Você está na página 1de 230

Universidade de Lisboa

Instituto de Ciências Sociais

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»:


Dinâmicas de etnicidade e identidade nacional no bairro PSK,
distrito de Boane, sul de Moçambique

Vânia Manuel Pedro

Orientadores:
Doutor Paulo Jorge Granjo Simões
Doutor Paolo Israel

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor em Antropologia,


Especialidade de Antropologia da Etnicidade e do Político

2022
2

Universidade de Lisboa

Instituto de Ciências Sociais

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»:


Dinâmicas de etnicidade e identidade nacional no bairro PSK, distrito de Boane, sul de
Moçambique

Vânia Manuel Pedro

Orientadores:
Doutor Paulo Jorge Granjo Simões & Doutor Paolo Israel

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor em Antropologia,


Especialidade de Antropologia da Etnicidade e do Político.

Júri:
Presidente: Doutora Ana Margarida de Seabra Nunes de Almeida, Investigadora
Coordenadora e Presidente do Conselho Científico do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa.

Vogais:
-PhD Brigitte Bagnol, Research Associate, Department of Anthropology, University of
Witwatersrand, South Africa;
-Dr. Nikkie Wiegink, Department of Cultural Anthropology, Utrech University, Países Baixos;
-Doutora Teresa Maria da Cruz e Silva, Professora Catedrática, Centro de Estudos Africanos da
Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique;
-Doutor José Manuel Rodrigues Ferreira Sobral, Investigador Principal com Habilitação,
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa;
-Doutor Paulo Jorge Granjo Simões, Investigador Auxiliar, Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa, orientador.

Bolsa de estudos financiada pelo Instituto Superior de Artes e Cultura de Moçambique


2022
ii

Dedicatória

À memória da minha mãe Felismina Cândida Mazivila, doutora Honoris causa da minha vida.

À memória de Ana Esperança Jafete Gule, pela sororidade que me emprestou em vida.

iii

iv

Resumo

Esta tese propõe uma análise das dinâmicas da etnicidade e da identidade nacional, a partir
dos Makonde residentes no bairro Paulo Samuel Kankhomba (PSK), no distrito de Boane,
província de Maputo, sul de Moçambique. O material empírico que sustenta essa discussão resulta
de doze meses de trabalho de campo no bairro. Durante esse período interagi, entrevistei e convivi
com os Makonde residentes no bairro e com algumas pessoas de outros grupos etnolinguísticos.
Explorei temas como a formação e povoamento do bairro, a convivência entre os diferentes grupos
etnolinguísticos residentes no bairro e observei momentos importantes para os Makonde como os
ritos de iniciação, as performances de mapiko e o uso que estes fazem do Shimakonde. Igualmente
presenciei algumas reuniões entre a chefia do bairro e a população, assim como alguns feriados.

Distancio-me das abordagens essencialistas que concebem a etnicidade e a identidade nacional


como entidades estáticas, dadas como adquiridas e inalteráveis ao longo do tempo. Nesse sentido,
olho para a etnicidade e para a identidade nacional em sintonia com os tempos e como idiomas
que podem existir de forma paralela com outros. Esse posicionamento teórico significa conceber
a etnicidade como ferramenta de sociabilidade e interacção entre os indivíduos e não como algo
que amordaça os actores sociais dentro das suas fronteiras e que os mantém apenas próximos das
pessoas com quem partilham o grupo etnolinguístico. Argumento que a identidade Makonde é um
processo ainda em curso e que a sua manifestação é diferente em função do momento sociopolítico
e económico. Igualmente, argumento que a etnicidade, assim como a identidade nacional,
manifesta-se em momentos específicos e de forma também específica para os Makonde da
primeira e da segunda geração.

Palavras-chave: Makonde, etnicidade, identidade, PSK, Moçambique.

v

Abstract

This thesis proposes an analysis of the dynamics of ethnicity and national identity, from the
Makonde living in the Paulo Samuel Kankhomba (PSK) neighborhood, in the district of Boane,
province of Maputo, southern Mozambique. The empirical material that supports this discussion
results from twelve months of fieldwork in the PSK neighborhood. During this period, I interacted,
interviewed and lived with the Makonde living in the neighborhood and with some people from
other ethnolinguistic groups. I explored themes such as the formation and settlement of the
neighborhood, the coexistence between the different ethnolinguistic groups living in the
neighborhood and observed important moments for the Makonde, such as initiation rites, mapiko
performances and their use of Shimakonde. I also witnessed some meetings between the head of
the neighborhood and the population, as well as some holidays.

I distance myself from essentialist approaches that conceive of ethnicity and national identity
as static entities, taken for granted and unalterable over time. In this sense, I look at ethnicity and
national identity in line with the times and as languages that may exist in parallel with others. This
theoretical positioning means conceiving ethnicity as a tool for sociability and interaction between
individuals and not as something that muzzles social actors within their borders and that keeps
them only close to the people with whom they share the ethnolinguistic group. I argue that the
Makonde identity is still an ongoing process and that its manifestation is different depending on
the socio-political and economic moment. Likewise, I argue that ethnicity, as well as national
identity, manifests itself in specific moments and also in a specific way for the Makonde of the
first and second generation.

Keywords: Makonde, ethnicity, identity, PSK, Mozambique.

vi

Índice

Dedicatória......................................................................................................................................iii
Resumo............................................................................................................................................v
Abstract...........................................................................................................................................vi
Acrónimos...............................................................................................................................vii-viii
Glossário....................................................................................................................................ix-xii
Índice de figuras............................................................................................................................xiii
Índice de mapas.............................................................................................................................xiv
Agradecimentos.......................................................................................................................xiii-xv

Introdução ....................................................................................................................................... 1
Debates sobre a etnicidade, etnia e grupos étnicos ......................................................................... 5
Debates sobre o nacionalismo, nação e identidade nacional .......................................................... 9
O local da pesquisa ....................................................................................................................... 13
Metodologia .................................................................................................................................. 17
A Sara............................................................................................................................................ 24
Estrutura da tese ............................................................................................................................ 25
Capítulo I ...................................................................................................................................... 27
A identidade Makonde em sintonia com os tempos e novos espaços........................................... 27
A identidade Makonde na visão dos administradores e exploradores coloniais e do etnólogo Karl
Weule ............................................................................................................................................ 28
A identidade Makonde na fase da Antropologia colonial ............................................................. 32
A visão de Jorge Dias sobre a identidade Makonde ..................................................................... 33
A identidade Makonde nos arquivos coloniais ............................................................................. 37
A identidade Makonde na fase “nacionalista ................................................................................ 41
As teses sobre os Makonde no pós-guerra civil ............................................................................ 48
Conclusão...................................................................................................................................... 52
Capítulo II ................................................................................................................................. 54
Constituição e povoamento do bairro PSK ............................................................................... 54
A fundação dos bairros dos combatentes da luta armada ......................................................... 57
A constituição do bairro Paulo Samuel Kankhomba ................................................................ 59
O povoamento do bairro /aldeia/centro PSK ............................................................................ 63
A PSK contemporânea .............................................................................................................. 75
Conclusão.................................................................................................................................. 87

vii

Capítulo III ............................................................................................................................ 89
Marcadores da identidade Makonde no bairro PSK ............................................................. 89
Os ritos de iniciação como marcador identitário Makonde na PSK ..................................... 90
A realização dos Ritos de Iniciação femininos (ing’oma) na PSK ....................................... 94
As três fases dos Ritos de Iniciação femininos na PSK ...................................................... 100
Os ritos de iniciação masculinos (likumbi) ................................................................................. 117
Os ritos de iniciação e a construção dos papéis de género ......................................................... 122
Mapiko como vector de identidade Makonde na PSK........................................................ 131
O Shimakonde como factor identitário entre os Makonde na PSK .................................... 144
Conclusão............................................................................................................................ 148
Capítulo IV.................................................................................................................................. 150
Entre os meandros da etnicidade e da moçambicanidade ........................................................... 150
Dinâmicas de etnicidade entre os Makonde na PSK .................................................................. 151
Relação com o local de origem ................................................................................................... 152
Escolha de parceiros e relações maritais ..................................................................................... 156
A educação dos filhos ................................................................................................................. 161
Uma etnicidade imposta e (re)negociada .................................................................................... 166
Uma moçambicanidade em sintonia com os tempos .................................................................. 168
Redefinição da identidade Makonde através da moçambicanidade ........................................... 175
Conclusão.................................................................................................................................... 182
Considerações finais ................................................................................................................... 185
Referências bibliográficas ........................................................................................................... 192

viii

Acrónimos

ACCLN- Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional

AMODEG- Associação Moçambicana dos Desmobilizados de Guerra

AHM- Arquivo Histórico de Moçambique

ANTT- Arquivo Nacional da Torre do Tombo

AOS- António de Oliveira Salazar

CEA- Centro de Estudos Africanos

FADM- Forças Armadas de Defesa de Moçambique

FPLM- Forças Populares de Libertação de Moçambique

FRELIMO-Frente de Libertação de Moçambique

ICS- Instituto de Ciências Sociais

ISArC- Instituto Superior de Artes e Cultura

MANU-União Nacional Africana de Moçambique

MDM-Movimento Democrático de Moçambique

PSK-Paulo Samuel Kankhomba

ix

RENAMO-Resistência Nacional Moçambicana

SCCIM- Serviços de Centralização da Comunicação e Informação de Moçambique

TANU- Tanganyika African National Union

UDENAMO-União Democrática Nacional de Moçambique

UNAMI- União Nacional de Moçambique Independente

x

Glossário

Indona-bloco de madeira no lábio superior furado

Ing’oma-ritos de iniciação femininos

In’goma kujaluka-cerimónia de saída dos ritos de iniciação

Kukamalanga na mene-pessoa sábia, inteligente ou bem-comportada

Liguilanilu-cooperativa, associação, unidade, entreajuda

Likola (pl. Makola) -matrilinhagem

Likumbi-ritos de iniciação masculinos

Liyoka-fantasma, espírito dos mortos

Mapiko (sing. lipiko) -máscara de capacete de madeira

Maúta la dimbalika- óleo de rícino

Mavia, mawia, mabiha-irascível, colérico ou agressivo

Mbwana-madrinha de raparigas que entram para os ritos de iniciação

Midimu (pl. ndimu) - conhecimentos secretos

Mitela (pl. ntela) - substâncias mágico-religiosas

xi

Mwali (pl. vali) – menina ou menino que passa por vários ritos de passagem, frequentemente
ligados ao crescimento sexual e onde são divulgados os segredos de género relativos às máscaras
e à iniciação

Nalombo (pl. vanalombo) -mestre dos ritos de iniciação

Namaako (pl. vanamako) -pessoa que não passou pelos ritos de iniciação

Njomba-tio materno

Nkamango-fim da cerimónia de iniciação feminina

Shetani-satanás

Shilambo- terra, espaço onde habitam as pessoas, também pode significar país, região, ou na
dimensão global pode se chamar mundo

Ujamaa-família ou sentimento de pertença familiar

Ushagwa-escravatura

Vashagwa-escravos

Washenzi-bárbaros, selvagem, não muçulmano

xii

Índice de figuras

Figura 1. Entrada do bairro PSK.....................................................................................................15


Figura 2. Ficha técnica da construção do regadio da PSK...............................................................16
Figura 3. Casa de barro de alguns Makonde...................................................................................73
Figura 4. Parte frontal da casa onde a investigadora foi acolhida..................................................74
Figura 5. Rua principal da PSK......................................................................................................75
Figura 6. Bandeira de Moçambique e do partido FRELIMO na PSK............................................79
Figura 7. Centro de atendimento social dos antigos combatentes...................................................80
Figura 8. Escola Primária dos Antigos Combatentes na PSK.........................................................81
Figura 9. Escolinha Comunitária da PSK.......................................................................................86
Figura 10. Vali posicionadas pelos organizadores dos ritos para o corte de cabelo.......................104
Figura 11. Mitela colocadas no cabelo das vali para a purificação e corte de cabelo..................105
Figura 12. Autora presenciando o corte de cabelo das vali..........................................................106
Figura 13. Vali caminhando pelo bairro após o corte de cabelo.................................................. .107
Figura 14. Multidão acompanhando as vali pelo bairro após o corte de cabelo...........................108
Figura 15. Autora acompanhando a dança dos jovens Makonde pelo bairro...............................109
Figura 16. Vali à espera de serem apresentadas à multidão...........................................................113
Figura 17. Multidão posicionada para presenciar a saída das vali...............................................114
Figura 18. Organizadores dos ritos fazendo escorrer óleo de rícino.............................................115
Figura 19. Dança dos vanalombo.................................................................................................116
Figura 20. Vali apresentadas aos presentes no fim dos ritos..........................................................117
Figura 21. Dançarino de mapiko em performance sob o olhar atento das crianças.....................141
Figura 22. Dançarino de mapiko ladeado de jovens e crianças....................................................143
Figura 23. Bailarino de mapiko em actuação...............................................................................144
Figura 24. Veteranos da luta de libertação nacional trajando o seu uniforme..............................176

xiii

Índice de mapas

Mapa 1. Mapa de Moçambique.....................................................................................................xix


Mapa 2. Mapa de enquadramento geográfico da PSK....................................................................xx

xiv

Agradecimentos

Uma empreitada como uma tese de doutoramento mais do que um projecto pessoal,
congrega esforços colectivos, por isso reconheço aqui as instituições e pessoas que sempre me
apoiaram e acreditaram no meu potencial ao longo destes anos de trabalho. Sinto-me eternamente
agradecida e endividada para com o Paulo Granjo, meu orientador principal, pela paciência,
generosidade e motivação mesmo nos meus momentos de confusão, desânimo e de dificuldade.
Ao longo deste percurso, mais do que um professor se tornou um amigo e confidente, procurando
sempre ajudar a encontrar soluções para os imprevistos que atravessavam o meu percurso. De
forma profunda também agradeço ao Paolo Israel, meu coorientador que com a sua expertise sobre
os Makonde alargou os meus horizontes com indicação de bibliografia e com debates que me
fizeram repensar algumas das minhas certezas. O Paolo à semelhança do Paulo, se transformou
num companheiro de jornada. Lembro-me de ter feito pesquisa bibliográfica e de arquivo com ele
na cidade do Cabo e na Torre do Tombo em Lisboa. Os comentários críticos dos meus professores
se tornaram um farol que me guiou de forma segura neste percurso, obrigada aos meus dois Paulos,
como carinhosamente os apelidei.

Seguidamente agradeço à Direcção Geral do Instituto Superior de Artes e Cultura (ISArC),


instituição a qual estou afiliada, na pessoa do seu Director Geral, Filimone Meigos. Lembro-me
do dia em que ele disse:” Vânia, tu acabaste de concluir o mestrado, és jovem e tens potencial.
Procura uma escola para fazer o doutoramento e nós iremos conceder-te uma bolsa de estudos.”
Foi então que busquei uma escola doutoral em Portugal e fui admitida ao programa de
doutoramento. Muito obrigada prof. Meigos. No ISArC agradeço também aos colegas Isaú
Meneses, Miguel Marrengula, Estêvão Filimão e em especial ao Marcos Domingos que “segurava”
as pontas sempre que eu estivesse em Lisboa. Sou grata a Amélia Muendane por me ter
apresentado aos Makonde residentes no bairro PSK. Agradeço igualmente aos colegas Alex
Pequenino e Rufus Maculuve pelo suporte informático.

Tenho uma dívida de gratidão com o Danúbio Lihahe, que para além de ter sido meu docente
na licenciatura em Antropologia e me ter ensinado a amar essa área de conhecimento, foi quem
fez a ligação entre o Paulo Granjo e eu, o afiançando que era um bom projecto me ter como sua

xv

orientanda no ICS, pois apenas nos conhecíamos do facebook. Quando escrevi ao Paulo pedindo
que fosse meu supervisor, ele consultou ao Danúbio, que prontamente respondeu que ele não se
arrependeria de me receber e trabalhar comigo.

Sou também grata a todos os professores, funcionários e colegas no curso de doutoramento em


antropologia do Instituto de Ciências Sociais, pelo carinho e atenção com que me receberam e
ajudaram no processo de integração. Destaco o carinho, atenção e simpatia dos docentes Elsa
Peralta, Simone Frangella, José Sobral e Susana de Matos Viegas. Em especial agradeço a Goretti
Matias e ao João Vasconcelos pela sua constante atenção aos assuntos que eu colocava.

Gostaria de também agradecer aos membros do júri da minha defesa pelos valiosos comentários
e críticas que contribuíram sobremaneira para a melhoria desta tese. Muito obrigada Profª. Doutora
Nikkie Wiegink, Doutora Brigitte Bagnol, Profª. Doutora Teresa Cruz e Silva e Doutor José
Sobral.

Agradeço ao Doutor Edmundo Macuácua, Director do Arquivo Histórico de Moçambique


(AHM), assim como ao senhor Pelembe, técnico afecto ao mesmo arquivo por todo o apoio e
direcção no processo de recolha de informações.

O meu muito obrigada ao Eugénio Santana, à “mana” Zita Sitoe e à Gefra Fulane por me terem
ajudado a tratar a documentação necessária para o visto, matrícula, assim como na minha
integração em Lisboa. Sou imensamente grata ao Frank Ntaluma que carinhosamente trato por
baba (pai). Foi ele que me ajudou com o atestado de residência para que pudesse ter o título de
residente para estudante. Com ele também pude discutir alguns aspectos sobre os Makonde e
aprender coisas novas. Igualmente, na sua casa, na sua companhia e do seu filho me senti parte da
família e tinha um lugar para desanuviar nos momentos de descanso dos estudos. Foi lá que
conheci muitos moçambicanos em Portugal, pois a sua casa é também a Embaixada de
Moçambique. Sei que sempre há espaço para mim em sua casa. Assante baba wangu (obrigada
meu pai)!!!

xvi

O meu agradecimento também vai aos membros da comunidade moçambicana em Lisboa, pela
simpatia e pelos momentos de confraternização, nomeadamente, ao David Arsénio, à Irene Langa,
ao Elias Muthemba, à Amélia Bila, ao Sebastião Massapa, ao Ananias Sigaúque, Ministro
conselheiro na Embaixada de Moçambique em Portugal, ao Diogo Mawanda e à Noza Cabral.
Neste grupo agradeço em especial ao Artur Afonso pelos debates e caminhadas conjuntas para a
faculdade durante o período de escrita, assim como pela elaboração do mapa do bairro PSK que
consta desta tese.

Agradeço ao Elísio Jossias pelos debates em Lisboa que permitiram refinar o meu objecto inicial
de estudo. Também agradeço ao Euclides Gonçalves por ter lido as primeiras versões do capítulo
2 desta tese e ter dado o seu contributo para a melhoria. Agradeço também a Lia Laranjeira pelos
debates e troca de materiais sobre os Makonde. Sou igualmente grata ao Luiz Henrique Passador
pelos debates e troca de materiais. Sou agradecida ao Johane Zonjo pelo manancial de informação
que me disponibilizou e que me permitiu fazer outras leituras sobre o que estava a estudar.
Agradeço também ao Albert Farré pelo interesse na minha pesquisa e pelos debates. Gostaria de
agradecer ao Kutapukila Cristóvão pelos constantes debates e traduções dos ficheiros do
Shimakonde para o português. A sua ajuda foi extrema valia para que compreendesse certos
aspectos sobre os Makonde. Assante sana!

Agradeço aos meus amigos em Moçambique pelo apoio e por sempre torcerem para que eu
terminasse o doutoramento de forma bem-sucedida, nomeadamente: Esmeralda Mariano, Ana
Esperança Gule (em memória), Linda Magaia, Elsa James, Kayla Fraqueza, Ilídio Macia,
Francisco da Conceição, Osvaldo Matavele, Khátia Munguambe, Zaida Mahomed, Augusto
Guambe e Selma Inocência.

Agradeço à minha família pelo apoio, em especial à Luísa Mazivila, ao Roque Sebastião, ao
Francisco Salomão, ao Simão Pelembe, à Emília Da Costa e à Cremilde Maria pelo apoio moral,
incentivo, por sempre torcerem e acreditarem em mim.

Last but not least, sou imensamente grata ao meu esposo Leandro pelo apoio, incentivo,
motivação, compreensão e apoio em todos os momentos e, em especial, por ter feito a tradução do

xvii

resumo de português para inglês. Agora que esta jornada está no fim, embarcaremos noutras que
a vida nos colocará.

Sou extremamente e eternamente grata aos meus interlocutores na PSK. Obrigada por me
deixarem entrar nas vossas vidas e por partilharem comigo o vosso universo. Papá Mwacha e mana
Merina, assante sana, Khanimambo!!!

xviii


Mapa 1: Mapa de Moçambique: Jesus Manolo. https://www.flickr.com/photos/moitas61yahoocombr/2289175079.
Acesso a 14 de Maio de 2021.

xix

Mapa 2: Mapa com enquadramento geográfico da PSK. Fonte Artur Afonso.

xx

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Introdução

No bairro Paulo Samuel Kankhomba (PSK), distrito de Boane, na província de Maputo sul de
Moçambique foi fundada no pós-independência um bairro de antigos combatentes e tal fenómeno
não foi caraterístico apenas desse distrito, mas de praticamente todo o país. Vivem no bairro vários
grupos etnolinguísticos, incluindo os veteranos da luta armada de libertação nacional Makonde1 e
suas famílias, meus principais interlocutores nesta tese. Igualmente vivem nesse lugar veteranos
de outros grupos etnolinguísticos, suas famílias e população civil (vide capítulo 2 desta tese para
mais detalhes).

Desde que comecei a estudar Antropologia no nível de licenciatura em 2005, sempre tive o
desejo de estudar um grupo etnolinguístico moçambicano. Cresci a ouvir que os Makonde são
pessoas muito orgulhosas da sua cultura e que onde quer que estejam se apresentam como tal.
Quando pequena, lembro-me que quando perguntasse a alguma rapariga Makonde que passou
pelos ritos de iniciação o que é que acontece lá, mudava de assunto, ou respondia que não podia
dizer. Essas respostas suscitaram mais a minha curiosidade sobre esse grupo e suas práticas.
Quando decidi me candidatar ao doutoramento em Antropologia, estava fascinada pela ideia de
estudar de que forma é que os ritos de iniciação Makonde se reconfiguravam em meio a resistências

1 Laranjeira (2016:6), refere que adopta na sua tese de doutoramento a grafia Makonde comumente usada pela
população e pelo Estado moçambicano. Essa grafia é diferente da presente na documentação e nas publicações
portuguesas, citadas ao longo da sua tese. Laranjeira, refere ainda que escolheu adoptar o etnónimo Makonde no
minúsculo e no singular à caracterização dessa população e no plural quando se refere aos indivíduos que se
identificam como tal. Utilizo a grafia Makonde ao invés de Maconde pelos motivos avançados por Laranjeira (2016),
mas também porque existe um dicionário de padronização da ortografia das línguas moçambicanas (Cfr. Ngunga, A&
Faquir Osvaldo. 2012. Padronização da ortografia de Línguas Moçambicanas. Relatório do III seminário. Maputo:
Coleção as nossas línguas III, Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane) que postula que a
palavra deve ser escrita com a letra “k” e não com a letra “c”. Nos casos em que os autores citados escreveram
Maconde e não Makonde, mantenho a grafia por eles utilizada. Quando me refiro aos Makonde não o faço assumindo
que são homógeneos, pois assim os conceber significa os essencializar e como diz Brubaker (2002: 164), o grupismo
consiste na tendência de tomar grupos discretos, nitidamente diferenciados, internamente homogêneos e delimitados
externamente como constituintes básicos da vida social, principais protagonistas de conflitos sociais e unidades
fundamentais de análise social. Outrossim, o autor afirma que significa reificar esses grupos, falando de sérvios,
croatas, muçulmanos e albaneses na ex-Iugoslávia, de católicos e protestantes na Irlanda do Norte, de judeus e
palestinos em Israel e os territórios ocupados, de turcos e curdos na Turquia, ou de negros, brancos, asiáticos,
hispânicos e nativos americanos nos EUA, como se fossem grupos internamente homogéneos, delimitados
externamente, actores coletivos unitários com propósitos comuns. Por outras palavras significa uma tendência de
representar o mundo social e cultural como um mosaico multicrômico de blocos étnicos, raciais ou culturais
monocromáticos.

1

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

e dinâmicas e como é que constituíam um mecanismo de reprodução social, a ponto de serem uma
prática reconhecida por eles e pelas pessoas de outros grupos como uma marca da sua identidade.
Alguns grupos etnolinguísticos moçambicanos praticam ritos de iniciação, mas entre os Makonde
estes parecem ter mais peso e uma aura de mistério. As festas dos ritos Makonde não passam
despercebidas e parecem se revestir de mais secretismo. Autores como Osório & Macuácua (2013:
178) que estudaram ritos de iniciação em Moçambique afirmam que constataram nos entrevistados
Makonde um maior secretismo na partilha de valores e práticas realizadas nos ritos de iniciação,
comparativamente a outros grupos. Cossa (2014:35) que também estudou os ritos de iniciação
femininos Makonde afirma que estes estão envoltos em muito secretismo, tanto é que não lhe foi
permitido captar fotos.

Quando a minha candidatura ao doutoramento foi aceite, encontrei em Lisboa um colega


moçambicano que já estava mais avançado nos estudos e chamou atenção para o facto de os
debates sobre a reprodução cultural já estarem ultrapassados na antropologia e me aconselhou a
procurar explorar as identidades étnica e nacional dos Makonde, assumindo que as identidades são
múltiplas, fluídas e em processo, facto que poderia conferir uma abordagem enriquecedora ao meu
trabalho. Esse colega também sugeriu que seria mais proveitoso estudar a identidade Makonde
em interface com a história política do país, mormente, o facto de esta ter sofrido metamorfoses
por conta da sua participação nos movimentos nacionalistas que precederam a Frente de Libertação
de Moçambique (FRELIMO) e na luta armada. Outro deslocamento ao tema inicial ocorreu
também durante o ano curricular do doutoramento, fazendo a revisão da literatura, ouvi algumas
coisas sobre o bairro PSK, como por exemplo que ele é também conhecido como Makondene,
porque se afirmava que apenas os Makonde lá residiam.

Após retornar a Moçambique depois da conclusão do ano curricular, fiz a primeira abordagem
ao campo e fiquei a saber que o bairro constituía uma maquete da unidade nacional apregoada pela
Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) desde sua formação até aos dias de hoje, pois
os primeiros moradores eram antigos combatentes da luta armada de libertação nacional, incluindo
os Makonde (vide capítulo 2). Aceitei a sugestão do colega moçambicano e dos demais colegas e
professores, o que fez com que mudasse o meu foco e procurasse entender de que modo é que os
Makonde se definem como tal num contexto em que vivem pessoas de outros grupos

2

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

etnolinguísticos de Moçambique, que marcadores eles utilizam para tal, como é que eles se
diferenciam dos demais. Igualmente busquei compreender o diálogo que ocorre entre as
identidades étnica e nacional dos Makonde residentes na PSK, com o intuito de saber de que modo
tais identidades se relacionam ou convivem.

Certa vez cruzei com uma investigadora moçambicana em Lisboa e ela perguntou-me o que é
que eu estava a estudar, respondendo eu disse que estava a estudar os Makonde que vivem em
Boane. Após minha resposta, ela disse: “se quiseres estudar Makonde de verdade, vá para Cabo
Delgado.” Depois da conversa dialoguei comigo mesma e disse: o que é um Makonde de verdade?
Mesmo em Cabo Delgado, será que existe Makonde de verdade? Seja como for, o meu foco nunca
foram os dito Makonde de verdade, mas sim aqueles que vivem na PSK porque considero que
estudar a identidade deles seria mais fascinante do que os que estão em Cabo Delgado, pois tal
como demonstrarei ao longo da tese passaram por várias dinâmicas e, mais importante ainda
porque residem num contexto diferente e onde têm que conviver com pessoas de outros grupos
etnolinguísticos. Aliado a isso, também penso que os ditos Makonde de verdade que estão em
Cabo Delgado são produto de variados processos de transformação por vezes conflituosos,
ambíguos ou ambivalentes. Nesse sentido, eles próprios não são um produto autêntico e estático
(vide capítulo 1 desta tese). Esse encontro com essa investigadora também permitiu refinar o tema
e ter certeza do que realmente pretendia investigar.

