeição da autoridade se adapta melhor ao
liberalismo. Dado que a motivação central do
libertarianismo, como entendo-o, é ceticismo sobre
autoridade, o libertarianismo é, nessa medida, uma
forma mais coerente de liberalismo do que qualquer
forma que abraça a autoridade.
Agora, por que a noção de autoridade está em
tensão com o liberalismo? A doutrina da autoridade
política é fundamentalmente anti-igualitária. Atribuir
autoridade política a algum agente é explicitamente
colocar esse agente acima dos outros, de tal forma
que o agente tenha o direito de ordenar todos os
demais, e outras pessoas têm de fazer o que o agente
diz apenas porque esse agente o diz. Esta doutrina
377

parece impugnar a dignidade de todos que estão


“debaixo” da autoridade, na medida em que devem
seguir as instruções da figura de autoridade,
independentemente do seu próprio julgamento e
independentemente de as instruções da figura de
autoridade serem realmente corretas.
Isso é verdade para todos os tipos de
“autoridade”? Acho que não; Acho que a crítica se
aplica apenas a formas de autoridade que, como a
autoridade política, são impostas à força. Por outro
lado, por exemplo, a autoridade de um gerente sobre
um funcionário normalmente não é objetivamente
desigual, porque a autonomia do funcionário é
respeitada na forma de sua escolha quanto a se
comprometer com o relacionamento empregado-
empregador, bem como sua liberdade de terminar o
relacionamento à vontade .
A doutrina da autoridade política apoia a
coerção generalizada, porque o uso ou ameaça de
violência é essencial para a execução dos comandos
do governo. Atribuir autoridade ao Estado é, entre
outras coisas, conceder ao Estado o direito de forçar
a obediência. Para aqueles indivíduos que não
obedecem, o Estado enviará guardas armados para
levá-los presos. Tudo isso, parece-me, é
descaradamente e extremamente antiliberal.
Pode-se dizer que existem bons argumentos
para a existência de autoridade política, ou que
378

existem boas razões para agir como se houvesse tal


coisa, mesmo que, de fato, a autoridade seja uma
ilusão. Esse argumento não muda o fato de que existe
uma tensão inerente a qualquer posição que afirme
valorizar a igualdade, respeitar a dignidade individual
e se opor à coerção desnecessária, ao mesmo tempo
em que postula uma organização especial que tem o
direito de obrigar todos os outros a obedecer aos seus
comandos, independentemente de esses comandos
serem realmente sábios ou benéficos, mesmo que
nenhum outro agente tenha o direito de usar a força
em circunstâncias semelhantes. E isso não é uma
pequena tensão; a ideia de autoridade política é,
parece-me, um aspecto muito grande e não liberal de
qualquer filosofia política que a inclua. Portanto,
temos razões para suspeitar que, à medida que os
valores e as práticas se liberalizarem ainda mais, o
ceticismo libertário de autoridade se tornará cada vez
mais difundido.

LIBERTARIANISMO VERSUS
IGUALITARISMO
Os críticos podem argumentar que, embora o
ceticismo da autoridade possa ser uma atitude
liberal, outros aspectos importantes do
libertarianismo são antiliberais. Mais notavelmente,
os libertários normalmente rejeitam os programas de
379

bem-estar social do governo como indo além das


funções legítimas do Estado.
De maneira semelhante, embora os libertários
certamente adotem a igualdade em um sentido – de
que cada pessoa tenha direitos iguais e status moral
igual – eles tendem a rejeitar qualquer ideal próximo
da igualdade de riqueza ou bem-estar. Assim, uma
sociedade libertária provavelmente seria uma em que
houvesse uma grande lacuna entre os ricos e os
pobres. Em contrapartida, (de esquerda) os
igualitaristas acreditam não apenas que os indivíduos
têm direitos iguais e status moral igual, mas também
que as desigualdades de riqueza são ruins e devem
ser reduzidas ou eliminadas pelos programas do
governo. Nesta frente, a sociedade tem se afastado do
libertarianismo e ido em direção ao igualitarismo no
século passado, à medida que os governos
expandiram drasticamente os programas de bem-
estar social e a redistribuição de riqueza. Se,
portanto, levarmos a sério o argumento em favor do
realismo moral baseado no progresso moral, pode-se
concluir que os valores objetivamente corretos são
valores liberais igualitários, ao invés de valores
libertários.
Esse argumento é importante. Sobre a questão
de até que ponto o argumento do progresso moral
apoia o igualitarismo, tenho três observações.
Primeiro, o igualitarismo de esquerda dificilmente
380

desfrutou de sucessos absolutos no século passado.


A forma mais extrema de igualitarismo sofreu
derrotas decisivas, à medida que regimes comunistas
ao redor do mundo entraram em colapso nos últimos
30 anos, e muito poucas pessoas defendem o
comunismo.246 Obviamente, isso não mostra que
alguma forma mais moderada de igualitarismo não
tenha triunfado. Mas isso mostra que não se pode ler
o triunfo do igualitarismo a partir dos acontecimentos
do século passado de maneira simples e direta.
Em segundo lugar, o tipo de igualdade que o
libertarianismo apoia é mais fundamental e
importante do que o tipo de igualitarismo que a
esquerda apoia. O libertarianismo permite que alguns
possuam muito mais propriedade do que outros, de
modo que, nesse sentido, apoia (ou pelo menos tolera)
a desigualdade. A doutrina da autoridade política, no
entanto, permite que alguns governem literalmente os
outros, forcem os outros a obedecer a seus comandos,

246 Algumas pessoas negam que a experiência do


século 20 refuta o comunismo, porque regimes como os da
União Soviética e da Europa Oriental antes da década de
1990 não eram o verdadeiro comunismo. Eu acho que isso
é um erro profundo. Seja como for, o ponto aqui não é
discutir diretamente sobre os méritos do comunismo. O
ponto aqui é que ideologicamente, o igualitarismo sofreu
grandes retrocessos no século 20, conectado com os
eventos que a maioria das pessoas chama de “o colapso do
comunismo”.
381

sejam ou não esses comandos sábios e benéficos.


Isenta os agentes do Estado das restrições morais que
se aplicam a todos os outros. Isso me parece um tipo
de desigualdade muito mais gritante e mais ofensivo
do que uma desigualdade na quantidade de riqueza
que os diferentes indivíduos possam ter. E é
exatamente esse tipo de desigualdade ofensiva que é
exigida pelo igualitarismo de esquerda. Se os
igualitaristas se contentassem em defender os
esforços privados de caridade, nenhum libertário se
oporia.
A disputa entre libertários e igualitaristas
centra-se na defesa dos igualitaristas da coerção
estatal para apoiar programas de bem-estar social.247
A maioria dos igualitaristas não apoiaria coerção
semelhante se realizada por um indivíduo ou

247 Algumas pessoas contestam se a taxação é


realmente uma violação dos direitos de propriedade dos
contribuintes, porque questionam se realmente somos
donos de nossas rendas antes dos impostos. Veja Liam
Murphy and Thomas Nagel, The Myth of Ownership: Taxes and
Justice (Oxford, UK: Oxford University Press, 2002);
Stephen Holmes and Cass Sunstein, The Cost of Rights: Why
Liberty Depends on Taxes (New York: W.W. Norton, 1999). Eu
comento sobre essas visões brevemente em Problem of
Political Authority, pp. 145–48, e de uma forma mais
aprofundada em Is Wealth Redistribution a Rights Violation? em
The Routledge Handbook of Libertarianism, ed. Jason
Brennan, David Schmidtz, and Bas van der Vossen (New
York: Routledge, por vir).
382

organização privada. Portanto, os igualitaristas estão


comprometidos com uma desigualdade de status
moral entre o Estado e os agentes privados.
Terceiro, quero explicar como a tendência de
expansão dos programas de bem-estar social pode
constituir progresso moral, mesmo que o
libertarianismo esteja correto. O ponto principal é que
a maioria das pessoas considera a autoridade do
Estado como certa. Isso tem acontecido desde que os
Estados existem, e permanece verdadeiro hoje
(mesmo que hoje o apoio à autoridade esteja em seu
ponto mais baixo). Agora, dada a suposição de que o
Estado tenha autoridade e, portanto, tem uma
reivindicação legítima sobre qualquer quantia de
dinheiro que escolha tirar de seus cidadãos (de acordo
com suas leis), o Estado deve usar parte de seu
dinheiro para ajudar os menos afortunados membros
da sociedade. Essa seria a coisa compassiva a ser
feita e talvez o único curso de ação consistente com
um nível apropriado de preocupação com os
interesses de todos. A razão pela qual o Estado não
deve, de fato, fazer isso, a meu ver, é que o Estado
não tem autoridade legítima. Mas essa visão (ou seja,
o ceticismo quanto à autoridade) não tem nada a ver
com o fato de o Estado não ter administrado grandes
programas de bem-estar social antes do século XX.
Em vez disso, nos primeiros séculos o Estado não
administrava grandes programas de bem-estar social
porque o governo não se importava com os pobres. A
383

mudança para um governo que se preocupa (ou pelo


menos finge se importar) com os pobres constitui
progresso moral.
Em outras palavras, precisamos considerar
duas dimensões distintas ao longo das quais as
atitudes morais podem variar: (A) deferência à
autoridade e (B) preocupação com os pobres. Durante
a maior parte da história humana, a combinação
dominante de atitudes tem sido A & ~B (deferência à
autoridade combinada com a indiferença aos pobres).
A combinação correta de atitudes é o oposto
diametralmente: ~A & B (ceticismo de autoridade
combinado com preocupação pelos pobres). Ao longo
do último século, nossa sociedade mudou,
aproximadamente, de A & ~B para A & B. Isso é
progresso, embora em apenas uma dimensão.
Acontece que, nesse caso, progredir em apenas uma
das duas dimensões leva a uma distância das
políticas que seriam adotadas se houvesse progressos
em ambas as dimensões.

PERGUNTAS E OBJEÇÕES
Nesta seção, abordo questões e objeções
comumente levantadas sobre o intuicionismo e/ou
meu apelo à moralidade do senso comum.

Intuições equivocadas
384

A maioria das objeções ao intuicionismo ético


parece repousar em mal-entendidos. Talvez o tipo
mais comum de objeção seja este: “Eu posso pensar
em alguns exemplos de falsas intuições”, ou mesmo,
“eu posso pensar em alguns exemplos de crenças
falsas que já foram amplamente aceitas”. Como isso
poderia ser uma objeção ao intuicionismo ético?
Em uma maneira de lê-lo, a versão anterior da
objeção se baseia na suposição errônea de que o
intuicionismo é/ou implica a alegação de que “todas
as intuições são verdadeiras”. A última versão da
objeção parece basear-se na mesma suposição, além
de outra suposição equivocada, de que “intuição”
significa “crença amplamente compartilhada”.
Até onde sei, nenhum pensador sério na
história da filosofia jamais sustentou a visão de que
todas as intuições sejam verdadeiras. (Também,
nenhum intuicionista definiu “intuição” como “crença
amplamente compartilhada”.) Isso é análogo ao fato
de que nenhum pensador sustentou que todas as
aparências sensoriais são verídicas, ou que todas as
memórias aparentes estão corretas, assim como
todas as inferências.
O intuicionismo ético envolve a afirmação de
que é racional supor que as intuições estão corretas,
a menos e até que haja motivos para duvidar dessas
intuições. Isso é análogo ao fato de que é racional
supor que as experiências sensoriais são verídicas ou
385

que as memórias são precisas – a menos e até que


haja motivos específicos para duvidar delas. Essas
teses não são refutadas nem questionadas pela
observação de que, às vezes, há motivos para dúvidas.
Outra maneira de ler a objeção é que ela
procura fornecer evidências indutivas de que as
intuições em geral não são confiáveis, dando-nos
fundamentos para duvidar de todas as intuições e,
assim, talvez questionar todo o conhecimento moral.
Os céticos filosóficos, similarmente, citam exemplos
de uma variedade de ilusões sensoriais às quais os
seres humanos estão sujeitos, na tentativa de
mostrar que os sentidos não são confiáveis.
Mas se essa é a ideia, então seria necessário ter
uma grande amostra aleatória de intuições para
avaliar quão confiáveis elas são em geral. Não se pode
simplesmente buscar seletivamente a memória de
alguém por um punhado de casos de falsas intuições.
Se formos contar a essas intuições outras como “a dor
é ruim”, “o assassinato é errado” e “o roubo é errado”,
fica fácil pensar em muitos exemplos de intuições que
não temos motivos para duvidar.

DESACORDO
Outra objeção muito comum é a seguinte: “às
vezes, as pessoas têm intuições conflitantes”. Isso
pode ser simplesmente uma variante da objeção
386

anterior e pode ser baseada na suposição de que o


intuicionismo sustenta que todas as intuições são
verdadeiras. Se todas as intuições fossem
verdadeiras, então, de fato, não poderia haver
intuições conflitantes. Mas uma vez que entendemos
que o intuicionismo não inclui de fato essa tese
absurda, não está claro como a existência de
desacordo se torna uma objeção.
Às vezes, parece que a objeção é que os
intuicionistas falharam em fornecer um método para
resolver todas as divergências. Embora essa objeção
possa ser um problema prático real, não está claro
como ela deve fornecer evidências de que o
intuicionismo não é de fato verdade. A inferência
aparentemente seria algo assim:
1. O intuicionismo não fornece uma maneira de
resolver todos os desacordos éticos.
2. Se uma teoria metaética falha em fornecer
uma maneira de resolver todos os desacordos éticos,
então a teoria é falsa.
3. Logo, o intuicionismo é falso.
Mas é misterioso por que alguém acreditaria na
segunda premissa. De fato, nenhuma teoria
metaética já forneceu uma maneira de resolver todos
os desacordos éticos (é por isso que ainda existem
desacordos éticos), mas presumivelmente não é o
caso de todas as teorias metaéticas serem falsas.
387

VIESES
Às vezes, as pessoas que se opõem ao
intuicionismo ético, apontam para vieses que podem
afetar as intuições ou julgamentos éticos das pessoas.
O que é um viés? Um viés é simplesmente uma
influência que tende a não ser confiável ou que leva
alguém a se afastar da verdade. Por exemplo, as
pessoas podem ser influenciadas por ensinamentos
religiosos (que o objetor considera incertos) ou pelos
ensinamentos de seus pais, ou podem querer adotar
as crenças que servem a seus próprios interesses.
Isso, no entanto, não é uma objeção ao
intuicionismo. Novamente, o intuicionismo não é a
visão de que todas as intuições são verdadeiras (ainda
menos é a visão de que todas as crenças éticas são
verdadeiras). Se alguém toma certas intuições como
tendenciosas, então tudo o que se segue é que se deve
impedir o consentimento dessas intuições.
Entretanto, as intuições éticas nas quais confio
para defender o libertarianismo não são
plausivelmente consideradas vieses. Por exemplo, a
ideia de que eu não deveria sequestrar pessoas que
consomem certas substâncias nocivas e as aprisionar
por vários anos não parece ser um viés causado pela
religião, pela criação dada pelos meus pais ou por
interesse próprio. Se alguém acha que é um produto
388

de viés, ele teria que explicar porque acha que é. Não


é suficiente dizer que vieses éticos existem em geral,
ou que algumas outras crenças éticas são
tendenciosas.
Nem é nosso ônus mostrar, em geral, que não é
o produto de um viés (quando não é dada uma
explicação específica de como seria). Em geral, nós
não começamos conhecendo as coisas primeiro tendo
uma aparência, depois provando que não há fatores
que influenciam a aparência tornando-a não confiável
e, finalmente, aceitando o conteúdo da aparência.
(Entre outras coisas, observe que isso envolveria uma
regressão infinita, pois estabelecer a ausência de
vieses exigiria que tivéssemos algum outro
conhecimento, o que iniciaria o processo novamente.)
Em vez disso, começamos a acreditar no que parece
ser o caso e estamos prontos para revisar essa crença
se (mas apenas se!) adquirirmos razões para duvidar
de que a aparência não seja confiável. É assim que o
conhecimento perceptual, o conhecimento da
memória, o conhecimento científico, o conhecimento
moral e todas as outras formas de conhecimento
funcionam.

OBJEÇÕES HIPÓCRITAS
Muitos objetores filosóficos são hipócritas,
autorrefutáveis, ou ambos, no sentido de que os
389

objetores estão fazendo exatamente aquilo que dizem


que não se deve fazer, ou estão confiando no próprio
tipo de crença que eles dizem não poder confiar. Isso
é particularmente comum quando o assunto é
intuicionismo ético. Aqui, quero chamar a atenção
para esta categoria de objeção e recomendar contra
seu uso. Alguns exemplos:
1. “Qualquer objeção à ideia de que devemos
confiar no que parece ser verdade para nós, a menos
que tenhamos motivos para dúvidas.”
Essencialmente, todas essas objeções são hipócritas
e autorrefutáveis, no sentido de que as próprias
objeções repousam sobre como as coisas parecem
para a pessoa que faz a objeção; assim, se a objeção
estiver correta, então o objetor não está justificado em
fazê-la. Um caso especial (extremamente comum) é a
objeção baseada na intuição de confiar em intuições.
2. “Os intuicionistas não fornecem um método
para resolver todos os desacordos éticos.” Essa
objeção seria hipócrita no sentido de que o próprio
objetor é invariavelmente alguém que não forneceu
um método para resolver todas as divergências éticas.
(Ninguém forneceu tal método, isto é, nenhum que
realmente funcione. Se tivessem, os filósofos estariam
usando esse método, e todas as divergências éticas
estariam resolvidas agora.)
3. “Nós não somos justificados em manter
nossas crenças éticas, porque algumas pessoas
390

discordam delas.” Mas então, algumas pessoas


também discordam da ideia de que não estamos
justificados em manter nossas crenças éticas, então
essa ideia deve também ser injustificada.
4. “Não devemos confiar na intuição, porque às
vezes as intuições nos levam ao erro.” Se isso for
verdade, então, presumivelmente, não devemos
confiar em nenhum meio de formação de crença que
às vezes dê errado. Se assim for, então não devemos
confiar em argumentos filosóficos, incluindo o próprio
argumento citado, porque às vezes (quase sempre, na
verdade) argumentos filosóficos nos levam ao erro.
5. “Seu método de chegar a conclusões políticas
não é suficientemente confiável, porque nossas
crenças éticas podem ter vieses.” Se o objetor for na
verdade um cético sem visões morais ou políticas, a
posição dessa pessoa pode ser coerente. Caso
contrário, é hipócrita, porque nenhum método de
formação de crenças éticas ou políticas elimina toda
a possibilidade de ser influenciada pelos vieses do dia.
Meu método é, na verdade, o menos propenso ao viés,
porque parti de premissas éticas que são amplamente
compartilhadas, independentemente da ideologia. As
alternativas seriam: (a) não aceitar as premissas
iniciais (e, portanto, ser um cético) ou (b) partir de
premissas controversas ou ideologicamente
enviesadas (como isso poderia ser melhor?).
391

Minha recomendação geral: não objetar à


minha abordagem de apoiar o libertarianismo, a
menos que (a) você tenha de alguma forma descoberto
algumas premissas avaliativas mais plausíveis e
menos controversas do que, por exemplo, a premissa
“Eu não deveria raptar pessoas sob a mira de uma
arma e aprisioná-las apenas por consumir
substâncias que considero nocivas”, e (b) suas
premissas de alguma forma mostram que as minhas
são falsas, por exemplo, que na verdade é permissível
sequestrar e aprisionar pessoas por consumirem
substâncias nocivas.
Praticamente todos os não-intuicionistas são
hipócritas: eles adotam e retêm crenças éticas
exatamente da maneira que os intuicionistas fazem –
a saber, eles acreditam no que parece certo para eles,
até que tenham motivos para duvidar disso – com a
única diferença de serem menos autoconscientes, que
é, eles não dizem que isso é o que estão fazendo.
Então eles se perguntam sobre o quão ruim é fazer
isso.

E QUANTO ÀS INTUIÇÕES POLÍTICAS?


As objeções anteriores são todas confusas. Esta
não é: a maioria das pessoas intui que o governo (ou
pelo menos alguns governos) tem autoridade; isto é, o
governo parece de algum modo moralmente especial.
392

Quando o governo mata pessoas, parece menos mal


do que quando as partes privadas cometem
assassinatos; quando o governo recruta pessoas,
parece menos mal do que a escravidão privada;
quando o governo cobra das pessoas, parece menos
mal do que a extorsão privada. Por que isso não seria
bom o bastante, considerando meus próprios pontos
de vista sobre a intuição, para defender políticas não-
libertárias? Afinal um não-libertário pode dizer: “Não
há necessidade de demonstrar uma teoria do porquê
o governo tem autoridade, nem um argumento de que
o governo tem autoridade, pois simplesmente parece
que tem”?
Essa seria uma postura insatisfatória a ser
tomada por vários motivos. Em primeiro lugar, a
noção de autoridade política não é tão incontroversa
quanto os julgamentos éticos intuitivos citados na
seção anterior intitulada “Algumas intuições éticas
senso comum”. Atitudes em relação à autoridade
variam muito com a ideologia política, com todos ou
a maioria dos libertários rejeitando intuitivamente a
noção de autoridade política (na verdade, para alguns
de nós, a ideia parece bizarra e obviamente falsa).
Mesmo entre os não-libertários, não é tanto que
a maioria das pessoas tenha a intuição de que o
governo tem autoridade ou que a maioria das pessoas
acredita que o governo tem autoridade, já que elas
estão habitualmente dispostas a pressupor a
393

autoridade do governo. A maioria das pessoas,


desconfio, nunca chegou a pensar se o governo tem
autoridade legítima. Quando explicitamente
confrontado com o fato de que o governo realiza
muitas ações que seriam consideradas injustas para
qualquer outro agente, algumas poucas pessoas
dizem: “Sim, e daí? É o governo, então, obviamente,
tudo bem.” Em vez disso, a maioria das pessoas pode
facilmente ser levada a sentir que há um problema
filosófico aqui.
Quando eu apresento a questão para meus
alunos, por exemplo, é muito fácil motivar o
problema, e ninguém sugere que não é necessário
explicar por que o governo é especial. Por contraste,
por exemplo, quando você aponta que, embora seja
errado destruir um ser humano, não é considerado
igualmente errado destruir um torrão de sujeira,
ninguém fica confuso.
Segundo, a maioria das pessoas – mesmo que
achem intuitivo que o Estado tenha algum tipo de
autoridade – também terá a intuição de que isso não
pode ser um fato dado – que deve haver uma base
para essa autoridade ou uma resposta ao que dá
autoridade ao Estado. E dificilmente alguém acha que
a explicação poderia ser “Bem, é o governo.” (Por
contraste, por exemplo, muitas pessoas pensam que
é um fato dado que a dor é ruim, ou que a resposta
para o que é ruim sobre a dor é “Bem, ela dói.” Assim
394

sendo, o fracasso de todas as explicações que


podemos considerar ao que dá ao Estado sua
autoridade deve fazer com que se suspeite que o
Estado de fato não tem tal autoridade.
Em terceiro lugar e mais interessante, nem
todas as intuições são igualmente confiáveis.
Algumas intuições e crenças são o produto de vieses
psicológicos. Quando temos razões específicas para
acreditar que uma intuição é produto de viés,
devemos desconfiar dessa intuição. Em particular,
uma boa quantidade de evidências, tanto da
psicologia experimental quanto da história, mostra
que a maioria das pessoas tem fortes vieses pró-
autoridade.248
Por exemplo, o famoso experimento de Milgram
mostra que a maioria das pessoas está disposta a
eletrocutar outra pessoa (inocente), se ordenada a
fazê-lo por uma figura de autoridade.249 Milgram
explicitamente traça o paralelo da disposição dos
alemães comuns em participar da perseguição aos
judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

248 Discuto isso em profundidade em Problem of


Political Authority, cap. 6 (No qual disse ser o capítulo mais
interessante do livro), onde eu também cito uma variedade
de fontes potenciais para esse viés pró-autoridade.
249 Stanley Milgram, Obedience to Authority: An
Experimental View (New York: Harper, 2009).
395

Soldados americanos também participaram de


atrocidades, como o infame massacre de My Lai, em
resposta a ordens de uma figura de autoridade.
Agora, o ponto aqui não é meramente que instituições
de autoridade são perigosas. O ponto é que aqueles
que estão sujeitos a uma figura de autoridade
sentirão muitas vezes um senso da autoridade dessa
pessoa, mesmo que essa alegada autoridade seja
completamente ilegítima, ou a pessoa esteja
claramente ultrapassando qualquer autoridade
legítima que possa ter.
Observe que não há necessidade de discutir
aqui o que constitui uma autoridade legítima ou como
determinamos seus limites, porque esses casos são
incontroversos. Ninguém acha que o cientista no
experimento de Milgram tinha o direito de ordenar a
eletrocussão dos sujeitos, ou que os oficiais de My Lai
tinham o direito de ordenar o massacre. Mas as
pessoas nessas situações sentiam necessidade de
obedecer. Por causa disso, é provável que todos nós
sentimos um senso da autoridade de nosso governo,
mesmo que essa alegada autoridade seja ilegítima, ou
o governo estiver extrapolando seus limites.
Observe que neste terceiro ponto, não estou
apenas dizendo que as intuições políticas em geral
podem ser enviesadas. Eu estou citando evidências
de um viés em uma direção específica, em uma
questão específica. Muito mais evidências desse viés
396

pró-autoridade são discutidas no capítulo seis da


obra “The Problem of Political Authority”.
A distinção aqui é como a distinção entre dizer
em geral que ilusões sensoriais são possíveis e dizer
que você tem evidência de uma ilusão sensorial
específica nas circunstâncias em que você está, de
fato, presente. O conhecimento geral de que as
ilusões sensoriais existem não causa dúvida, por
exemplo, da minha percepção atual de que a mesa
está a minha frente. No entanto, meu conhecimento
de que os raios de luz são curvados quando estão
partindo do ar em direção à água põe em dúvida a
minha percepção no caso específico em que estou
olhando para um bastão parcialmente submerso na
água. Da mesma forma, o conhecimento geral de que
as intuições podem estar erradas não põe em dúvida
minha intuição de que eu não deveria extorquir
dinheiro de outras pessoas. Mas a existência de vieses
generalizados pró-autoridade (juntamente com
alguns mecanismos que tenderiam a gerá-los) lança
dúvida sobre a crença específica de que o governo tem
um tipo especial de autoridade, particularmente
quando ninguém pode dar uma explicação plausível
de por que existe essa autoridade.
397

PENSAMENTOS FINAIS
Eu duvido que muitos leitores sejam
convertidos ao intuicionismo ou ao libertarianismo
pela discussão anterior. No mínimo, um argumento
persuasivo para o intuicionismo teria que abordar as
principais teorias alternativas sobre a natureza da
ética, além de responder com mais detalhes a uma
variedade maior de objeções ao intuicionismo. Um
caso persuasivo para o libertarianismo teria que
abordar mais relatos de autoridade e fazê-lo em maior
detalhe. Qualquer um desses casos seria um projeto
para um livro (é por isso que eu tenho, de fato, livros
dedicados a cada um).
Meus objetivos neste capítulo foram mais
modestos. Espero ter mostrado como uma teoria da
ética intuicionista se encaixa de uma maneira natural
com uma filosofia política libertária. Espero ter dito o
suficiente para mostrar que essa combinação de
pontos de vista forma uma posição interessante e,
talvez, estimular o leitor a fazer mais leituras sobre o
assunto.
Um comentário final: Como minha defesa do
libertarianismo se relaciona com outras abordagens
populares, como aquelas baseadas em direitos
naturais ou utilitarismo? Eu acho que meus
argumentos são compatíveis com direitos naturais e
premissas utilitárias, mas eles também não exigem
isso. Tanto o libertário utilitário quanto o defensor
398

dos direitos naturais rejeitam a autoridade política.