Quando fiz a primeira aproximação ao bairro PSK em 2014, notei que devia começar a recolher
dados através da história oral para fazer o levantamento da história do lugar, das pessoas, da
constituição do bairro e do seu povoamento. Para tal tinha que interagir inicialmente com os
habitantes mais velhos, os veteranos da luta de libertação nacional. Apesar de os meus primeiros
interlocutores terem sido os veteranos, a minha etnografia nunca pretendeu ser apenas acerca deles,
pois também vivem no bairro civis, incluindo parentes e familiares desses veteranos. Ou seja, a
maioria dos Makonde mais velhos são veteranos da luta de libertação nacional, mas existem outras
pessoas mais velhas que não tiveram qualquer experiência directa com a FRELIMO e com a luta
armada, razão pela qual nunca assumi estar a fazer uma etnografia acerca dos veteranos Makonde,
mas sobre os Makonde no seu todo, claro que reconhecendo as especificidades dos veteranos, dos
civis, dos mais novos e dos mais velhos. Nesta tese trabalhei com os Makonde mais velhos que

3

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

considero da primeira geração e com os seus filhos que considero da segunda. Geração é um termo
que vem sendo trabalhado pelos sociólogos e evoca questões de ordem temporal e comportamental
e de dinâmica sociopolítica e histórica. Considero que mais do que falar de geração, devemos falar
de gerações, pois várias gerações podem partilhar alguns elementos e acontecimentos. Nesse
sentido, acolho o conceito de geração proposto por Feixa & Leccardi (2010:18), que assinala que
gerações é o lugar em que dois tempos diferentes – o do curso da vida, e o da experiência histórica
– são sincronizados. O tempo biográfico e o tempo histórico fundem-se e transformam-se criando
desse modo uma geração social. Como se pode depreender, as fronteiras que separam gerações por
vezes são ténues. Pessoas de gerações diferentes as vezes partilham os mesmos valores porque
estão expostas a alguns valores socioculturais que fazem sentido para elas e a situações similares.
Apesar de acolher o conceito proposto por Feixa & Leccardi, utilizo nesta tese o termo geração
para assinalar as diferenças etárias entre os Makonde. Nesse sentido, sempre que escrever primeira
geração me refiro aos Makonde mais velhos (veteranos da luta armada) e quando escrever segunda
geração me refiro aos seus filhos.

Esta tese de doutoramento em Antropologia dialoga com a história. O uso que faço da história
é nos moldes propostos por Gow (2006). Este autor advoga um uso da história em estudos
etnográficos em que no lugar de apelar para o que nós conhecemos sobre a recente organização
social das comunidades para elucidar a sua organização contemporânea, foquemos naquilo que
eles afirmam sobre a sua organização e como é que isso se relaciona com o que disseram ou fizeram
em outros aspectos da sua vida, ou seja, a preocupação deve ser sobre aquilo que é a história para
os nossos interlocutores, ao invés de uma história acerca deles. É preciso construir a história sobre
eles com eles e perceber quais são os principais marcadores por eles utilizados para contar a sua
história (Gow, 2006: 11). Igualmente, Gow (2006), na relação entre antropologia e história, propõe
a colocação da história no centro de análise, mas no sentido de lidar com a mesma de dentro da
cultura dos povos a estudar. A constante evocação do passado nas vidas dos nossos interlocutores
deve ser referida a seus próprios valores. Nesse sentido e seguindo a sugestão de Gow, importa
olhar para os meus interlocutores como agentes históricos activos e para entender a sua agência
precisamos compreender os significados culturais de suas acções, tanto agora, como no passado.
Esses posicionamentos teóricos implicam aceitar que não sei nada sobre os meus interlocutores e
me deixar ensinar por eles. A minha postura em campo foi sempre de quem é “tábula rasa”. Vezes

4

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

sem conta questionei coisas que para os meus interlocutores por vezes soavam a ridículo, mas eu
pretendia aprender até ao mais ínfimo pormenor e poder fazer a tradução do que eles me ensinaram
para as pessoas que irão ler este trabalho, sem amputar o sentido do que eles disseram. Para tal,
sempre procurava ter a certeza de que as palavras e os seus significados estavam correctos.

Debates sobre a etnicidade, etnia e grupos étnicos

Termos como etnicidade, etnia e grupos étnicos têm sido largamente utilizados dentro e fora
da academia. Esses termos também têm sido apropriados por políticos e pelo discurso do senso
comum, sem, no entanto, explicitar o seu significado e alcance, ou os concebendo como entidades
imutáveis e adquiridas. Durante muito tempo e no que concerne aos debates sobre a etnicidade há
que realçar duas abordagens, nomeadamente: o debate entre o primordialismo (essencialismo) e o
instrumentalismo (construtivismo). O debate entre essas duas visões dicotómicas procura explorar
se as comunidades étnicas ou nacionais são criadas mais ou menos conscientemente ou se crescem
organicamente, como se fosse fora das comunidades culturais pré‐existentes. Os construtivistas ou
instrumentalistas enfatizam que a etnia não é supra-histórica e a participação quase natural em um
grupo, mas sim uma identidade social construída sob circunstâncias político-históricas específicas
e enfatizam a flexibilidade e manipulação, assim como a qualidade estratégica da etnicidade,
embora argumentos e posições variem. Segundo Lentz (1995); Lentz (2000); Lentz (2001);
Eriksen (2001) e Wimmer (2013), os essencialistas ou primordialistas referem que a participação
em grupos étnicos é adquirida através do nascimento e, representa, uma categoria previamente
dada.

O trabalho de Barth (1969), tido como pai do construtivismo, inaugurou uma nova tendência
no estudo da etnicidade, da etnia e dos grupos étnicos, se distanciando da visão essencialista até
então em voga na antropologia. Segundo o autor, os grupos étnicos são categorias de atribuição e
identificação dos próprios actores sociais e como tal têm o condão de organizar a interacção entre
as pessoas. Ainda segundo Barth, a definição básica utilizada até então por muitos antropólogos
para caraterizar os grupos étnicos como a igualdade de raça, cultura, língua e sociedade que rejeita
e discrimina os outros, necessita ser retrabalhada, na medida que fornece um tipo ideal que não se
adequa a certos contextos e oferece uma visão pré-concebida do que seria significativo para esses
grupos (Barth, 1969: 11).

5

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Segundo Eriksen (2001: 43), as últimas décadas do século XX assistiram a uma dramática
reconceptualização de conceitos centrais dentro das Ciências Sociais, incluindo cultura e
sociedade. Até à década 1960, a estreita sobreposição entre a cultura e a etnicidade, ou cultura e
nação foi dada como certa no seio da comunidade académica. Linnekin & Poyer (1990) na
introdução da obra Cultural Identity and Ethnicity in the Pacific consideram que tanto a teoria
primordialista, assim como a instrumentalista, não conseguem captar o ponto de vista dos
!pesquisados” sobre o modo como eles se autoidentificam e se diferenciam dos demais. Como
alternativa, Linnekin & Poyer (1990) propõem uma síntese moderna em que se tenta incorporar
contribuições tanto do primordialismo, como do instrumentalismo, adoptando uma teoria
semiótica a casos etnográficos. No meu entender, a aplicação da teoria semiótica aos casos
etnográficos implica, tal como diz Cohen (1994: 29), não olhar para o indivíduo como réplica da
sociedade ou sua miniatura, mas começar por prestar atenção à forma como as pessoas reflectem
sobre si mesmas e ver como é que tais reflexões são indicativas do contexto sociocultural ou querer
que tal contextualização seja inteligível para nós. Nesse sentido, a ideia de self em Goffman (1993)
precisa ser accionada para se perceber o self como um actor que em função da situação activa uma
faceta do seu eu.

Cohen (1994: 68) argumenta que os indivíduos têm consciência da sua diferença, das suas
identidades distintivas, mesmo se essas são mascaradas pelas etiquetas sociais de estereótipo,
ortodoxia, categoria ou identidade colectivamente imposta. Na mesma linha de Cohen (1994),
Sokefeld (1999) afirma que na contemporaneidade, os textos sobre as identidades mostram que
esta não é tratada no singular, mas como algo fragmentado, essencialmente fluído e plural. Para
Sokefeld não se pode abordar a pluralidade das identidades sem fazer referência ao self. O autor
critica os antropólogos por normalmente rotularem as pessoas como dependentes da estrutura
social, sem autonomia e perseguindo as suas próprias metas. Eriksen (2001: 47) considera que é
necessário entender as identidades sociais de modo fenomenológico, ou seja, a partir das
experiências dos indivíduos. No seu entender, o antropólogo não deve focar apenas nos aspectos
políticos e ideológicos, mas se esforçar para entender o self. Nesse sentido, importa procurar
perceber o que é a etnicidade para os indivíduos, como é que a vivenciam, como é que as suas
várias identidades se articulam e que aspectos consideram mais importantes para si.

6

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Certos autores como Lentz (1995), Lentz (2000), Lentz (2001), Eriksen (2001), e Keese (2010)
mostram que os primeiros estudos sobre a etnicidade em África adoptaram uma abordagem
essencialista ou primordialista. Um marco significativo para a mudança de paradigma no que toca
aos estudos sobre a etnicidade em África foi a obra Au couer de l"ethnie, tribalisme et État en
Afrique 2 , editada pela primeira vez em 1985, coordenada por Jean-Loup Amselle e Elikia
M"Bokolo. Na obra, os autores procuram desconstruir a noção de etnia nos termos da situação
africana, combinando análises de âmbito geral e estudos de caso e concluem que em África foi
criação colonial e que antes da colonização havia diversos tipos de lealdades, relações e interações
sociais que nada tinham a ver com a sua categorização em grupos étnicos. Jean-Loup Amselle no
seu artigo inserido na obra, afirma que a origem das etnias reside na acção colonial que ao almejar
a territorialização do continente africano dividiu as entidades étnicas, posteriormente reapropriadas
pelas populações. Amselle refere ainda que, as etnias foram uma criação colonial e é importante
identificar em que moldes os actores sociais se organizavam antes da colonização e apresenta
quatro espaços pré-coloniais, nomeadamente: espaços de troca, espaços estatais, políticos e de
guerra, espaços linguísticos e espaços culturais e religiosos. A identificação de tais espaços, apenas
é possível se se aceitar a proposta de Lentz (1995:323-324), segundo a qual a etnicidade apenas
pode ser estudada através de uma perspectiva histórica. Numa obra de 2001, Carola Lentz
especifica mais essa sua ideia, afirmando o seguinte: a etnicidade é acima de tudo um problema
que precisa de uma abordagem histórica, mas aquela que quebra com a barreira epistemológica
entre o período pré-colonial e o colonial (...). Por outro lado, essa abordagem pode prevenir
contra a mais simples aplicação da abordagem instrumentalista. Ao lançar luz no modo como as
etnicidades se articulam com outros idiomas da identidade colectiva pode se investigar o escopo,
assim como os limites da criatividade cultural e política (Lentz, 2001: 6).

Outra obra relevante para a reconfiguração dos estudos da etnicidade e dos grupos étnicos é a
invenção das tradições editada em 1994, da autoria de Eric Hobsbawm e Terrence Ranger. Nela,
os autores mostram que certas tradições foram inventadas na Europa e transportadas para outros
contextos, como o africano. Os governos coloniais criaram algumas tradições ou entidades como

2
Pelos Meandros da Etnia: Etnias, Tribalismo e Estado em África. Tradução feita a partir da versão portuguesa de
2014 da Edições Pedago.

7

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

as etnias para alcançarem os seus objectivos. Os autores mostram ainda que tais tradições apesar
de inventadas ou criadas na Europa também eram exteriores ou estranhas ao contexto europeu.
Nesse sentido e de certo modo estes autores concordam com o posicionamento de Amselle &
M"Bokolo (2014) quando afirmam que as etnias foram uma criação colonial.

Amselle (1990), Amselle (2014); Lentz (1995), Lentz (2000) e Keese (2010) mostram que os
estudos mais recentes têm enfatizado que a etnicidade é um conceito que pode coexistir e se
sobrepor a outros marcadores de identidade grupal. Keese (2010: 23), por exemplo, refere que
essas solidariedades paralelas podem responder como princípios orientadores a situações
fundamentalmente distintas da experiência do grupo. Este é particularmente o caso da religião,
mas também é válido para o parentesco, solidariedade de clãs e política de linhagem. Em algumas
áreas da África Subsaariana, a religião tem agido como principal definidor da coesão de grupos e
é muito abertamente utilizada em conflitos do que a afiliação étnica. Nesse sentido, os
pesquisadores podem ter que levar em consideração e mais profundamente a existência paralela
de diferentes categorias que podem coexistir com os grupos étnicos ou que possam fazer parte da
identidade étnica. Por seu turno Lynch (2006b) apud Balaton-Chrimes (2015: 144) afirma que a
etnia como uma categoria de identidade e grupo social é particularmente adepta do tipo da
flexibilidade necessária para operar na paisagem social, política e económica em rápida mudança
no continente africano. Embora se baseie em memórias e histórias orais e escritas, bem como em
tradições culturais, a etnicidade pode se expandir, se contrair e se transformar em diferentes
circunstâncias, dependendo da utilidade das opções disponíveis.

Outro autor que se destaca na abordagem actual sobre a etnicidade é Brubaker (2002: 167) que
advoga que temos que examinar criticamente as nossas ferramentas conceituais e olhar para a
etnicidade não como substâncias, coisas, entidades, organismos ou indivíduos colectivos - como a
imagem de 'grupos' distintos, concretos, tangíveis, limitados e duradouros, mas sim em relação,
processuais, dinâmicos, termos movimentados e desagregados, ou seja, em termos de categorias
práticas, idiomas culturais, esquemas cognitivos, estruturas discursivas, rotinas organizacionais,
formas institucionais, projectos políticos e eventos contingentes. Esse posicionamento teórico
significa antes de mais olhar para a etnicidade como ferramenta de sociabilidade e interacção entre
os indivíduos e não como algo que amordaça os actores sociais dentro das suas fronteiras e que os

8

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

mantém próximos uns dos outros, pois algumas vezes as pessoas são mais próximas de pessoas de
outros grupos.

Nesta tese, utilizo a visão de etnicidade proposta por Lentz (1995), Lentz (2000), Lentz (2001),
Eriksen (2001), Keese (2010) e Amselle (2014), pois considero que a etnicidade deve ser vista em
contextos específicos e através da autopercepção que os nossos interlocutores têm sobre a sua
etnicidade e identidade. Dessa forma, nesta tese procuro perceber quando é que a etnicidade é
utilizada pelos meus interlocutores como principal variável do seu repertório: quando é que eles
se afirmam Makonde e quando é que afirmam ser Moçambicanos como os demais? Como é que
essas diferentes solidariedades coexistem e se articulam? A perspectiva de etnicidade que aqui
adopto permite fugir à conceptualização rígida e, sendo a produção de conhecimento antropológico
feita a partir do trabalho de campo, evitei levar ao terreno definições inflexíveis de etnicidade para
que pudesse aprender com os meus interlocutores o que é a etnicidade para eles e como é que esta
se relaciona com outras solidariedades que fazem parte da sua vida.

Debates sobre o nacionalismo, nação e identidade nacional

A identidade nacional está intrinsecamente ligada a dois outros conceitos que na minha opinião
a precedem, nacionalismo e nação. De acordo com Smith (1992: 61), o nacionalismo emergiu na
Europa ocidental e na América no século XVIII, estipulou a crença de um mundo exclusivo de
nações. Eriksen (1991) olha para o nacionalismo e para a etnicidade como ideologias que
enfatizam a semelhança cultural dos seus adeptos. A literatura sobre o nacionalismo também é
marcada pelo debate entre os primordialistas e os construcionistas. No que concerne à corrente
primordialista se salienta o trabalho de Anthony Smith. Smith (1992: 61) define nação como uma
população humana nomeada compartilhando um território histórico, memórias comuns e mitos de
origem, uma cultura pública padronizada em massa, uma economia e uma mobilidade territorial,
direitos e deveres comuns para todos os membros da comunidade. Ainda de acordo com Smith,
constituem elementos da identidade nacional o limite territorial de populações culturalmente
separadas em suas próprias terras, a partilha de mitos de origem e memórias históricas da
comunidade, o vínculo comum de uma cultura padronizada em massa, uma divisão territorial
comum do trabalho com mobilidade para todos os membros e posse de recursos por igual e a posse

9

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

por todos os membros de um sistema de unificação de direitos e deveres sob a constância de leis e
instituições comuns.

No que concerne à corrente construtivista, Renan (1882:18-19), afirma que a nação é uma alma,
um princípio espiritual, duas coisas que não formam mais que uma e constituem esta alma, este
princípio espiritual: uma está no passado, a outra no presente. Uma é a rica herança comum de
lembranças; outra é o consentimento actual, o desejo de viver em conjunto, a vontade de continuar
a fazer e valer a herança que receberam esses indivíduos. Nesse sentido, uma nação supõe um
passado; ela se resume, portanto, no presente por um facto tangível: o consentimento, o desejo
claramente exprimido de continuar a vida comum. A existência de uma nação é um plebiscito de
todos os dias, como a existência do indivíduo é uma afirmação perpétua da vida. Como se pode
depreender, para Renan a nação é algo que resulta de um legado comum, mas acima de tudo de
uma vontade diária permanente de fazer parte da mesma. Outro autor que se destaca no
construtivismo é Benedict Anderson. Anderson (2006 [1983]: 6-7). define a nação como
comunidade política imaginada, pois os membros da mais minúscula das nações jamais
conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros, embora todos
tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles.

Hall (2006: 48), na mesma linha de Anderson, afirma que as identidades nacionais não são
coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação.
A nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos: um sistema de
representação cultural. Ngoenha (1998: 24), apesar de aceitar que a nação encerra uma componente
de representação, afirma que a nação também tem a ver com as ideias, os mitos de origem, as
crenças dos nacionais e a sua singularidade. Constatar que os homens têm crenças e vontades,
suscitadas e alimentadas por instâncias colectivas, que fazem parte da realidade que a sociologia
analisa e estuda, não é sucumbir à sedução da ideologia nacionalista. O sucesso de um projecto
político depende da sua capacidade de integrar as ideias (os valores) e as realidades objectivas
(práticas sociais e institucionais), numa interacção constante. Nesta tese olho para nação,
nacionalismo e identidade nacional à luz das perspectivas de Renan, Anderson e Hall, pois
considero que por um lado a nação é sim uma comunidade imaginada, mas ao mesmo tempo ela
se inscreve numa certa entidade já existente.

10

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Segundo Teutsch (1999), a literatura contemporânea sobre África olha para o nacionalismo e
para a nação como invenções do ocidente e que tal base ideológica foi importada dos países
ocidentais no período colonial. De acordo com Gecau (1999), a história contra o colonialismo se
tornou num dos pontos de referência na construção da nação em África, fornecendo símbolos e
sensibilidade do que significa ser nacional e dando conta de como se torna coletivo: !a comunidade
imaginada”. Segundo Cabaço (2007), a decisão da ex Organização da Unidade Africana em 1964
de manter as fronteiras coloniais deu continuidade à prevalência do território como elemento
preponderante da construção da nação em África.

À semelhança de outros países, em Moçambique, estudos acerca do nacionalismo e da


identidade nacional têm demonstrado que o Estado-Nação foi o responsável por gerar a
consciência e a identidade nacional, se tornando desse modo na unidade soberana capaz de
instaurar uma ordem social que procura suplantar os particularismos existentes (Ngoenha, 1998;
Fry, 2003; Macagno, 2003; Cabaço, 2004 e 2007; Sumich, 2008; Bertelsen, 2016 e Brito; 2019).
Ngoenha (1998) e Cabaço (2007), fazem notar que o nacionalismo moçambicano emergiu no
contexto da necessidade de lutar pela independência do país. Foi através da fusão dos movimentos
micro-nacionais UDENAMO3, MANU4 e UNAMI5, que foi fundada a Frente de Libertação de
Moçambique a 25 de junho de 1962 em Dar-Es-Salaam.

Segundo Ngoenha (1998: 18-20), a identidade moçambicana resulta da criação histórica de


uma Nação moçambicana que constitui um projecto político singular. A moçambicanidade queria-
se uma comunidade ideal de cidadãos e simplesmente reconhecia cidadãos iguais, independente
das particularidades étnicas, regionais, culturais, linguísticas e religiosas de cada um. O Estado
inscreve a Nação no Espaço. Por isso, a moçambicanidade é uma identidade política
territorializada, mas sobretudo histórica. Segundo ele, a !identidade moçambicana: já e ainda não”,
pois segundo ele, decorre do projecto político de luta pela independência que fundou o Estado-
Nação moçambicano, mas considera que a moçambicanidade não deve ser vista de modo estático,
porque os desafios que enfrenta hoje são mais sérios que o colonialismo português. A existência

3 União Democrática Nacional de Moçambique.


4 União Nacional Africana de Moçambique.
5 União Nacional de Moçambique Independente.

11

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

da nação moçambicana depende da capacidade do projecto político de resolver as rivalidades e os


conflitos entre os grupos sociais, religiosos, regionais ou étnicos, segundo as regras reconhecidas
como legítimas (Ngoenha, 1998: 28-31).

Meigos (2016:3) argumenta que o processo de construção da nação centra-se na


nachingweização 6 de Moçambique. O autor entende nachingweização como o processo de
reprodução mimética para toda extensão do território moçambicano, da praxis e das práticas
discursivas iniciadas em Nachingweia 7 sobre a construção do almejado “homem novo”. As
práticas quotidianas e o discurso que foi construído em torno do campo de treinos em Nachingweia
estruturam uma maneira de estar, fazer e ser que, para o bem ou para o mal, contaminou a sociedade
moçambicana institucionalmente. De tal sorte que chegou a ser considerado como o único modelo
a seguir no processo de construção da moçambicanidade. No meu entender, a perspectiva de
Meigos não difere da de Ngoenha enunciada no parágrafo anterior. Ambos os autores advogam
que a busca pela independência é que esteve na origem do nacionalismo e da construção da nação
e identidade nacional em Moçambique.

Como se pode depreender nos três parágrafos acima, nota-se que não se pode separar a
emergência do nacionalismo, da nação e da identidade nacional moçambicanos do projecto de
libertação do colonialismo. Eles são produto da reivindicação pela independência movida pelos
movimentos nacionalistas, que mais tarde se transformaram na FRELIMO, movimento libertador
com legitimidade para combater e negociar a libertação do jugo colonial, mas essa identidade
nacional é contextual. Durante a opressão colonial e a luta de libertação, a identidade nacional foi
construída com base na necessidade de união de todos os grupos étnicos do país, mas como
demonstra Ngoenha (1998), a moçambicanidade na actualidade precisa de outros pressupostos
para unir os cidadãos em prol de si.

6 Nachingweização vem de Nachingweia que é um dos mais famosos e importantes campos de treinamento militar da
Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) na Tanzânia.
7 Segundo Cabaço (2004: 240), Nachingweia é o nome da região, no sul da Tanzânia, onde a FRELIMO foi autorizada,
pelo governo do Presidente Julius Nyerere, a organizar o seu principal campo de treinos e base de retaguarda. Neste
campo se punham em prática os princípios teóricos da FRELIMO, o primeiro e o mais importante dos quais era a
“unidade.

12

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

O local da pesquisa

Segundo informações facultadas em entrevista a 18 de Outubro de 2015 pelo senhor


Domingos líder o bairro e outros veteranos da luta de libertação de Moçambique existem na PSK
649 famílias, sendo 1475 homens e 1610 mulheres, totalizando 3085 habitantes8. É difícil afirmar
com precisão quais são as etnias das pessoas na PSK, pois, muitas pessoas se mudaram para lá,
casaram entre si. Quanto à religião, existem na PSK as seguintes: a igreja 12 Apóstolos em Cristo,
a Velho Apóstolo, a igreja Católica, a igreja Zione, a igreja Baptista e a religião Islâmica. As
igrejas que possuem maior número de crentes são a 12 Apóstolos em Cristo e a Velho Apóstolo
em Cristo. Existem também outras igrejas, mas ainda não se apresentaram às autoridades do bairro,
pelo que é difícil saber com exactidão quais são. Para além das igrejas, existe na PSK a
AMETRAMO9. Para que um médico tradicional opere na PSK é necessário que ele apresente a
sua documentação à chefia do bairro que autoriza o início da sua actividade. Caso se descubra que
alguém está a exercer ilegalmente a função de médico tradicional, a chefia do bairro o impede de
continuar com o seu trabalho. Segundo o líder do bairro por altura da entrevista existiam na PSK
três médicos tradicionais, sendo duas senhoras e um jovem.

No que concerne à política e apesar de existirem na aldeia partidos da oposição (RENAMO10


e o Movimento Democrático de Moçambique, MDM11), está claro que o partido FRELIMO é o
dominante. Quando coloquei a questão sobre a representatividade dos partidos políticos no bairro,
os veteranos da luta armada, ainda que em jeito de brincadeira, responderam nos seguintes modos:
“é o principal partido como já sabes somos nós (risos...) é só olhar para as camisetes (risos...) aqui
digo que é quartel, então eles respeitam, mas existem outros existem, mas não colocam a bandeira
deles aqui não (risos). Nós somos o pai, aqui é nossa casa. É como se um filho tivesse abandonado
a casa e depois quisesse tentar derrubar o pai, ou como se o pai fosse dormir e o filho saísse sem
camisa. O pai é que usa toalha, porque é o dono da casa, o filho não”. O relato dos veteranos é a

8 Todas as informações sociodemográficas que constam desta secção foram facultadas pelo líder da aldeia e por outros
veteranos da luta armada em uma entrevista. Importa realçar que eles se referiram aos dados do Recenseamento Geral
da População de 2007. Apesar de ter sido realizado o Censo Geral de 2017, os dados desagregados por bairro ou
localidade ainda não estão disponíveis.
9 Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique.
10
Resistência Nacional Moçambicana. Movimento de guerrilha que entre 1976-1992 esteve envolvido em guerra civil
com o governo moçambicano. Actualmente, é o maior partido da oposição.
11 Segundo maior partido da oposição e com assento no parlamento Moçambicano.

13

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

meu ver bastante elucidativo das relações de poder entre os partidos políticos no bairro. Apesar de
existirem partidos da oposição lá representados, estes não têm o mesmo capital simbólico que o
partido no poder não só devido ao facto de estar no poder, mas e acima de tudo porque o contexto
de formação da PSK e o historial dos seus !moradores-fundadores” tem grande influência na esfera
política do bairro.

Relativamente à educação, existem no bairro escolas que lecionam entre a 1ª e a 7ª classe.


Quando se termina a 7ª classe se tem que ir à Escola Secundária na sede do distrito para continuar
os estudos, ou então, procurar se matricular na cidade da Matola ou de Maputo. No que concerne
os serviços de saúde, existia uma Unidade Sanitária que funcionava normalmente, mas entre 2010
a 2014 começou a operar com dificuldades, como a falta de medicamentos. Os Agentes
Polivalentes de Saúde (APE’S) passam pelo bairro uma a duas vezes por semana. !Sempre nos
prometem construir outro hospital, pronto é um plano que o governo tem, porque nós estamos aqui.
Para além deste bairro temos aldeias circunvizinhas: Manguiza, temos ali nesta margem que está
perto de nós que é 25 de Setembro e quando o nosso hospital funciona costumam vir aqui” (líder
do bairro PSK).

Quanto às infraestruturas, a via que dá acesso à PSK está degradada e basta chover um dia
inteiro, os carros não saem e não entram. O município tem conhecimento e o seu plano é arranjar
essa estrada. Por conta da degradação da estrada, os chapas12 não circulavam, mas actualmente
devido à iniciativa popular, principalmente dos jovens residentes no bairro, os chapas começaram
a circular, cobrando uma tarifa por viagem de 7,5 Meticais13.

12 Designação de transporte semicolectivo de passageiros existente em Moçambique que tem a lotação máxima de 15
lugares, mas no quotidiano esse limite não tem sido cumprido, sendo transportadas 18 pessoas.
13 Valor equivalente a 0,99 euros. Importa referir que este valor não é fixo. Ele vai mudando de acordo com a dinâmica
socioeconómica do país.

14

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 1. Entrada do bairro PSK-foto da autora, PSK, 2015.

Em termos de actividade económica, a agricultura é a principal fonte de subsistência dos


moradores da PSK, apesar de outras pessoas se dedicarem ao comércio e a profissões no sector
público. Importa realçar que os mais velhos é que mais se dedicam à actividade agrícola. Tal como
refere Adam (2005), a agricultura foi sempre a base económica do distrito de Boane. As principais
culturas produzidas na PSK são o milho, a mandioca e o feijão nhemba14. A PSK à semelhança do
distrito de Boane apresenta excelentes condições agro-ecológicas. Por conta disso, o governo, na
pessoa da Direção Provincial de Agricultura e Segurança Alimentar decidiu construir um regadio.
Coube a Raimundo Diomba, então governador da província de Maputo, orientar a cerimónia de
lançamento da primeira pedra. A expetactiva dos residentes da PSK era de parar de adquirir
produtos na vila de Boane e abastecer as cidades de Maputo e Matola, assim como a sede de Boane.
O regadio tem a capacidade para garantir a irrigação de 20 hectares e tinha como meta beneficiar

14 Vigna unguiculata, feijão-frade em Portugal.

15

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

cerca de 340 produtores filiados em diferentes associações 15 que trabalham naquela região,
nomeadamente Comenoe, Agropuna e Hluvuko. Também se esperava que o empreendimento
criasse condições para que os beneficiários pudessem produzir diversas hortícolas, milho, feijão,
batata-reno e outras culturas, as quais visavam contribuir para a diversificação da dieta alimentar
e nutricional bem como para a geração de renda com vista à operacionalização plena da actividade
nesta parcela da província16.

Figura 2. Ficha técnica da construção do regadio da PSK-foto da autora, PSK, 2015.

15 Durante o trabalho de campo, fiquei a saber que tais associações têm dificuldades de operar, pois falta
financiamento para a aquisição de insumos agrícolas.
16 http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/sociedade/41579-novo-regadio-para-boane. Acesso a 10 de Novembro
de 2015.

16

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Metodologia

Esta tese se inscreve na tradição etnográfica, o que significa que o antropólogo deve estar no
terreno de estudo e se envolver em relações interpessoais e dialógicas com os seus interlocutores
(Gupta & Fergurson, 1992: 115; Hastrup, 2004). Antes de começar o trabalho de campo, segui os
procedimentos administrativos necessários para que pudesse estar em campo. Levei comigo uma
credencial passada pelo Instituto Superior de Artes e Cultura (ISArC), instituição a qual estou
afiliada, por forma a me identificar e a justificar a minha presença na PSK. Depois de observar os
procedimentos administrativos e estar devidamente credenciada junto das autoridades do
Município e Administração do Distrito de Boane, iniciei o movimento de aproximação junto dos
meus interlocutores, os Makonde residentes no bairro PSK. A minha entrada em campo foi de
certo modo facilitada por uma ex-aluna minha de licenciatura no curso de Gestão e Estudos
Culturais do ISArC, que é actualmente minha colega de trabalho: a Amélia17. Ela prometera me
introduzir aos Makonde da PSK, por ter recolhido entre eles os dados para o seu trabalho de
licenciatura.

Quando chegamos à PSK, nos dirigimos à casa do líder Makonde tal como é chamado e que é
em simultâneo vice-chefe do bairro. Fomos recebidos pela sua filha, a Sara. À princípio, a jovem
não reconheceu a Amélia e ela fez questão de explicar que quando ia recolher dados era magra e
estava grávida. Depois de avivar a memória da jovem, esta a reconheceu e a chamou de mana
Amélia. A Amélia explicou que eu sou colega dela e que pretendo levar à cabo um estudo junto
deles. A Sara disse que o pai seria a pessoa mais indicada para enquadrar-me e ajudar-me no
processo, mas ele estava ausente. A Sara e eu trocamos os números de telefone e doravante não
paramos de nos comunicar até ao presente momento. Perguntei a ela se existia algum lugar de
hospedagem na zona e ela disse que não, mas que algumas pessoas que vão realizar estudos lá
costumam ficar hospedadas na sua casa e que o pai não aceita pagamento por isso. Na ocasião ela
disse que se eu quisesse morar na casa deles não haveria nenhum problema e que bastava apenas
manifestar o meu desejo ao pai.

17
Tal como eu, a Amélia não é Makonde. Ambas somos naturais do sul de Moçambique. Ela da província de
Inhambane e eu da cidade de Maputo.

17

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Depois de muitos desencontros com o pai da Sara, que se tornou o meu também, finalmente
consegui um encontro com ele. Para além de explicar o que é que eu pretendia, igualmente pedi
acolhimento na sua casa, algo que prontamente aceitou e me disse que eu estaria em minha casa e
que me sentisse à vontade. Ser acolhida pelo líder Makonde e sua família me possibilitou acesso a
grande parte dos Makonde, porque praticamente todos os dias eles passam por lá e ficam a
conversar por tempo considerável. Para além de colocarem a conversa em dia, passar por aquela
casa é um acto de reconhecimento do papel do líder, na medida em que ele desempenha em
simultâneo o papel de vice-chefe do bairro e de líder dos Makonde. Durante o trabalho de campo
percebi o papel relevante que ele desempenha, sobretudo no seio dos seus conterrâneos, pois
nenhum estudo sobre os Makonde pode ser feito sem que ele saiba ou antes que o pesquisador fale
com ele acerca do que pretende. Se algum Makonde for entrevistado sobre assuntos ligados sem o
conhecimento do seu líder, terá que responder perante este e aos outros conterrâneos. O
pesquisador não terá nenhuma culpa, pois quem conhece as regras é a pessoa que o recebeu. O
acolhimento em casa do líder me permitiu conhecer e interagir também com os Makonde do
distrito da Manhiça, na província de Maputo, com os da ex-zona militar na cidade de Maputo,
assim como com pessoas de outros grupos etnolinguísticos residentes na PSK (vide capítulos 2 e
3). Senti que as pessoas se sentiam à vontade comigo, pois fui recebida e adoptada pelo líder
Makonde e sua família. Era normal ficar a conversar por longos períodos com as pessoas e falar
sobre muitas coisas. Elas estavam sempre dispostas a responder às minhas questões e clarificá-las
quando necessário. Lembro-me de uma ocasião em que estava a entrevistar algumas pessoas e na
hora de terminar a conversa agradeci pela sua atenção e tempo e pedi que não se cansassem de
mim, pois se tivesse mais dúvidas os contactaria novamente. Também disse a eles que sou uma
curiosa no que concerne aos Makonde e que estou a aprender muito com eles. Um dos
interlocutores disse: és curiosa, mas estamos aqui para te ajudar. Podes nos contactar de novo, não
tem problema. Encarei essa resposta como algo intrínseco à prática antropológica: a necessidade
de construir o conhecimento sobre os nossos interlocutores com eles mesmos. Nesse sentido, os
resultados desta tese resultam daquilo que Strathern (2014:194) chama de antropologia reflexiva.
Segundo a autora, a antropologia reflexiva vê a produção resultante como um diálogo entre o
antropólogo e o dito informante: a relação observador-observado já não pode ser mais assimilada
à relação entre o sujeito e o objecto. O objectivo é uma produção conjunta.

18

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

O trabalho de campo durou um ano, tendo sido dividido em três fases, correspondentes a 4
meses cada18. A opção por fracionar a estadia em campo se prende com a necessidade de após
imersão no mesmo criar um distanciamento para melhor reflectir em torno da experiência,
questionar as ideias iniciais e reposicionar-me teórico-metodologicamente. A primeira fase foi
dedicada à inserção em campo e aceitação por parte dos meus interlocutores, assim como à recolha
de informações acerca da constituição, povoamento na PSK e chegada dos Makonde ao bairro.
Este período me permitiu ser aceite e ganhar a confiança dos veteranos da luta de libertação
nacional residentes na PSK, que são quem a dirige.

Apesar de a Amélia assim como a Sara me ajudarem no processo de inserção e integração em


campo, a minha entrada e movimentação no terreno foi precedida por um teste. No primeiro dia
que ia me encontrar com o líder Makonde, fui levada por ele e por outro veterano da luta armada
oriundo da província central de Tete, à casa do líder do bairro, também de Tete, onde este me
esperava junto com outros veteranos. Mesmo sabendo que o meu tema de pesquisa poderia suscitar
algum questionamento sob o ponto de vista político, em nenhum momento pensei que tal facto
pudesse ter influência na minha inserção e aceitação em campo, até ao dia em que me encontrei
com as lideranças. Tive a sensação de estar a ser posta à prova, pois indirectamente fui questionada
acerca da minha filiação partidária, uma vez que na altura em que iniciei o trabalho de campo o
país estava a sofrer ataques armados de homens da RENAMO. Devido a esse clima hostil, o líder
do bairro me perguntou o que eu pensava sobre as ameaças do líder da oposição moçambicana de
retornar à guerra. Apenas respondi que em nenhuma parte do mundo a guerra faz bem e que não
me parece que a guerra seja a melhor solução, porque ocorre um retrocesso na vida do país em
geral e das pessoas em particular. Após minha resposta, o líder e os demais exultaram de alegria e
o líder exteriorizou a sua alegria nos seguintes termos: !minha filha, eu fico feliz que tu como
jovem penses assim, porque a guerra não é boa. Para nós que vivemos a guerra sabemos o que lá
acontece”. Depois desse teste19, percebi que eles ficaram à vontade para falarem sobre a formação,

18 Importa realçar que mesmo depois de ter terminado o trabalho de campo os meus orientadores e eu sentimos a
necessidade de retornar ao campo para aprofundar algumas questões despoletadas pela análise do material que já
tínhamos. Falo dos constrangimentos que enfrentei no retorno ao campo nas próximas páginas desta introdução.
19
Alguns estudos como por exemplo de Leirner (2009) têm defendido que não é fácil investigar junto a militares, ex-
militares ou veteranos devido a aura de desconfiança e escrutínio a que o antropólogo está sujeito. Segundo Leirner
(2009: 70), chegando a uma unidade militar, de antemão o etnógrafo está esquadrinhado. Sabe-se quem ele é, como e

19

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

povoamento e a convivência entre os diversos grupos etnolinguísticos na PSK. Apesar de não ter
feito menção à minha filiação partidária, creio que eles subentenderam que eu pertencia ao partido
no poder, visto os ataques armados serem protagonizados pela RENAMO e o governo sempre
afirmar que estava a favor da paz e estava disposto a negociar.

O teste ao qual fui submetida mostra na minha percepção que os antropólogos não estão
acostumados a ser !antropologizados”. Quando os veteranos !me colocaram à prova”, me senti

escrutinada e investigada, facto que me fez repensar no processo de construção de !objectos” de


estudo e no facto de nós antropólogos pensarmos que apenas nós estudamos !os outros”, quando
na verdade, o encontro com os nossos interlocutores é um processo dialógico e ocorre em ambos
os sentidos, ou seja, da mesma forma que nós os observamos e analisamos, eles também o fazem.
A diferença é que enquanto nós escrevemos sobre eles a partir das visões emic e etic, eles não
escrevem sobre nós, mas comentam o que viveram, sobre o nosso carácter, comportamento e sobre
a experiência que viveram connosco.

A segunda e terceira fase da pesquisa que duraram 4 meses respectivamente e foram dedicadas
ao trabalho de campo propriamente dito, onde fiz a observação participante do quotidiano das
pessoas, assim como de eventos específicos como os ritos de iniciação e o Mapiko20, bem como
de aspectos corriqueiros como com quem fulano conversa, por que motivo, sobre que aspectos fala
e com que frequência estão juntos e como é que é a relação entre os jovens e os adultos. Igualmente
foi neste período em que explorei por via das entrevistas e conversas informais o que é que define
um Makonde para os meus interlocutores? Que marcadores eles utilizam para se afirmarem como
tal e para se diferenciarem dos demais? Quando é que eles afirmam que são Makonde e quando é
que afirmam que são moçambicanos?

Esta tese resultou de trabalho de campo em três locais, nomeadamente, na cidade de Maputo,

por que é que está lá; alguém o espera; alguém o conduz para aquele que foi designado para recebê-lo; aquele que o
recebe já diz: interessa-lhe isto ou aquilo, e você vai fazer tal coisa. É isto que deve ver (...) militar pensa
prospectivamente, tem que antecipar o inesperado.

20 Dança emblemática dos Makonde. Para mais detalhes ver capítulo 3.

20

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

na cidade de Lisboa e na província de Maputo, concretamente no bairro PSK, onde residem os


meus interlocutores. Privilegiei uma combinação de técnicas de pesquisa, nomeadamente a revisão
da literatura, a história oral, a pesquisa de arquivo, as entrevistas semiestruturadas, as conversas
informais e a observação participante. A revisão da literatura efectuada versou sobre metodologia
etnográfica e teoria antropológica, identidades étnica e nacional no geral, assim como sobre
Moçambique e sobre os Makonde. A pesquisa de arquivo e a revisão da literatura foram a principal
fonte de elaboração do capítulo 1 que aborda as identidades Makonde em sintonia com novos
tempos e espaços. A pesquisa de arquivo foi realizada no Arquivo Histórico de Moçambique e no
Arquivo da Torre do Tombo em Lisboa. Em ambos os arquivos procurei informações sobre a
identidade Makonde, exactamente como é que ela era retratada nas correspondências e noutro tipo
de documentos do governo colonial português e não só. A revisão da literatura incidiu nos quatro
períodos que abordo, mormente no que tange às teses que abordam a identidade Makonde.

No que concerne ao terceiro capítulo me servi da história oral, consulta a jornais de época e a
pesquisa de arquivo. A história oral foi útil, pois a Administração, assim como o Município de
Boane não possuem registos sobre o processo de formação e assentamento das pessoas nas aldeias
ou bairros de Boane, assim como sobre a PSK. No começo do trabalho de campo me dirigi ao
Município de Boane, uma vez que o distrito acabava de ser elevado a categoria de Município, mas
me disseram que não tinham qualquer informação sobre a formação e povoamento na PSK e me
remeteram à Administração distrital. Lá, sugeriram que fosse ter com o líder do bairro para indicar
alguns anciões para me contarem a história do lugar e das pessoas, ao que respondi que já tinha
feito, mas gostaria de ter a versão institucional sobre o facto. A história oral foi aplicada junto dos
!moradores-fundadores” do bairro. Penvenne (2006: 23) considera que a história oral é muito rica
e que ela vai para além dos relatos dos indivíduos, por isso os historiadores/” investigadores”
(enfâse minha) devem depender de uma grande variedade de fontes, pois as experiências vividas
pelas pessoas podem emergir de registros de tribunais, registros de trabalho, da imprensa entre
outras fontes. Também uso a história nos moldes propostos por Goody (1998) quando refere: um
antropólogo tem que fazer o máximo uso de documentos para reconstruir a história social recente
(...). As pistas mais importantes para a organização social do passado recente, mas pouco
documentado, residem no presente, porque ao reconstruir o passado, temos de reconstruir em
sentido inverso o processo de mudanças. Partindo das sugestões metodológicas de Penvenne e de

21

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Goody, utilizei os arquivos de jornais e o conteúdo de algumas canções entoadas pelo grupo de
Mapiko da PSK (vide capítulo 3).

Importa referir que os as entrevistas, as conversas e a observação participante são técnicas


comuns que utilizei para a elaboração dos capítulos três, quatro e cinco. Relativamente às
entrevistas semiestruturadas, fiz cerca de 50 junto aos veteranos da luta de libertação nacional no
geral, mas em específico junto aos veteranos Makonde, de seus filhos, assim como algumas
pessoas que não são Makonde. As entrevistas incidiram em aspectos como a sua fixação na PSK,
a sua convivência com pessoas de outros grupos, a sua definição do que é ser Makonde no geral e
na PSK em particular, assim como sobre a convivência harmoniosa ou pacífica entre a sua
identidade étnica e nacional e sobre quando é que cada uma delas se evidencia, de que forma e por
que motivo.

Visto a redação desta tese ter sido concluída durante a vigência da pandemia covid-19,
enfrentei alguns constrangimentos para retornar ao campo. Foi decretado em Moçambique pela
primeira vez o Estado de Emergência, que foi prorrogado por mais duas vezes 21 . Uma das
limitações impostas pelo Estado de Emergência foi a circulação de pessoas em qualquer parte do
território nacional. Por conta disso, tive que recorrer aos meios digitais para fazer entrevistas com
vista a aprofundar alguns aspectos suscitados pelos comentários dos meus orientadores às versões
prévias dos capítulos da tese. Essa foi a via alternativa encontrada para não parar com a escrita
durante a incerteza provocada pela doença. Estou ciente de que esse acto vai contra aquilo que
produz conhecimento em Antropologia, mas por um lado a disciplina é dinâmica e já mostrou isso
através das várias metamorfoses que sofreu e, por outro lado, a ciência antropológica é
multifacetada e como ramo de saber holístico do homem, também faz a etnografia em meio virtual
e através de plataformas digitais. Nesse sentido, penso que os dados colhidos por meio do
WhatsApp não são inválidos, mas desafiam a noção de copresença na produção do conhecimento
antropológico. Apenas após levantamento de Estado de Emergência e decretação do Estado de

21
Os Decretos que sustentam o Estado de Emergência são os Decretos presidenciais nº 11 de 30 de Março de 2020,
nº 14 de 28 de Maio de 2020 e o Decreto nº 21 de 26 de Junho de 2020.
https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/Declaracao-do-Estado-de-Emergencia/Decreto-Presidencial. Acesso a 4 de
Janeiro de 2021.

22

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

calamidade pública22 a partir de 7 de Setembro de 2020 é que pude retornar ao campo e, de certo
modo repetir e até refazer as questões que coloquei aos meus interlocutores por meio das redes
sociais.

As conversas informais incidiram sobre os tópicos tratados nas entrevistas semiestruturadas,


mas tiveram a particularidade de serem desencadeadas por eventos que observei em campo nos
ritos de iniciação (ver capítulo 3 desta tese), assim como assuntos que emergiam das entrevistas e
da interacção que eu observava entre as pessoas. Era frequente estar a assistir aos ritos de iniciação,
algo despertar a minha curiosidade e colocar questões acerca do significado de tal coisa, pois
procurei sempre observar o princípio de mutualidade no meu relacionamento com os meus
interlocutores e no processo de produção de conhecimento (Cfr. Viegas & Mapril, 2012). Observei
os momentos tidos como importantes para os Makonde, tais como os ritos de iniciação e o Mapiko.
Contudo, como também me interessava compreender a interacção destes entre si e com as pessoas
dos demais grupos etnolinguísticos que residem no bairro, observei o modo como os Makonde se
relacionavam com os seus vizinhos, assim como é que estes últimos se comportavam quando se
realizavam práticas dos Makonde (vide capítulo 3). Observar essa interacção me pareceu
importante, visto a criação da PSK ter resultado de uma directiva governamental que determinou
que pessoas de diversos grupos etnolinguísticos e regionais do país residissem no mesmo bairro.
Importava, pois, procurar captar zonas de harmonia ou de tensão entre esses vários grupos, a
existência ou a ausência de solidariedade, a existência ou a ausência de mecanismos de cooperação
e reciprocidade.

No que concerne à identificação dos meus interlocutores, optei por alterar no texto os seus
nomes por forma a garantir o anonimato e a confidencialidade. Essa medida se justifica pelo facto
de alguns aspectos relacionados aos ritos de iniciação poderem levantar questionamentos sobre
como é que cheguei às informações, pois algumas delas são tidas como secretas e apenas as pessoas
iniciadas é que podem aceder (para mais detalhes, vide capítulo 3).

22
Estado de calamidade pública decretado pelos Conselho de Ministros do governo moçambicano a 4 de Setembro de
2020. Decreto publicado no Boletim da República 1362 (2), I Série, nº 171.

23

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

A Sara

A realização do meu trabalho de campo esteve muito ligada à relação de empatia e irmandade
que se estabeleceu logo no primeiro momento entre a Sara e eu. Tal ligação implicou uma
construção de conhecimento negociada e partilhada (Cfr. Fabian, 2001; Gow 2006; Viegas &
Mapril, 2012 e Pina-Cabral, 2013). A primeira vez em que conheci a Sara eu estava com a Amélia,
minha colega do ISArC que me introduziu aos Makonde da PSK. Ela tinha sido a principal
interlocutora da Amélia em campo, razão pela qual me foi sugerida por esta para trabalhar comigo.
A Sara se prontificou em ajudar-me durante o trabalho de campo com a marcação das entrevistas
e acesso a certos espaços que apenas um Makonde pode abrir, como por exemplo os ritos de
iniciação (vide capítulo 3 desta tese). Outro factor que determinou que a Sara fosse a minha
interlocutora principal em campo foi o facto de apesar de ela ter nascido em Maputo, ser fluente
em Shimakonde e conhecer as tradições Makonde, o que me facilitou bastante na compreensão de
certos momentos.

Também contei com o apoio da Sara nas traduções de Shimakonde para português.
Relativamente à língua importa aqui realçar que aprendi algumas palavras em Shimakonde durante
o trabalho de campo, mas não o suficiente para afirmar que sou fluente na língua. Apesar de a
considerar de extrema importância para uma melhor inserção, compreensão em campo e sobretudo
para aceder a aspectos simbólicos, não constituiu de todo uma barreira na medida em que os
Makonde que vivem na PSK falam português, Xichangana e Xirhonga, essas últimas duas línguas
que falo, visto ter nascido na cidade de Maputo, onde as mesmas são faladas. Quando fosse
utilizada uma palavra em Shimakonde, pedia que a Sara me fizesse a tradução.

A Sara é quem marcava as entrevistas e indicava os potenciais participantes em função do


que eu pretendia, visto conhecer todos os Makonde residentes no bairro, assim como os demais.
Durante o trabalho de campo fiquei a saber que a Sara tinha fundado um grupo de dança Makonde,
a dança limbondo23. Igualmente, outra particularidade de Sara é o facto de ela ser frequentemente
mbwana (madrinha de raparigas que entram para os ritos de iniciação). Todo esse capital de
conhecimento fez de Sara uma pessoa de grande prestígio entre os Makonde e não só. A minha

23
Dança oriunda do planalto Makonde em Cabo Delgado. É executada por homens e mulheres em festas, casamentos
ou em outras ocasiões alegres para os Makonde.

24

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

relação com ela me fez reflectir em torno das condições de produção do conhecimento
antropológico, ou seja, me fez pensar na forma como este é construído e de que modo é que se dá
a sua legitimidade. No fim de cada dia de trabalho fazia revisão das minhas notas de campo e
elaborava questões para colocar aos meus interlocutores, assim como questões que devia prestar
mais atenção ao observar a vida no bairro. Ao consultar sempre os meus interlocutores acerca do
que eu julgava ter compreendido na interacção passada, utilizo a perspectiva defendida por Astuti
(2017: 11) quando afirma que devemos aos nossos interlocutores que continuemos a criar as
condições nas quais eles podem ser coprodutores do conhecimento antropológico.

Estrutura da tese

A tese é constituída por quatro capítulos. No capítulo 1 abordo o modo como a identidade
Makonde foi sendo vista em diferentes períodos por investigadores ou exploradores coloniais
inscritos em diferentes tradições teóricas. No capítulo, sigo a linha teórica que advoga que o
contexto social, histórico e político vem influenciando no modo como os Makonde se conceberam
e concebem aos !outros”. Igualmente sigo a linha que vê a identidade Makonde como algo
inacabado e em sintonia com os tempos e novos espaços, sendo, por conseguinte, por eles moldada.

No capítulo dois, através da pesquisa de arquivo, da história oral, da revisão da literatura,


entrevistas e conversas informais abordo a constituição e povoamento do bairro PSK, procurando
mostrar as lógicas que a nortearam. No capítulo três procuro mostrar que marcadores os meus
interlocutores utilizam para se afirmar como Makonde e se diferenciar das pessoas dos demais
grupos etnolinguísticos que vivem no bairro. No quarto capítulo discuto as identidades dos meus
interlocutores entre o mundo da etnicidade e da moçambicanidade. O meu argumento é que os
Makonde mais velhos e mais novos têm diferentes visões e manifestam a sua etnicidade e
moçambicanidade de modo diferente e que apesar de essas duas facetas identitárias coexistirem
cada uma se manifesta em momento específico. Igualmente abordo através dos relatos dos meus
interlocutores em que momentos eles se afirmam apenas como Makonde, como moçambicanos,
ou como as duas coisas, assim como as solidariedades e outros elementos que têm relevância para
eles. Partilho das perspectivas que olham para a identidade como algo fluído e fragmentado, mas
também da ideia que defende que a identidade étnica é uma das várias identidades que possuímos

25

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

e que mais do que olhar para ela como determinante na vida dos indivíduos, temos que procurar
perceber como é que se articula e convive com várias outras identidades e solidariedades. Por fim,
apresento a conclusão da tese e as referências bibliográficas.

26

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Capítulo I

A identidade Makonde em sintonia com os tempos e novos espaços

Introdução
As identidades estão sempre em processo de construção, estando por isso longe de estar
acabado. Partindo dessa perspectiva, abordo o modo pelo qual as identidades Makonde foram
sendo retratadas em diferentes momentos históricos, políticos e científicos por diferentes pessoas.
Devido à existência de Makonde em Moçambique e na Tanzânia, à partilha de fronteira comum e
aos laços históricos que unem esse grupo etnolinguístico nos dois países, neste capítulo olho para
a forma como a identidade Makonde foi sendo construída e concebida nos dois países. Para o
efeito, me sirvo da revisão da literatura antropológica e histórica, assim como de material de
arquivo que incide sob as fases em tratamento, nomeadamente: 1ª fase: dos administradores e
exploradores coloniais e do etnólogo Karl Weule; 2ª fase: da antropologia colonial, Jorge e Margot
Dias, que na Tanzânia não tem paralelo. Nesta fase também importa abordar a correspondência do
governo colonial português através de material de arquivo existente em Moçambique e Portugal;
3ª fase: !nacionalista” e da oficina de história (Yussuf Adam, Anna Maria Gentili, Relatório de
Desagregação das aldeias comunais em Cabo Delgado e Ricardo Teixeira Duarte) 4ª fase: do pós-
guerra civil, onde houve alguma produção de teses sobre os Makonde como a de Harry West, Paolo
Israel, Alexander Bortolot e Lia Laranjeira.

O meu argumento é que o contexto social, histórico e político vem influenciando no modo
como os Makonde se conceberam e concebem a si e aos !outros”. Outrossim, a construção da
identidade Makonde não constitui um processo terminado, pois ela tem estado em sintonia com os
tempos e novos espaços, sendo, por conseguinte, por eles moldada.

27

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

A identidade Makonde na visão dos administradores e exploradores coloniais e do etnólogo


Karl Weule

O período24 em que os administradores e exploradores coloniais tentaram entrar em contacto


com os Makonde pode ser caracterizado como período de agitação e de rivalidades fortes entre
esse grupo e os seus vizinhos, mormente os Makua e os Yao. Tal rivalidade advinha do facto de
tanto os Makonde assim como estes últimos realizarem incursões com vista à captura de escravos
no seio dos grupos vizinhos (Rita- Ferreira, 1982; Adam, 2006). Problematizando a questão do
tráfico de escravos na África Oriental, Alpers (1967: 13) afirma que quando se pensa ou se fala
em tráfico de escravos se olha apenas para os factores externos, mas houve também factores
internos que contribuíram para essa prática. As rotas de tráfico eram forjadas pelos africanos a
partir do interior para a costa e não pelos árabes ou swahilis. Ainda de acordo com Alpers (1967:
13), os comerciantes swahili só começaram a praticar o tráfico de escravos na segunda metade do
século dezoito e viajaram por rotas bem estabelecidas, desenvolvidas décadas antes. Somente após
o século XIX, os comerciantes árabes ousaram seguir o mesmo caminho. Apesar de não isentar de
culpas aos actores externos envolvidos no tráfico, Alpers afirma que se deve questionar como é
que essas rotas bem desenvolvidas foram elaboradas e qual foi o seu significado para o tráfico de
escravos na África Oriental. De acordo com os relatos orais colectados por West (2004: 24),
nenhum assentamento foi excluído do comércio de escravos, seja como vítimas ou como
agressores. Em meio a esse ambiente perigoso, todos os assentamentos procuravam se defender de
uma predação, aumentando seus números através da invasão de vizinhos (geralmente mais fracos)
e da absorção de cativos em suas fileiras.

Alguns administradores coloniais, mormente do império colonial inglês realizaram algumas


expedições na África Oriental, tendo entrado em contacto com as populações que foram
encontrando pelo caminho, incluindo os Makonde de Moçambique, na altura conhecidos como
mavia, mawia, mabiha25. Em Novembro de 1877, o explorador Chauncy Maples viajou para o vale
do Rovuma e os Makonde de Moçambique foram retratados para ele como mavia. O explorador
referiu o seguinte acerca deles: !eles são vistos como pessoas bastante inospitaleiras, muito

24 Esse período vai desde final do século XIX ao começo do século XX.
25
Mavia, mawia ou mabiha é um termo que significa irascível, colérico ou agressivo.

28

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

fechadas em si e que sempre recusam comida e bebida dada pelos estranhos” (Maples, 1880: 342-
350). Em 1882, Henry O"Neill então cônsul britânico em Moçambique subiu o planalto26 ainda
sem nome, situado a sul do Rovuma. Nessa altura, os seus habitantes apenas apareciam nos registos
históricos como objecto de rumores e especulações. Tal como os seus guias africanos, os viajantes
europeus chamavam a este povo mavia (Liebenow, 1971: 30 apud West, 2009: 64). O geólogo e
explorador britânico Joseph Thomson realizou uma expedição na região do rio Rovuma. Refere
que a sul do Rovuma existia o planalto mawia. !O planalto é propriamente a terra dos mawia,
maviha, mabiha, como eles são comumente chamados, que tem, no entanto, se retirado nos últimos
anos do tráfico, parcialmente devido aos seus hábitos exclusivos e devido em parte a terem sido
depostos pelos Macua, Wahyao e Matambwé que os retiraram por completo do Rovuma.

!São conhecidos como a !tribo” mais fechada da África oriental, pois nem os árabes conseguiram ainda
penetrar nos limites do seu território...diz-se que vivem separados uns dos outros sem formarem aldeias. Há
poucas estradas e são praticamente intransitáveis. São descritos como sendo muito traiçoeiros e de trato
difícil” (Thomson, 1882: 73).

Por seu turno Weule (2000:96) na altura designou os Makonde de grupo tribal rapace,
selvagem e temido. Este autor refere também que não conseguiu realizar a sua expedição e
investigação na margem sul do rio Rovuma, terra dos Makonde de Moçambique devido ao carácter
irascível destes. A tese de isolamento dos Makonde é contestada por alguns autores como Adam
(2006) e Liesegang (2007). Adam (2006:294), por exemplo, refere que antes da presença
portuguesa no planalto de Mueda estiveram lá comerciantes indianos que idos da Mocímboa da
Praia ou Ibo vendiam armas e pólvora para poderem comprar marfim ou para concluírem negócios
de várias mercadorias desde o copal, cera, goma, e borracha landholphia. Os chefes Makonde iam
regularmente à costa para fazer comércio. Ainda segundo Adam (2006: 294), a área de Mueda
estava integrada na economia mundial muito antes da ocupação portuguesa. Macomia e o planalto
de Mueda tinham uma produção agrícola importante e os seus produtos agrícolas chegavam aos
comerciantes da costa. Os Makonde estavam também envolvidos no comércio de escravos. A
captura de pessoas no mato era uma actividade frequente antes da chegada dos portugueses. Alguns

26O planalto em alusão é o de Mueda, também conhecido por planalto dos Makonde tido como seu berço em
Moçambique.