Os utilitaristas rejeitam a autoridade porque afirmam
que todos estão sujeitos exatamente ao mesmo
princípio moral, a saber, que se deve sempre
maximizar a utilidade; não há, portanto, nenhum
status moral especial para o Estado. Libertários de
direitos naturais também devem rejeitar a autoridade
para que o argumento do libertarianismo seja bem-
sucedido, pois a menos que a ideia de autoridade seja
rejeitada, a possibilidade permaneceria de que o
Estado tem o direito de fazer o que seria uma violação
de direitos caso isso fosse feito por um agente privado.
Teóricos dos direitos naturais e utilitaristas também
são geralmente liberais (embora eles tenham
diferentes razões para endossar o liberalismo); assim,
virtualmente todos os exemplos de progresso moral
ao longo dos últimos séculos poderiam ter sido
defendidos por razões de direitos naturais ou por
razões utilitárias.
Então, acho que tanto um teórico utilitarista
quanto um defensor dos direitos naturais deveriam
aceitar minhas premissas principais. A partir daí, não
é necessário tentar mais adiante especificar a teoria
moral correta, porque enquanto tivermos isso (a
399

verdade do liberalismo, a ilusão da autoridade),


devemos chegar a conclusões políticas libertárias.250

250 Meus agradecimentos a Aaron Powell e Grant

Babcock pelas numerosas contribuições através de uma


versão anterior desse capítulo.
400

CAPÍTULO 9 - PLURALISMO
MORAL E LIBERTARIANISMO
A maioria das pessoas tem crenças morais, mas
poucas têm algo tão robusto quanto uma teoria
moral. Uma teoria moral destina-se a sistematizar e
explicar o que torna as ações certas ou erradas,
estados de coisas e motivos bons ou maus e traços
virtuosos ou viciosos. Teorias morais são destinadas
a explicar mais do que a guiar: uma teoria moral
explica como a moralidade se encaixa.251
Não está claro que as pessoas precisam de uma
teoria moral assim definida. Muitas pessoas são bons
agentes morais, apesar de não conhecerem a teoria
moral, ou mesmo apesar de aceitarem uma má teoria
moral.252 A habilidade de fazer é diferente da
habilidade de explicar. Pode-se ser bom em fazer
mesmo que falte habilidade para explicar o que se

251 Para um relato completo dos objetivos teóricos


da teoria moral, veja Jason Brennan, “Beyond the Bottom
Line: The Theoretical Aims of Moral Theory,” Oxford Journal
of Legal Studies 28 (2008): 277–96.
252 Eu tinha um vizinho que aceitou a teoria do

comando divino, uma teoria refutada há mais de 2000


anos, mas ele ainda era uma pessoa tão boa quanto
qualquer outra pessoa que conheci.
401

está fazendo, ou mesmo se alguém tiver uma


explicação ruim do que está fazendo.
Jimi Hendrix foi um excelente guitarrista de
blues-rock apesar de não conhecer a teoria musical.
Ele não conseguia explicar sua própria música tão
bem como alguns analistas de música, mas poderia
tocar. Ou considere que Tom Brady é um excelente
jogador de futebol americano, enquanto Bill Belichick
é um excelente treinador. Brady pode jogar melhor
que Belichick, mas Belichick tem uma teoria do
futebol americano melhor que Brady. Da mesma
forma, um teórico moral pode ter um relato melhor do
que é a moralidade e como tudo se encaixa do que
uma pessoa comum, mas isso não necessariamente
torna o teórico moral uma pessoa melhor.253
Em nossas vidas diárias, a maioria de nós se dá
bem sem invocar uma teoria moral. Suponha que eu
esteja em alguma situação moral difícil. Não preciso
apelar para um princípio moral amplo perguntando:
“Agir com essa máxima nesta situação é algo que eu
poderia racionalmente querer que o mundo inteiro
fizesse?” Nem perguntaria: “Esta ação produz a
máxima utilidade esperada? Em vez disso, tenho um

253Para evidências experimentais sobre esse efeito,


veja Eric Schwitzgebel e Joshua Rust, “The Moral Behavior
of Ethicists,” Companion to Experimental Philosophy, ed. Justin
Sytsma and Wesley Buckwalter (New York: Oxford
University Press, no prelo).
402

punhado de princípios morais de bom senso, como


estes:

1. Dê às pessoas o que elas merecem.


2. Não prejudique os outros nem agrida-os.
3. Respeite a propriedade das pessoas.
4. Forneça uma quantidade apropriada de
caridade para ajudar os necessitados.
5. Mantenha sua palavra e seja honesto
com aqueles que a merecem.
6. Retribua com aqueles que te ajudaram.
7. Não tire proveito do infortúnio dos
outros.
8. Providencie para aqueles a quem você
estima um dever de cuidado.
9. Não viole os direitos dos outros.
Eu posso terminar essa lista e, desde que não
esteja violando essas regras, concluo que qualquer
coisa que faça está bom.
Na moral do senso comum, essas normas nos
parecem úteis. Às vezes, há exceções às regras: por
exemplo, embora não possa te matar por diversão,
posso matá-lo para impedir que você mate outras
pessoas inocentes. Às vezes, há conflitos: por
exemplo, Jean Valjean pode ter que roubar pão para
alimentar os filhos de sua irmã faminta. Às vezes, há
complexidades: por exemplo, não está claro o que um
403

candidato a emprego merece, ou qual candidato é


mais merecedor, ou apenas o que conta como base de
merecimento para qualquer trabalho específico.
Ainda assim, na moral do senso comum, as pessoas
sábias pesam os princípios concorrentes, usam seu
melhor julgamento, tomam uma decisão e seguem em
frente. Eles não parecem usar ou precisar de uma
teoria moral mais profunda.
A maioria dos teóricos morais, incluindo o
deontologista Immanuel Kant e o utilitarista John
Stuart Mill, concordam que isso é o que é ser um
agente moral. Concordam que, em nossa experiência
diária, parece que estamos presos e temos que pesar
uma pluralidade de princípios morais de nível médio
ou baixo (frequentemente concorrentes).254 Mas Kant
e Mill pensam que os princípios de nível médio e baixo
são, na maioria das vezes, instâncias ou
aproximações de um princípio grande, abstrato e de
alto nível. Kant pensa que temos cada um dos deveres
na lista acima, mas vê essa lista de deveres como
aplicações especiais do imperativo categórico – uma
lei moral abstrata que liga todos os agentes racionais

254 Immanuel Kant, Practical Philosophy, ed. Mary J.


Gregor (New York: Cambridge University Press, 1999
[1788]), pp. 546–90; John Stuart
Mill, Utilitarianism (Indianapolis, IN: Hackett, 2002 [1861]),
pp. 42–60.
404

de qualquer espécie.255 Para Kant, no final, existe


apenas um princípio moral fundamental. Mill
concorda com Kant que, no final, há apenas um
princípio moral fundamental, mas discorda sobre
qual é esse princípio.
Tanto Kant quanto Mill concordam que o
pensamento moral do senso comum funciona da
maneira que descrevi, mas se vêem como tendo
descoberto um esqueleto subjacente que mantém a
moralidade unida e dá sua forma à moralidade.
Mas e se não houver um esqueleto subjacente?
O pluralismo moral, às vezes chamado de pluralismo
rossiano após o filósofo W.D. Ross, no início do século
XX, afirmar exatamente isso.256 O pluralismo é, com
efeito, a tese de que a estrutura do pensamento moral
do senso comum é tudo o que existe para a
moralidade. Não há princípio unificador que explique
toda a moralidade.
Teorias pluralistas sustentam que existe uma
multiplicidade de deveres e valores morais básicos, e
esses deveres e valores não podem ser subordinados
sob um princípio. Para os pluralistas, a moralidade

255 Mark Timmons, Moral Theory: An


Introduction (Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 2002),
p. 161.
256 W. D. Ross, The Right and the Good (Indianapolis,

IN: Hackett, 1988 [1930]).


405

não é uma coisa só. Esses princípios podem entrar


em conflito uns com os outros. Agir sobre eles, aplicá-
los e resolver conflitos requer um bom julgamento,
mas nenhuma outra teoria fornece princípios
precisos sobre como resolver o conflito ou substituir
o bom senso. Em qualquer situação, há uma questão
real sobre como resolver conflitos, mas não há um
algoritmo para determinar essa verdade.

CONTRA TEORIAS MORAIS DE UMA


SENTENÇA
Todas as teorias morais são monistas ou
pluralistas.257 Uma teoria monista da ação correta
afirma que exatamente uma característica
fundamental das ações determina se estão certas ou
erradas. Uma teoria pluralista sustenta que mais de
uma característica fundamental determina se as
ações são certas ou erradas.258 Um monista poderia
concordar que, na moralidade do senso comum,
muitas características parecem contar a favor e

257 Estou tratando o particularismo moral como um


exemplo extremo de pluralismo.
258 Tecnicamente, uma teoria moral tem uma teoria

do bem e uma teoria do direito. Pode ser monista sobre


uma e pluralista sobre a outra, ou monista sobre ambas,
ou pluralista sobre ambas. Utilitaristas são monistas
sobre o bem e o direito, enquanto Kant é um monista sobre
o direito, mas um pluralista sobre o bem.
406

contra a correção das ações, mas afirma que essas


características podem ser reduzidas a um recurso
mais profundo ou mais fundamental. O pluralista
sustenta que muitos recursos contam a favor ou
contra a correção das ações, mas esses recursos não
podem ser reduzidos a um recurso mais profundo ou
mais fundamental.
O melhor argumento para as teorias morais
pluralistas é ver quão inadequadas são todas as
teorias monistas. As teorias monistas fracassam
porque tentam fazer muito com muito pouco; isto é,
eles tentam explicar toda a moralidade com apenas
um princípio básico ou ideia básica.
Muitas das teorias morais discutidas em outras
partes deste livro sustentam que a moralidade pode
ser resumida, sistematizada e explicada com apenas
uma frase. Assim, por exemplo, o kantianismo
sustenta que uma ação é errada se – e somente se –
ela violar o imperativo categórico. O egoísmo ético
sustenta que uma ação é correta se – e somente se –
contribuir ao máximo para o bem-estar do agente. O
utilitarismo sustenta que uma ação está correta
apenas no caso de produzir a maior utilidade
agregada líquida.
Mas teorias morais de uma sentença parecem
problemáticas. A maioria delas parece ter contra-
exemplos absurdos. Considere, por exemplo, o
utilitarismo do ato hedonista. Essa teoria começa com
407

o pensamento plausível de que o prazer é bom e a dor


é ruim. Parece plausível que a moralidade é sobre a
maximização da utilidade agregada, definida aqui
como prazer menos dor. Mas esse princípio – “um ato
é correto apenas no caso de maximizar a utilidade
agregada líquida” – tem implicações bizarras. Por
exemplo, isso implica que eu deveria quebrar uma
promessa sempre que isso produz um ganho
infinitesimal em utilidade. Pior, isso implica que,
enquanto o sádico goste de ver os outros sofrerem
mais do que alguém odeia o sofrimento, somos
obrigados a nos submeter à sua tortura. Por mais
plausível que seja o utilitarismo, não é plausível o
suficiente para justificar esses exemplos.
Kant afirmava que tínhamos deveres gerais
para buscar nossa própria perfeição e adotar a
felicidade dos outros como um fim. Ele pensava que
temos deveres mais específicos (a) para evitar inveja,
ingratidão, malícia, arrogância, difamação, ridículo,
suicídio, mentira, servilismo, avareza e intemperança;
(b) desenvolver nossos poderes naturais e morais; e
(c) agir de acordo com disposições de beneficência,
gratidão, simpatia e respeito pelos outros.259 Pensava
que a aplicação desses princípios no contexto era
complicada e que os filósofos não poderiam fornecer

259 Timmons, Moral Theory, pp. 158–62;


Kant, Practical Philosophy, pp. 546–90.
408

nenhum algoritmo real para fazê-lo.260 Ainda assim,


acreditava que todos esses princípios de nível inferior
são apenas instâncias e derivações do imperativo
categórico.
Mas, como qualquer um que tenha passado por
uma aula sobre Kant sabe, o imperativo categórico de
Kant é notoriamente difícil de aplicar. A formulação
da lei universal – “Um ato está errado, apenas no caso
de alguém não poder universalizar a máxima
associada a esse ato”261 – parece um teste confuso.
Quando os kantianos tentam descompactar a
fórmula, muitas vezes parecem manipular a teoria
para obter os resultados desejados. Um kantiano que
acredita que o aborto está errado sempre consegue
“provar” que o imperativo categórico proíbe o aborto,
enquanto um kantiano que acha que o aborto é
permissível “prova” que não. Ambos os argumentos
parecem igualmente bons (ou ruins). Pode ser que, em
investigações filosóficas adicionais, descobriremos
que o imperativo categórico realmente favoreça um
sobre o outro. Mas também pode ser apenas um sinal

260 Kant adverte continuamente aos leitores que a


aplicação de seus princípios requer conhecimento que vai
além do raciocínio filosófico a priori, e que o conhecimento
não pode ser codificado. Kant, Practical Philosophy, pp. 546–
90.
261 Timmons, Moral Theory, p. 166.
409

de que o imperativo categórico é abstrato demais para


resolver essa questão.
A formulação da humanidade – um ato é errado
apenas no caso de não respeitar a humanidade de
cada pessoa como um fim em si – a princípio parece
mais promissor do que a formulação da lei universal.
Mas, após uma inspeção mais aprofundada, parece
vazia. O libertário Robert Nozick, o liberal John
Rawls, o conservador John Finnis e o socialista G. A.
Cohen concordam que devemos tratar a humanidade
de forma que nós sempre somos um fim e nunca um
mero meio, mas eles discutem exatamente o que é
preciso para expressar tal respeito. Quando debatem
entre si, a discussão não é a ideia genérica de
respeitar os outros como fins, mas sim reflexões sobre
princípios de nível médio e intuições sobre casos
específicos.262
“Respeitar a humanidade nos outros” parece
quase tão vazio quanto “sempre considerar e
responder adequadamente aos interesses legítimos de
qualquer um afetado por suas ações”. Bem, sim, toda
teoria moral diz isso. É verdade, mas é banal. Mais