29

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

dos cativos eram integrados nas aldeias existentes e outros eram vendidos. Por seu turno Liesegang
(2007:32) refere que !os Makonde estavam abertos a certas inovações. Aceitaram casas do tipo
costeiro, a fechadura romana ou mediterrânea, que encontramos como clef bambara no Mali, e
muitos empréstimos costeiros (swahili) na língua, os panos de algodão, armas de fogo, etc...”

Como se pode perceber, nos discursos dos exploradores e administradores coloniais, assim
como no de Karl Weule, existe um denominador comum acerca dos Makonde de Moçambique: a
ideia de serem irascíveis, fechados e isolados do resto das pessoas de outros grupos
etnolinguísticos e de outros países. Os exploradores e administradores coloniais viajaram
acompanhados por guias locais, uma vez que eles não conheciam o caminho e não dominavam as
línguas locais, daí terem acreditado nestes. Esses guias muita das vezes pertenciam aos grupos
etnolinguísticos com os quais os Makonde rivalizavam no tráfico de escravos e nos raids pelas
mulheres e foram reproduzindo o que circulava no imaginário das pessoas acerca dos Makonde.
A visão dos guias locais, assim como dos exploradores e administradores coloniais que eles
acompanhavam mostram que a identidade Makonde naquele momento foi construída em função
de todos os eventos ligados à prática esclavagista e às relações de rivalidade que estes estabeleciam
com os seus vizinhos.

West (2004: 26) sugere que a ausência de uma identidade compartilhada entre os moradores
do planalto na época era indicativa dos complexos processos históricos que levaram ao
assentamento da região do planalto pelos ancestrais de seus habitantes actuais. Citando fontes
orais, West afirma que a identidade Makonde é recente e é resultado de crises regionais que fizeram
com que algumas pessoas fixassem residência no planalto, onde a concentração populacional era
reduzida devido à falta de fontes de água. Lá, elas poderiam se proteger melhor construindo
fortificações em torno de seus assentamentos elevados e invadindo para aumentar seus números.
Isso exigia que elas se adaptassem ao seu novo ambiente, aprendendo técnicas de cultivo
apropriadas às técnicas de terra e cerâmica para permitir que produzissem grandes vasos de argila
com os quais transportar a água necessária para a sobrevivência de fontes distantes das terras
baixas. Face ao ambiente perigoso, cada povoação procurava se defender da depredação
aumentando a sua população através da pilhagem dos seus vizinhos (geralmente mais fracos) e
absorvendo os cativos nas suas fileiras. As fontes orais de West (2004: 27) contaram que com

30

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

frequência os seus antepassados guardavam as mulheres da sua própria povoação, quando elas iam
buscar água e, noutras alturas faziam emboscadas nas fontes para capturar as mulheres de outras
makola (pl. likola 27 ). Em resultado destas práticas, a maioria das povoações tinha pessoas de
diversas origens, incluindo gente capturada nas terras baixas em redor do planalto.

Israel (2006:116), argumenta que a experiência histórica compartilhada de resistência ao


comércio de escravos forjou uma consciência colectiva de insubmissão, desejo de liberdade e
independência que o povo Makonde levou com eles quando foram pacificados pelos portugueses
em 1917. Outrossim, Israel (2014:49) afirma que os Makonde são referidos como etnia separada
no começo do século XIX, precisamente nos anos em que a escravidão estava no vale do Rovuma
e se refere a ataques realizados pelo !pequeno reino Makonde” contra escravos nos campos.
Partindo das ideias de Israel expressas no parágrafo anterior, se nota que o autor considera que já
no princípio do século XIX existia uma consciência colectiva e uma produção da alteridade,
decorrente do tráfico de escravos na região. Eu concordo com o posicionamento dele, na medida
em que os Makonde que estavam refugiados no planalto para fugir da escravatura tinham noção
de que deviam capturar e fazer mais cativos como meio de robustecer o seu grupo e evitar a
depredação. Tal robustecimento não deveria ser apenas em número, mas também na assimilação
ou !conversão” dos outrora inimigos em Makonde, através das escarificações, afiar dos dentes e
uso da indona28 no lábio. Essa necessidade de assimilar e/ou converter, mostra a meu ver que os
Makonde tinham a consciência de que eram e queriam ser diferentes, pois a identidade não é nada
mais, nada menos que a produção da alteridade. Resumindo, nesta fase dos exploradores e
administradores coloniais, a identidade Makonde foi construída a partir da necessidade de atacar
e se defender do tráfico de escravos, tal como assinala West (2004: 26): !Certamente, os moradores
do planalto foram vítimas de terror na região e participantes da fabricação de terror”.

27
Matrilinhagem em Shimakonde. Para mais detalhes sobre likola, ver o capítulo 2, onde abordo com algum pormenor
esse conceito.
28
Bloco de madeira no lábio superior furado.

31

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

A identidade Makonde na fase da Antropologia colonial

A forma como a identidade Makonde foi e é vista nesta fase deve muito ao etnólogo português
Jorge Dias e sua equipe. Antes de prosseguir com a visão de Jorge Dias acerca da identidade
Makonde importa contextualizar a antropologia colonial portuguesa para se perceber que ambiente
político, histórico e científico influenciou o pensamento e o trabalho de Jorge Dias, pois, como
diria Kuhn (1998), todo o conhecimento é socialmente produzido. Nesse sentido, Bastos & Sobral
(2018:7) argumentam que para entender completamente o papel desempenhado por Dias tem que
se reconhecer não apenas a sua formação etnográfica e antropológica, mas também a sua visão
político-ideológica e as circunstâncias históricas em que a sua carreira se desenvolveu. Para além
do seu mandato científico enquanto investigador, Jorge Dias e a sua equipa produziam em paralelo
relatórios confidenciais dirigidos ao Governo Colonial Português, pois este ordenara que fizessem
uma investigação destinada a identificar os povos susceptíveis à “perversão e rebeldia” dentro de
Moçambique, razão pela qual é visto nalguma literatura como um homem do establishment (Cfr.
Bastos & Sobral, 2018). Dias (1960) mostra no relatório da campanha de 1959 que havia um receio
por parte do Governo Colonial Português relativamente às influências políticas vindas do norte do
Rovuma, uma vez que por essa altura se formavam na Tanzânia organizações Makonde de índole
protonacionalista que recebiam apoio da TANU (Tanganyika African National Union) e de Julius
Nyerere, seu líder, com vista à conquista da independência.

No que concerne à antropologia colonial, Roque (2001:290-296) afirma que nas décadas finais
do século XIX, !conhecer o que é nosso” tornara-se o principal lema de muitos imperialistas.
Acreditava-se que a exploração económica e o moderno domínio imperial dos territórios
envolviam a legitimação internacional da posse colonial e uma governação efectiva das
populações, dependendo da constituição de um conhecimento empírico circunstanciado e voraz.
De um modo geral, a literatura que se tem debruçado sobre a história da etnografia no século XIX
apresenta a formação de um saber antropológico dos nativos das colónias como associada à
tentativa de instalação de novas formas de poder e governo dos povos. Segundo Pereira (2005:
152-53), a produção em contexto colonial deve ser entendida pelo menos do ponto de vista
científico como uma crise de crescimento inerente ao próprio desenvolvimento da antropologia
portuguesa e é inegável que a autonomização da antropologia académica em Portugal resultou
desse apelo. Em vez de ser julgada como anátema da antropologia, a situação colonial deve ser

32

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

entendida como o processo catalisador que proporcionou um ímpar salto qualitativo aos estudos
antropológicos em Portugal: a sua aplicabilidade e a sua automização científica e académica.
Ainda de acordo com Pereira, é em decorrência dessa tentativa de ombrear cientificamente com as
suas congéneres que Portugal realiza reformas legais com vista a garantir a realização de
investigações nas suas colónias. Em 1945, a Junta de Missões Geográficas e de investigações
Coloniais foi incluída no decreto de reforma da lei orgânica do Ministério das Colónias. Em 1945,
essa junta acolheu uma nova lei orgânica, através da qual se declarava que a Junta e, em última
instância, o Ministério das Colónias passava a ser responsável pela condução e coordenação de
todas as missões de investigações oficiais nas colónias, bem como por todos os centros de estudos
e investigações na área das ciências coloniais por iniciativa privada/institutos privados ou institutos
estrangeiros. A nova lei orgânica da Junta determinava as áreas de especialização das ciências
coloniais por ela abrangidas, as quais foram divididas em duas seções: uma seção geográfica e
uma seção para a história natural. A esta última pertenciam a geologia, a zoologia, a botânica e a
antropologia. Em 1945 é aprovado o decreto-lei 34478 que postulava os objectivos fundamentais
das missões antropológicas: primeiro, o reconhecimento geral dos grupos étnicos de cada colónia,
seus indivíduos, sua sistematização e definição das suas condições de vitalidade; segundo, o estudo
de instituições tradicionais dos povos indígenas e de seu direito consuetudinário. É no quadro
acima traçado acerca da antropologia colonial no geral e da antropologia colonial portuguesa que
se insere o pensamento, a visão e a monografia de Jorge Dias sobre os Makonde de Moçambique
(idem).

A visão de Jorge Dias sobre a identidade Makonde

Segundo Dias (1998: 61-83), a origem dos Makonde não é muito clara. Quando se conversava
com algum Makonde idoso sobre a origem do seu povo, ou dizia que não sabia nada, ou falava
sobre a origem e tradição da sua família. Isso deve-se ao facto de cada povoação ser uma unidade
política independente, principal centro de seus interesses, eles pouco sabiam além do que lhes diz
directamente respeito. Conhecem com bastante pormenor a vida das povoações que pertencem à
mesma matrilinhagem (likola), porque se consideram parentes próximos e provenientes de uma
antepassada comum. Concordando com Dias (1998) relativamente à origem dos Makonde,
Liesegang (2007: 30) refere que este não era um termo etnolinguístico, mas sim uma referência à

33

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

pertença regional, tal qual ao seu antónimo Mwani que significa litoral, costa, baía, ou como o
termo Nyanja (do lago), Yao (originalmente habitantes de um certo tipo de formação montanhosa).
Mas, a experiência histórica e oposição a grupos étnico-culturais como Makhuwa também
permitiam operacionalizá-lo como termo étnico-cultural. Outra característica que Dias atribui aos
Makonde de Moçambique é a homogeneidade cultural e a heterogeneidade política. A
heterogeneidade política tem a ver com o facto de a aldeia Makonde ser segundo Dias & Dias
(1964: 11) o lugar onde reside um grupo familiar complexa sob a liderança de um chefe. Nesse
sentido, aldeia para os Makonde não é um conceito geográfico, mas de grupo.

Dias (1998) afirma ainda que os Makonde de Moçambique e os do Tanganhica apresentam


diferenças culturais consideráveis. Uma dessas diferenças é indicada por Alpers (1984) e Cahen
(1999). Esses autores afirmam que há divisões entre os Makonde que emigraram para a Tanzânia
e os que já estavam estabelecidos lá há mais tempo, porque havia diferenças de educação e estatuto
entre eles.

Segundo Dias (1998: 65), apesar de os Makonde de Moçambique e do ex-Tanganhica


concordarem quanto à origem do seu nome, existe um certo etnocentrismo, que os impede de
reconhecerem os habitantes de outros planaltos como Makonde. Por exemplo, alguns dos Makonde
de Cabo Delgado achavam que o planalto de Macomia não era likonde (terra fértil), mas sim,
mwanga nyula, ou seja, só areia. Para os Makonde de Mueda, o povo Makonde é aquele que vive
kumakonde, isto é, nos planaltos sem nascentes, cobertos de mato secundário. Dias afirma ainda
que muitos traços da sua cultura podem ser produto de um longo processo de adaptação às
condições ambientais e o resultado de um isolamento que os individualizou e lhes deu uma feição
própria; outros são uma velha herança cultural, comum a vários povos agricultores, em que
prevalecem algumas formas de direito materno. Esses povos matrilineares ocupam uma larga zona
desde o atlântico até ao índico, incluindo muitas populações de Angola, da Zâmbia, vários povos
do Niassa e as populações moçambicanas situadas ao norte do Zambeze, incluindo ainda uma parte
sul do Tanzânia. São os povos que participam de uma cultura a que Baumann chama !círculo
zambeziano”. Por sua vez os Makonde do ex-Tanganhica chamavam aos de Cabo Delgado de
mavia e não de Makonde, porque, reagiam rapidamente a qualquer ofensa. Mavia, não é nome de
um povo, nem de família, nem de região; é uma espécie de alcunha. Dizia-se que quando alguém

34

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

espeta um espinho num pé ou numa perna e se produz uma inflamação rápida usam a palavra
mavia; e que os chamaram assim por eles se irritarem com qualquer coisa e não serem para
brincadeiras (idem).

Por conta das lutas permanentes com os seus vizinhos os Makonde eram retratados como
bravos, maus, impiedosos. Importa referir que essa produção da alteridade não ocorre no sentido
unilateral, ou seja, da mesma forma que os vizinhos dos Makonde os viam de certo modo, os
Makonde também tinham e até hoje têm um !retrato pintado” dos seus vizinhos. Por exemplo, os
Makonde olhavam para os Makua como um povo que nunca temeram e que serviu de pasto às suas
razias e incursões, para apanhar escravos. Os Makua nunca se aventuraram no planalto, pois
temiam a violência do ataque dos Makonde. Por exemplo, Israel (2014: 51), assinala que os
Makonde chamavam os seus vizinhos de vashagwa29, que deriva do termo ushagwa (escravatura).
Todos os territórios para além do planalto eram chamados kuna-vashagwa (terras dos escravos).
Da mesma forma que consideravam a maioria dos povos vizinhos como inferiores a si e
militarmente fracos, consideravam alguns povos valentes. Por exemplo, o único povo que
respeitavam por conta da sua valentia são os angónis (ngoni), tanto é que diferentemente dos
Kakonde do ex-Tanganhica conseguiram resistir aos ataques dos ngonis graças à sua famosa
agressividade face ao inimigo, mas sobretudo devido à magnífica estrutura defensiva do planalto
de Mueda que era impenetrável, o que lhes possibilitava esconder as suas aldeias nos lugares mais
densos do mato e tornando os caminhos de acesso num autêntico labirinto. De acordo com Dias
(1998: 83), os Angónis tentaram várias vezes invadir o planalto, mas sem sucesso, porque sempre
se deparavam com a resistência de um povo sempre alerta e refugiado dentro das suas aldeias
fortificadas. O sistema defensivo e estado de alerta dos Makonde não era só pelo receio dos
inimigos estrangeiros, mas também dos seus vizinhos, uma vez que eles estavam em estado de
guerra permanente. Com a chegada dos Angónis e com as suas constantes razias, a situação piorou
e os Makonde foram-se se fechando cada vez mais no seu planalto, donde só saíam para as rápidas
incursões, em territórios vizinhos para apanhar mulheres ou para ir aos mercados do litoral. A sua
agressividade e isolamento acabaram por lhes granjear a fama de invulnerabilidade e ninguém se
atrevia a entrar em seu território.

29
Escravos em Shimakonde.

35

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Outro aspecto digno de realce no pensamento de Jorge Dias se prende com o facto de ele
afirmar que a fama de ferocidade e insociabilidade atribuída aos Makonde não é de todo
verdadeira, pois desde que as pessoas se mostrassem amigas e com boas intenções eram cordiais
e hospitaleiros. Segundo Dias (1998), a unidade Makonde é simplesmente de natureza cultural.
Aliás, segundo Dias, pode dizer-se que o Makonde tem como os antigos chineses, um conceito
cultural de nacionalidade e não um conceito racial ou de sangue. Isto é observável na facilidade
com antigamente aceitavam estranhos que viessem a bem e se quisessem fixar com a condição de
se tornarem Makonde. O argumento de homogeneidade cultural foi enfatizado pelo antropólogo
moçambicano José Luís Cabaço aquando de uma entrevista por mim conduzida em finais de 2013,
nos seguintes termos: duas questões devem ser levadas em consideração ao estudar os Makonde:
uma história de ocupação colonial curta, que não desmembrou a sociedade e depois uma
homogeneidade cultural muito forte, que depois exprimiu-se politicamente. Os Makonde não são
um povo politicamente unido, mas um povo culturalmente unido. Realmente muitas brigas
internas dos Makonde são sobre as questões políticas e nunca sobre as questões culturais.
Considero válido o argumento de Dias no que concerne ao acolhimento que os Makonde dão às
pessoas que se apresentam diante deles de bom modo, uma vez que quando capturassem escravos,
desde que estes se submetessem a todos os rituais necessários para se tornarem, serem
considerados e aceites como Makonde, viviam em harmonia. Durante o meu trabalho de campo
no bairro PSK, os Makonde lá residentes me disseram que qualquer pessoa pode ser um deles, ou
seja, não precisa nascer de pais Makonde, mas tem que se predispor a aprender o modo de vida
deles através dos ritos de iniciação porque é lá onde são ensinados os segredos, mistérios e tudo
aquilo que diz respeito a eles. A possibilidade de qualquer pessoa se tornar Makonde por
assimilação e, por conta disso se dizer e ser considerado Makonde, me parece um contributo à
teoria antropológica sobre as identidades, pois durante algum tempo as identidades foram
concebidas de modo bastante essencialista 30 . Essa “assimilação” significa que os Makonde
privilegiam muito o lado performativo das identidades.

Um dos maiores méritos que é atribuído a Jorge Dias é o facto de em Portugal a etnografia ter

30
A literatura antropológica apresenta alguns exemplos etnográficos que mostram que a identidade não é uma entidade
fixa e já adquirida. Por exemplo, Astuti (1995) fez trabalho de campo entre os vezo da Ilha de Madagáscar e mostra
através dos dados por si recolhidos que os seus interlocutores consideram que não se nasce vezo, mas que o que define
se a pessoa é vezo é não é conseguir fazer as coisas que os vezo fazem no seu quotidiano.

36

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

se transformado em etnologia. Dias rompe com a epistemologia racialista até então vigente na
antropologia portuguesa e concentra a sua investigação em aspectos socioculturais e no modus
vivendi total dos povos que estudou, incluindo os Makonde.

Com Jorge Dias, portanto, !a etnografia” transformou-se em !etnologia”, decorrente da enfâse colocada por
Jorge Dias na interpretação, sem a qual a descrição não faria sentido. Esta transformação resultou também
da adoção, no decurso dos anos 1950, de uma concepção universalista da !etnologia” (Leal, 2016: 302).

Apesar do seu contributo para a antropologia portuguesa, Dias, foi criticado por alguns autores.
Pina Cabral (1991: 29) afirma que nas suas monografias Jorge Dias dava importância primordial
à descrição da cultura material e tecnologia tradicional, não prestando praticamente atenção à
análise sociológica. Concordando com o posicionamento de Pina Cabral, Macagno (2002:102)
refere que o estudo das pequenas comunidades portuguesas é efectuado no caso de Dias através de
um descritivismo etnográfico que renuncia a qualquer marco de interpretação.

A identidade Makonde nos arquivos coloniais

Durante o período da antropologia colonial, muitos Makonde fugiram de Moçambique para o


Tanganhica por um lado para fugir ao trabalho forçado e por outro em busca de melhores condições
de trabalho e salariais. Num relatório31 que contém uma transcrição sobre a situação dos Makonde
no Tanganhica e a sua evolução, afirma-se que uma massa de indígenas Makonde portugueses se
encontrava no Tanganhica a realizar as mais variadas tarefas, pelos quais a administração
portuguesa nada fazia, pelo que se sentia desamparada. Igualmente, realçava-se que começavam a
sentir os efeitos de serem estrangeiros naquele território, apesar do apoio e simpatia que aquele
futuro país negro tinha para com eles. Apesar desse cenário, havia espaço para a recuperação deles
por parte do governo desde que fossem respondidas as suas demandas, de entre as quais retornar
ao país de origem e uma vez lá a manutenção de condições de trabalho que lhes garantisse a sua
subsistência, pois o salário médio dos Makonde no Tanganhica era inferior ao que alguns deles
que trabalham nos portos e caminhos de ferro auferiam em Moçambique. Também se afirma no
relatório que alguns Makonde mais velhos tinham um ascendente sob os mais novos e se pareciam

31
Informação nº 829/61-GU enviada à presidência do conselho a 22.5.1961, aos ministérios do ultramar, interior,
defesa e exército e ao subsecretariado da aeronáutica (relatório secreto). ANTT/AOS/D/N/1/2/2.

37

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

com uma espécie de régulos. Estes, manifestavam a sua vontade de continuarem a ser portugueses,
vontade essa que transmitiam ao informante português lá, o que adquiria mais acuidade pelo facto
de no Tanganhica serem chamados de sem pátria, o que para um Makonde altivo e possuidor de
fortes características de clã é um insulto. Num outro registo32, afirma-se que muitos Makonde
ainda estavam em Moçambique por amor à terra, mas que o Tanganhica era melhor porque se
ganhava muito dinheiro, trabalhavam pouco e quando queriam. Os Makonde também são relatados
como grandes trabalhadores, se comparados com os outros de Cabo Delgado, nomeadamente com
os Makhuwa, Ajaua, Kimwani, Swahili e Angoni33. Esse último facto pode explicar a tentativa de
controlo dos seus movimentos migratórios. Parece-me pouco provável que alguns Makonde
quisessem permanecer em Moçambique com o trabalho forçado nas plantações de algodão onde
não ganhavam praticamente nada. Parece-me mais propaganda do governo colonial português para
afirmar-se como um colonialista dócil e amado pelo povo sob o seu domínio. O número de
Makonde emigrados para a Tanzânia era de longe grande (ver citação de Dias abaixo). Como é
que se justifica que alguns quisessem permanecer em Moçambique? Mais do que temer perder a
mão de obra, o governo colonial temia que fossem influenciados pelo ambiente político fervoroso
que em breve conduziria à independência do Tanganhica, tal como atesta um excerto do relatório
confidencial referente a campanha de 1959 enviado por Jorge Dias ao governo colonial português.

A imigração Maconde é principalmente grave porque do outro lado do Rovuma existe um povo também
chamado Maconde que, com os seus 333.897 indivíduos, constitui um dos grupos mais numerosos do
Tanganhica. Ora é bem natural que entre estes dois grupos nasça um certo espírito de solidariedade (...)
realidade étnico-política se ergue com aspirações e pretensões que brigam com as fronteiras de três Estados
soberanos, entre os quais está o nosso. Infelizmente, isto não são meros receios ou suposições, mas surge já
como uma ameaça concreta. De facto, constituiu-se há pouco no Tanganhica uma associação conhecida por
“Tanganyika-Mozambique Makonde Union”. Esta Union tem grupos associativos em Dar-Es-Salaam e
Tanga. A Union foi reconhecida em Tanga pelo Governo Territorial dada a tendência da Administração
inglesa para consentir e fiscalizar todas as associações indígenas que não pareçam constituir uma ameaça
directa para os poderes públicos. Desta maneira temos constituída uma organização em que os Maconde do
Tanganhica ficam unidos aos de Moçambique, como se se tratasse do mesmo povo, e estivessem ligados por
laços íntimos de convívio e cultura. Contudo, os Maconde do Tanganhica e os de Moçambique, embora

32
Inspecção dos Serviços Administrativos e dos Negócios Indígenas. Relatório da Inspecção Ordinária ao Distrito de
Cabo Delgado, 1944-1951. AHM. Fundo ISANI, Cota 91.
33 Idem.

38

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

provenientes de um tronco comum em remoto passado, constituem desde há séculos grupos independentes e
diferenciados, sem laços especiais de convívio (Dias, Guerreiro & Dias, 1960: 3-4).

Os receios de Jorge Dias não eram infundados, pois por volta de 1958 começaram a surgir na
diáspora alguns movimentos políticos34 que congregavam Makonde e não só. Tais movimentos
seriam segundo Cabaço (2007: 386-387) formas embrionárias dos movimentos nacionalistas
moçambicanos que se constituíram no Tanganhica e noutros países vizinhos algumas associações
de cunho político integrados por Makonde e não só. Um desses movimentos é o Mozambique
African National Union (MANU). Importa aqui destacar a MANU porque aparece de forma
recorrente nos arquivos coloniais como um movimento eminentemente Makonde e segundo
Tembe (2013: 260) a história da MANU é escrita de uma forma muito funcional, principalmente
em relação à narrativa nacionalista 35 do massacre de Mueda e às actividades de oposição
subsequentes à fundação da FRELIMO. Poucos estudos têm olhado para a MANU como
movimento que visava lutar pela independência de todo o país e não apenas dos Makonde. A
MANU foi fundada para elevar a dignidade humana de uma comunidade ou nação e levantar as
suas condições em todos os sectores da vida, cultivar um senso de respeito e responsabilidade
própria nos africanos de Moçambique e para a libertação do nosso país para que se atinja
finalmente a completa independência e eliminação do domínio imperial e colonial português antes
do fim do ano de 1963. A MANU era um partido político no exílio com a sua sede em Dar-Es-
Salaam, Tanganhica, em defesa dos seus 11 mil membros inscritos e um número de milhares de
partidários no Tanganhica, Quénia, Zanzibar, Uganda e Niassalândia e até mesmo Moçambique36.

34
Hedges et al., (1993:240), afirmam que em Tanganhica, ainda protectorado britânico, cuja independência formal
estava prevista, então, para breve, trabalhadores moçambicanos constituíram várias organizações, entre as quais se
destacaram a 'Tanganyika-Mozambique Makonde Union' (União dos Maconde de Tanganhica e Moçambique),
formada em 1958, e a 'Makonde and Makua Zanzibar Union' (União dos Maconde e Makua no Zanzibar). Inicialmente,
a primeira destas organizações estava organizada em moldes étnicos. Segundo a sua constituição, os seus membros só
podiam ser os Maconde do sul de Tanganhica e de Moçambique. Além da assistência social em casamentos e enterros,
entre os seus objectivos, que eram semelhantes aos de uma associação de ajuda mútua progressiva.
35 Segundo Adam & Dyuti (1993: 118), a narrativa nacionalista postula que no dia 16 de Junho de 1960 populares
Makonde se dirigiram à Administração do Distrito de Mueda, onde reivindicaram a independência de Moçambique.
Nessa ocasião e por forma a repelir a multidão, as tropas coloniais abriram fogo e assassinaram 600 pessoas. Esta
versão procura enfatizar a ligação entre o massacre de Mueda a formação da FRELIMO e o início da luta armada de
libertação nacional. O massacre de Mueda cristaliza o conjunto de indicações segundo as quais o regime colonial
nunca abdicaria do poder pacificamente e, portanto, só pela força das armas poderiam os moçambicanos aspirar à sua
independência.
36
Memorando de entendimento submetido pela MANU ao Comité Especial das Nações Unidas para territórios sob a
administração portuguesa em Dar-Es-Salaam, 14 de Maio de 1962. Cota: ANTT/TT/SCCIM/C/1/6.

39

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

O relatório da reunião37 havida em Mombaça a 6 de março de 1961, mostra que a MANU não era
só um partido dos Makonde e que não estava só em busca de uma independência parcial, mas de
todo o país. Esses documentos mostram que a MANU congregava pessoas de outras partes de
Moçambique e apregoava a unidade para que se alcançasse a independência. Embora fosse
fortemente representado pelo povo Makonde, também integrou outros grupos etnolinguísticos do
norte de Moçambique - como Yao, Nyanja e Makhuwa, pessoas que também trabalhavam e viviam
em diferentes partes de Tanganhica, Zanzibar e Quênia. Defendendo a importância da unidade
nacional e aceitando outras etnias além dos Makonde, MANU desejava se tornar um representante
do partido político de todos os moçambicanos. Essa constatação não invalida o facto de os
Makonde terem participado da fundação desse movimento político. Esses documentos também
mostram que os Makonde sempre se mostraram resistentes a situações que lhes eram
desfavoráveis. A experiência de tráfico de escravos que forjou neles a consciência étnica colectiva,
fez com que novamente lutassem contra a submissão ao regime colonial.

Um marco importante relacionado aos Makonde é o massacre de Mueda que é atribuído pela
historiografia oficial à acção da MANU. Relativamente ao massacre, os arquivos coloniais
afirmam que a independência do Congo influenciou negativamente os Macondes que passaram a
portar consigo umas escritas dizendo: “Macondes livres38”. Nessa ocasião calcula-se que cerca de
5000 Maconde se reuniram em torno da casa do administrador, tendo este reunido durante 4 dias
a população que considerava civilizada sob a sua proteção. Diz-se também que a negralhada, tal
como são mencionados no documento, cortou as comunicações, mas antes disso conseguiu pedir
apoio à Porto Amélia (actual cidade de Pemba) e chegou ao conhecimento do governo em
Lourenço Marques (actual cidade de Maputo). Também se afirma que os militares portugueses os
perseguiram, mas estes fugiram, tendo se encontrado mulheres e crianças na selva, assim como
armas sofisticadas e munições de fabrico russo. Suspeitava-se que o resto fugiu para o Tanganhica
onde estaria em contacto com os Mau-Mau39. Continuavam a chegar no norte de Moçambique

37
Informação nº 492/61-GU enviada à Presidência do Conselho e aos Ministérios do Ultramar, Interior, Defesa
Nacional e Exército. Cota: ANTT/TT/AOS/D-N/1/5/26.
38
Informação nº 773/61 GU-Enviada à presidência do conselho, aos ministérios do Ultramar, Interior, Defesa e
Exército a 19 de janeiro de 1961. Cota: ANTT/TT/AOS/D/N/1/2/2.
39 Movimento nacionalista militante africano que se originou na década de 1950 entre o povo Kikuyu do Quênia. O
Mau Mau (a origem do nome é incerta) defendeu a resistência violenta ao domínio britânico no Quênia; o movimento

40

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

tropas portuguesas na tentativa de controlar a região, mas por receio da reacção da Organização
das Nações Unidas e da repreensão internacional não podiam matar a população Maconde tal como
manifestaram o desejo na correspondência. O relatório diz que os Macondes do Tanganhica não
tiveram nada a ver com os incidentes, apenas os de Moçambique que estavam descontentes com a
administração colonial que os dominou a 30 anos, que manifestaram aquando da visita do
comissário do distrito a Mueda. O Governador Geral mandou instaurar um inquérito e se concluiu
que os Maconde não tinham intenções sediciosas, mas o tumulto foi originado por questões
socioeconómicas e que tinham se revoltado contra a ordem de cultivarem obrigatoriamente o
algodão e os preços desse produto foram sensivelmente aumentados. Esta é a narrativa colonial
acerca do sucedido em Mueda no dia 16 de Junho de 1960. A narrativa de Alberto Joaquim
Chipande, que se cristalizou e foi apropriada pela historiografia oficial e que apresentei
anteriormente nesta secção, mostra que os Makonde presentes na ocasião foram reivindicar a
independência de Moçambique, mas essa tese tem sido contestada. Na minha perspectiva essa tese
de reivindicação da independência de Moçambique não faz sentido, porque olhando para a
Informação nº 492/61-GU que tenho vindo a citar, em nenhum momento os Makonde
reivindicaram a independência de Moçambique, mas supostamente a sua. Outro relatório40 faz
menção ao facto de a partir da Niassalândia e através da rádio ter ocorrido agitação entre os
Maconde. As emissões são em Swahili e Makua entre 18 a 20 horas, hora de Lourenço Marques.

A identidade Makonde na fase “nacionalista41”


Em Moçambique nesta fase importa destacar os trabalhos de Yussuf Adam e Anna Maria
Gentili, o Relatório de Desagregação das aldeias comunais em Cabo Delgado do CEA 42 e o

foi especialmente associado aos juramentos rituais empregados pelos líderes da Associação Central Kikuyu para
promover a unidade no movimento de independência. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Mau-Mau.
Acesso a 23 de abril de 2021.
40
Informação nº 773/61 GU-Enviada à presidência do conselho, aos ministérios do Ultramar, Interior, Defesa e
Exército a 19 de janeiro de 1961. Cota: ANTT/TT/AOS/D/N/1/2/2.
41
A fase nacionalista é caracterizada pela formação de movimentos protonacionalistas no exterior do país e pela
posterior unificação de alguns desses movimentos e criação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).
Outros marcos deste período são o massacre de Mueda em 1960, a luta armada de libertação nacional entre 1964-
1974, a conquista da independência nacional em 1975, a eclosão da guerra civil em 1976, a transformação da
FRELIMO em partido Marxista-Leninista em 1977, assim como a adopção do socialismo como doutrina política e
económica.
42
Citando o antigo reitor da Universidade Eduardo Mondlane, Fernando Ganhão, Fernandes (2011) mostra que o
centro de Estudos Africanos nasce num contexto em que estava a ocorrer um êxodo de professores e investigadores
portugueses e a consequente paralisação da única universidade existente no país e não havia professores

41

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

trabalho de Ricardo Teixeira Duarte, no âmbito da oficina de história do CEA.

Adam & Gentili (1983), num artigo em que procuram analisar como é que as formas
voluntárias de organização económica foram possíveis e como é que se transformaram num lugar
de discussão política que desempenhou um papel importante no desenvolvimento da consciência
nacionalista e apoio à FRELIMO, mostram que nesta fase !nacionalista”, a identidade Makonde
está muito associada à questão da identidade política. Os autores argumentam que para além de
terem sido um núcleo anticolonial, as formas voluntárias de organização, representam também um
modelo de organização de produção do campesinato em cuja implantação o papel da
Administração colonial não foi determinante. Os autores fazem notar que foram os ex-imigrantes
Makonde na Tanzânia que conseguiram capital para a formação das cooperativas. Mas, também,
foram eles que estiveram em contacto com as lutas dos sindicatos, organizações que eram proibidas
em Moçambique, e as plantações eram visitadas por líderes políticos da TANU 43 que faziam
reuniões com os trabalhadores (idem). Corroborando com o posicionamento de Adam & Gentili
(1983) no concernente ao papel da emigração Makonde na Tanzânia, Brito (2019: 38), refere que
!o contacto dos emigrantes com o movimento independentista do Tanganica e a participação de
muitos, especialmente os Makonde, na vida política local (foram muitos os que se juntaram à
TANU, o partido formado em 1954 que levou o país a independência), contribuíram para a
politização das suas comunidades de origem em Moçambique. Este processo afectou
particularmente as populações Makonde. Isto é explicado pelo facto de, apesar do seu número
relativamente pequeno, comparado com o total de emigrantes moçambicanos, representavam um
quarto da população total Makonde de Moçambique. Em termos práticos, isso significava que cada
família tinha laços com o Tanganhica e, portanto, todo o povo Makonde estava exposto à influência
do processo político que acontecia do outro lado da fronteira”.

moçambicanos para os substituir. O projetco da constituição dentro da Universidade de um Centro de pesquisa em


Ciências Sociais com enfoque nos estudos africanos, não foi algo premeditado. Esta ideia foi surgindo gradualmente
à medida que o contexto local e internacional (tendo já no CEA pessoas como Aquino de Bragança e Ruth First), foi
impondo essa necessidade histórica. A criação do CEA está assim ligada por um lado, a um contexto mais global da
revitalização das Ciências Sociais nas ex-colônias africanas, onde se procurou dar um novo rumo ao ensino e à
pesquisa e onde estas eram chamadas a desempenhar o seu papel em prol da emancipação e justiça social, com grande
enfoque na bipolarização do mundo através da !guerra fria”, da emergência das teorias marxistas no ocidente e da
revolução estudantil de !Maio de 68” em Paris (Fernandes, 2011: 88-89).
43 Tanganyika African National Union.

42

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Outro factor que contribuiu para a implantação das cooperativas no planalto de Mueda foi o
papel das missões. Adam & Gentili (1983) argumentam que se por um lado o Estado colonial tinha
pouca penetração e as autoridades tradicionais eram consideradas agentes do Governo, por outro,
desde os anos 1920 os missionários representavam o braço mais avançado do aparelho ideológico
colonial. Os primeiros missionários, chegados à zona, cerca de 1920-1922, eram franceses e
holandeses. Os franceses ficaram pouco tempo, porque o Governo português desconfiava da
presença de missionários de uma potência colonial rival. Os missionários acabaram por favorecer
a implantação de cooperativas indígenas no planalto. De facto, muitos dos primeiros associados e
dos organizadores mais destacados dos Liguilanilu 44 eram professores, lojistas, catequistas ou
empregados das missões. Os missionários acompanharam a organização de cooperativas para
favorecer a consolidação de uma camada de camponeses bastante desenvolvidos e controlados
pela !moderação” da moral religiosa católica. Apesar de afirmarem que as missões
desempenharam um papel importante na organização das cooperativas, Adam & Gentili (1983)
não aprofundam de que modo o fizeram.

De acordo com Adam & Gentili (1983:54-65), a ideia de formar as Liguilanilu surge no seio
de um pequeno grupo de pessoas ligadas à Missão de Imbuhu, que vinha acompanhando com
muito interesse os acontecimentos que tinham lugar no exterior de Moçambique, sobretudo no
Tanganhica, desde 1954 (ano da formação da TANU). As cooperativas em geral e também o
movimento das Liguilanilu no planalto, deviam, nas intenções do Governo colonial, contribuir
para integrar os explorados na economia dos exploradores. As do planalto, de origem voluntária,
tiveram sucesso económico, mas acabaram por funcionar não como um meio de consolidação do
poder colonial, mas como uma via de contestação. O Governo Colonial não se opôs à formação
das cooperativas no planalto, pois achou que fosse tirar alguma vantagem do processo. Baseando-
se no relatório do administrador de Zavala, datado de 1958 que dava conta do sucesso dessa
iniciativa no seu distrito, o governo colonial decide expandir a iniciativa. Esta política tinha como
base ideológica a necessidade de levar o campesinato a um nível produtivo mais alto, que

44 Liguilanilu é uma palavra Kimaconde de difícil tradução para português, e pode significar cooperativa, associação,
unidade ou mesmo entreajuda; vem de kiquana, que quer dizer entender juntos” (Adam & Gentili, 1983: 57). Os
autores do texto escreveram kimaconde, mas segundo o dicionário de ortografia e padronização das línguas
moçambicanas se diz ou se escreve Shimakonde. Mas, por forma a ser fiel ao texto consultado, transcrevo tal qual os
autores escreveram.

43

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

respondesse à fase e às exigências de desenvolvimento económico da colónia e à necessidade de


controlo nessa fase de relações sociais.

Não obstante o governo colonial se mostrar favorável à criação de cooperativas no planalto


desde que estivessem sob o seu controlo, recusou o pedido de registo da Sociedade Algodoeira
Voluntária Africana (SAAVM), chefiada por Lázaro Nkavandame45. O argumento para essa recusa
reside no facto de Nkavandame ter estado no Tanganhica e segundo a Administração da
Circunscrição dos Maconde estar a fazer intensa propaganda algodoeira especialmente junto dos
imigrados daquele território, com bastante sucesso. Outro motivo para a recusa é o facto de
Nkavandame e os seus associados serem alvo de desconfiança, porque tinham autonomia
financeira e profissões. Por outras palavras, seria difícil controlá-los, mas havia receio de poderem
criar subversão, visto terem estado em contacto com o processo de descolonização do Tanganhica.
Apesar da recusa da Circunscrição dos Maconde em legalizar a SAAVM, o Governo distrital e o
geral a autorizaram. De certo modo as autoridades portuguesas tinham razão ao recear a aprovação
das cooperativas, pois, de facto, elas se tornaram locais de contestação à opressão colonial.
Independentemente de serem um espaço de produção e comercialização, as cooperativas também
se tornaram lugares de trabalho político, onde se abordava temas ligados à independência, à
actuação do colonialismo, à injustiça e à falta de liberdade. Alguns entrevistados por Adam &
Gentili (1983:63) referiram o seguinte acerca do seu trabalho e afiliação na SAAVM:

!Nós sabíamos que agora era o algodão e que depois seria o partido. Era assim só para facilitar as coisas. Nós
dizíamos Gange foi no mato, quer dizer, que Namimba já foi para a Tanzânia. Nós tínhamos um código
assim”.

Como pode se notar na citação acima, os próprios membros da SAAVM sabiam que estavam
sob suspeita da PIDE e que tinham que tentar camuflar ao máximo as suas acções e, fazer realmente

45
Segundo Adam & Gentili (1983: 58), Lázaro Nkavandame foi um migrante Makonde no Tanganhica, onde
conseguiu alcançar uma certa posição económica, pois possuía uma loja e três carros. No início trabalhara como
recrutador de mão-de-obra para as plantações de Lindi, tendo chegado a ser secretário da plantação. Chegado a
Moçambique, mostrou interesse em fazer grandes machambas e fixou-se na aldeia de Mtuchi, onde abriu uma
machamba de algodão. De acordo com Brito (2019: 39), a experiência de Nkavandame merece atenção por dois
motivos. Primeiro, porque teve um grande – e rápido – sucesso no seio dos camponeses. A tal ponto que as autoridades
coloniais, confrontadas com uma mobilização que não controlavam e da qual suspeitavam, decidiram parar o
movimento. Em segundo lugar, porque entre os promotores desta iniciativa estão vários futuros quadros da Frelimo,
incluindo o próprio Nkavandame.

44

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

parecer que se tratava apenas do cultivo e comercialização do algodão. Segundo Adam & Gentili
(1983: 63), o aspecto fundamental da SAAVM era procurar a integração num movimento mais
vasto para a independência nacional. O grupo não se filiou a qualquer outro movimento existente
antes da FRELIMO, apesar de ter estabelecido contactos, pois achava que os seus dirigentes não
tinham capacidade para dirigir o país. No entanto, em 1961, o grupo que iniciara a SAAVM de
Moçambique fez tentativas para iniciar uma nova organização. Por conta dessa desconfiança, as
autoridades coloniais passaram a controlar diretamente o projeto e a impor o número limite de 30
associados. O grupo de direção da SAAVM decidiu então criar a machamba 25, com menos 5
elementos do que os que tinham sido autorizados pelos portugueses. A despeito de todos os
mecanismos de controlo criados pelo governo colonial português, os camponeses encontraram
mecanismos para resistir à ocupação colonial utilizando a sua vontade política de cooperativizar o
planalto, desde que sob o seu controle. O governo colonial quis replicar a experiência bem-
sucedida das cooperativas no distrito de Zavala, sul de Moçambique, ignorando que as populações
do sul, centro e norte do país são diferentes. Os Makonde tinham desde o tempo dos exploradores
coloniais a fama de irascíveis, coléricos, insubmissos e resistentes. Sabendo que viviam tempos de
repressão de muito controle colonial, os membros das cooperativas utilizaram astúcia para
desenvolveram as suas actividades anticoloniais.

Nesta fase !nacionalista” importa também fazer menção ao relatório de investigação


conduzido pelo CEA sobre a desagregação46 das aldeias comunais na província de Cabo Delgado.
Esse relatório é importante, porque na minha perspectiva mostra que os Makonde apesar de terem
estado na linha da frente, serem os que mais sofreram e foram modificados pela guerra de
libertação nacional (Cfr. Israel, 2006), resistiram às directivas da FRELIMO, o que sugere que o
gene da resistência já estava implantado neles há bastante tempo. Os autores, através dos resultados
do seu estudo, criticam a actuação das estruturas governamentais. Os investigadores concluem que
as causas da desagregação tinham a ver com a questão do poder popular, seu entendimento e sua
aplicação. De acordo com CEA (1986: 61) havia uma diferença entre a noção de poder popular
durante a luta armada e o que se estava a verificar nas aldeias comunais. Segundo os autores, a
questão central do poder tem a ver com o modo como é feita a resolução dos problemas das

46 Aldeias desagregadas na perspectiva dos autores são aquelas em que os moradores das então aldeias comunais
estavam a retornar às suas zonas de origem (CEA 1986).

45

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

populações.

Segundo o CEA (1986: 61,) !parece que a lição mais importante da construção do poder
popular47 durante a luta armada foi que o seu desenvolvimento dependeu fundamentalmente do
tipo de relações entre a direção e a população. O poder popular não pode sair todos os dias do
gabinete dos dirigentes. O poder popular foi construído num processo de relações sociais de tipo
populares, isto é, em que as populações participavam ativamente nas discussões dos problemas
que diretamente afetavam a sua vida”. Para além do diferente entendimento que as autoridades e
o povo tinham sobre o poder popular, os autores apontam questões ligadas à organização e gestão
das aldeias comunais, tais como: abastecimento deficiente, produção agrícola em crise, má
localização das aldeias e baixo apoio ao sector familiar (CEA, 1986; Fernandes, 2011).

Outro trabalho que merece atenção nesta fase !nacionalista” é do arqueólogo Ricardo Teixeira
Duarte. Duarte (1987), relaciona a arte com a identidade política Makonde. Segundo o autor, !não
só a interacção cultural com os grupos populacionais exerce influência no percurso de arte
Maconde, mas também a intensa movimentação migratória, em direção às áreas urbanas da vizinha
colónia alemã do Tanganhica. Esta migração atingiu especiais proporções durante a luta armada
de libertação nacional, para a já independente Tanzânia”. A arte Maconde tem sido marcada pelos
diversos contextos históricos em que os Maconde se tem inserido. De maneira geral, pode-se
considerar três grandes períodos: o pré-colonial antes da influência europeia no planalto, sobre o
qual poucas informações existem; os inícios do período colonial, caraterizados pela progressiva
ocupação administrativa e missionária do planalto, a partir dos finais da primeira grande guerra; e
a parte final do período colonial, caraterizada pelo contexto de luta armada de libertação nacional
e pela intensa perseguição política por parte do exército e política coloniais, isto a partir dos anos
60. Os diferentes contextos socioeconómicos e políticos correspondentes a estas diferentes épocas,
influenciaram a criação artística de diferente modo, no que respeita aos seus conteúdos e
formulação estética (Duarte, 1987: 8-9).

No que se refere às fases, na primeira, a arte Maconde antiga, elaborava-se máscaras de Mapiko

47
Sobre o poder popular ver Egero (1990).

46

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

pequenos objectos de uso e, num período mais recente, há execução das primeiras esculturas em
corpo inteiro, em madeira leve policromada. Nota-se também um elevado nível de simplificação
por acentuação e execução para fins rituais. Na fase colonial, se destaca a elaboração de bustos e
figuras em corpo inteiro retratando personagens da vida quotidiana, escultura animalista, início da
utilização do pau-preto acentuando o caráter realista, funções de crítica social e se iniciando sua
comercialização. Na terceira fase, fase da arte Maconde moderna, a escultura shetani, grande nível
de abstração, linguagem metafórica. Neste período também se destaca a escultura ujamaa,
composição de figuras humanas de cunho realista e linguagem metonímica (Duarte, 1987: 10).

Duarte faz notar que se torna fundamental abordar a arte Maconde dentro de uma perspectiva
histórica. Esta abordagem, no entanto, não deve descurar uma análise da organização económica
e social dos Maconde (Duarte, 1987: 11). Ujamaa e shetani expressam duas facetas diferentes do
pensamento Maconde: um relacionando-se com o mundo material da aldeia e dos campos
cultivados com seus componentes, a sua vida quotidiana própria, as suas regras de organização
social, o mundo socializado ao qual corresponde para os Maconde a ordem e a estabilidade; a outra
referindo-se ao espaço exterior à aldeia não só geograficamente como também o mundo onde
habitam os antepassados liyoka. O estilo shetani apresenta-se numa linguagem metafórica,
correspondente à uma realidade desconhecida que não pode ser abordada directamente, só pode
ser aludida através de metáforas numa linguagem de elevado cunho simbólico. O estilo shetani
corresponde a uma necessidade de subtração da mensagem ao racional, fruto do contexto
mitológico em que se insere. Ao representar o espaço associal, exterior à aldeia, o artista é impelido
a utilizar linguagem metafórica, devido principalmente às dificuldades de compreensão desse
mundo agressivo e perigoso. É por estas razões que estilisticamente, a escultura shetani é
extremamente abstrata, as suas formas apresentam ideias distorcidas da realidade. É recheada de
motivos agressivos, dentes arreganhados, figuras horrorosas, atitudes violentas. As formas são
sinuosas, fugidias, interligando-se numa sucessão sem fim de curvas e contracurvas que
ultrapassam a percepção de algo concreto, palpável e momentâneo. Por seu turno o estilo ujamaa
expressa-se através de uma linguagem metonímica, apresentando uma realidade analisada em
pormenor e abordada de um modo concreto. As figuras e os objectos representados são reais. O
mundo socializado da aldeia permite uma abordagem directa feita de uma forma concreta. Este
estilo leva o espetador a fixar-se em pontos concretos ao longo da composição. As formas são

47

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

suaves e harmoniosas, os motivos são humanos, em grande parte, ou relacionados com as


satisfações necessárias e boa harmonia na vida da aldeia (Duarte, 1987: 55).

Em linhas gerais e no que concerne à identidade Makonde na fase !nacionalista”, importa


realçar que os autores que escreveram sobre o assunto destacam a ligação entre os Makonde e as
formas de associação política, estratégias de resistência, assim como na conexão entre a arte
Makonde, política e crítica social.

As teses sobre os Makonde no pós-guerra civil48


Servem de base para a reflexão em torno da identidade Makonde neste período as teses de
doutoramento de Harry West, Paolo Israel, Alexander Bortolot e Lia Laranjeira. Na opinião de
West (2004: 2), passou muito tempo desde O"Neill subiu o planalto e as pessoas que lá viviam por
altura da sua investigação não eram as mesmas que o explorador britânico encontrou. Por
conseguinte, a sua experiência de campo o ensinou a suspeitar da asserção: !qualquer pessoa é ou
foi completamente selvagem e a alegação de que ela é ou era completamente inofensiva”. Os
moradores do planalto de Mueda com que West interagiu constituem uma gama diversificada de
pessoas, cada uma incorporando subjectividades multifacetadas e às vezes contraditórias,
decorrentes da complexidade do momento histórico em que vivem. O autor afirma que os
habitantes de Mueda, agora como na época de O'Neill, são feitos por outros e fazem-se. Onde
O'Neill transformou mavia em vilão e depois em vítima, sugere que eles estejam há muito tempo
fazendo muitas coisas ao mesmo tempo - algumas dessas coisas que formam a base das diferenças
que as separam umas das outras e que os prendem juntos. Aqueles que O'Neill conheceu no
planalto são sujeitos históricos mais complexos que trouxeram para o encontro seus próprios
medos, aspirações e agendas estratégicas. O autor conclui assim que os Makonde estão ainda em
processo de elaboração, pois a sua identidade resulta de um longo processo histórico.

Por seu turno, Israel (2006:116) argumenta que a experiência histórica compartilhada de
resistência ao comércio de escravos forjou uma consciência colectiva rebelde, de insubmissão e

48
A fase pós-guerra civil é marcada pela aprovação da constituição de 1990, que trouxe como principal inovação o
multipartidarismo. Outro fenómeno que marca esta fase é a assinatura do Acordo Geral de Paz, economia de mercado
e a realização de eleições multipartidárias desde 1994.

48

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

desejo de liberdade e independência que o povo Makonde levou com eles quando foram
pacificados pelos portugueses em 1917. A Frelimo foi fundada em 1962 por um grupo de pessoas
provenientes de três organizações políticas. Uma delas era Makonde African National Union,
organizada por Makonde emigrados em Dar-Es-Salaam. Os Makonde tinham emigrado
massivamente para a Tanzânia, onde conheceram os benefícios de liberdade e independência.
Quando se optou pela insurreição armada, parecia natural escolher o planalto de Mueda como um
dos centros de operações militares, por causa do apoio que os guerrilheiros Makonde poderiam ter
devido à proximidade com a fronteira da Tanzânia e por causa da sua mata cerrada, que teria
ajudado os guerrilheiros a se esconderem (Israel, 2006: 116). Apesar desses dois factores
vantajosos para a guerra, Israel refere que os mesmos não explicam a participação maciça do povo
Makonde na guerra pela independência. Aldeias inteiras foram abandonadas quando as pessoas
saíram para viver no mato para apoiar na guerra com seu trabalho.

Segundo Israel (2006: 116), apesar da política violenta que marcou os primeiros anos da
formação da FRELIMO, a maior parte do povo Makonde permaneceu fiel a seus líderes nos
momentos bons e maus. As pessoas suportaram a vida dura, a disciplina militar, a guerra com os
portugueses, o risco de ser capturados pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), ou
enviados para um dos infames campos de reeducação da FRELIMO. Israel afirma ainda que não
consegue deixar de ver uma conexão entre esse extraordinário empreendimento colectivo e uma
longa tradição de resistência que havia sido construída durante o comércio de escravos. O
colonialismo era simplesmente insuportável e a FRELIMO era ostensivamente a única maneira de
combatê-lo. A dramática experiência colectiva da guerra e suas consequências deixaram uma
profunda marca em toda uma geração e teve o resultado de transformar total e radicalmente a
sociedade Makonde. Se existe algum lugar em Moçambique onde a FRELIMO engendrou uma
verdadeira revolução, este é o planalto Makonde. Israel (2006: 50-118) refere ainda que ocorreu
uma etnogênese entre os Makonde e a FRELIMO. Citando um ditado comum em Shimakonde:
"FRELIMO ni shinu shetu wetu" (o nome da FRELIMO, nossa própria coisa). Isso implica não
apenas uma afirmação da mais pura linhagem na genealogia da nação, baseada em ações históricas.
Transmite também a inversa ideia: a interiorização da FRELIMO como componente fundamental
do que faz dela "nossa própria coisa". Se, na realidade, a FRELIMO não é uma "coisa própria" dos
Makonde, ela contribui fortemente para moldar o que é a "coisa própria" de Makonde, ou seja a

49

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Makondidade. Por outras palavras, o ditado sugere que a FRELIMO está no centro da definição
de identidade étnica Makonde. A etnia Makonde foi definida pelo recuo para a área do planalto
como uma posição defensiva contra o tráfico de escravos por segmentação correlativa, organização
social acéfala, pela refutação do islão e pela intensificação de práticas culturais caraterísticas de
washenzi (bárbaro, selvagem, não muçulmano), tais como a modificação corporal, consumo
extenso de todas as carnes e uso de todos os disfarces. Essas práticas podem ser consideradas
estratégias de diferenciação social, adaptação e reprodução ao invés de meramente como
caraterísticas ancestrais. o mito da ferocidade e selvageria de Makonde foi possivelmente
propagado pelos próprios Makonde para espantar os seus invasores. Os Makonde acabariam por
sobreviver aos tempos do comércio de escravos, promovido pelo exotismo colonial e pelas
tradições locais: os Makonde, que são ávidos consumidores de todos os tipos de carnes bizarras,
que sempre carregam facas e facões, que são rapidamente irritados e prontos para matar e que são
temidos. Por conta da necessidade de se proteger da depredação, se pode entender o apego dos
Makonde pelas práticas abandonadas por seus vizinhos, máscaras e modificações corporais.

Para Bortolot (2007:1), a história do povo Makonde do norte de Moçambique foi definida por
instabilidade contínua e mudança radical. Suas raízes estão nos povos díspares da bacia do rio
Rovuma, região que nos séculos XVIII e XIX era um campo de caça para o comércio de escravos
no Oceano Índico. Buscando refúgio do caos e da predação que os cercava, esses proto-Makonde
convergiram no remoto Planalto de Mueda e gradualmente se fundiram em uma população de
cultura homogênea no final de 1800. Um olhar mais atento à história da Makonde revela que estes
e as suas instituições sociais eram de facto altamente sensíveis a eventos ocorridos ao redor do
mundo. De facto, desde suas origens no século XIX até a turbulência do colonialismo e da
independência nacional, os Makonde têm consistentemente tido um olhar bifurcado, olhando para
fora e para dentro. Bortolot argumenta que as práticas criativas de escultura, disfarce e performance
da máscara chamada mapiko em Shimakonde, constituem um esquema de estruturação através do
qual os indivíduos buscaram e articularam identidades sociais fluídas no passado e no presente.

Por seu turno Laranjeira (2016) no âmbito da sua pesquisa de doutoramento procurou
compreender as conexões entre a arte Makonde e a história de Moçambique. A partir da
investigação sobre essas relações, a pesquisa trouxe à tona os significados da produção da arte

50

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Makonde e do engajamento do referido grupo nos últimos anos do período colonial em 2


momentos emblemáticos da história da população Makonde de Moçambique. O primeiro no auge
da sua emigração para o Tanganhica nas décadas de 1950/60 e o segundo momento, na luta armada
contra o domínio colonial português entre 1964-74. A pesquisa mostrou a importância dos
Makonde no processo de libertação do jugo colonial também na esfera das tensões e
enfrentamentos nas relações de poder dentro dos grupos políticos, e o posicionamento
contestatório recorrente destas populações diante das lideranças, especialmente da FRELIMO.
Outrossim, a pesquisa mostrou consciência por parte da população Makonde sobre as
manipulações e usos da sua resistência à dominação colonial combinada com o símbolo do
massacre de Mueda; além das assimetrias nas relações de poder, tanto da parte do governo colonial,
quanto pela FRELIMO, reforçaram a coesão da população Makonde e sua posição contestatória
diante de ambos os governos. Laranjeira (2016), assinala ainda que a própria formação dos
Makonde enquanto grupo etnolinguístico, nas zonas altas do sul e ao norte do rio Rovuma,
motivada pelas fugas da população de diferentes origens das razias e dos comerciantes de escravos,
remete à resistência histórica da população Makonde e se reflecte nas tensões no âmbito dos grupos
políticos, assim como na própria experiência de emigração no período colonial e nas suas
motivações, nomeadamente o trabalho forçado nas plantações de algodão e sisal, o racismo e a
precariedade social no planalto de Mueda. Segundo a autora, essas motivações dialogam com as
estratégias adoptadas pela população local com o propósito de escapar da opressão do governo
colonial português, consideradas pela autora como formas de resistência: emigrar, organizar-se em
associações e em grupos políticos; planear e negociar a libertação do jugo colonial. Igualmente, a
pesquisa de Laranjeira mostrou como é que a arte Makonde se tornou um meio de resistência à
dominação colonial. Os artistas Makonde escapavam do trabalho forçado e se dedicavam à prática
escultórica. Eles vendiam a sua arte no Tanganhica e em Moçambique e adquiriam uma liberdade,
ainda que restrita face à dominação colonial.