262 Por exemplo, eu tenho quase uma resposta linha


a linha para G. A. Cohen, Why Not Socialism? (Princeton, NJ:
Princeton University Press, 2009) em Jason Brennan, Why
Not Capitalism? (New York: Routledge Press, 2014), mas nem
Cohen nem eu temos que articular uma teoria moral
fundamental para ter esse debate.
410

uma vez, talvez uma resolução kantiana decisiva


desse debate esteja por vir, mas dado o quanto o
kantianismo parece se encaixar em tantas visões
díspares, talvez não devêssemos prender a
respiração.
David Schmidtz, um pluralista, sugere que o
que nos atrai a teorias de uma sentença é uma busca
equivocada pela simplicidade:
Uma teoria monista seria mais útil? Seria até
mais simples? A tabela periódica seria, em certo
sentido, mais simples se colocássemos apenas quatro
elementos – ou um só -, mas isso contribuiria para uma
ciência melhor? Não. Os astrônomos disseram uma vez
que os planetas precisam enfrentar órbitas circulares.
Quando finalmente aceitaram a realidade das órbitas
elípticas, que favorecem dois pontos focais, suas
teorias se tornaram mais simples, mais elegantes e
mais poderosas […] Quando um fenômeno parece
complexo […] a explicação mais simples pode ser que
pareça complexa, porque é. Podemos encontrar uma
maneira de fazer tudo com um único elemento, mas
seria mero dogma – o oposto da ciência – assumir que
devemos.263
A filosofia moral enfrenta um problema como o
enfrentado pelos astrônomos. Quando os astrônomos

263David Schmidtz, Elements of Justice (New York:


Cambridge University Press, 2006), p. 4.
411

tentaram se agarrar à visão de que todas as órbitas


são circulares – e, portanto, têm apenas um ponto
focal -, tinham duas opções ruins. A primeira opção
foi simplesmente negar os fenômenos – suas
observações – num todo. Na teoria moral, o
equivalente seria um utilitarista insistindo: “Não,
minha teoria está certa, e a maioria dos supostos
contra-exemplos do utilitarismo é, na verdade,
exatamente o que a moralidade exige”. A segunda
opção seria introduzir epiciclos arbitrariamente
complexos em sua teoria para fazer as equações
funcionarem. Logo, as teorias tornariam-se tão vazias
que se encaixariam nos fenômenos, porque podem se
encaixar em todos os fenômenos. Na filosofia moral, o
equivalente bastante comum é como todo filósofo
kantiano acredita que o kantianismo tende a
justificar quaisquer visões políticas que ele tenha
antes de descobrir o kantianismo.
Por razões metodológicas, era bom que os
filósofos repetidamente tentassem sistematizar a
moralidade em um único princípio monista. Afinal, a
parcimônia teórica é uma virtude. Mas parece que
continuamente falhamos em produzir uma forma
viável e plausível de monismo depois de repetidos
esforços. Talvez seja hora de jogar a toalha e optar por
uma teoria pluralista.

DEVERES PRESUMIDOS
412

O imperativo categórico de Kant é um princípio


moral absoluto. Dizer que um dever ou um princípio
moral é absoluto é dizer que nunca pode ser superado
ou superado por uma consideração concorrente.
(Observe, no entanto, que, embora o imperativo
categórico seja absoluto, o que o princípio exige em
qualquer contexto depende muito do contexto.264
Portanto, o princípio é absoluto, mas contextual.)
Em contraste, Ross duvidava que existissem
quaisquer princípios morais absolutos. Em vez disso,
pensava que todos os princípios ou deveres morais
básicos eram presumidos. Há uma forte presunção
padrão em favor do cumprimento de qualquer um de
nossos deveres básicos, mas outras considerações
poderiam, em princípio, superá-los ou vencê-los.
Cada dever presumido é uma consideração em
favor de executar ou evitar alguma ação. Então, por
exemplo, se fazer x mantém uma promessa, temos
uma forte consideração em favor de x. Já se o fato de
fazer x envolve o não resgate de meus filhos, então
temos uma forte consideração contra x. Se esses
deveres conflitam de alguma forma, temos que julgar
qual dever prevalece sobre o outro. Ross pensava que,
em geral, isso envolvia pesar os deveres uns contra os

264 Kant deixa isso claro em Practical Philosophy, p.


584.
413

outros e depois agir de acordo com qualquer princípio


que fosse mais pesado.
Ross define nosso dever como o que devemos
fazer considerando todas as coisas. Se tenho apenas
um dever presumido ativo em um determinado
contexto, então esse dever presumido se torna meu
dever. Se tenho múltiplos deveres conflitantes, então
meu dever é o dever presumido que seja o mais
pesado.265
Com isso, considere uma definição precisa dos
deveres presumidos, citando Mark Timmons:
Definição: Uma ação é um dever [presumido] se
e somente se
1. Possui alguma característica moralmente
relevante que conta a favor de fazer (ou
não fazer) o ato, e
2. Esta característica é tal que se fosse a
única característica moralmente
relevante da minha situação, então o ato
(ou não fazer o ato) seria meu próprio
dever.266

265 Ross, Right and Good, pp. 19–20.


266 Timmons, Moral Theory, p. 249. Como Timmons
está discutindo Ross, ele diz “prima facie” em vez de
“presumido”. Os filósofos hoje tendem a preferir pro tanto ao
invés de prima facie. Eu apenas pulo os termos latinos aqui.
414

As teorias morais pluralistas fornecem uma


descrição atraente do que é ser um agente moral que
toma decisões no momento. Ordinariamente, parece
que existem várias regras morais básicas, que tais
regras podem entrar em conflito e que não existe uma
“regra geral” óbvia para resolver esses conflitos. Em
vez disso, temos que usar nosso melhor julgamento.
O melhor julgamento de algumas pessoas é
melhor que de outras. Algumas pessoas são mais
capazes de raciocinar por analogia, de pensar de
maneira consistente e clara, de notar semelhanças
entre os casos ou de saber quais fatores morais estão
em jogo em determinada situação.267 Alguns são mais
propensos a sofrer de egoísmo ou viés de confirmação
do que outros. De fato, grande parte da psicologia
moral contemporânea descobre que as pessoas
frequentemente agem erroneamente, não porque têm
crenças morais erradas, mas simplesmente porque
não percebem que estão em situações com carga
moral.268

267 Veja Michael Huemer, Moral Intuitionism (New


York: Palgrave MacMillan, 2005).
268 Para uma popularização útil dessa pesquisa, veja

Max H. Bazerman e Ann E. Tenbrunsel, Blind Spots: Why We


Fail to Do What’s Right and What to Do about It (Princeton, NJ:
Princeton University Press, 2012).
415

QUAIS DEVERES PRESUMIDOS?


O antigo filósofo grego Thales supôs que tudo
era água. Agora sabemos que a água não é um
elemento, mas um composto, e que há mais de um
elemento. Os pluralistas sustentam de forma
semelhante que existem múltiplos elementos morais.
Mas uma grande questão para os pluralistas morais,
como para os químicos, é quantos elementos existem.
Outra grande questão é como esses elementos
funcionam ou interagem.
Anteriormente, listei nove candidatos a deveres
básicos presumidos. O próprio Ross dividiu nossos
deveres em sete tipos básicos. Seguindo a metáfora
da tabela periódica, podemos considerar cada uma
delas como sendo similar a períodos. Cada período
contém vários deveres, que desempenham o papel de
elementos morais. Assim, considere esta tabela
periódica de elementos morais de Ross:
1. Deveres de fidelidade
• Por exemplo, deveres de cumprir
promessas, para evitar decepções
2. Deveres de reparação
• Por exemplo, deveres de pedir
desculpas por erro, aceitar punição,
pagar indenização por danos
3. Deveres de gratidão
• Por exemplo, deveres de agradecer,
retribuir favores
416

4. Deveres de justiça
• Por exemplo, deveres para dar às
pessoas o que elas merecem
5. Deveres de beneficência
• Por exemplo, deveres para prover
caridade, resgatar aqueles em grande
aflição; certos deveres de obrigação
especial para os entes queridos (como o
dever de alimentar os filhos)
6. Deveres de auto-aperfeiçoamento
• Por exemplo, deveres para melhorar as
habilidades de alguém, para melhorar o
caráter de alguém
7. Deveres de não-maleficência
• Por exemplo, deveres de respeitar
direitos, evitar causar danos
Existem disputas na física sobre como melhor
caracterizar todas as partículas fundamentais.
Alguns químicos defendem alternativas à tabela
periódica padrão. Não é que contestem os elementos
básicos, mas apenas a melhor maneira de organizá-
los. Na mesma linha, diferentes pluralistas morais
podem discordar sobre qual é a melhor “tabela
periódica” para elementos morais.269 Eles concordam

269 Por exemplo, compare Ross’s Right and Good com


Bernard Gert’s Morality: Its Nature and Justification (New York:
Oxford University Press, 1999) ou com Schmidtz’s Elements
of Justice.
417

com uma lista comum de deveres, mas talvez


discordem sobre os detalhes da hierarquia. Não será
importante que discutamos isso aqui.
Poder-se-ia pensar que, se nem todos os
pluralistas concordam com a melhor teoria do
pluralismo, então o pluralismo não é melhor do que o
monismo. Mas essa abordagem pode ser semelhante
a dizer que, como os físicos contestam algumas das
partículas fundamentais, não estamos em situação
melhor do que a Thales. Para ser uma teoria melhor
do que o monismo, o pluralismo tem que ser melhor
que o monismo. Ou seja, tem que ter mais poder
explicativo, com menos vacuidade – e com menos
contra-exemplos ou implicações absurdas – do que as
teorias monistas existentes têm.

DILEMAS MORAIS SÃO REAIS


Uma coisa com que os pluralistas concordam é
a estrutura fundamental da moralidade: a moralidade
não é uma coisa só, e diferentes razões morais podem
nos puxar em direções diferentes.
Em 7 de janeiro de 2015, dois terroristas
armados ameaçaram matar a filha do cartunista
Charlie Hebdo, a menos que ela abrisse as portas do
escritório. Ela abriu a porta. Eles a deixaram ir, mas
invadiram o escritório e assassinaram 12 pessoas,
incluindo 9 de seus colegas de trabalho. Rey
418

enfrentou uma escolha difícil: ela deveria salvar seu


filho ou seus colegas de trabalho?
Assim, temos um dilema moral clássico. Nós
vemos isso frequentemente na ficção. Em “O
Cavaleiro das Trevas”, o Coringa faz Batman escolher
entre salvar o procurador Harvey Dent ou sua amiga
de infância e interesse amoroso Rachel.
Considere outro dilema clássico. Suponha que
eu tenha prometido te dar uma carona até o
aeroporto. No caminho para buscá-lo, vejo uma
criança ferida deitada na beira da estrada. Por um
lado, parece que tenho o dever de cumprir minha
promessa. Por outro lado, parece que tenho o dever
de ajudar a criança. Mas não posso cumprir os dois
deveres – se ajudar a criança, eu me atrasarei e você
perderá o seu voo, mas se cumprir minha promessa,
vou abandonar a criança. Parece que tenho que pesar
dois deveres morais conflitantes e determinar qual
dever (neste caso) é mais importante que o outro.
Um dilema moral genuíno é uma situação em
que temos obrigações ou deveres morais conflitantes.
Temos boas razões para fazer algo e não fazê-lo.
Batman tem boas razões para salvar Rachel – ela é
sua amiga – mas também boas razões para deixá-la
morrer e salvar Harvey Dent – Dent provavelmente
ajudará a salvar Gotham City de mais crimes. No caso
419

da criança ferida, tenho boas razões para manter


minha palavra ou quebrá-la.270
As teorias monistas sustentam que todos os
dilemas morais aparentes são meramente aparentes.
As teorias monistas sustentam que é sempre possível,
em princípio, julgar aparentes conflitos de deveres,
porque esses conflitos não são reais. Em vez disso,
esses dilemas parecem reais, porque no dia a dia nos
baseamos em regras práticas úteis para tomar
decisões morais. Mas monistas dizem que essas
regras são apenas isso. O que realmente devemos
fazer em qualquer situação é o que o princípio moral
fundamental requer.
Por exemplo, um ato utilitarista diria que, no
exemplo acima, Batman deve fazer o que produzir as
melhores consequências. Se ele fosse bem informado,
ele poderia determinar se salvar Rachel ou Harvey
teria melhores consequências, e deveria escolher de
acordo. O utilitarista recomendaria que eu salvasse a