Pode se notar que os autores que citei nesta fase concebem por um lado as identidades Makonde
como algo inacabado, mas também como resultado de diversos fenómenos históricos, políticos e
económicos que criaram diversas identidades e subjectividades por vezes contraditórias, fluídas e
complexas. Um denominador comum mencionado pelos autores dessas teses é a imagem
persistente dos Makonde como pessoas insubmissas e que não vergam perante situações que lhes

51

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

pareçam desfavoráveis.

Conclusão

Neste capítulo procurei mostrar como é que as identidades Makonde foram sendo vistas e
retratadas ao longo dos tempos por pessoas de diferentes escolas e proveniências. Na fase dos
exploradores e administradores coloniais, os Makonde de Moçambique eram vistos pelos da
Tanzânia, assim como pelos seus vizinhos como mavia, mabiha ou mawia, que significa irascível
ou colérico devido à sua resistência e às estratégias que utilizaram para se esconder do tráfego
esclavagista que vigorava na região. Para o efeito, passaram a capturar pessoas de outros grupos
etnolinguísticos, tatuá-los e afiar-lhes os dentes como mecanismo de assimilação. Capturar pessoas
de outros grupos permitiu-lhes aumentar o seu número e poder estar em supremacia caso fossem
atacados. Também se esconderam no planalto de Mueda uma área de difícil penetração devido à
vegetação lá existente. É neste momento que se falou pela primeira vez da identidade étnica dos
Makonde, no século XIX.

Na fase da antropologia colonial e a partir do trabalho de Jorge Dias, os Makonde foram


retratados por este como grupo homogéneo e com origem não clara. Apesar desse retrato,
prevalecia na época a visão pejorativa sobre os Makonde que também vigorou na fase dos
administradores e exploradores coloniais.

Na fase !nacionalista”, a identidade Makonde foi sendo retratada a partir da sua conexão com
associações inicialmente de índole protonacionalista e mais tarde com os movimentos que deram
mais tarde origem à FRELIMO.

No pós-guerra civil, foram escritas algumas teses acerca dos Makonde que argumentam que a
sua identidade ainda está em construção e que é fruto de um acúmulo de subjectividades,
experiências históricas, políticas e económicas. Algumas dessas teses ou investigações, como a de
Harry West advogam que mais do que procurar reificar a nomenclatura mavia quando se fala dos
Makonde de Moçambique é preciso compreender que eles não foram apenas vilões, mas também
foram vítimas de todo o ambiente sociocultural, político e económico que se vivia na região.
Igualmente, tais teses advogam a necessidade de olhar para as várias subjectividades que existem

52

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

entre os Makonde, pois eles resultam do acúmulo de experiências traumáticas e outras mais bem
conseguidas.

Para finalizar, concluo que a identidade Makonde está longe de ser uma entidade acabada, pois
ela está sempre em construção e vai sendo reconstruída a partir das relações entre eles mesmo e
com os !outros” grupos etnolinguísticos. Os fenómenos socioculturais, económicos e políticos vão
moldando este processo de construção identitária dos Makonde. Esse é o meu argumento neste
capítulo que designo a identidades Makonde em sintonia com os tempos e novos espaços.

53

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Capítulo II
Constituição e povoamento do bairro PSK

Introdução

Neste capítulo apresento a história sobre a constituição e povoamento do bairro Paulo Samuel
Kankhomba (PSK). Contextualizar as motivações da formação e povoamento do bairro reveste-se
de particular importância, uma vez que os Makonde não são originários da PSK, o que implica
abordar como é que eles lá se fixaram e como é que se relacionam com as pessoas de outros grupos
etnolinguísticos. Para além de apresentar a constituição e o povoamento do bairro, também
apresento as dinâmicas pelas quais passou e o estágio em que se encontra actualmente, assumindo
que os fenómenos sociopolíticos e económicos têm influência nas dinâmicas do bairro e na vida
dos seus moradores.

Antes de abordar a constituição e povoamento do bairro, importa referir que a sua designação
é apresentada de forma inconsistente pelos meus interlocutores. Alguns dizem se tratar de uma
aldeia, alguns de um bairro (nomenclatura oficial) e outros ainda de centro dos combatentes da
luta armada. Quando questionei aos veteranos por que é que a PSK é chamada de aldeia sendo
oficialmente bairro, disseram que as populações que mais tarde buscaram refúgio lá por conta da
guerra civil é que designaram o lugar de aldeia e o nome perpetuou-se. Os meus interlocutores não
são os únicos a se referir às inconsistências na nomenclatura do lugar. Adam (2005: 262) que
realizou pesquisa no distrito de Boane afirma que o problema da designação dos assentamentos
populacionais persiste, pois, por vezes são chamados por aldeias, povoações e povoados. Durante
a pesquisa sobre as aldeias comunais e sobre os bairros dos combatentes da luta armada no Arquivo
Histórico de Moçambique, notei que o bairro PSK não aparece na lista das aldeias comunais. Na
pasta da Comissão Nacional das Aldeias Comunais (CNAC), órgão governamental que era
responsável pelas aldeias em todo o país, faz-se menção a uma aldeia ou centro dos combatentes
intitulada 25 de setembro, mas localizado distrito da Matola (Relatório da Comissão Nacional das
Aldeias Comunais, pp.3). Cruzando esses dados da CNAC com os dados da história oral e
publicações da época que apresentarei mais adiante, concluo que se trata do bairro Paulo Samuel
Kankhomba.

54

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Para além da designação bairro ou aldeia, importa referir que o nome próprio do lugar carece de
análise. Aquando da sua formação o bairro PSK foi denominado centro dos combatentes da luta
armada 25 de setembro. Essa é a data em que foram criadas as extintas Forças Populares de
Libertação de Moçambique (FPLM), actuais Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM),
mas também é a data em que oficialmente iniciou a luta armada contra o colonialismo português.
Sendo eles veteranos da luta armada e o centro ou aldeia estado sob a tutela do Ministério da
Defesa, faz sentido que inicialmente o bairro tenha sido denominado 25 de setembro. Os arquivos
que consultei e os veteranos não dizem quando e por que motivo é que o nome mudou de 25 de
setembro para bairro PSK. Os veteranos afirmam que eles é que deram nome aos lugares em que
vivem, mas isso levanta um questionamento, na medida em que mesmo o governo chama o lugar
de bairro PSK. Tal como referi, durante a pesquisa nas pastas da CNAC, não aparece nenhum
documento que legitime o local como PSK. Coloco como hipótese o facto de os combatentes terem
nomeado o bairro de PSK e o governo ter aceite o nome sem que tal se reflectisse na documentação,
pois, quando buscava dados sociodemográficos do bairro no Instituto Nacional de Estatística, este
aparece como PSK, mas no acervo do Arquivo Histórico não. Aliado a isso, quando estive na
Administração do distrito de Boane, a funcionária que me recebeu aconselhou-me a ir ao bairro
falar com o líder para indicar pessoas que me contassem a estória do lugar e de suas gentes. Esse
facto indicia no meu ponto de vista um reconhecimento de que os veteranos é que são as pessoas
indicadas para falarem com propriedade sobre o bairro.

Ouvi falar de Paulo Samuel Kankhomba ainda na escola primária, onde se dizia que é um
herói da luta armada. Visto ser um bairro de antigos combatentes não me surpreendeu que o seu
patrono fosse um herói, mas achei relevante perceber porque é que atribuíram o seu nome, visto
residirem nele pessoas oriundas de praticamente todo o país. Numa entrevista com alguns
veteranos Makonde perguntei por que razão é que o bairro se chama Paulo Samuel Kankhomba.
A sua resposta mostrou um certo desconhecimento sobre o motivo de ter sido assim nomeada.

A aldeia se chama Paulo Samuel Kankhomba porque ele foi um combatente pela libertação nacional e não
existiu nenhum motivo em especial para a atribuição do seu nome à aldeia (entrevista com Januário e

Alberto,2016).

55

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Insisti em saber por que motivo é que se chamava Paulo Samuel Kankhomba, pois se é apenas
pelo facto de ele ser um antigo combatente, houve vários antigos combatentes e qualquer um deles
poderia ter sido nomeado patrono do bairro. Por que razão é que justamente esse antigo combatente
nomeou o bairro? Januário e Alberto voltaram a dar a mesma resposta: “que calhou ser ele o
escolhido, sem um motivo aparente, assim como calhou se dar o nome de outros antigos
combatentes a outros centros ou aldeias.” Esse desconhecimento sobre a origem do nome dado ao
acaso deriva na minha análise do facto de eles acharem irrelevante saber ou questionar o nome
dado ao local onde vivem, ou por nunca terem pensado nisso, pois para eles é algo natural. Num
outro momento e com outros veteranos da luta armada, ouvi outra versão acerca do nome da aldeia.

Os combatentes é que deram nomes às aldeias. Em Cabo Delgado existe um centro chamado Filipe Samuel
Magaia e aqui é Paulo Samuel Kankhomba. Paulo Samuel Kankhomba era responsável lá na guerra e não
pode ficar atrás. Era comandante como Eduardo Mondlane (entrevista com veteranos, 2020).

No último relato nota-se que os outros veteranos também não sabem explicar com precisão a
razão de a aldeia ter sido nomeada como Paulo Samuel Kankhomba. A hipótese que coloco é que
em Cabo Delgado um dos centros foi designado Filipe Samuel Magaia e na província de Maputo
PSK para garantir que se utilizasse nomes de pessoas de outras regiões do país para evitar
acusações de tribalismo que poderiam minar a unidade nacional, pois Filipe Magaia não era
oriundo do norte, onde o seu nome foi atribuído a uma aldeia. Igualmente, Paulo Kankhomba era
oriundo do norte do país e o seu nome foi atribuído a uma aldeia no sul do país.

Partindo de dados de história oral, entrevistas individuais e colectivas, assim como da consulta
a arquivos, jornais e revistas da época, argumento que a filosofia que orientou a formação dos
bairros/aldeias ou centros dos antigos combatentes, incluindo a PSK seguiu os pressupostos
definidos para as aldeias comunais. Igualmente argumento que a chegada e fixação dos Makonde
na PSK não pode ser dissociada de um quadro sociopolítico e histórico mais amplo que se vivia
no país logo a seguir à independência, ou seja, não foram apenas os veteranos Makonde que foram
colocados nas aldeias dos antigos combatentes, mas todos os outros veteranos que tinham como
missão disseminar a ideologia da FRELIMO assente na ideia de unidade nacional e na socialização
do campo. Outrossim, argumento que a colocação de veteranos da luta armada na PSK tinha como

56

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

objectivo a criação de uma reserva estratégica do Estado para fazer face a qualquer eventualidade.

A fundação dos bairros dos combatentes da luta armada

Durante a luta armada surgiram zonas libertadas49 e nelas apareceram as primeiras aldeias
comunais50. Foi durante a preparação político-militar e também nas zonas libertadas que nasceu e
se difundiu a experiência de criação de animais domésticos e a agricultura. Foi igualmente nessas
zonas que se multiplicaram os campos colectivos e desenvolveram-se as cooperativas primárias
de produção, onde generalizou-se a ajuda mútua nas machambas individuais. É com base na
produção nessas zonas que se alimentava o exército e a população51. No pós-independência o
Estado moçambicano adoptou uma política de socialização do campo, sendo a sua materialização
feita nas aldeias comunais.

Depois da independência o partido-Estado FRELIMO emitiu uma série de directivas para os


diversos sectores da sociedade, incluindo para o exército. Dirigindo palavra de ordem aos cadetes
por ocasião do primeiro curso da escola militar de quadros, o presidente Samora Machel afirmou
que o exército da FRELIMO para além de outras coisas devia continuar a ser um centro de
produção que à semelhança do passado produz para a sua subsistência, que ajuda as populações a
melhorar as suas condições de vida e a conhecer novos métodos de produção de novas culturas52.
Apesar dessas directivas relativas a eles, alguns militares de patente baixa ficaram abandonados e

49 De acordo com o CEA (1983: 5), as zonas libertadas foram uma consequência da luta armada contra o colonialismo
português, na medida em que no decurso da guerra os guerrilheiros da FRELIMO chamaram a atenção da população
contra as represálias e retaliações do governo colonial, em resposta ao início da luta armada. Uma das formas de
escapar a esta reação do colonialismo português era abandonar as povoações conhecidas e refugiar-se em áreas de
difícil acesso e onde existissem condições naturais para viverem o mais longe possível desta reação (grutas, florestas,
serras, etc). As populações acataram as orientações dos guerrilheiros da FRELIMO e refugiaram-se em certos locais
fugindo dos ataques do exército colonial português. O confinamento da população nesses locais gerou a necessidade
de prover certos bens e serviços para a mesma e para os guerrilheiros, criando desse modo as zonas libertadas
50 A aldeia comunal é a organização de base de toda a vida rural em Moçambique. Visava permitir que o país estivesse
organizado política, social e economicamente com base na ajuda mútua e, particularmente na ajuda colectiva. Assim,
na aldeia comunal a produção é colectiva, os instrumentos que servem à comunidade são colectivos e estando ao
dispor de todos, beneficiando todos dos serviços de saúde, educação e distribuição de géneros. As estruturas criadas
nas aldeias comunais são os comités do partido, os Grupos Dinamizadores responsáveis pela linha política do partido
FRELIMO, a OMM, responsável pela organização da juventude e o conselho da aldeia que deve integrar elementos
das estruturas já referidas e outras responsáveis administrativamente pela organização económica e social (Relatório
sobre o 1º seminário provincial sobre as aldeias comunais, documento final, pp.7-12).
51 Relatório do Comité Central da FRELIMO ao 3º congresso.
52
Mensagem do presidente Samora Machel ao povo moçambicano por ocasião da tomada de posse do Governo de
Transição a 20 de setembro de 1974.

57

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

em algumas ocasiões demonstraram a sua insatisfação 53 . Face a esse descontentamento e


decorrente do pedido que fizeram ao governo para se engajarem em actividades produtivas, o
governo moçambicano formou em todo o país alguns centros de combatentes da luta armada
também conhecidos por aldeias ou bairros. A designação aldeias deriva do facto de a sua
composição, estrutura e funcionamento recordar e ter se inspirado nas aldeias comunais que
existiram na Tanzânia e na Argélia. O bairro PSK é uma dessas aldeias onde os combatentes da
luta armada foram colocados54. A PSK não constituiu uma experiência singular. Existiam em todo
o país 13 centros do género, sendo os mais antigos os de Mocímboa da Praia (Magaia 55 ) na
província de Cabo Delgado e o de Estangano, na província de Tete.

Na próxima secção quando abordar a constituição da PSK notar-se-á que apesar de não ter sido
designada aldeia comunal, a ideologia que orientou a sua criação é tributária dos princípios das
aldeias comunais formadas durante a luta de libertação nacional.

53 Os antigos combatentes reunidos com o presidente da FRELIMO e do país Samora Machel na cidade da Beira em
1982, manifestaram a sua preocupação relativamente a alguns assuntos, tais como: a sua situação social e económica,
pedindo que se organizasse as condições para que pudessem produzir, composição e métodos de direcção no Estado
e governo, o funcionamento do partido, os critérios de admissão de membros e questões relacionadas com a
organização do combate aos bandos armados (Jornal Notícias de 10 e 11 de Junho de 1982).
54
As aldeias comunais poderiam surgir de cinco formas, nomeadamente: por determinação política de criação das
aldeias comunais, por reassentamento ou acolhimento de populações por conta das calamidades naturais, por volta de
refugiados dos países vizinhos no pós-luta armada, em determinadas regiões em torno de propriedades agrícolas
abandonadas, onde a população foi concentrada sob a acção mobilizadora das estruturas do partido e do governo em
ordem a uma recuperação imediata dessas unidades de produção, tendo surgido cooperativas e machambas estatais e,
transformação de antigos aldeamentos da luta criados durante a luta armada em aldeias comunais (Relatório sobre o
1º seminário provincial sobre as aldeias comunais, documento final, pp.7-12). O caso do bairro ou aldeia PSK é o 4º,
como notar-se-á adiante neste capítulo.
55
Filipe Samuel Magaia nasceu a 7 de Março de 1937, em Mocuba, na província central da Zambézia, e morreu em
Outubro de 1966, enquanto exercia as funções de primeiro Chefe do Departamento de Defesa e Segurança da ala
guerrilheira da FRELIMO, movimento que lutou pela libertação do país.
https://www.presidencia.gov.mz/por/Actualidade/Presidente-da-Republica-presta-homenagem-ao-Heroi-Nacional-
Filipe-Samuel-Magaia. Acesso a 15 de abril de 2021.

58

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

A constituição do bairro Paulo Samuel Kankhomba56

No que concerne à formação do bairro PSK, as versões existentes, apesar de ditas de modo
diferente acabam se complementando. Por exemplo, Adam (2006: 262-264) afirma que as aldeias
de Boane, incluindo a PSK foram fundadas pelo Estado pós-colonial que aplicava junto dos
camponeses uma dupla estratégia: a criação de aldeias/villagization e a cooperativização. A lógica
que orientou os programas de aldeamentos em vários estágios incluía uma mistura de argumentos
desde as questões ideológicas, de segurança, as necessidades de defesa e o desenvolvimento de
objectivos, variando desde a provisão de serviços básicos tais como saúde, educação, extensão
agrícola para a criação de cooperativas e estabelecimento do poder popular e instituições
participativas. Mas a concentração das pessoas em aldeias, particularmente depois de 1985 teve
como maior razão os propósitos militares e administrativos, sem se preocupar com os padrões de
produção agrícola ou com a lógica por detrás do assentamento dos camponeses e a suas escolhas
e preferências. A concentração de pessoas em aldeias nessa altura justifica-se também pelo período
político e militar que se vivia no país: uma guerra civil que dilacerava a economia, criava pânico
e destruição, pelo que uma das estratégias de administração do país e das pessoas consistia em
colocá-las juntas e conceder comida e outros insumos necessários para a sua subsistência. Existiam
em Boane nove assentamentos populacionais, um campo de refugiados, Massaca II e oito aldeias:
Paulo Samuel Kankhomba; Marien Ngouabi; Campoane; Massaca 1; 7 de Setembro; 25 de Junho;
Rádio Marconi e Mafuiane. A criação das aldeias obedeceu a quatro pressupostos: i. Aldeias
militarmente estratégicas ou constituídas por ex-guerrilheiros da FRELIMO; ii. Aldeias com
populações afetadas pelas cheias; iii. Aldeias com reassentamentos das populações da barragem;
e iv. Aldeias de reassentamento militar. As aldeias militarmente estratégicas ou constituídas por
ex-guerrilheiros da FRELIMO tais como as aldeias PSK e Rádio Marconi (RM) foram
estabelecidas logo em 1976, em pontos estratégicos em termos militares (idem).

56 Paulo Samuel Kankhomba nasceu no dia 18 de Agosto de 1938, no Posto Administrativo de Cóbuè, distrito do
Lago na província do Niassa, norte de Moçambique. Em Setembro de 1963 ingressou nas fileiras da FRELIMO, na
Tanzânia. No decurso da luta armada assumiu o posto de Comissário político na província de Cabo Delgado. Em
Novembro de 1966, tornou-se Chefe das Operações em Cabo Delgado. Durante a 2ª sessão ordinária do Comité
Central da FRELIMO, realizada em 1968 em Mtwara, na Tanzânia, Kankhomba foi eleito Chefe Nacional Adjunto
da Secção das Operações do Departamento de Defesa. A sua morte é vista como corolário da luta interna entre as duas
alas que surgiram no seio da FRELIMO. Paulo Kankhomba faleceu assassinado a 22 de Dezembro de 1968,
alegadamente por ordem de Lázaro Nkavandame, tido como traidor Makonde (Dove et al., 2015: 68-121).

59

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

As características socioeconómicas das oito aldeias de Boane, incluindo a PSK, reflectem o


processo histórico do país e da sua formação, assim como a economia política do distrito,
caracterizado pela importação de mão de obra para as farmas57 na era colonial e para as farmas
estatais no período pós-colonial (Adam, 2006: 195). Quanto à economia das aldeias de Boane, esta
depende largamente da produção agrícola. Em cada aldeia cada família tem várias parcelas. O que
varia é o tamanho de parcelas, a qualidade da terra e a distância para as mesmas. O tipo de
agregados familiares nas aldeias apresentava-se como nuclear. Os registos consideram um
agregado como aquele em que as pessoas passam as refeições juntas, mas as vezes um agregado é
apenas parte da família. No meu entender, a ideia de considerar que nas aldeias de Boane as
famílias se apresentavam como nucleares é problemática, na medida em que diversas etnografias,
incluindo nem pai, nem mãe de Geffray (2000), mostram que os conceitos e terminologias
ocidentais de parentesco não são muitas vezes aplicáveis a outros contextos, porque as pessoas
apenas se sentem ligadas umas às outras, às vezes sem sequer pensar em que termos apelidam tal
ligação ou relação.

Algumas das pessoas que vivem nas aldeias de Boane migraram de outros contextos
predominantemente rurais e o próprio distrito, apesar de ultimamente apresentar alguns traços
daquilo que se pode considerar efeitos da modernidade e da globalização, mantêm um estilo de
vida predominantemente rural, tanto é que a actividade económica dominante é agricultura, onde
a principal força de trabalho é a familiar. Outrossim, nalgumas residências da PSK não vivem
apenas pais e filhos, mas também outros parentes seus, daí eu considerar o termo família nuclear
inadequado para o contexto. Considero que no que se refere à lógica de parentesco dos Makonde,
o termo família nuclear pouco diz sobre a sua organização de parentesco, na medida em que
geralmente eles se organizam a partir do likola (matrilinhagem). Durante a minha estadia em
campo explorei junto dos meus interlocutores o significado do likola e referiram o seguinte:

Quando a pessoa não respeita o likola sofre, porque a sua vida está no likola. É lá onde se faz a cerimónia
para a vida correr bem, porque likola é espírito. Onde quer que a pessoa vá tem de lembrar do likola. Toda a
cerimónia é concentrada numa pessoa. No nosso caso, nosso likola é esta mamã. Ela é que faz tudo. Aqui em
casa do meu pai são 6 filhos: 4 meninas e 2 rapazes, mas na verdade as meninas é que ficam mais tempo,

57
Grande propriedade agrícola.

60

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

porque um dos meus filhos é militar, vive no quartel de Boane. O outro vive na África do Sul. Cresceram
aqui e entraram para os ritos aqui (entrevista com Julieta, 2017).

Na likola também são contados primos de 3º grau e pessoas próximas. Durante o trabalho de
campo, uma das pessoas Makonde que mora na casa em que fui acolhida disse que eu já fazia parte
do seu likola, devido à proximidade que surgiu entre nós. Por conta disso fui várias vezes chamada
para cerimónias de iniciação, cerimónias fúnebres e até para ajudar nalgumas coisas que
precisassem.

Em Lisboa, no primeiro ano de doutoramento, tive a oportunidade de entrevistar um Makonde


lá residente há bastante tempo. Procurei saber dele se sabia dizer qual é a origem da aldeia PSK e
dos seus moradores. Transcrevo a seguir o que me disse nessa ocasião:

Os Makonde que estão na PSK são antigos combatentes que foram destacados para o quartel de Boane, a fim
de proteger a fronteira de Namaacha58 e a barragem dos pequenos Libombos59 durante a guerra civil entre o
governo da FRELIMO e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) e acabaram ficando por lá
(entrevista com João, 2014).

Outra versão sobre a constituição da aldeia PSK foi me dada a conhecer por Luís, um docente
universitário Makonde, nos seguintes termos:

A maior parte dos Makonde que está em Boane se olhar bem para a aldeia são mesmo antigos combatentes.
Eles vieram para Maputo na altura da independência. Eles foram definitivamente morar em Maputo, pois a
filosofia do governo no pós-independência era a unidade nacional e que como moçambicanos, todos tinham
o direito de fixar-se onde quisessem. Depois dos acordos havidos e das nacionalizações (1975-1976), as
pessoas muito ligadas à FRELIMO foram viver nos prédios, mas a maior parte vinha do campo e pediram
terrenos para cultivo. Nessa altura quem quisesse continuar na FRELIMO poderia continuar e quem quisesse
poder-se-ia desvincular. Ao invés de voltarem para a província de Cabo Delgado, fundaram as aldeias de

58 Uma das fronteiras de capital importância no sul de Moçambique, pois é por onde transitam pessoas e bens entre os
territórios moçambicano, sul africano e da Swazilândia.
59A barragem dos pequenos Libombos foi construída sobre o rio umbelúzi entre 1983-1987 (período em que a guerra

civil se intensificou entre o governo da FRELIMO e a Resistência Nacional Moçambicana-RENAMO) e fica situada
no distrito de Boane a cerca de 30 km da cidade de Maputo e a 5 km da vila sede de Boane. A sua construção visava
o abastecimento de água à cidade de Maputo e garantir a rega aos vales do umbelúzi e Tembe, face às boas
características dos seus solos. A barragem drena uma área de 800 km2 em território nacional, que corresponde a 20%
do total (Santos, 1991: 33 apud Muiambo, 1996).

61

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

antigos combatentes de Boane e Manhiça, que ficaram mais fortes depois do Acordo Geral de Paz em 1992
e de 1994, em que houve muitas reformas sociopolíticas e económicas no país. A maioria das pessoas que
tinha casas na cidade de Maputo vendeu e foi para aquelas aldeias para poder praticar a agricultura
(entrevista com Luís, 2014).

A revista Tempo publicou uma reportagem 60 sobre o bairro. A informação veiculada na


mesma foi de certa forma repetida pelo líder bairro e por outros veteranos numa entrevista que
conduzi.

A aldeia Paulo Samuel Kankhomba teve a sua origem em 1977 com a chegada do primeiro grupo de
desmobilizados das Forças Populares de Libertação de Moçambique, constituído por 100 homens que se
instalaram na antiga empresa Cruz Moreira. O chefe do grupo foi o senhor Luciano Juliasse Masseco e o seu
adjunto Person Nhoca. Depois da sua acomodação nas instalações do centro, se tornaram os líderes para
dirigir os destinos do centro de produção constituído primeiro pelo senhor Fanuel, chefe do centro; Nasçon
Meque, chefe de produção e Malaika, comissário político. Mais tarde, concretamente em Junho de 1978,
mandaram mais um grupo de 15 pessoas. Nessa altura o chefe de produção do Estado Maior General era Issa
Faume. O objectivo da concentração desses desmobilizados no centro era a produção para o autoconsumo,
comercialização e exportação de frutas. Assim produziam citrinos, batata reno, hortícolas, criavam gado
caprino, suíno e aves. O chefe de departamento de produção do Estado Maior General orientou que cada
pessoa construísse a sua casa, o que foi feito no ano de 1978. Esses combatentes foram recebidos pelo senhor
Lisboa Mazia, que era o encarregado da empresa após à fuga do seu patrão. Depois da construção das suas
casas, alguns combatentes foram buscar as suas famílias nas províncias de onde eram oriundos e outros
casaram em Maputo com pessoas de outros grupos etnolinguísticos. O terceiro grupo de combatentes entrou
neste centro a 19 de novembro de 1979 e era composto por 50 pessoas. A empresa passou a ser chamada
centro de produção 25 de setembro. O departamento de produção do Estado Maior General concentrava a
sua maquinaria de produção no centro. A distribuição da produção para os centros de produção das outras
províncias, era feita a partir do centro da PSK (chefe do bairro PSK).

Para uma melhor compreensão das versões sobre a constituição e povoamento na PSK,

60 Numa publicação da revista Tempo de 1979, afirma-se que a PSK era no pré-independência um antigo latifúndio
onde os empresários coloniais se dedicavam às actividades agropecuárias. Havia um pomar que abastecia e vendia
fruta mais barata do que na cidade. A maior parte dos antigos latifúndios foi intervencionada em 1976. O Ministério
da Agricultura entregou-a ao antigo comando provincial das FPLM60 que destacou para lá alguns combatentes. Além
de citrinos que eram maioritariamente produzidos para a exportação, o centro de produção dos antigos combatentes
também desenvolvia a horticultura e a criação de animais de pequena espécie para as FPLM. As infraestruturas
incluíam uma cooperativa de consumo, um posto sanitário, uma unidade fabril para o tratamento e empacotamento de
fruta, entre outras secções.

62

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

analiso nos discursos dos meus interlocutores o objectivo e ano de formação da aldeia. Quanto ao
objectivo primordial de constituição, as versões acabam se complementando. Todas as versões
avançadas convergem no seguinte: grande parte dos indivíduos assentados na PSK aquando da sua
fundação combateram 61 pela independência de Moçambique. Ora, apesar de dito de formas
diferentes, praticamente todas as versões têm subjacente a questão militar e também a questão da
construção e consolidação da nação, na medida em que apresentam a questão da defesa e segurança
como uma questão que estava na agenda do Estado pós-independente, que procurou supri-la
através da criação de aldeias de combatentes da luta armada. Igualmente, no pós-independência a
orientação de política de desenvolvimento assentava na necessidade de criação de uma
autossuficiência por via da provisão de insumos de produção agrícola, sua racionalização através
das aldeias comunais, partilha desses meios, assim como dos ganhos de produção, daí que a versão
dos veteranos sobre o autoconsumo e comercialização também tem a sua validade, mas a principal
questão tinha a ver com a defesa do Estado e da soberania do país, sobretudo no decurso da guerra
civil entre a FRELIMO e a RENAMO.

No que toca ao ano em que a aldeia foi constituída, alguns falam de 1974, outros de 1975-1976
e outros de 1977. Mesmo com a diferença de anos evocadas pelos meus interlocutores, para efeitos
de validade empírica considero o ano de 1976, na medida em que a maioria dos veteranos e as
publicações da altura indicam esse como ano de criação do bairro, centro ou aldeia PSK.

O povoamento do bairro /aldeia/centro PSK

Relativamente ao povoamento da PSK, pode se distinguir três momentos que não são
mutuamente excludentes, mas que devem ser vistos como um continuum, decorrente das
transformações sociopolíticas e económicas que o país atravessou, nomeadamente: 1º momento:
povoamento na PSK obedecendo a questões de ordem político-ideológica. Segundo Israel (2006:

61 Quando realizei a entrevista com os ex-guerrilheiros da FRELIMO, eles me distinguiram três categorias de
militares, nomeadamente: veteranos; combatentes da soberania e da democracia. Segundo eles, os veteranos são
aqueles que combateram pela independência do país, neste caso eles. Os combatentes da soberania são aqueles que
renderam os veteranos 2 anos depois da libertação do país, ou seja, que se tornaram os novos militares. Os combatentes
da democracia são os que lutaram na guerra dos 16 anos entre o governo da FRELIMO e a RENAMO. Por aquilo que
pude perceber em campo, maior parte dos combatentes que lá reside faz parte do grupo dos veteranos, mas existem
também na aldeia os combatentes da soberania. Doravante, utilizo o termo veteranos para todos aqueles que
combateram militarmente pela independência de Moçambique.

63

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

118), de entre as razões de ordem político-ideológica salienta-se a função dinamizadora. Ao


colocar os veteranos da luta armada espalhados por todo o país, o governo do pós-independência
esperava que estes expusessem aos ideais da FRELIMO as pessoas que não tinha tido essa
oportunidade durante a luta de libertação nacional. Igualmente, com essa medida, o governo visava
evitar a concentração de pessoal com treinamento militar num só sítio. Nesse sentido, os veteranos
que desde Nachingweia estavam em contacto com a ideologia da unidade nacional apregoada pela
FRELIMO deviam ser os portadores da mensagem e os olheiros do partido-Estado nos locais onde
a luta não chegou.

A base ideológica que orientou a criação de aldeias de antigos combatentes e a sua colocação
foi publicada nos jornais da época. Por exemplo, no Jornal Notícias de 21 de Junho de 198262, o
então presidente da FRELIMO e da República, Samora Machel se dirigiu aos combatentes da luta
de libertação nacional nos seguintes termos:

Organizem aí a defesa para garantir a tranquilidade nessas empresas e assegurem assim a produção e
produtividade. Em primeiro lugar devem instalar o partido em todas as empresas. Vocês respondem também
quando as metas não forem atingidas. A implantação do partido e a organização da defesa nesses projectos
são tarefas imediatas, onde vos cabe uma grande responsabilidade. Que instalem a FRELIMO em toda a parte
e os que, nas empresas, se opuserem a isso vamos varrer com eles. A nossa filosofia é colocar a política no
centro do comando.

Como se pode depreender no excerto acima, os antigos combatentes tinham como missão
primordial implantar o partido, a sua filosofia e controlar aqueles que não quisessem aderir às
directivas do partido. Nota-se ainda que a política devia estar no comando da economia, pois por
essa altura o socialismo era o sistema político vigente no país.

Ainda de acordo com a publicação acima mencionada, Samora Machel na qualidade de


presidente da FRELIMO e de Moçambique, informou aos combatentes nessa reunião que certas
empresas deviam subsidiar as forças de defesa e deu orientações no sentido de alguns combatentes
serem responsáveis pela formação de milícias nas cidades e no campo. Alguns dos combatentes

62 http://www.mozambiquehistory.net/politics/veterans/19820621_tarefa_dos_antigos_combatentes.pdf. Acesso a
19.09.2020.

64

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

presentes ao encontro solicitaram a sua reincorporação ao exército para que pudessem combater
diretamente os bandidos armados (tal como era conhecida a guerrilha da RENAMO), mas Samora
permitiu apenas uma parte deles por conta da idade e de outras tarefas que desempenhavam. O
pedido de reincorporação no exército não é algo antigo. Recentemente, na celebração do dia 7 de
Setembro (data em que se comemora a assinatura dos Acordos de Lusaka) de 2020, alguns
veteranos da luta armada entrevistados pelos órgãos de comunicação social, afirmaram estar em
prontidão para lutar contra o dito terrorismo que desde 2017 actua na província de Cabo Delgado,
o que na minha perspectiva mostra que eles se consideram ainda uma reserva estratégica do partido
e do Estado prontos para encarar qualquer desafio, apesar da sua idade avançada e de terem sido
desmobilizados há muito tempo.

Não obstante os veteranos da luta armada estacionados na PSK terem sido desmobilizados,
considero que a FRELIMO ainda conta com eles para qualquer eventualidade, fruto do seu
engajamento e experiência nos campos de treino, assim como no decurso da guerra pela
independência do país. Prova disso é que em 2015, quando o Secretário Geral da Associação dos
Combatentes da Luta de Libertação Nacional (ACLLN), Fernando Faustino efectuou uma visita
ao bairro PSK, reforçou a visão de Samora Machel acima apresentada no que concerne às
expectativas em torno do papel dos veteranos da luta armada no país. No momento em que
Faustino visitou a PSK, a 18 de Julho de 2015, a RENAMO realizava novamente uma série de
ataques militares na zona centro do país, pelo que ele apelou o seguinte:

Não liguem a esses pronunciamentos. Vamos trabalhar a terra para produzirmos alimentos. Estejamos unidos.
Como sabem, o país teve eleições gerais em Outubro do ano passado. Estas eleições tiveram como vencedor
Filipe Nyusi, ele que é o presidente de todos os moçambicanos. Não há outro presidente, ou seja, o presidente
é só um63”. No mesmo encontro, aconselhou os combatentes a reforçarem a vigilância para neutralizar qualquer
tentativa de minar a paz e a unidade nacional. Disse aos combatentes que o Governo liderado pela Frelimo
acaba de aprovar um Fundo da Paz para todos os combatentes devendo estes elaborar e apresentar projectos
exequíveis para beneficiarem deste valor. “Não se distraiam com ambiciosos. O Fundo da Paz estará disponível
para os combatentes”, disse Fernando Faustino apelando ainda à divulgação do Estatuto do Combatente para

63
http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/politica/40125-preservar-a-paz-e-unidade-nacional-afirma-fernando-
faustino-em-boane
Acesso a 10 de Novembro de 2015.

65

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

conhecimento e domínio de todos64.

Outro indicador de que existe uma ligação umbilical entre os veteranos da luta armada e a
FRELIMO, e, por conseguinte, com o Estado ou governo é o facto de ainda hoje esses veteranos
serem transferidos de uma dada aldeia de antigos combatentes para outra. Igualmente, todos eles
em momentos de conversa comigo afirmaram estar prontos para toda a tarefa para a qual o seu
partido e Estado os destacar, pois desde que se afiliaram à FRELIMO e combateram na luta armada
têm que cumprir ordens e aceitar todas as directivas que lhes forem dirigidas.

O Jornal Notícias do dia 17 de Junho de 198765, refere que o centro dos antigos combatentes
com uma área de 47 quilómetros quadrados, foi criado em Maio de 1976 em Boane, depois de
contactos feitos entre os Ministérios da Defesa Nacional e da Agricultura, com vista a proporcionar
aos veteranos da luta de libertação nacional a realização de actividades produtivas. Ainda segundo
a notícia, viviam nessa altura no centro dos antigos combatentes do Umbelúzi 124 veteranos da
luta armada com as respectivas famílias, que trabalham na produção de citrinos para a exportação
e para o abastecimento do mercado nacional, para além de hortícolas e cereais para o autoconsumo
e abastecimento das unidades militares da zona. Como se pode depreender, a questão militar não
era isolada da questão económica ou da política de desenvolvimento, pois as empresas estatais
deviam também abastecer as unidades militares que deviam estar sempre prontas para a defesa do
país. A experiência que os veteranos da luta armada de libertação nacional tiveram nas zonas
libertadas de defender a pátria, assim como de produzir alimentos para o seu consumo e
partilharem entre si, era uma vez mais chamada no pós-independência e em outro contexto
sociopolítico e geográfico.

Nós os veteranos já não somos a maioria aqui na PSK, porque alguns morreram, outros foram para outras
aldeias de antigos combatentes por livre vontade, ou mandatados pelo partido (entrevista com Jorge,

2020).

O relato de Jorge revela de entre outras coisas, a ligação forte que ainda existe entre o partido

64
Idem.
65 http://www.mozambiquehistory.net/politics/veterans/19870617_antigos_combatentes.pdf. Acesso a 18.09.2020.

66

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

FRELIMO e os veteranos, mesmo tendo estes sido desmobilizados. A este respeito, Wiegink
(2013: 47) defende que o relacionamento entre os veteranos das forças armadas e o Estado é de
dependência mútua. Mesmo tendo sido desmobilizados eles continuam à disposição do partido.
Pedro, um dos veteranos assinalou isso numa entrevista.

Relativamente à chegada e fixação dos Makonde na PSK dois veteranos desse grupo
etnolinguístico afirmaram que em 1974 depois da assinatura dos acordos de Lusaka, alguns já
estavam na PSK. Tal me parece improvável, pois a sua chegada e fixação não pode ser vista
dissociada de um quadro mais geral que orientou a colocação dos veteranos em vários pontos do
país. Na primeira secção deste capítulo mostrei que com a independência nacional e as
nacionalizações, algumas farmas foram abandonadas pelos colonos portugueses que deixaram o
país e foi em algumas dessas farmas os veteranos foram colocados, tendo sido o antigo centro 25
de setembro hoje PSK intervencionado em 1976, altura em que também se içou a bandeira e se
destacou os veteranos para povoarem e produzirem nesses locais. Levanto como hipótese a
probabilidade de os veteranos terem ido para Maputo logo a seguir à independência, mas não terem
logo sido colocados na PSK (vide o relato abaixo). Por exemplo, Manuel, um dos veteranos
Makonde disse-me que logo que chegou em Maputo primeiro viveu no bairro do Alto-Maé, só
mais tarde é que se transferiu para a PSK a seu pedido porque pretendia viver num lugar onde
pudesse praticar a agricultura. Numa entrevista com alguns veteranos perguntei-lhes como é que
foi o seu processo de chegada àquela aldeia e um dos veteranos de Tete, de etnia Nyungwe,
respondeu que a sua chegada foi em simultâneo com outros veteranos de províncias diferentes,
incluindo com os Makonde.

A 7 de setembro de 1974 foram assinados os acordos de Lusaka66. Nesse dia às 0 hora, eu estava no mato. O
meu comandante saiu da sua cabana, foi ter comigo e perguntou: “como é que você está a dormir?” Ele ouviu
que o acordo para o fim da guerra já tinha sido assinado, porque ele tinha rádio e disse: “olha, já se assinou
o acordo, a guerra acabou”. Eu perguntei” acabou mesmo a guerra?” E ele disse”: sim, não pode mais meter
balas na arma, tem que tirar todas. Dia 8 de setembro acordamos, fomos à sede do distrito. Chegamos lá e os
militares brancos nos puseram num camião. Eu tinha medo, porque pela primeira vez subi um carro. Subimos
o carro no quartel deles, dia 8 de setembro, então, dia 9 saímos para a cidade de Tete, para o aeroporto de

66Oacordo de Lusaka foi assinado entre a FRELIMO e o governo português a 7 de setembro de 1974. O objectivo do
mesmo era traçar estratégias de actuação das duas partes beligerantes conducentes à independência de Moçambique.

67

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Chingozi, onde apanhamos os nossos companheiros que já estavam no avião. Subimos um boeing, quando o
nosso avião estava em Marracuene, o avião vindo de Cabo Delgado estava a aterrar no aeroporto com nossos
colegas. Nós aterramos e os nossos companheiros também. Nos encontramos no aeroporto. Encontramos
muita tropa colonial portuguesa. Chegamos junto com os Makonde aqui e até saímos juntos do aeroporto
(entrevista com Januário, 2015).

Durante a luta armada de libertação nacional, as pessoas não eram alistadas em função da sua
proveniência geográfica ou cultural, mas a ideia era fazer com que todos os moçambicanos
pudessem estar unidos, conviver e lidar com as suas diferenças em prol da independência do país.
Tal também sucedeu quando se conquistou a independência. Essa atitude deriva da experiência
nos campos de treinamento da FRELIMO, sobretudo em Nachingweia.

(...) Neste campo se punham em prática os princípios teóricos da FRELIMO, o primeiro e o mais importante
dos quais era a “unidade. A concepção defendida pela frente era a de uma unidade que englobasse todos os
moçambicanos, sem discriminação, consubstanciada na unidade ideológica do movimento, na unidade entre
os guerrilheiros e o povo, na unidade entre a elite e as massas, trabalho intelectual e trabalho manual, cidade
e campo (...) (Cabaço, 2004: 240).

Como se pode depreender a “bandeira” utilizada pela FRELIMO desde a sua formação,
passando pelo processo de treinamento político-militar, luta de libertação nacional, estratégia
política e económica pós-colonial e mesmo na era contemporânea, ancora-se na ideia de unidade.
Igualmente, na actualidade, o discurso do governo da FRELIMO tem como tónica dominante a
unidade nacional, que é tida como condição sine qua non para o desenvolvimento do país.
Praticamente todos os dias os moçambicanos são exortados a buscar e a reforçar a unidade
nacional, pois apenas desse modo a paz, a estabilidade e a prosperidade podem encontrar espaço
em Moçambique. Sendo os veteranos membros da FRELIMO e da ACCLN, é compreensível que
a sua vida e a sua interacção seja pautada pelo ideal de libertação que fez e faz parte da sua vida.
Por exemplo, durante a entrevista os relatos dos veteranos indicaram que a unidade nacional é para
eles uma questão vital:

Aqui não somos todos Makonde. Este aqui é de Tete, distrito de Angónia; este aqui é de Tete, distrito de
Changara, este aqui é de Tete, distrito de Marávia, eu sou de Tete, distrito do Zumbo. Este aqui é de Cabo
Delgado, distrito de Macomia. Aqui ninguém veio do mesmo distrito, mas a guerra pela independência e a

68

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

busca pela unidade nacional veio nos juntar (entrevista com Boaventura, 2015).

O 2º momento de povoamento da PSK teve a ver com a necessidade de busca de segurança


por conta da guerra entre o governo e a RENAMO.

Em 1987, a população oriunda das aldeias circunvizinhas como Marien Ngouabi, Porto Henriques, Eduardo
Mondlane, 7 de Abril, 25 de Junho, Saldanha veio para a aldeia PSK fugindo da guerra de desestabilização67.
Algumas pessoas do distrito de Magude, fugiram durante a guerra com o seu gado bovino, fixando-se na
PSK. Em 1984, a aldeia PSK, começa a receber a população oriunda de Munguíne, noutra margem do rio
Umbelúzi, 25 de Setembro, Manguiza que tinha sido invadida pelas cheias de 1984. Depois da assinatura do
Acordo Geral de Paz em Roma em 1992, uma parte da população voltou para a sua zona de origem
(entrevista com grupo de veteranos da luta armada de libertação nacional, 2015).

O deslocamento de populações vizinhas à PSK em busca de segurança foi igualmente


referido por Adam (2006) quando afirma que as aldeias PSK e Rádio Marconi constituíam pontos
militarmente estratégicos, receberam populações deslocadas em busca de segurança. Assim
também foi no distrito da Manhiça, nas proximidades da açucareira Maragra, na província de
Maputo, onde estão fixados alguns Makonde também acolheu alguns refugiados. Esse facto me
foi dado a conhecer por um jovem filho de Makonde residente na Maragra que estava na PSK a
participar da cerimónia dos ritos de iniciação.

Os Makonde que estão na Maragra68 receberam grandes porções de terra e empregos na açucareira Maragra,
porque durante a luta contra a RENAMO eles repeliram os BA’s e os fizeram fugir. Como gratificação
receberam grandes porções de terra e empregos na açucareira (entrevista com Mário, 2016).

O discurso de Mário mostra que a guerra civil ou a chamada guerra dos 16 anos, teve diferentes
dinâmicas e apropriações por vários actores sociais, na medida em que para uns provocou

67 A guerra entre o governo da FRELIMO e a RENAMO que ocorreu entre 1976-1992 é conhecida de várias formas,
nomeadamente: guerra dos 16 anos, guerra civil ou guerra de desestabilização. O termo guerra de desestabilização
tem a ver com o argumento de que a guerra resultava da acção do regime minoritário racial do apartheid da vizinha
África do Sul e da ex-Rodésia do Sul de Ian Smith, pois, Moçambique ao assumir-se como socialista era o único país
na região que abraçou esse regime político e ameaçava esses dois países. O presidente Samora Machel fechou as
fronteiras com a ex-Rodésia e como consequência esse país atacou. Reza a história que Ian Smith e o seu regime
estariam na origem da RENAMO e apoiavam nas incursões militares desta.
68 Maragra é uma empresa açucareira, sedeada no distrito da Manhiça, igualmente na província de Maputo. Nos

arredores da empresa vivem Makonde e seus descendentes.

69

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

destruição e necessidade de migrar, como as pessoas que fugiram de aldeias vizinhas para a PSK
em busca de segurança e para outros, como os Makonde baseados na Maragra criou oportunidades
de assentamento e de emprego.

Os veteranos na PSK contaram-me a sua experiência quando a RENAMO invadiu a aldeia.

Os Bandidos Armados (BA’s69) vieram por três vezes para atacar a PSK. Primeira vez pararam de longe e
ameaçaram. Nas duas vezes seguintes atacaram, mas nós lhes rendemos e nunca mais voltaram. Nós tínhamos
nossas armas na altura e utilizamos. Agora já não as temos. Se acontecer alguma coisa agora, o exército é
que terá de intervir (entrevista com Januário e Alfredo, 2016).

O facto de os veteranos terem defendido a sua aldeia, assim como as populações vizinhas
reactualizou a sua imagem de “heróis” perante a população, os transformando em duplos heróis
(da luta de libertação nacional e da guerra civil), embora no quotidiano eles possam passar
despercebidos, pois vivem junto e fazem parte da população em geral. Relativamente ao facto de
os veteranos estarem misturados com a população Tajú (1998: 29) afirma que os ex-combatentes
coexistem e interagem com diferentes grupos sociais, com experiências diferentes, com exposição
diferente à guerra e com expectativas e identidades diferentes. Na PSK, constatei que se alguém
desconhecer a história sobre a origem do lugar e das suas dinâmicas, pode nem se aperceber que
lá existem veteranos da luta armada. Talvez o que poderá chamar a sua atenção e despertar
curiosidade é o facto de existirem vários edifícios com a designação antigos combatentes. Tal
sucede porque no quotidiano os veteranos estão bastante misturados com o resto da população,
sendo que eles constituem actualmente uma minoria no bairro.

O 3º momento de fixação na PSK tem a ver com o interesse de algumas pessoas de estarem
perto dos seus parentes e de possuírem casas e machambas. Este 3º momento está muito
relacionado com o contexto político democrático e liberalista inaugurado em 1994 com as
primeiras eleições gerais e multipartidárias, onde a iniciativa livre, a liberdade de associação e
filiação, assim como o capitalismo são práticas reiteradas. Por exemplo, Raúl, um dos meus
interlocutores que é veterano Makonde da luta armada, quando chegou à Maputo primeiro viveu

69Bandidos Armados ou abreviadamente BA’s é uma designação atribuída aos guerrilheiros da RENAMO durante o
conflito civil que devastou Moçambique entre 1976-1992.

70

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

na cidade capital. Depois, soube que alguns parentes seus estavam a viver na aldeia PSK e foi se
juntar a eles. Para além de querer estar próximo deles, também pretendia ter machambas, visto a
agricultura constituir o seu ofício. Algumas pessoas preferem viver na PSK, pois alguns dos seus
parentes residem no bairro. Um dos veteranos disse-me que alguns dos seus parentes que têm
estado a ser desmobilizados acabam indo viver na PSK por saber que têm lá familiares que também
estiveram no exército, o que pode facilitar na sua reintegração na vida civil.

Actualmente, qualquer pessoa é permitida fixar residência ou ter machamba na PSK, desde
que se aproxime da chefia da aldeia para efeitos de atribuição de terra. Caso a pessoa interessada
tenha parentes que possuam direito de uso e aproveitamento de terra, podem cedê-la, mas devem
apresentar a pessoa a quem cederam terra ao líder para que a conheça e valide esse acto. Lembro-
me que perguntei aos chefes da aldeia se poderiam me ceder um terreno para a construção e eles
disseram que poderiam, mas que agora os espaços não estão disponíveis. Andando pela PSK é
possível perceber que o bairro ainda não foi alvo de parcelamento. Algumas casas estão viradas
para certo lado da rua diferente de outras. Tal realidade pode ser explicada pelo facto de o
Município em Boane ser uma entidade relativamente recente70, o que o coloca perante muitos
desafios.

Nota-se várias construções em andamento um pouco por todo o bairro sendo a maioria delas
precária e uma falta de uniformização de construção de habitações. Essa diferença na construção
tem a ver com o facto de no começo o Estado ter construído casas para os ex-combatentes da luta
armada, mas à medida que o tempo passou tornou-se bastante oneroso e havia escassez de material.
Assim, cada veterano teve que construir a sua casa. Por conta disso nota-se a existência de

70
A vila de Boane foi elevada à categoria municipal em 2013. O Município compreende 33 bairros e 2 postos
administrativos, tratando-se do maior Município do país em termos de extensão territorial.
http://www.anamm.org.mz/index.php/component/k2/item/36-boane. Acesso a 17 de abril de 2021. Em entrevista ao
jornal Notícias em 2014, o edil de Boane, Jacinto Loureiro afirmou que os residentes da vila de Boane ressentem-se
da falta de diversos serviços sociais básicos como água, energia elétrica, saúde e educação, apesar dos avanços
registados com a municipalização. “Em termos de infraestruturas, Boane só tem duas escolas secundárias para um
universo de mais de 80 mil habitantes e isso não são suficientes. Temos apenas um posto médico e outros que são
precários”, lamentou Loureiro. Para responder a estas preocupações, a edilidade está a apostar em parceiros
estratégicos que possam apoiar na construção de redes de abastecimento de água, melhoria da energia elétrica e acesso
aos serviços de saúde. “Ainda há sérios problemas, o que temos estado a fazer é buscar parceiros para satisfazer as
necessidades da população, temos estado a fazer algumas realizações, como a recolha de resíduos sólidos que é uma
coisa que antes não havia”. Disponível em https://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/sociedade/23271-vila-de-
boane-da-municipalizacao-a-pressao-demografica.html. Acesso a 17 de Abril de 2021.

71

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

habitações de diversos estilos, de acordo com a região de origem dos moradores da aldeia71. No
começo os Makonde viviam em palhotas de barro e cobertas de palha. Actualmente, alguns deles
têm estado a construir casas de alvenaria (ver fotos abaixo). As casas de barro que predominaram
durante algum tempo, são inspiradas nas aldeias Makonde em Cabo Delgado. Fotos que estão no
volume II do livro de Jorge Dias os Macondes de Moçambique, mostram semelhanças entre as
casas de barro que existem na PSK e as aldeias Makonde de Cabo Delgado. Segundo Dias
(1964:14), as casas dos Makonde eram antigamente circulares e de cobertura cónica, mas com o
passar de tempo começaram a construir casas rectangulares para supostamente imitar as casas dos
brancos e estas se tornaram a maioria. Parece-me importante destacar que algumas famílias
Makonde possuem no seu terreno dois tipos de casa, a de barro e a de alvenaria. A família que me
acolheu é disso exemplo. As pessoas comem e dormem na casa de alvenaria e a de barro foi
transformada em cozinha.

A ocupação de espaços e construção de casas não foi feita tendo como base a origem étnica.
Os Makonde não estão todos próximos uns aos outros. Nota-se uma mistura. Por exemplo, a casa
da família que me acolheu está ao lado de uma casa de uma família da província de Maputo e é
com quem mais interagem no quotidiano. As machambas estão distantes da área residencial. A
distância entre ambas as zonas de carro é de 5 a 7 minutos, mas a pé pode levar entre 15 a 20
minutos, dependendo da velocidade que a pessoa levar. Esses cálculos são baseados em duas
experiências pessoais, pois já fiz o trajecto de carro e a pé. Existem dois pavilhões com machambas
que não são pertença exclusiva dos Makonde. Pessoas de outros grupos etnolinguísticos também
possuem terras para o cultivo.

71
Revista Tempo, nº 469, 07 de setembro de 1979. Pp. 22-24.

72

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 3. Casa de barro de alguns Makonde na PSK- foto de Sara, 2016.

73

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 4. Parte frontal da casa onde fui acolhida durante o trabalho de campo- foto de Sara, 2021.

74

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 5. Rua principal da PSK- foto de Sara, 2021.

A PSK contemporânea

Conforme mencionei previamente neste capítulo, vivem na PSK 8 grupos etnolinguísticos.


Procurei perceber como é que esses grupos interagiam entre si. Inicialmente julguei que fosse
encontrar registo de alguns conflitos entre certos grupos devido à suas diferenças culturais.
Durante o trabalho de campo não encontrei esse tipo de conflito, mas conflitos que na perspectiva
dos meus interlocutores não configuram desarmonia por razões étnicas, mas sim por conta de
comportamentos de algumas pessoas. Por exemplo, durante o trabalho de campo, soube que alguns
dançarinos de nyau, dança emblemática dos Nyungwe (província central de Tete), quando

75

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

embriagados batiam nas pessoas, inclusive nas pessoas do seu grupo etnolinguístico. Tal
comportamento foi várias vezes atribuído ao consumo de álcool e drogas. Os meus interlocutores
sempre insistiram que esse comportamento nada tinha a ver com o facto de eles serem Makonde e
os outros Nyungwe. Para tentar melhorar o comportamento dos dançarinos, as pessoas mais velhas
de Tete confiscaram os seus equipamentos de dança, pois tais maus comportamentos se
manifestavam durante as exibições do nyau.

Apercebi-me que as pessoas dos diferentes grupos etnolinguísticos têm noção da sua
diferença cultural e a respeitam. Isso ficou evidente numa entrevista que fiz aos veteranos.

Aqui na zona onde estamos, não existe partilha de valores culturais. Cada grupo etnolinguístico possui os
seus valores, modo de vida, entre outros aspectos que caracterizam o homem como ser cultural. Os de Tete
por exemplo dançam o seu nyau. Eles se organizam noutro lugar e dançam. Nós também nos organizamos
no nosso lugar e dançamos o nosso mapiko. Embora não haja partilha de valores culturais, socialmente
vivemos sem problemas. Quando nos encontramos com um indivíduo que não pertence à nossa cultura
convivemos sem problema. O segredo de tudo é respeitar a cultura do outro (entrevista com veteranos,

2020).

Apesar de aldeia ter sido fundada para os antigos combatentes, as suas famílias e eles não
constituem a maioria da população. Num universo de 700 famílias existentes na aldeia, segundo
os dados facultados pelo líder, 200 famílias é que são formadas pelos veteranos da luta armada e
seus parentes e/ou familiares. Somando os veteranos e os parentes/familiares com quem vivem
falamos de cerca de 1000 pessoas que têm ligação com o passado da luta armada, visto na PSK
por família residirem em média 5 pessoas (pai, mãe e três filhos). Esse decréscimo no número de
veteranos e seus familiares/ parentes se explica pelo facto de durante a guerra civil, pessoas de
aldeias vizinhas terem se refugiado na PSK em busca de segurança por saber que na altura esta era
maioritariamente habitada por veteranos da luta armada. Igualmente, outro factor que explica esse
decréscimo é o facto de qualquer pessoa que requeira terreno ou machamba possa viver na aldeia.
Mas importa realçar que as pessoas que requerem essa terra devem ter família na aldeia e a chefia
da aldeia ser informada da sua existência, assim como da sua conduta. Nota-se um grande

76

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

controlo72 das pessoas por parte da chefia da aldeia, o que na minha perspectiva visa evitar que
pessoas da oposição se infiltrem e consigam inculcar a sua ideologia no local e junto à população,
assim como a ocorrência da criminalidade.