270 Um dilema moral trágico é um cenário em que,


não importa o que se faça, alguém age de forma errada.
Ross parecia pensar que, desde que você escolha o dever
mais importante, você agirá corretamente. Alguns
pluralistas contestam isso – eles acreditam que a
moralidade pode ser injusta, e pode haver momentos em
que, por culpa sua, a melhor coisa que você pode fazer
ainda seja errado.
420

criança, a menos que as consequências de sua falta


no voo sejam muito severas.
Teorias pluralistas sustentam que os conflitos
são reais e que julgá-los requer um bom julgamento.
O que os pluralistas negam, porém, é que, para
decidir entre deveres conflitantes, precisamos invocar
um dever ou princípio moral mais profundo e
fundamental. Considere: Parece óbvio que, para
salvar uma criança que está se afogando, posso
quebrar minha promessa de encontrá-lo para o
jantar. Neste caso, o dever de resgate supera o dever
de cumprir a promessa. Também parece óbvio que, se
eu estiver a caminho do casamento de meu melhor
amigo, não preciso resgatar uma pessoa cujo carro
quebrou a 400 metros da estação de serviço mais
próxima. Neste caso, o dever de cumprir minha
promessa de comparecer ao casamento supera o
dever de resgate. (Se a pessoa estivesse em grave
sofrimento, isso mudaria.)
Se alguém objetou: “Como você sabe disso, sem
ter um princípio moral mais profundo?”, Eu diria que
o objetor está intelectualizando a moralidade. O
jogador de beisebol pode pegar uma bola sem saber
as equações físicas. Jimi Hendrix pode tocar um solo
melodioso sem conhecer a teoria musical. Qualquer
um de nós pode distinguir com segurança cães e
gatos sem ser capaz de dar condições necessárias e
suficientes para ser um gato ou um cão. E assim, a
421

pessoa comum pode escolher com confiança entre


compensações morais sem ter algum princípio
fundamental em mãos. Para um relato mais
detalhado de como tal conhecimento moral é
possível, veja o capítulo de Michael Huemer nesta obra.
Voltando à metáfora da tabela periódica: os
químicos aprendem com o tempo como diferentes
elementos químicos interagem. Ross pensava que,
como uma pessoa desenvolvia a sabedoria moral,
aprenderia com o tempo como diferentes elementos
morais interagem. Mas a maior parte dessa sabedoria
permanece tácita – podemos agir, mas não podemos
articulá-la.
Alguns podem não ficarem satisfeitos por essa
metáfora. Pode-se imaginar, por exemplo, Ayn Rand
dizendo que os pluralistas rossianos são “adoradores
de caprichos” que leem suas decisões arbitrárias
invocando uma “visão moral” misteriosa e
sobrenatural. Ross poderia responder que todas as
teorias morais – incluindo a de Rand – envolvem o uso
de julgamento e insight. De fato, a teoria de Rand
depende mais do insight do que a de Kant ou de Mill.
Mill acreditava que ele tinha uma fórmula; Rand
acreditava que ela tinha princípios gerais que
requeriam julgamento virtuoso para aplicar.
Quando as pessoas tentam produzir uma teoria
altamente rigorosa que não deixa espaço para
julgamento, elas normalmente escondem seus
422

julgamentos anteriores dentro de seus princípios. Nós


temos uma escolha aqui. Ou podemos dar princípios
gerais úteis que exigem um bom julgamento, ou
podemos tentar dar um princípio que tente cobrir
tudo, mas isso não é tão útil. A teoria de Ross é um
exemplo do primeiro caso; Kant é um do último.
Quando digo aos meus alunos o que faz de um
trabalho bom ou ruim, posso dar-lhes conselhos
gerais (por exemplo, “seja original”, “responda às
objeções” ou “evite bobagens”). Mas suponha que eu
desenvolva uma métrica com um número definido de
pontos para cada conselho que eles seguirem. Por
exemplo, eles recebem cinco pontos por objeção que
considerarem. Eles perdem dois pontos por cada
sentença estranha. Essa métrica daria à minha
graduação a falsa aparência de rigor, livre de
julgamento subjetivo, mas não melhoraria minha
classificação nem diminuiria menos o julgamento.
(Afinal de contas, não posso dizer a priori que deixar
de considerar uma objeção vale sempre 5 pontos em
100 pontos.) Em vez disso, inevitavelmente levaria a
notas injustas. Da mesma forma, teorias monistas
que tentam dispensar o julgamento e a percepção
levam inevitavelmente a distorções e contra-exemplos
absurdos.
Pode-se temer que o pluralismo rossiano não
tenha como resolver desentendimentos. Ross estava
mais otimista. Ele pode começar notando que o
423

desacordo é entediante. Mesmo quando é indiscutível


que existe uma verdade objetiva sobre o assunto,
ainda vemos discordância persistente. As pessoas
discordam sobre todos os tipos de coisas – se a
evolução aconteceu, se as vacinas funcionam ou
causam autismo, ou se o planeta Terra tem mais de
6.000 anos – sobre as quais temos provas
contundentes de um lado. O simples fato de que as
pessoas discordam nos diz pouco sobre se existe uma
verdade objetiva sobre o assunto.
Parte do problema é que a maioria de nós não
tem crenças morais consistentes (ou crenças
totalmente consistentes sobre qualquer coisa, na
verdade). Não podemos manter todas as nossas
crenças em nossas mentes conscientes de uma só
vez. A maioria das nossas crenças é latente (ou “não-
concorrente”). Devido a essa condição, não
percebemos conflitos e contradições entre elas. De
fato, muito do que os filósofos fazem é apontar essas
contradições despercebidas e depois trabalhar para
resolvê-las.

A QUESTÃO DA DEMARCAÇÃO E O MONTE


DESCONECTADO
Considere as duas listas de normas a seguir:
Lista A
424

1. Não mate.
2. Não cause danos.
3. Não prive de liberdade.
4. Mantenha suas promessas e acordos.
5. Não trapaceie.
Lista B
1. Direitista rígido, Esquerdista frouxo.
2. Use um dedo por traste (N.do.T.: um dos
componentes da guitarra.)
3. Coloque o dedo mindinho entre o quarto
e quinto laço da bola de futebol
americano.
4. Primeiro pressione a embreagem; depois
troque a marcha.
5. Pegue a rota 50 até a saída Key Bridge e
permaneça na faixa da esquerda.
Ambas as listas contêm várias regras ou
normas. No entanto, é claro para nós que a lista A
contém normas morais, enquanto a lista B contém
normas não-morais. É errado matar e é errado trocar
a marcha antes de pressionar a embreagem, mas
esses são tipos diferentes de errado. Matar é
moralmente errado; tentar mudar a marcha antes de
pressionar a embreagem é uma técnica de direção
ruim (e, eventualmente, cara).
Uma coisa que uma teoria moral precisa fazer é
explicar o que demarca normas morais de normas
425

não-morais. Podemos ver que tudo na lista A é uma


norma moral, mas o que torna essas normas mais
morais do que não-morais?
Pode-se presumir que esse é um problema mais
fácil para os monistas resolverem do que para os
pluralistas. Afinal de contas, os monistas nos
oferecem um princípio básico que visa encapsular
toda a moralidade. Para Kant, tudo na lista A é uma
instância do imperativo categórico. Para Mill, tudo na
lista A é uma instância do utilitarismo de regras. Mas,
como os pluralistas não têm um princípio
fundamental, pode parecer que têm mais dificuldade
em explicar o que distingue a lista A da lista B.
Esse tipo de raciocínio leva a uma queixa
comum sobre o pluralismo moral. Parece que os
princípios são um monte desconectado. O truque
para o pluralista, então, é explicar como todos os
deveres presumidos estão unidos em ser princípios
morais, sem, portanto, reduzir tudo na lista a um
princípio monista.
Essas queixas comuns dizem respeito a teorias
pluralistas, mas são, em última análise,
equivocadas. 271 Para entender por que, consideremos
que Kant e Mill são monistas, mas discordam sobre

271 Por exemplo, Timmons Moral Theory, pp. 262–63;

e Russ Shafer-Landau, The Fundamentals of Ethics (New York:


Oxford University Press, 2010), p. 235.
426

qual é o princípio fundamental da moralidade. Ainda


assim, embora discordem, eles concordam que a lista
A e a lista B são distintas. Quando Kant e Mill
discordam sobre qual é o princípio moral
fundamental, não estão falando uns sobre os outros,
mas estão falando sobre a mesma coisa. Então,
presumivelmente, Kant e Mill podem concordar com
um relato teórico-neutro do que demarca normas
morais de normas não-morais.
Da mesma forma, John Rawls diz que, embora
os marxistas, libertários, liberais clássicos,
esquerdistas, comunitaristas e outros discordem
sobre o que a justiça exige, há um sentido em que
todos concordam sobre o que é a justiça. Eles têm o
mesmo conceito de justiça, mas têm concepções
diferentes disso. Rawls diz que atribuir direitos e
deveres e determinar as distribuições apropriadas de
benefícios e ônus estão embutidos no conceito de
justiça.272 Diferentes concepções (teorias) de justiça –
utilitarista, liberal, libertária, comunitária –
discordam sobre o que os vários deveres, direitos, e
distribuições são, mas todas elas são concepções de
justiça porque todas elas dizem respeito a essas
mesmas questões.
Poderíamos dizer que todas as teorias morais
discutidas neste livro são diferentes concepções de

272John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, MA:


Harvard University Press, 1971), pp. 5–6.
427

moralidade, mas cada um dos teóricos deveria


compartilhar o mesmo conceito de moralidade.
Qualquer que seja a resposta que Kant ou Mill
forneçam para explicar o que demarca normas morais
de não-morais, está igualmente disponível para o
pluralista rossiano.
Nesse sentido, o teórico moral pluralista
Bernard Gert oferece a seguinte explicação genérica
das normas morais:
A moralidade é um sistema público informal que
se aplica a todas as pessoas racionais, governando o
comportamento que afeta os outros e tem como objetivo
diminuir o mal ou o dano.273
Gert vê essa definição de moralidade como
neutra em teoria, como descrevendo o que todas as
principais teorias morais concordam. Diferentes
teorias morais fornecem diferentes explicações sobre
o que as normas são ou o que as explica, mas cada
uma delas parece concordar com essa definição.
Agora, talvez a tentativa de Gert de fornecer
uma demarcação genérica da moralidade das normas
não-morais não seja bem-sucedida. Afinal, a maioria

273 Bernard Gert, “The Definition of Morality,”


em The Stanford Encyclopedia of Philosophy, ed. Edward N Zalta
(Stanford, CA: Stanford University, 2005). Gert usa “mal”
de maneira não-moralizada, então essa definição não é
uma petição de princípio.
428

dos teóricos da moral acredita que devemos deveres a


nós mesmos, não apenas aos outros. Gert parece
pensar que não haveria moralidade numa ilha
deserta, mas Kant, Mill e muitos outros teóricos da
moral discordariam.
Então, talvez a definição de Gert não seja
genérica o suficiente. Sem aqui tentar oferecer uma
definição superior, podemos notar que as normas
morais têm as seguintes características:
1. Elas são categóricas. As normas morais
nos ligam independentemente dos
desejos particulares que temos. Por
exemplo, se você não quer realizar uma
espiral com a bola de futebol americano,
você pode simplesmente desistir da regra
3 da lista B. Mas você não pode
simplesmente desistir da regra 3 da lista
A, mesmo que você realmente queira.274

274 Alunos de ética introdutória muitas vezes se


atrapalham e entram em confusão com uma série de
distinções. Dizer que uma norma é categórica é dizer que
ela está conectada a você porque você é um agente moral
– você não pode simplesmente desistir dela quando quiser.
O contraste de categórico é hipotético – uma norma
hipotética (por exemplo, “Especializa-se em contabilidade,
não em história da arte, se você quer um emprego”)
conecta você por causa dos desejos que você tem. Uma
distinção diferente é absoluta versus presumida. Normas
absolutas não podem ser superadas ou vencidas; normas
429

2. Elas servem para todos os agentes


racionais. As normas morais nos ligam
em virtude de sermos os tipos de
criaturas que (a) podem entender o certo
e o errado e (b) podem agir de acordo com
esse entendimento.
3. Elas não são meras convenções.
Estender meu dedo médio para expressar
desrespeito em vez de respeito é uma
convenção social. Poderíamos ter usado o
dedo do meio para significar o que
queremos dizer numa saudação, mas não
o fizemos. As convenções sociais podem –
em certo sentido – ser modificadas. Nós
poderíamos apenas concordar,
começando amanhã, mudar o
significado do dedo do meio e a saudação
militar. As normas morais básicas são
diferentes – uma sociedade não pode
decidir não respeitar os direitos. (Alguma
coisa sim, mas não deveriam.) Não se
pode modificar as normas morais por
decreto.

presumidas podem. Uma terceira distinção é não-


contextual versus contextual. As normas não-contextuais
exigem o mesmo comportamento em todas as
circunstâncias, enquanto as normas contextuais exigem
comportamentos diferentes em circunstâncias diferentes.
430

4. Elas servem à cooperação social. As


normas morais permitem que vivamos
bem juntos. Ajudam a garantir que a
sociedade seja um jogo de soma positiva,
onde todos se beneficiam da cooperação
social. (Gert estava certo de que as
normas morais tendem a reduzir o dano,
mas isso não é tudo o que elas fazem.)
Pluralistas e monistas de todos os tipos podem
concordar com essa caracterização de normas
morais. Assim, embora os pluralistas (por definição)
não aceitem um princípio unificador fundamental,
não estão, portanto, presos a ver as normas morais
como um monte desconectado.

PLURALISMO MORAL METODOLÓGICO


O proeminente especialista em bioética e ética
prática, Peter Singer, é um tipo de utilitário de
satisfação de preferências. Singer é famoso por
argumentar por várias conclusões controversas, por
exemplo, (a) que não devemos comer carne, (b) que
devemos dar a maior parte de nosso dinheiro à
caridade, ou (c) que devemos sacrificar recém-
nascidos gravemente incapacitados.275 Essas

Peter Singer, Practical Ethics, 3rd ed. (New York:


275

Cambridge University Press, 2011).


431

conclusões podem seguir a polêmica teoria moral de


Singer. Mas o que é interessante sobre Singer é que
ele não tenta primeiro convencê-lo de sua teoria moral
e deduzir as conclusões dela. Em vez disso, ele apela
para intuições e princípios morais de senso comum
amplamente compartilhados e princípios e intuições
que kantianos, objetivistas, teóricos da lei natural e a
teoria moral falha que sua avó carente já aceita.
Da mesma forma, o filósofo marxista G. A.
Cohen tem algumas visões controversas sobre o
igualitarismo e a justiça. Mas quando ele quer
argumentar em favor do socialismo, não tenta
convencê-lo a adotar sua versão do igualitarismo e
depois lhe mostrar que o socialismo vem daí. Cohen
também não tenta convencer os leitores a aceitar a
economia marxista heterodoxa.276 Em vez disso,
Cohen confia em intuições morais amplamente
compartilhadas, intuições compartilhadas até mesmo
por conservadores, defensores do livre mercado e
libertários. Ele tenta mostrar aos leitores que eles
mesmos já aceitam princípios morais e ideias que
mostram que estão implicitamente comprometidos
com o socialismo.

276 G. A. Cohen, “The Structure of Proletarian


Unfreedom,” Philosophy and Public Affairs 12 (1983): 3–33; p.
24, ele aceita que a “economia burguesa” é basicamente
sólida.
432

Em contraste, considere o economista Murray


Rothbard, que se interessou pela teoria moral. Em “A
Ética da Liberdade”, Rothbard primeiro tenta nos
convencer de que um dos principais princípios morais
– o princípio da não-agressão – é auto-evidente. Ele
então aplica esse princípio dogmaticamente a toda
questão moral. O princípio supostamente óbvio leva a
conclusões bizarras: por exemplo, se meus vizinhos
decidirem deixar seu recém-nascido morrer de fome
em seu gramado, não devo dar um único passo em
sua propriedade para resgatá-lo.277
A razão pela qual Singer e Cohen são bem-
sucedidos na ética prática, enquanto os escritos de
Rothbard parecem não convincentes para quem não
concorda, é que Singer e Cohen apelam para
princípios morais de senso comum amplamente
compartilhados. Ambos têm teorias morais mais
profundas que acreditam justificar, sistematizar ou
explicar os princípios de senso comum. Mas eles
também reconhecem que as próprias teorias são
menos plausíveis do que os princípios de senso
comum. Para debater com seus interlocutores, eles
não começam invocando alguma teoria moral

277 Bryan Caplan faz esta queixa sobre Rothbard em


“Thoughts on Jason Brennan’s The Ethics of Voting,” Reason
Papers 35 (2013): 12. Ele cita Murray Rothbard, The Ethics of
Liberty (New York: New York University Press, 1998), p.
100.
433

altamente abstrata, mas partem de um ponto em


comum. Dizem aos seus parceiros de debate: “Você já
aceita A, B e C. Você não vê que A, B e C juntos
implicam D?”
A boa ética prática parece estar comprometida
com o que poderíamos chamar de pluralismo moral
metodológico. O pluralismo moral metodológico é a
visão de que devemos fazer ética prática como se o
pluralismo rossiano fosse verdadeiro. Um pluralista
metodológico pode aceitar uma teoria moral monista
ou pode ser agnóstico entre monismo e pluralismo.
No entanto, a ideia por trás do pluralismo moral
metodológico é que, embora possamos discordar das
teorias morais fundamentais, provavelmente
podemos concordar com um conjunto compartilhado
de princípios morais de senso comum. Ao tentar
resolver os debates sobre o que fazer aqui e agora,
devemos tentar apelar para os princípios mais óbvios
de nível intermediário, em vez de uma teoria
fundamental menos óbvia.
Por pensar em filosofia política, vemos que há
ainda outra razão para o pluralismo moral
metodológico. A maioria das teorias morais é
altamente abstrata. Perguntar o que o kantianismo
implica sobre a justiça distributiva é um pouco como
perguntar o que as equações de campo de Einstein
nos dizem sobre o caminho de uma pena em queda.
As equações de campo de Einstein descrevem a
434

ordenação geral do espaço-tempo. São complicadas e


muitas vezes não podem ser usadas para cálculos
diretos. São altamente abstratas e desprovidas de
informações empíricas específicas. As equações são
consistentes com mundos radicalmente diferentes
dos nossos, como o universo de Gödel.278 Por si só, as
equações de campo não nos dizem muito sobre uma
pena em queda. Para entender a queda de penas,
usamos modelos e leis físicas intermediárias, e as leis
e modelos que usamos são, em última instância,
compatíveis com a física newtoniana ou a relativista.
Com a teoria de Kant é parecido. Kant vê sua
teoria como altamente abstrata. Pretende aplicar a
todos os seres racionais de qualquer espécie,
incluindo quaisquer possíveis alienígenas racionais
com formas de vida e biologia muito diferentes das
nossas. O próprio Kant acredita que aplicar sua teoria
aos seres humanos e aos modos de vida humanos
exige muito trabalho e depende da antropologia
filosófica, das ciências sociais e do bom senso.279
Kant, em última análise, baseia sua filosofia política
no imperativo categórico, mas leva centenas de

278 Kurt Gödel, “A Remark about the Relationship


between the Theory of General Relativity and Idealistic
Philosophy,” Collected Works: Publications 1948–1974 (Oxford,
UK: Oxford University Press, 2001 [1949]), pp. 202–7.
279 Kant, Practical Philosophy, p. 65; Robert B.
Louden, Kant’s Impure Ethics: From Rational Beings to Human
Beings (New York: Oxford University Press, 2000).
435

páginas de trabalho para chegar lá. Se a filosofia


política de Kant se mostrar errada, essa descoberta
pode não ser porque sua teoria moral é errada, mas
porque o trabalho intermediário está errado.

NÃO HÁ CAMINHO DIRETO DO


PLURALISMO MORAL PARA O
LIBERTARIANISMO – OU QUALQUER OUTRA
TEORIA POLÍTICA
Como se pode argumentar em favor do
libertarianismo por motivos pluralistas?
Francamente, precisa de muito trabalho, mas tudo
bem. O fato de exigir muito trabalho não é uma falha
das teorias morais pluralistas ou do libertarianismo.
(Também levaria muito trabalho ir do pluralismo
moral à maioria das outras teorias políticas
plausíveis.) Os princípios morais básicos – evitar
matar, evitar roubar, cumprir suas promessas – são
óbvios. Mas nenhuma filosofia política particular é
óbvia, e nenhuma deriva diretamente dos nossos
princípios morais básicos.
Se você leu os outros capítulos deste livro, deve
ficar claro que não existe correspondência direta
entre o libertarianismo e qualquer teoria moral
específica. Um liberal ou libertário clássico pode
aceitar qualquer número de teorias morais de fundo,
436

incluindo qualquer uma das listadas neste livro, bem


como outras que não foram escolhidas.
John Rawls e eu concordamos que devemos
considerar as pessoas como um fim em si mesmas.
Concordamos que devemos vários deveres de
reciprocidade, fidelidade, beneficência e não-
maleficência para com os outros. Mas nós
discordamos sobre como aplicar muitos dos nossos
conceitos morais compartilhados. Por exemplo, Rawls
pensa que há uma presunção a favor de uma
distribuição igualitária da riqueza e que os desvios da
igualdade devem ser justificados. Mas por que ele
pensa isso? Na minha opinião, o problema de Rawls
é que ele encontra o que considero uma metáfora
iluminadora enganosa. Na sua opinião, o meu
problema é que eu acho o que ele considera uma
metáfora iluminadora enganosa.
Aqui está a metáfora: suponhamos que,
simultaneamente, encontremos algum recurso que
nenhum de nós tenha reivindicado anteriormente,
como uma torta.280 A maneira mais natural de dividir
a torta – a maneira que causaria menos reclamações
– seria dar a todos uma parte igual. Mas suponhamos
que se tratasse de uma torta mágica que cresceria ou
diminuiria de tamanho dependendo de como a
cortássemos. Nesse caso, se fôssemos racionais, mas

280 Schmidtz, Elements of Justice, pp. 182–83.


437

não invejosos, cada um de nós preferiria uma fatia


maior, mas desigual, a uma fatia igualmente
pequena.
Rawls acha que é bom pensar no “produto
social” – todas as coisas que todos nós produzimos
enquanto trabalhamos juntos – como se fosse uma
torta sem dono. Eu acho enganoso. Eu acho que o
“excedente social” não é como uma torta que todos
nós encontramos na floresta simultaneamente e,
portanto, temos uma reivindicação básica igual sobre
ela. Aqui, minhas discordâncias políticas com Rawls
não são divergências sobre a teoria moral
fundamental, mas sobre algumas das ferramentas
intelectuais intermediárias que usamos para aplicar
nossos princípios morais compartilhados.
Ou considere que G. A. Cohen e eu
compartilhamos muitas das mesmas ideias sobre
como uma pessoa perfeitamente virtuosa seria. No
entanto, Cohen e eu discordamos sobre como seria
uma sociedade perfeitamente justa. Ele acredita que
os anjos perfeitos viveriam sob uma espécie de
anarco-socialismo, enquanto eu considero que os
anjos perfeitos viveriam predominantemente sob uma
espécie de anarcocapitalismo cooperativo,
438

voluntarista, como visto na série de TV infantil Mickey


Mouse Clubhouse.281
Ainda assim, nossa discordância não é sobre
valores fundamentais ou teoria moral. Em vez disso,
como argumentei em outro lugar, Cohen cometeu um
erro simples. Ele comparou uma forma idealizada de
socialismo (uma sociedade socialista habitada por
anjos) com capitalismo realista (uma sociedade
capitalista habitada por pessoas reais, falhas e tudo)
e concluiu que a forma ideal de socialismo era melhor.
Então erroneamente concluiu que isso significa que o
socialismo é melhor tout court, sem que pare para
perguntar como um sistema capitalista habitado por
anjos funcionaria. Aqui, o problema não é que Cohen
e eu discordamos da teoria moral, mas discordamos
sobre como aplicar essa teoria. Estamos discordando
não dos padrões fundamentais pelos quais julgar as
coisas desejáveis, mas sim de quão bem diferentes
instituições atenderiam a esses padrões, porque
temos disputas empíricas e conceituais sobre o que
essas instituições fazem.
Além disso, é implausível pensar que alguém
possa derivar o libertarianismo de algumas premissas
morais sem precisar considerar questões empíricas
extensivamente. Parte do que uma filosofia política
tenta fazer é determinar os padrões pelos quais julgar

281 Cohen, Why Not Socialism?; Brennan, Why Not


Capitalism?
439

as instituições sociais. Instituições sociais – como a


propriedade privada, a democracia ou a família
nuclear – são “as regras do jogo numa sociedade (…)
as restrições humanamente concebidas que moldam
a interação humana”.282 Toda grande teoria moral,
seja consequencialista ou não, sustenta que pelo
menos parte do que justificaria ou condenaria várias
instituições é como essas instituições podem
funcionar. Para isso, precisamos de economia,
sociologia, ciência política e história.
Agora, considere que o filósofo Joseph Heath e
eu discordamos sobre quais instituições seriam
melhores no mundo real, dado que as pessoas não
são anjos. Aqui, nosso desacordo decorre não tanto
de diferenças em valores morais, ou mesmo princípios
de justiça, mas de divergências empíricas. Ele
acredita que os mercados são mais propensos ao
fracasso do que eu, ao passo que acredito que os
governos são mais propensos ao fracasso do que ele.
Nós dois concordamos mais ou menos sobre o que
significa governos e mercados funcionarem, mas
discordamos sobre o quão bem eles funcionam.

LIBERTARIANISMO COMO PADRÃO

282 Douglas North, Institutions, Institutional Change, and

Economic Performance(New York: Cambridge University


Press, 1990), p. 3.
440

Com essas ressalvas à parte, a estratégia mais


promissora para os pluralistas morais que querem
justificar conclusões liberais clássicas é a mesma
estratégia que Huemer toma neste volume. Pode-se
começar observando que a moralidade interpessoal
do senso comum parece ser libertária. Em nossas
relações cotidianas umas com as outras parecemos
limitados por restrições libertárias. Mesmo em países
não liberais, a maioria das pessoas geralmente acha
que é moralmente certo deixar as pessoas em paz,
desde que elas não prejudiquem os outros.
Considere: não estou autorizado a usar
violência ou ameaças de violência para conseguir que
você siga minha religião, coma alimentos mais
saudáveis ou pare de fumar cigarros. Não posso forçá-
lo a lutar contra meus inimigos ou a dar seu dinheiro
a causas dignas, não importa quão dignas sejam. Não
posso forçar meus vizinhos a comprar tomates do
meu jardim em vez de tomates da rua ou do outro
lado do mundo. Se meu vizinho quer vender ou alugar
sua casa para pessoas de fora do bairro, não posso
pará-lo. Se eu optar por gastar meu dinheiro
educando os filhos do meu vizinho, não posso exigir
que os vizinhos me paguem um terço de sua renda
até morrerem. E assim por diante. Novamente, em
nossas relações cotidianas umas com as outras
parecemos sujeitos a restrições libertárias.
441

O que torna os libertários incomuns é que eles


acreditam que a maioria ou todas essas restrições e
proibições se aplicam também aos agentes do
governo. Por várias razões, as pessoas que possuem
ideologias acreditam que o governo e seus agentes
estão isentos de algumas ou de todas essas
proibições.
Eles podem estar certos! Não estou acusando o
outro lado de ter inconsistências obviamente
absurdas e despercebidas. Pelo contrário, pode
acontecer que exista uma justificativa filosófica para
permitir que os governos façam coisas para nós que
não podemos fazer uns aos outros. Talvez essa
justificativa implique até mesmo que a razão pela qual
a moralidade do dia a dia é tão libertária é que a
moralidade da ação estatal não é. É uma questão em
aberto.
Ainda assim, de uma perspectiva pluralista, a
melhor maneira de defender o libertarianismo é
começar com a observação de que a moralidade do
dia a dia é libertária. Existe uma presunção de
liberdade. Por padrão, presumimos que as pessoas
devem ser livres para viver da maneira que melhor
entenderem, sem ter que pedir permissão ou se
justificar a outras pessoas. Por padrão, todas as
restrições à liberdade são consideradas erradas e
injustas, até que seja mostrado o contrário. A
interferência coercitiva na liberdade dos outros deve
442

ser justificada. A autoridade política e todas as leis


são consideradas injustificadas até que se demonstre
o contrário.
Pode-se então voltar-se para os não-libertários
e dizer: “Olha, não sou um absolutista. Não estou
batendo na mesa e dizendo que a presunção da
liberdade nunca pode ser superada. Só estou dizendo
que tem que ser superada. Você pode me explicar por
que devemos conceder poderes a governos que
proíbem indivíduos particulares?”
Os não-libertários terão prazer em objetar. Eles
têm muitos argumentos em oferta. Lembre-se, na
visão deles, conclusões não libertárias são, em última
análise, fundamentadas em ideias morais de senso
comum também.
Assim, o passo final é refutar esses
argumentos, partindo de premissas morais
compartilhadas e confiando em premissas empíricas
incontroversas ou bem estabelecidas quanto
possíveis.283 É improvável que você chegue a um
argumento decisivo para o libertarianismo. Em vez
disso, você pode ver os não-libertários como fazendo
uma série de argumentos separados como estes: “será
um desastre se não tivermos o governo fazendo x.”

283 Por exemplo, veja Jason Brennan, Libertarianism:

What Everyone Needs to Know (New York: Oxford University


Press, 2012).
443

“Será um desastre se não tivermos o governo fazendo


y.” Você precisará mostrar, para cada x e y, que
capacitar o governo a fazer x e y não funciona ou não
vale a pena.

ARGUMENTO DE RAWLS PARA A JUSTIÇA


SOCIAL
Eu terminarei dando um exemplo de um
desafio ao libertarianismo a partir de Rawls.
Libertários às vezes são rápidos em dizer que os
impostos parecem roubo. Como todos concordam que
o roubo está errado, parece que nossas intuições
morais básicas comuns proíbem a taxação coercitiva.
Os liberais de esquerda e até os marxistas concordam
que as pessoas não deveriam roubar, então por que
eles prefeririam taxar Pedro para pagar Paulo? Nesta
seção, explicarei por que não podemos simplesmente
derivar a política libertária diretamente ou com
facilidade do dever presumido amplamente aceito de
evitar o roubo. Considere isto como uma ilustração do
meu ponto anterior: ir do pluralismo moral ao
libertarianismo é difícil.
Os libertários costumam dizer que quando o
governo o cobra e redistribui sua renda a outros, isso
444

“está em par com o trabalho forçado”.284 É como se eu


gastasse 700 das minhas 2.000 horas de trabalho,
trabalhando para o benefício de outras pessoas em
vez dos meus. Não tenho escolha – o governo não me
deixa ser pago pelas 1300 horas restantes, a menos
que concorde em pagar as 700 horas de renda. Assim,
à primeira vista, parece que os libertários estão certos
– a taxação é roubo ou, pior, uma espécie de
escravidão moderada.
Talvez a tributação se torne um tipo de roubo.
Mas vale a pena ver que Rawls tem uma resposta de
princípio a essa acusação. Para entender por quê,
precisamos dar um passo para trás e perguntar: “O
que justifica a instituição da propriedade privada em
primeiro lugar?”
John Locke – apesar de ser um ardente
defensor do direito de manter e usar propriedade
privada – observa que, em primeira instância, a
propriedade privada parece limitar a propriedade de
outras pessoas. Para entender por que, imagine um
mundo em que ninguém ainda possua nada. Todo
mundo é livre para ir onde gosta e usar o que quer.
Quando a primeira pessoa cerca um terreno e declara
que é dele, ele reduz, em primeiro lugar, a liberdade
de outras pessoas. Antes costumavam ir a qualquer
lugar, mas agora há 40 acres que não podem tocar. E

284 Por exemplo, veja Robert Nozick, Anarchy, State,


and Utopia (New York: Basic Books, 1974), p. 169.
445

assim, Locke percebe, precisamos justificar a


“apropriação original”. Não será suficiente dizer que
você ganha o direito à terra “misturando seu
trabalho” com ela. Afinal, quando você privatiza
terras sem proprietários, reduz a liberdade dos
outros. Então você precisa compensá-los de alguma
forma.
Locke acredita que todo mundo é realmente
compensado. A terra sem proprietários não é
produtiva, enquanto a terra privatizada pode ser
10.000 vezes mais produtiva. Então, pensa Locke,
quando a terra é parcelada e privatizada, e quando as
pessoas conseguem vender os produtos de suas
terras em um mercado, o efeito sistemático é que
todos desfrutam de muito mais riqueza do que sob
um sistema sem propriedade privada. Ele está
absolutamente certo. O americano médio que vive
hoje desfruta de um padrão de vida 60 vezes maior
(sim, 60) que o colono europeu médio de 1600.285
Assim, os americanos são mais capazes de realizar
suas concepções de boa vida e ter mais poder para
alcançar seus objetivos.

285 Veja os dados de Angus Maddison sobre o


produto interno bruto per capita histórico, disponível em
sua página. Veja também Angus Maddison, Contours of the
World Economy, 1–2030 AD: Essays in Macroeconomic History (New
York: Oxford University Press, 2003).
446

Com efeito, Locke acredita que o que justifica a


instituição da propriedade privada é que ela tende a
deixar mais e melhor para os outros. Mas ele não está
afirmando que todas as transações individuais devem
beneficiar todo mundo. Não é como se você não
pudesse vender seu violão ao seu amigo, a menos que
isso ajudasse literalmente todo mundo na Terra. Em
vez disso, Locke apenas significa que as regras da
propriedade privada como um todo tendem a
melhorar a situação de todos.
O libertário Nozick e o liberal de esquerda
Rawls concordam. Parte do que justifica a instituição
da propriedade privada é que as pessoas tendem a ter
uma vida muito melhor do que sem ela. Mas é aí que
Locke e Nozick começam a discordar de Rawls.
Discordam sobre o quanto a instituição da
propriedade privada deve beneficiar a todos para ser
justificável. Para Locke e Nozick, é mais ou menos
suficiente as pessoas estarem melhor com ela do que
sem ela. Rawls tem um padrão mais rígido – ele
acredita que, para um sistema particular de
propriedade privada ser justificado, deve tender a
assegurar que o membro representativo da classe
trabalhadora menos favorecida se saia melhor do que
sob sistemas alternativos de propriedade privada.286

286 Rawls, Theory of Justice, p. 80.


447

Rawls acredita que atender a essa norma


exigirá uma série de governos centrais fortes,
controlados democraticamente, que (a) regulam a
economia de várias maneiras e (b) fornecem várias
formas de seguro social. O argumento de Rawls é com
efeito isto:
1. Reivindicação normativa. Qualquer
regime particular de propriedade privada
só se justifica se satisfizer o seguinte
princípio: tender a assegurar que o
membro representativo da classe
trabalhadora menos favorecida, pelo
menos, esteja melhor do que sob regimes
alternativos.
2. Reivindicação empírica. Se quisermos
atingir o padrão em 1, é necessário ter
um governo liberal social-democrata, que
imponha aos cidadãos o seguro social.
3. Implicação de 1 e 2. Quando o governo
tributa os cidadãos (em qualquer
quantidade que seja necessária para
cumprir as obrigações descritas em 1), os
cidadãos não têm direito a esse dinheiro.
Em vez disso, o governo tem direito ao
dinheiro. Se os cidadãos não pagarem
impostos, estarão roubando do governo.
Se Rawls está certo, quando o governo me
cobra, não é necessariamente roubo. Pelo contrário,
448

pode estar apenas fazendo o que é necessário para


garantir que o sistema de propriedade privada seja
justificado em primeiro lugar. Assim, se libertários
querem desafiar Rawls, não será declarando que os
impostos são roubo. Eles podem estar certos, isso é
uma conclusão de sua teoria dos direitos de
propriedade, não uma premissa. Assim, libertários
precisam atacar a premissa normativa de Rawls (1)
ou sua premissa empírica (2). Ou seja, precisam
mostrar que seus padrões para justificar o sistema de
propriedade privada são muito rigorosos – talvez
defendendo uma teoria superior da legitimidade dos
direitos de propriedade privada – ou precisam
mostrar que um sistema libertário pode atender a
esses padrões rigorosos.287

RESUMO
O pluralismo rossiano é uma boa teoria para
começar e terminar. É uma boa teoria para começar,
porque descreve com precisão o que é ser um agente
moral. As outras teorias morais parecem artificiais,
porque são de fato artificiais. O pluralismo rossiano é
uma descrição do que realmente fazemos, na vida
real, como pessoas que tomam decisões morais.

287 Por exemplo, veja John Tomasi, Free Market


Fairness (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2012).
449

É razoável esperar por mais (ou, em certo


sentido, por menos). É razoável – é uma boa
metodologia filosófica – procurar uma teoria mais
simples que reduza o máximo possível de princípios
morais básicos. É uma boa metodologia tentar
encontrar uma explicação unificada para o que
separa o certo do errado, o bom do mau, o virtuoso
do vicioso. Mas essa é uma boa metodologia apenas
se não acabarmos produzindo uma teoria vazia ou
absurda no processo. O problema com tantas das
nossas teorias morais de uma sentença – sejam elas
kantianas, virtudes éticas ou consequencialistas – é
que elas tendem a ser vazias ou absurdas.
Assim, depois de repetidamente tentarmos,
mas não conseguirmos fazer com que uma teoria
monista funcione, poderíamos querer voltar para
onde começamos. Ainda há muitas questões que os
teóricos da moral podem tentar responder, tais como:
Que tipos de verdades são verdades morais? O que
torna as verdades morais verdadeiras? Como o
conhecimento moral é possível? E se a moralidade é
melhor descrita como sendo a tabela periódica de
elementos, qual é a melhor maneira de desenhar essa
tabela? No final, não devemos exigir mais precisão de
uma teoria do que o fenômeno que está sendo
estudado admite.
O pluralismo rossiano não oferece uma defesa
de sessenta segundos do libertarianismo – ou
450

qualquer outra filosofia política. Mas isso não é uma


coisa ruim. Seria bastante surpreendente se
pudéssemos derivar uma filosofia política
diretamente de uma teoria moral básica, sem ter que
primeiro estudar economia e ciência política para
aprender como as instituições realmente funcionam.
Alguns libertários são atraídos por teorias morais que
lhes permitem contornar este difícil passo, da mesma
forma que alguns homens carecas querem comprar
fórmulas milagrosas para o crescimento dos cabelos.
Se levarmos as coisas a sério, porém, teremos que
admitir que nossas ideias morais básicas
subdeterminam por conta própria como a política
deve ser, e precisaremos entender uma economia
política robusta para fazer uma determinação final
sobre o que a justiça exige.
451

LEITURAS RECOMENDADAS
Os editores de “Argumentos para a Liberdade”
pediram ao autor de cada capítulo que recomendasse
livros ou artigos sobre sua teoria moral. Além das
sugestões a seguir, os leitores podem encontrar
muitos artigos úteis online na Enciclopédia de
Filosofia de Stanford (plato.stanford.edu) e na Internet
Encyclopedia of Philosophy (www.iep.utm.edu). Cada
uma das teorias morais deste livro tem uma entrada
introdutória abrangente em uma ou ambas as fontes.
Capítulo 1: Utilitarismo
Christopher Freiman recomenda:
Rachels, James, and Stuart Rachels. The
Elements of Moral Philosophy, Chapters 7 and 8. New
York: McGraw-Hill, 2015.
“Uma boa introdução ao utilitarismo, ilustrado
com muitos exemplos do mundo real.”
Mill, John Stuart. Utilitarianism. New York:
Oxford University Press, 1998.
“A defesa clássica do utilitarismo. A escrita de
Mill é acessível mesmo para aqueles sem experiência
em filosofia.”
452

Rauch, Jonathan. Government’s End: Why


Washington Stopped Working. New York: Public Affairs,
1999.
“Rauch fornece uma introdução acessível à
teoria da escolha pública, que está no coração do caso
utilitarista do libertarianismo”.
Capítulo 2: Direitos Naturais
Eric Mack recomenda:
Nozick, Robert. Anarchy, State, and Utopia. New
York: Basic Books, 1974.
“Esta é uma defesa cintilante dos direitos
naturais do libertarianismo de Estado mínimo que
quase sozinho reviveu o interesse acadêmico nas
doutrinas libertárias. Nozick argumenta que, se
alguém leva a sério a importância separada de cada
indivíduo, deve reconhecer o direito de cada indivíduo
de viver livre de interferências coercivas. Ele
argumenta que os direitos fundamentais são
justificadamente impostos por um Estado mínimo
que evita a redistribuição coercitiva, a imposição
coercitiva da moral e o paternalismo coercitivo ”.
Locke, John. Second Treatise of Government (muitas
edições, mas veja a edição de 1980 de Hackett
Publishing, Indianapolis).
“Este é o tratado político mais importante de
Locke, e é o trabalho chave do liberalismo clássico
453

inicial. Locke começa com argumentos sobre por que


os indivíduos possuem direitos naturais à vida, à
liberdade e à propriedade e sustenta que os
indivíduos consentiram racionalmente em formar
uma sociedade política dedicada à proteção desses
direitos. Apenas um governo fundamentalmente
focado na proteção desses direitos é moralmente
legítimo. Os indivíduos e a sociedade política têm o
direito de descartar e substituir qualquer governo que
ameace esses direitos”.
Mack, Eric. John Locke. New York: Bloomsbury,
2013.
“Este é um relato geral e acessível do
liberalismo clássico orientado por direitos de Locke.
Ele contrasta Locke com escritores autoritários
cruciais de seus dias e relata e explica a afirmação de
Locke dos direitos naturais à vida, liberdade –
incluindo liberdade religiosa – e propriedade. Outros
temas incluem a explicação de Locke para por que as
ordens do livre mercado de propriedade privada
provavelmente serão benéficas para todos, a defesa de
Locke da resistência contra o domínio tirânico e a
influência de Locke na Revolução Americana.”
Bader, Ralf. Robert Nozick. New York:
Bloomsbury, 2013.
“Este é um relato geral e acessível da doutrina
libertária desenvolvida por Nozick em Anarquia,
454

Estado e Utopia. Explica a afirmação de Nozick de


direitos individuais, sua abordagem complexa de por
que o Estado mínimo é legítimo, a sua defesa do
entendimento do ‘direito histórico’ da justiça nas
propriedades, sua crítica dos argumentos em favor da
redistribuição coercitiva e sua alegação de que o
Estado mínimo é inspirador porque fornece uma
estrutura dentro da qual todas as pessoas podem
perseguir suas visões de utopia.”
Capítulo 3: Kantianismo
Jason Kuznicki recomenda:
Kant,
Immanuel. Kant’s Critique of Practical Reason and Other W
orks on the Theory of Ethics, trans. Thomas Kingsmill
Abbott, BD, Fellow and Tutor of Trinity College,
Dublin, 4th revised ed. London: Longmans, Green,
and Co., 1889.
“Ao contrário da crença popular, a escrita de
Kant nem sempre é obscura. Os leitores interessados
devem começar na fonte.”
Kant,
Immanuel. Kant’s Principles of Politics, including his essay
on Perpetual Peace. A Contribution to Political Science, trans.
W. Hastie. Edinburgh: T. & T. Clark,1891.
“Os leitores devem se voltar para cá seguindo a
Crítica da Razão Prática.”
455

Kant, Immanuel. The Philosophy of Law: An


Exposition of the Fundamental Principles of Jurisprudence as the
Science of Right, trans. W. Hastie Edimburgo: T. & T.
Clark, 1887.
“A Filosofia do Direito é um volume de língua
inglesa de domínio público que contém uma tradução
da Metafísica das Morais e de ambas as partes da
Ciência do Direito. No último trabalho em particular,
Kant mostrou mais claramente como sua política e
ética estavam relacionadas, e desenvolveu sua teoria
distinta da propriedade privada.”
Nozick, Robert. Anarchy, State, and Utopia,
Chapter 3. New York: Basic Books, 1974.
“Tendo lido as obras de Kant destacadas
anteriormente, as conexões com o libertarianismo
moderno são fáceis de rastrear – especialmente no
terceiro capítulo da obra-prima de Nozick.”
White, Mark D. Kantian Ethics and
Economics. Stanford, CA: Stanford University Press,
2011.
“O livro de White preenche muitos dos espaços
em branco que Kant deixou na ética da atividade de
mercado. Os leitores podem verificar se concordam
com White referenciando a “Ideia para uma história
universal de Kant em uma perspectiva cosmopolita. ”
Capítulo 4: Contratualismo
456

Jan Narveson recomenda:


Narveson, Jan. You and The State. Lanham, MD:
Rowman & Littlefield, 2009.
“Esta é uma introdução geral à filosofia política,
e a única que conheço que elabora o libertarianismo
que este artigo traz, ao mesmo tempo em que examina
com mais profundidade várias outras teorias.”
Gauthier, David. Morals by Agreement. New York:
Oxford University Press, 1986.
“Esse é um clássico da filosofia moral e
influenciou muito meu próprio trabalho. Gauthier
afirma não ser um libertário, mas eu não vejo por quê!
(Veja Jan Narveson, “The Only Game in Town”, a ser
publicado em breve na revista filosófica
canadense Dialogue.) ”
Friedman, Mark. Libertarian Philosophy in the Real
World. London and New York: Bloomsbury, 2015.
“Friedman discute muitos problemas do mundo
real com o objetivo de realmente aplicar a filosofia
libertária. Interessante por mostrar a complexidade
desse projeto. (O assunto das fundações libertárias
não é discutido, mas os leitores poderão ver onde a
aplicação da teoria contratualista pode ser útil.”
Schmidtz, David. The Elements of
Justice. Cambridge, UK: Cambridge University Press,
2006.
457

“Este livro lindamente escrito também examina


as principais ideias sobre justiça e, em geral, apoia
uma visão liberal sobre algo não muito distante da
minha abordagem contratualista.”
Capítulo 5: Rawlsianismo
Kevin Vallier recomenda:
Rawls, John. A Theory of Justice. Cambridge, MA:
Belknap Press of Harvard University Press, 1971.
Rawls, John. Political Liberalism. New York:
Columbia University Press, 1993.
“Esses dois livros representam as duas obras
mais importantes da filosofia política de Rawls, que
descrevem os projetos que Tomasi e Gaus
desenvolvem em suas obras.”
Tomasi, John. Free-Market Fairness. Princeton,
NJ: Princeton University Press, 2012.
Gaus,
Gerald. The Order of Public Reason. Cambridge, UK:
Cambridge University Press, 2010.
“Tomasi baseia-se em A Theory of Justice e o
trabalho de Gaus é semelhante ao projeto de Rawls
no Political Liberalism“.
Capítulo 6: Ética da Virtude
Mark LeBar recomenda:
458

LeBar, Mark. “The Virtue of Justice, Revisited,”


em The Handbook of Virtue Ethics, ed. Stan van Hooft.
New York: Acumen Press, 2014, pp. 265–75.
“Uma breve pesquisa sobre o pensamento grego
antigo sobre a justiça e a maneira como ele pode se
beneficiar dos modernos insights éticos, incluindo a
necessidade de respeito pelos outros.”
LeBar, Mark. “Virtue and Politics,”
em Cambridge Companion to Virtue Ethics, ed. Daniel C.
Russell. Cambridge, UK: Cambridge University Press,
2013, pp. 265–89.
“Aqui argumento que as implicações políticas
das teorias éticas da virtude devem ser bastante
limitadas para se conformarem às restrições das
teorias políticas liberais (em particular aquelas que
vêem a necessidade de justificação de sua autoridade
coercitiva para aqueles que governam)”.
Rasmussen, Douglas, e Douglas Den Uyl. Norms
of Liberty. University Park, PA: Penn State University
Press, 2005.
“Uma excelente abordagem abrangente de que
a virtude exige liberdade e uma ordem política que
deixa o desenvolvimento e o exercício da virtude para
o indivíduo. ”
Capítulo 7: Objetivismo
Neera K. Badhwar recomenda:
459

Rand, Ayn. We the Living. New York: New


American Library, 1936.
“We the Living, o primeiro romance de Rand, é
seu único trabalho autobiográfico. É, no entanto, o
que ela chamou de “uma autobiografia de uma ideia”,
não uma descrição detalhada de sua própria vida. We
the Living, mostra como o totalitarismo exalta o pior e
destroi o melhor”.
Rand, Ayn. The Fountainhead. New York: Plume,
1994.
“O romance retrata o homem ideal como
alguém de visão e integridade – um homem que vive
sua moral e consegue superar as forças da ignorância
e da mediocridade. Rand queria mostrar que tal
indivíduo pode inspirar os outros e ter sucesso em
uma sociedade (mais ou menos) livre, a sociedade dos
Estados Unidos da década de 1940. Nesse
aspecto, The Fountainhead é o oposto de We the Living.”
Rand, Ayn. Atlas Shrugged. New York: New
American Library, 1959.
“Atlas Shrugged é motivado por uma visão mais
sombria. É ambientado em uma América na qual
alguns indivíduos honestos e visionários lutam
contra as forças do coletivismo até que não possam
mais lutar, e decidem entrar em greve. Esta não é a
greve dos trabalhadores convencionais, mas uma
greve de inventores, atores, escritores,
460

empreendedores e industriais, que escolhem parar de


trabalhar por um mundo que os vitimiza. O romance
é povoado por empresários, políticos e burocratas
vilões e medíocres – uma “aristocracia de influência”
– que está arruinando a América e dá um vislumbre
de um mundo ideal, a Atlântida.”
Rand, Ayn. Capitalism: The Unknown Ideal. New
York: New American Library, 1967.
Rand, Ayn. The Virtue of Selfishness: A New Concept
of Egoism. New York: New American Library, 1964.
“Esses livros contêm muitos artigos sobre
direitos, governo, sociedade e ética. ”
Capítulo 8: Intuicionismo Ético
Michael Humer recomenda:
Huemer, Michael. The Problem of Political
Authority. New York: Palgrave Macmillan, 2013.
“Este livro explica por que você deve ser cético
sobre a autoridade e como isso apoia o
libertarianismo”.
Huemer, Michael. Ethical Intuitionism. New York:
Palgrave Macmillan, 2005.
“Este livro defende o intuicionismo ético contra
visões alternativas”.
461

Huemer, Michael. “Is There a Right to


Immigrate?” Social Theory and Practice 36 (2010): pp.
429–61.
“Este artigo usa algumas intuições éticas de
bom senso para argumentar contra restrições à
imigração.”
Huemer, Michael. “America’s Unjust Drug War”
em The New Prohibition, ed. Bill Masters. St. Louis, MO:
Accurate Press, 2004, pp. 133–44.
“Este artigo usa algumas intuições éticas de
bom senso para argumentar contra a proibição das
drogas.”
Capítulo 9: Pluralismo Moral
Jason Brennan recomenda:
Shafer-Landau, Russ. What Ever Happened to Good
and Evil? Oxford, UK: Oxford University Press, 2003.
“Um texto de um importante teórico moral que
defende o pluralismo de valor, o intuicionismo e o
realismo moral.”
Ross, W. D., The Right and the Good. Indianapolis,
IN: Hackett, 1988.
“O texto clássico de Ross é talvez o primeiro
grande exemplo de uma teoria moral pluralista”.
462

Schmidtz, David. Elements of Justice. Cambridge,


UK: Cambridge University Press, 2006.
“Schmidtz desenvolve uma teoria pluralista da
justiça baseada em quatro elementos principais:
mérito, reciprocidade, necessidade e igualdade”.
Brennan, Jason. Libertarianism: What Everyone
Needs to Know. Oxford, UK: Oxford University Press,
2012.
“Uma explicação do libertarianismo que
depende em grande parte da teoria moral pluralista”.
Autores
Neera K. Badhwar é professora emérita de
filosofia na Universidade de Oklahoma e
pesquisadora sênior do Programa F. A. Hayek de
Estudos Avançados em Filosofia, Política e Economia
do Mercatus Center da George Mason University. É
autora de artigos sobre diversos temas em teoria ética
e psicologia moral. Well-Being: Happiness in a Worth- while
Life (2014). Ela também editou Friendship: A
Philosophical Reader (1993).
Jason Brennan é vinculado a cadeira de
Estratégia, Economia, Ética e Políticas Públicas
da Robert J. and Elizabeth Flanagan Family na McDonough
School of Business, Universidade de Georgetown. Ele
é autor de sete livros, incluindo Against
Democracy (2016) e Markets Without Limits (2015).
463

Christopher Freiman é professor associado de


filosofia no College of William and Mary. Ele é formado
pela Duke University (Bacharel em Filosofia) e pela
Universidade do Arizona (Mestrado e doutorado em
Filosofia). Seus interesses de pesquisa incluem
justiça distributiva, imigração e teoria democrática.
Seu trabalho tem aparecido em locais como
o Australasian Journal of Philosophy, Philosophical Studies,
Philosophy and Phenomenological Research, Journal of Ethics
and Social Philosophy e The Oxford Handbook of Political
Philosophy. Seu site é www.cfreiman.com e ele escreve
para o www.bleedingheartlibertarians.com.
Michael Huemer recebeu seu bacharelado da
Universidade da California, Berkeley, em 1992, e seu
PhD da Rutgers University em 1998. Ele atualmente
é professor de filosofia na Universidade do Colorado
em Boulder. Ele é autor de aproximadamente 60
artigos acadêmicos em ética, epistemologia, filosofia
política e metafísica, bem como quatro
livros: Skepticism and the Veil of
Perception (2001), Ethical Intuitionism (2005), The Problem
of Political Authority (2013), e Approaching Infinity (2016).
Jason Kuznicki é PhD em história intelectual da
Universidade Johns Hopkins, focado no Iluminismo.
Ele é o editor do Cato Unbound, um periódico mensal
de ideias. Ele foi editor assistente da Encyclopedia of
Libertarianism. Seu primeiro livro, Technology and the End
464

of Authority, foi publicado pela Palgrave Macmillan na


primavera de 2017.
Mark LeBar é professor de filosofia na
Universidade Estadual da Flórida. Ele trabalha em
filosofia moral, social e política. Seu livro The Value of
Living Well (2013) é um desenvolvimento da teoria ética
eudemonista contemporânea. Ele agora está
trabalhando para estender essa abordagem do
eudemonismo a questões sobre a natureza e a origem
da virtude da justiça, e ele está editando um livro
sobre o desenvolvimento da justiça como uma
virtude. Ele co-editou Equality and Public Policy (2014), é
editor da Social Theory and Practice, e publicou em
revistas
incluindo Ethics, American Philosophical Quarterly, Philoso
phical Studies, Canadian Journal of Philosophy,
and Pacific Philosophical Quarterly.
Eric Mack é professor de filosofia na
Universidade de Tulane e membro do corpo docente
do Instituto Murphy de Economia Política da
universidade. Seus muitos ensaios acadêmicos
enfocam as fundações morais dos direitos, a natureza
dos direitos naturais adquiridos, os direitos de
propriedade e a justiça econômica, o escopo legítimo
das instituições coercivas e a história da teoria
política liberal e libertária clássica. Seus ensaios
recentes e representativos incluem “John Locke’s
Defense of Commercial Society“ em Wealth, Commerce,
465

and Philosophy; “Elbow Room for Self-Defense” in Social


Philosophy and Policy; “Elbow Room for Rights”
em Oxford Studies in Political Philosophy; “Nozickan
Arguments for the More-Than-Minimal State” em The
Cambridge Companion to Anarchy, State, and Utopia;
“Lysander Spooner: Nineteenth-Century America’s
Last Natural Rights Theorist” em Social Philosophy and
Policy; e “Robert Nozick’s Political Philosophy”
em Stanford Encyclopedia of Philosophy. Ele é autor de John
Locke (2009).
Jan Narveson é ilustre professor emérito da
Universidade de Waterloo, no Canadá. Ele publicou
sete livros, notadamente The Libertarian Idea (1988 and
2001), You and the State (2008), e This Is Ethical
Theory (2010). É autor de várias centenas de artigos e
resenhas em revistas e coleções filosóficas, entre elas
“Pacifism, a Philosophical Analysis” (1965); “A Puzzle
About Economic Justice in Rawls’ Theory” (1976);
“Deserving Profits” (1995); “The Invisible Hand”
(2003); e “Cohen’s Rescue” (2010). Em 2003, ele foi
nomeado Oficial da Ordem do Canadá. Ele fundou e
por décadas liderou a Kitchener-Waterloo Chamber
Music Society.
Kevin Vallier é professor associado de filosofia
na Bowling Green State University. Sua pesquisa
enfoca a filosofia política, a ética normativa, a
economia política e a filosofia da religião. Vallier é o
autor da Liberal Politics and Public Faith: Beyond
466

Separation (2014) and Must Politics Be War? In Defense of


Public Reason Liberalism no prelo pela Oxford University
Press.

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