Relativamente à criminalidade, assisti um episódio que na minha perspectiva mostra que a


PSK apesar de ser um bairro de antigos combatentes também se debate com os problemas como
outros bairros e que pelo facto de a população estar misturada, fica difícil para a liderança do bairro
controlar esse fenómeno na íntegra. Certo dia me dirigi à casa do líder e quando cheguei havia
muita gente aglomerada e um suposto ladrão que havia sido brutalmente espancado sentado
debaixo de uma árvore e de mãos atadas. Perguntei ao líder o que é que se passava e ele disse que
o jovem em causa foi supostamente encontrado a furtar bens alheios e as pessoas enfurecidas o
espancaram. O chefe do bairro totalmente enraivecido gritou: “vocês todos saiam daqui. Primeiro
bateram barbaramente nesse jovem e agora que está quase a morrer é que trazem para a minha casa
para eu ajuizar o assunto. É assim mesmo? Por que é que não o trouxeram antes?!” Quando o líder
mandou embora a multidão enfurecida, parte dela foi embora, outros ainda se afastaram do recinto
da casa e poucos deles permaneceram à espera do desfecho que foi encaminhar o jovem às
autoridades competentes. Esse episódio mostra que apesar de a PSK estar relativamente perto da
vila municipal de Boane e da capital da província, algumas pessoas ainda optam por uma justiça
popular, coisa totalmente desencorajada pelo Estado Moçambicano, ou seja, nota-se a ocorrência
de um pluralismo jurídico na PSK. Outrossim, mostra que o líder do bairro está alinhado com
aquilo que é apregoado pelo Estado Moçambicano que é não fazer justiça pelas próprias mãos.
Nessa ocasião fui ouvindo algumas pessoas que confirmavam que o jovem em causa era mesmo
ladrão, mas o curioso é que em nenhum momento disseram que já o tinham visto a roubar.

A chefia da aldeia está a cargo dos veteranos da luta armada. O líder é oriundo da província
de Tete e o vice-líder é Makonde. O líder é eleito pela população da aldeia. O actual líder já cumpre
o segundo mandato e está no posto há muitos anos. Apesar de a liderança da aldeia ser autónoma
no quotidiano, o seu trabalho está alinhado com as directivas da localidade de Boane e do
respectivo município. Não há clivagens entre a liderança da aldeia e dessas hierarquias

72
Toda e qualquer pessoa que pretenda construir no bairro ou ter uma parcela para a agricultura deve se apresentar às
lideranças do bairro.

77

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

governativas, porque as mesmas são geridas pelo partido FRELIMO, ao qual os veteranos estão
afiliados. Na Assembleia Municipal de Boane estão representados 5 veteranos da luta armada: 2
da PSK (sendo um deles o líder da aldeia, que é em simultâneo vice-presidente da Assembleia) e
3 localizados na vila de Boane. É através do líder da aldeia e do seu colega da PSK que os assuntos
e problemas da aldeia chegam ao Município. Na minha análise, o facto de os veteranos estarem lá
representados mostra o respeito e o prestígio que estes gozam junto das autoridades
governamentais e da população.

No quotidiano, observei que os veteranos da PSK reuniam várias vezes para resolver os
assuntos da aldeia. Era frequente vê-los reunidos num canto a discutir os assuntos colocados pela
população ou as solicitações do Governo. Essas reuniões colectivas frequentes da chefia do bairro
mostra que a PSK tem como inspiração as aldeias comunais, se atender e considerar que parte da
estrutura administrativa das aldeias comunais tinha no seu elenco um conselho de aldeia. Eles
desenvolvem as suas actividades e apenas reportam à localidade o que lá ocorre. Um exemplo,
disso, é que durante o meu trabalho de campo e no contexto da pandemia da covid-19, um agente
económico que opera no Município de Boane, no âmbito da sua responsabilidade social quis
oferecer máscaras, barras de sabão e papinhas com vista a fortalecer o sistema imunológico das
crianças entre os 3 e aos 5 anos e garantir a sua permanência na escola. Esse agente económico
aproximou-se da liderança, manifestou essa vontade e solicitou a autorização e apoio da mesma.
O líder da aldeia ficou muito satisfeito e se disse aberto a colaborar, mas pediu que o proponente
da iniciativa redigisse uma carta dirigida à chefia da aldeia a manifestar a sua vontade. Segundo
ele, os veteranos prestam contas à localidade e seria bom que esta não ouvisse por terceiros o que
é que está a acontecer na PSK. A minha leitura é que isso até pode constituir a verdade, mas
também a chefia da aldeia quer obter algum prestígio, pois poderá dizer que a sua aldeia tem
conseguido mobilizar parcerias benéficas à população.

Em termos políticos, a FRELIMO é o partido dominante na PSK. Segundo o vice-líder existem


outros partidos, mas os seus membros sequer ousam manifestar a sua afiliação e içar as suas
bandeiras. O domínio da FRELIMO é também notório quando chega o momento de se fazer a
campanha eleitoral.

78

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Aqui eles não costumam vir fazer campanha. Quando eles planeiam lá em Boane vir para cá, só passam e
não param. A população basta ouvir que a oposição está a entrar aqui na aldeia, saem e só olham para eles
(entrevista com o vice-líder da aldeia, 2020).

Na rua principal da aldeia estão içadas duas bandeiras: a de Moçambique e a do partido


FRELIMO, o que de per si mostra a sua hegemonia, visto esta formação política estar no poder
desde 1975.

Figura 6. Bandeira de Moçambique e do Partido FRELIMO- foto da autora, PSK, 2021.

Ao longo da aldeia vários edifícios lembram e chamam atenção a quem passa que aquele
lugar tem alguma relação com os antigos combatentes. Por exemplo, na rua principal existe um
edifício designado de Centro de Atendimento Social de Antigos Combatentes, que foi construído
com o apoio da União Europeia. Igualmente, existe na aldeia uma escola denominada Escola
Primária Completa Antigos Combatentes.

79

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 7. Centro de Atendimento Social de Antigos Combatentes- foto da autora, PSK, 2021.

80

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 8. Escola Primária Antigos Combatentes- foto da autora, PSK, 2021.

Durante o trabalho de campo notei que a FRELIMO não é só estruturante na vida dos
veteranos, na vida da aldeia no geral, mas também medeia relações entre pais e filhos, sobretudo
Makonde, meus principais interlocutores. Entrevistei em separado um pai e uma filha e no que
concerne à influência do partido na aldeia de um modo geral e na sua relação de um modo
particular, afirmaram o seguinte:

Os meus filhos são membros da FRELIMO. Se não fossem, acho que não nos relacionaríamos bem
(entrevista com Afonso, 2020).

As palavras de Afonso mostram que ele não está sequer aberto a negociar a filiação política
que os seus filhos devem seguir e aventa a possibilidade de uma filiação diferente da sua geral mau
ambiente em casa.

81

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

A filha de Afonso por seu turno foi mais exaustiva na explicação de como o partido FRELIMO
condiciona a vida na aldeia e a sua relação com o seu pai, que é um dos veteranos Makonde da
luta armada.

Os nossos pais falam bem da FRELIMO e até insistem que votemos nela. Dizem que tudo que estamos a
viver é graças a ela. Esses que estão a aparecer agora ainda não fizeram nada, por isso nós temos que votar
na FRELIMO. Dizem: “A FRELIMO é que fez, a FRELIMO é que faz73”: escolas, hospitais, bancos, tudo é
a FRELIMO. Se algum de nós jovens não seguir a FRELIMO, eles não fazem nada, só falam, principalmente
meu pai! Ele até diz: esses que você quer seguir o que é que já fizeram? Dê-me um exemplo. Eu estou a dizer
para você apoiar a FRELIMO. Eu estou a receber graças a FRELIMO. Meu pai fala muito, muito mesmo
sobre isso. Eu estou aqui em casa dele, tenho que seguir as orientações dele. Se um dia eu tiver a minha casa,
aí farei o que eu quiser. Eu estou bem na FRELIMO, não posso dizer que não estou, sempre serei FRELIMO.
Meu pai me ensina muita coisa sobre a FRELIMO. Quando um filho erra, não podemos matar, mas temos
que mostrar bom caminho, por isso eu sou e sempre serei FRELIMO (entrevista com Teresa, 2020).

O relato de Teresa revela que a relação de pais veteranos e seus filhos na PSK é bastante
influenciada pela sua adesão e fidelidade à FRELIMO. Independentemente de aceitar a orientação
do seu pai de pertencer ao partido FRELIMO e de fazer campanha eleitoral para o mesmo, Teresa
deixa transparecer que discorda de algumas coisas que a FRELIMO faz, para tal, usa uma
comparação com a necessidade contínua de educar um filho com mau comportamento e puxá-lo
ao caminho certo.

A falta de abertura de Afonso para que os seus filhos abracem outros partidos também foi
visível numa entrevista colectiva com outros veteranos da luta armada:

No relacionamento de pais e filhos nunca pode faltar conflito, mas não nos podemos queixar. O
comportamento deles é bom e recebem o nosso legado. Estão a se engajar como membros do partido e da
associação de combatentes. Não temos filho que está fora, eles estão a seguir a nossa obra, posso dizer que
99% dos nossos filhos são membros do partido.

Outros jovens com quem interagi em campo referiram que são membros da FRELIMO e um
deles afirmou que é membro e faz campanha eleitoral para a FRELIMO e que ele e o irmão são

73 Slogan da FRELIMO utilizado em momento de campanha eleitoral.

82

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

militares.

Procurei observar e saber dos meus interlocutores o que é que aconteceria com alguém que
fosse manifestamente da oposição. Os veteranos, em uma entrevista colectiva se riram e
responderam nos seguintes termos:

Se é que alguém é da oposição aqui na aldeia, não mostra, porque sabe que aqui é zona da FRELIMO
(entrevista com veteranos, 2015).

Num outro momento de conversa informal, os veteranos afirmaram que existem outros
partidos na PSK, mas não permitem que eles icem a sua bandeira e que tenham alguma expressão
naquele lugar. Partindo disso, penso que ainda que os seus próprios filhos estejam filiados a uma
força política contrária, dificilmente eles saberão, pois, eles escondem por medo de
problemas/represálias. Nota-se uma obrigação de votarem nesse partido, pois devem se sentir em
dívida para com o mesmo por tudo quanto ele faz e permite fazer, pois segundo Wiegink (2013:
52) os veteranos da luta armada são vistos como heróis e são recompensados como tal. Geralmente,
são vistos como estando nas mãos do governo, como sendo cuidados pelo Estado. O que sucede
na PSK é que apesar de os veteranos serem tidos como heróis, o seu nível de vida e as condições
do bairro não se coadunam com essa ideia de heroicidade. Apesar dessa constatação de “lealdade
canina” à FRELIMO, a população enfrenta algumas dificuldades como vias de acesso precárias,
deficiente saneamento do meio que é mais notório quando chove, ficando as ruas totalmente
alagadas. Igualmente, alguns serviços sociais básicos de saúde e fornecimento de água potável são
inexistentes ou precários, tendo os moradores que se deslocar à vila de Boane. Tal facto contrasta
com a realidade anterior da formação do bairro em que havia um centro de saúde em
funcionamento. Perguntei a alguns residentes da PSK por que motivo é que não existe um posto
médico na zona e eles disseram desconhecer o motivo, mas uma reportagem74 feita junto a alguns
moradores do bairro evidenciou algumas das nuances responsáveis pela precariedade e mau
atendimento por parte dos serviços de saúde.

74
https://jornalvisaomoz.com/aldeia-paulo-samuel-kankhomba-sem-agua-ha-um-ano/
Acesso a 10.12.2020

83

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Tentamos falar com o chefe do bairro, mas na sua casa sai água, por esse motivo ele não se preocupa com
os restantes moradores. Além da água, nós de Paulo Samuel Kankhomba temos dificuldades em ter acesso
a outros serviços como saúde, quando vamos ao hospital e dizemos que somos desta aldeia não somos
atendidos, temos sempre que dizer que somos de Mahubo só assim seremos recebidos. De acordo com os
moradores, os serviços de saúde lhes são negados porque na aldeia há vários antigos combatentes que
lutaram pela libertação do país e quando vão a busca destes serviços não se dispõem a fazer os devidos
pagamentos, deste modo a aldeia toda é tida como de pessoas indisciplinadas, e por esse motivo até quem
não tem culpa acaba sofrendo as consequências por lá morar. Assim sendo, a melhor alternativa para
poderem ter acesso a serviços de saúde é dizer que são de outros bairros apesar dos documentos de
identificação dizerem o contrário, este é o dia-a-dia dos moradores de Paulo Samuel Kankhomba em Boane.

Como se pode depreender no excerto da reportagem acima, ser morador do bairro dos antigos
combatentes, não tem trazido benefícios aos civis que lá habitam, pelo contrário são alvo de
estigma e discriminação, por isso por vezes não acreditam nas palavras dos chefes do bairro. Numa
das ocasiões, marcou-se uma reunião comunitária porque um empresário que desenvolve as suas
actividades no distrito de Boane queria oferecer máscaras de protecção facial contra a covid-19. O
encontro foi marcado e avisado à população com uma semana de antecedência, mas mesmo assim
demorou começar porque o chefe do bairro estava a fazer um compasso de espera para que mais
pessoas chegassem. Como a reunião demorasse começar, ouvi alguns murmúrios de populares
alegando que já estavam habituados a serem chamados e depois não receberem nada. Por seu turno,
o chefe do bairro disse que se a oferta do empresário fosse bens alimentares estaria cheio, mas
como eram máscaras as pessoas não estavam preocupadas em comparecer. Narro aqui esse
episódio, porque me parece que apesar de ter notado boas relações entre os antigos combatentes
que chefiam a aldeia e os civis que lá também residem, estes últimos sentem que poderiam ter
melhores condições de vida, mas que o facto de os veteranos não pagarem as suas despesas
hospitalares os prejudica.

Tal como referi na introdução, existe uma escola primária que leciona de 1ª a 7ª classe. Quando
chega o momento de os alunos passarem para a escola secundária (8ª a 12ª classes), têm que se
deslocar à vila Municipal de Boane, à cidade da Matola, capital da província ou à capital do país,

84

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

cidade de Maputo. Existe na PSK uma escolinha comunitária75. A escolinha apresenta dificuldades
de todo o tipo para o seu funcionamento. Inicialmente, os pais deviam contribuir um valor
simbólico para a manutenção da escolinha, mas não têm conseguido fazê-lo. O valor anual de
matrícula por cada criança é de 10076 meticais, mas a maioria dos encarregados de educação não
consegue pagar, pois alguns deles têm mais de um filho por frequentar a escolinha comunitária.
Um empresário tem estado a apoiar a escolinha. Para tal ele conta com um especialista em
educação de infância que apoia tecnicamente educadoras que trabalham directamente com as
crianças. Para além de oferecer lanche escolar, são realizadas actividades pedagógicas com as
crianças. Inicialmente estas ocorriam duas vezes por semana, mas depois da eclosão da covid-19
as mesmas passaram a ocorrer uma vez por semana, observando todas as medidas estipuladas pelo
protocolo sanitário. Outro tipo de ajuda que o empresário presta tem a ver com a gratificação das
educadoras de infância afectas à escolinha. Elas não têm estado a receber o subsídio que lhes é
devido há cerca de sensivelmente um ano. Como forma de apoiar, tem mobilizado ajudas junto de
amigos e parceiros que disponibilizam cestas básicas para as quatro educadoras a cada fim do mês.
Presenciei algumas reuniões entre esse agente económico e a liderança do bairro. No primeiro
encontro, o agente pediu permissão para trabalhar e apoiar na escolinha comunitária, assim como
a colaboração das autoridades do bairro, que foi prontamente concedida. Em encontros
subsequentes, os líderes da PSK disseram ao empresário que pedem para que o seu apoio continue,
pois enfrentam muitas dificuldades na provisão de bens e serviços básicos à população.

75
Em Moçambique, o Sistema Nacional de Educação não abrange a Educação Infantil, ou seja, as crianças com idade
inferior a 6 anos de idade não fazem parte do escopo do Ministério da Educação. Toda a educação pré-escolar se dá
em escolas comunitárias ou centros infantis, sob a tutela do Ministério do Gênero, Criança e Ação Social. É pelo nome
de "escolinha" que são conhecidas essas escolas de educação infantil em Moçambique. Em muitos casos, seja em
zonas urbanas ou zonas rurais, a maioria delas funciona à sombra de uma árvore, em instalações de palha ou em
prédios muito precários. Além da falta de conforto e de condições propícias para um bom aprendizado, essas
instalações as vezes até oferecem risco às crianças, que se amontoam ali para aprender. A maioria dos professores não
possui formação adequada, mas assumem a responsabilidade de cuidar e ensinar, da melhor forma que conseguem.
Falta material, falta beleza, falta higiene, falta mobília, na verdade, há falta de tudo. http://vida-africa.org/escolas.html.
Acesso a 16 de abril de 2021.
76
O correspondente a 1,35 euros.

85

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 9. Escolinha Comunitária da PSK-Foto de Leandro Jorge, PSK, 2020.

A região onde está a PSK, apesar de agro-ecologicamente rica não tem entrado para a
agricultura comercial ou mecanizada. Pratica-se uma agricultura de base e consumo familiar. Não
se tem explorado o potencial herdado do período anterior à independência, uma vez que existia
uma fazenda colona que produzia e exportava fruta e hortícolas em grande escala. Não se vê
nenhuma maquinaria que existiu no período anterior à independência. Essa actual inexistência de
maquinaria na PSK pode ser atribuída ao fracasso das machambas e cooperativas estatais fundadas
no pós-independência. Segundo Macaringue (2017:249), tal fracasso pode ser atribuído a má
gestão, à queda de preços no mercado internacional e às consequências da guerra civil. Nota-se a
existência de alguns edifícios que outrora foram armazéns, mas os mesmos estão em ruínas e por
vezes cabritos passeiam ou ficam no seu interior. Algumas reuniões de moradores por vezes
acontecem nesses espaços. Com a entrada em funcionamento do regadio, a produção melhorou,
mas ainda não permite que as pessoas vivam apenas da agricultura. A utilização do regadio ocorre

86

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

em dias alternados para cada pavilhão de machambas.

Conclusão

Neste capítulo apresentei a história em torno da constituição e povoamento na PSK. Para tal,
comecei por abordar a criação de centros ou bairros de militares, assim como que expectativas
existiam em torno destes no pós-independência, uma vez que a luta armada já tinha terminado.
Esperava-se que os militares ajudassem na construção das aldeias comunais e na mobilização
popular para o cumprimento das directivas do partido-Estado. As aldeias de Boane, incluindo a
PSK, não surgiram num vazio e desconectadas de toda uma realidade, história e memória social.
Elas foram e são na prática um continuum das primeiras aldeias comunais, da coletivização do
campo e, sobretudo, do ideal de unidade e identidade nacional. A PSK pode ser vista como uma
maquete do projecto de unidade nacional, onde moçambicanos de todas as paragens se congregam
e lidam com as suas diferenças, partindo da opressão colonial, da experiência da guerra e hoje,
mais da comunidade imaginada de nação, proposta por Benedict Anderson (2006 [1983]).

Relativamente ao nome do bairro ou aldeia, inicialmente chamava-se centro 25 de setembro,


mas depois os veteranos mudaram o nome para Paulo Samuel Kankhomba. Apresentei cinco
versões sobre a constituição e o povoamento do bairro PSK. Analisando todas ela nota-se que
apesar de ditas de modo diferente, convergem no objectivo da fundação do bairro ou aldeia.
Relativamente ao ano de criação da aldeia, os dados mostram uma pequena diferença, pois alguns
falam de 1976 e outros de 1977, mas considero 1976 como ano de formação do bairro ou centro,
pois a maioria dos veteranos, assim como jornais e revistas publicados na época apontam esse ano
como certo. O povoamento da PSK ocorreu em 3 momentos. Se num primeiro momento o Estado
colocou os veteranos na PSK como garante da materialização da sua política de socialização do
campo e cooperativização, assim como da mobilização popular para o cumprimento das directivas
partidárias, o segundo momento de fixação de pessoas teve a ver com a busca pela segurança
devido à guerra civil. Posteriormente, a fixação de pessoas na PSK tem relação com a procura de
habitações e machambas.

Para além de abordar a constituição e povoamento do bairro PSK, também me referi ao estágio
actual do mesmo, tendo realçado que apesar de os veteranos gozarem de prestígio, a sua condição

87

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

social e a das pessoas sob a sua liderança não se coaduna com esse mesmo prestígio. Faltam
infraestruturas sociais básicas para eles, suas famílias ou população. No caso em que tais
infraestruturas existem estão em estado precário, carecendo de intervenção. No que concerne à
política, o partido FRELIMO é o dominante. Os outros partidos apesar de existirem no bairro não
podem içar as suas bandeiras, ou até mesmo fazer campanha eleitoral quando chega o momento
da votação. A “fidelidade canina” à FRELIMO estrutura as relações entre pais e filhos e entre as
lideranças do bairro a sua população. Os filhos dos veteranos estão praticamente proibidos de
aderir ou pertencer a outras forças políticas. Ainda que sejam militantes ou membros de outros
partidos têm que esconder dos seus pais, sob pena de criar uma relação não saudável e até ser
expulsos de casa.

No que tange às actividades económicas, a agricultura é a principal actividade da região, que


oferece excelentes condições agro-ecológicas desde o período colonial, mas tal potencial não tem
estado a ser aproveitado. A única escola existente no bairro lecciona de 1ª a 7ª classe. Os níveis
subsequentes de ensino estão indisponíveis no bairro e têm que ser buscados nas cidades de Matola,
Maputo e na vila de Boane. Não existe centro de saúde para atender a população do bairro. Sempre
que precisam de cuidados de saúde devem se deslocar à vila Municipal. As vias de acesso ao bairro
estão bastante degradadas e o saneamento do meio é deficiente.

88

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Capítulo III
Marcadores da identidade Makonde no bairro PSK

Introdução
Neste capítulo abordo os marcadores que os Makonde que vivem na PSK utilizam para se
definirem como tal e se diferenciarem das pessoas dos outros grupos etnolinguísticos que residem
no mesmo espaço geográfico que eles.

Até por ocasião da independência de Moçambique constituíam marcadores identitários dos


Makonde as tatuagens, a escarificações, a mutilação dentária, o uso da indona (botoque), o
Shimakonde, os ritos de iniciação e o mapiko, tendo estes dois últimos sobrevivido aos tempos e
às mudanças sociopolíticas. Segundo Israel (2014: 151), a proibição de fazer escarificações, afiar
os dentes e todas outras marcas que inscrevessem a identidade Makonde no corpo foi imposta num
conselho político realizado no povoado de Litapata, em 1970. A medida pretendia minar o
tribalismo em sua manifestação mais evidente, mas também proteger o jovem Makonde que saía
dos ritos de iniciação da contrainsurgência portuguesa que os podia ver como terroristas em
potencial. O abandono das escarificações e do afiar de dentes marcou uma ruptura que separou
perceptivamente as gerações antigas, nascidas durante o colonialismo, daquelas que deveriam
crescer no país libertado. Também sinalizou uma atenção renovada da intelligentsia da Frelimo
para questões relativas à cultura.

Argumento que os marcadores identitários que os Makonde utilizam para se auto-identificarem


e se diferenciarem das pessoas de outros grupos etnolinguísticos na PSK são os ritos de iniciação77,

77 Abordo com maior detalhe os ritos femininos (ing’oma), aos quais tive acesso do que os masculinos likumbi. Os
dados sobre os ritos masculinos que apresento neste capítulo provêm em larga medida da revisão da literatura e de
uma breve observação que fiz do momento de reagregação dos rapazes, porque numa das vezes coincidiu com a das
meninas. A minha condição de mulher me impede de presenciar os ritos masculinos. Há uma segregação de espaços
e competição entre homens e mulheres entre os Makonde. Para se ter uma ideia, se uma mulher passa pelo local onde
os rapazes estão a ser iniciados, corre o risco de ser estuprada. Aliás, há anos atrás foi reportado pela imprensa
moçambicana um caso de estupro colectivo de uma senhora em Pemba que passou pela zona onde os rapazes estavam
a ser iniciados. Mesmo nos ritos femininos, apenas tive acesso à fase de separação e reagregação das meninas. Não
pude assistir à fase liminar, porque não passei pelos ritos de iniciação e como tal, não me é permitido estar presente
nesse momento e aceder ao que lá acontece, porque sou considerada namaako (não iniciada), ainda que tenha passado
por certos ritos da minha cultura e demais ritos da vida.

89

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

o mapiko 78 e o Shimakonde 79 . Esses marcadores constituem o garante da continuidade da


identidade Makonde em meio a diversidade cultural que os circunda. Igualmente argumento que
tais marcadores têm resistido ao tempo por um lado por causa da sua capacidade de adaptabilidade
e maleabilidade, mas por outro por conta dos significados de que se revestem para os meus
interlocutores. A linha teórica que sigo neste capítulo leva em consideração não apenas o que as
pessoas dizem que as diferencia dos indivíduos dos outros grupos etnolinguísticos, assim como as
diferenças intra-grupais. Também abordo os aspectos semelhantes no seio do seu grupo e aqueles
que se assemelham com os outros grupos.

Os ritos de iniciação como marcador identitário Makonde na PSK

Os ritos de iniciação inserem-se nos ritos de passagem. De acordo com Van Gennep (1978),
ritos de passagem são cerimónias que propiciam a passagem de uma pessoa para uma nova forma
de vida ou um novo estatuto social e compreendem 3 fases: separação, liminaridade e
reagregação. Peirano (2002:8) defende que uma definição de ritual não deve ser rígida e absoluta.
Ela precisa ser etnográfica, isto é, apreendida pelo pesquisador em campo junto ao grupo que ele
observa. Esta postura deriva da noção de que a antropologia sempre deu (ou teve como intenção
dar) razão e voz aos nativos, levando em consideração a perspectiva de um !outro” diferente de
grupos que não pensa e age como nós. Nesta tese emprego o termo ritos de iniciação no sentido
que Peirano o utiliza, ou seja, olho para os ritos de iniciação como resultado de uma definição
etnográfica, no sentido que os termos, nomenclaturas e toda a descrição do cerimonial foram
feitas a partir da minha interlocução em campo, seja por meio de entrevistas, conversas informais
ou observação. É com os meus interlocutores que aprendi o significado das palavras, dos
momentos e das hierarquias que compõem o cerimonial dos ritos de iniciação na PSK.

Segundo Dias (1970: 160), os ritos da puberdade não são só os mais importantes, mas
representam a instituição central do povo maconde à volta da qual tudo gravita. Na mesma linha
de Dias, Israel (2006: 110), afirma que os ritos de iniciação são a instituição cultural mais poderosa
e através da qual se define pertença, afiliação e integridade do indivíduo entre os Makonde. O

78 Dança emblemática dos Makonde.


79 Língua vernacular dos Makonde.

90

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

período de segregação por que passam rapazes e raparigas durante as cerimónias de iniciação
destina-se à aprendizagem de um sem número de tradições culturais relativas a cada sexo. É um
período de instrução e educação sistemáticas que serve de complemento àquilo que as crianças
tinham aprendido até então pela observação, imitação e brincadeira (Dias, 1970: 162). Na PSK, os
ritos também desempenham a mesma função que as referidas nos dois parágrafos acima. Durante
o meu trabalho de campo notei que as minhas conversas com os Makonde na PSK não terminavam
sem que fizessem menção à prática como mecanismo de integração e afirmação do ser Makonde.

Os ritos de iniciação são a nossa marca e quando estes ocorrem é quando os Makonde se reúnem ou se
encontram mais (entrevista com Alice, 2018).

Os ritos de iniciação constituem a base fundamental da integração dos meninos ou crianças na sociedade.
Sem isso, elas não ficam integradas. Durante os ritos de iniciação, as comunidades Makonde se ajudam. Por
isso não marcamos a entrada nos ritos na mesma data em todos os locais onde vivem Makonde. Isso permite
nos ajudarmos a cozinhar, dançar e preparar a festa. Apesar de estarmos em locais diferentes, estamos sempre
juntos. Estamos a valorizar a nossa tradição, valorizamos muito, é por isso que não acaba (entrevista com

Alberto, 2018).

Quando os meninos e as meninas saem dos ritos já são considerados Makonde de verdade, porque já
aprenderam a tradição. Sempre onde vamos mantemos a tradição (entrevista com Julieta, 2018).

Ritos são como tradição da terra de origem e não se pode quebrar. Se alguém recusar ir aos ritos é isolado
(entrevista com João, 2018).

Onde existe Makonde sempre devem estar associados os ritos de iniciação, porque eles defendem uma teoria
e dizem o seguinte: !se uma criança não é iniciada, essa criança não está em condições de enfrentar a
sociedade. Então, só estará em condições de enfrentar a sociedade se ela passar ou entrar nos ritos de
iniciação”. Os ritos de iniciação é que são fundamentais hoje em dia para definir o que é um Makonde, por
isso diferencia-se dos outros grupos etnolinguísticos não em termos de tribalismo, mas em termos da cultura
dos outros povos que vivem em Moçambique, que praticam esses ritos e que têm essas práticas (entrevista

com Samuel, Maputo, 2014).

Como se pode depreender através dos excertos acima, para os Makonde baseados na PSK
existe uma centralidade dos ritos de iniciação na definição de quem é e não é Makonde. Para eles,

91

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

não basta ter nascido de pais Makonde para ser considerado um. Para ser considerado Makonde, é
preciso passar pelos ritos de iniciação, porque é lá onde se aprende a ser e a se comportar como
um Makonde. Essa constatação me remete para a noção de caráter performativo da identidade.
Para Lepri (2003), o caráter performativo da identidade tem a ver com aprender a fazer as coisas
como os nossos interlocutores em campo consideram importante e o fazem. Nesse sentido, só é
efectivamente considerado Makonde aquele ou aquela que for iniciado ou iniciada e no pós-
iniciação se comportar de acordo com os ensinamentos que recebeu. É através dos ritos que se
aprende a tradição, mitos e outros saberes ligados ao ser Makonde. Ou seja, os mistérios, os mitos
e todos outros conhecimentos secretos apenas são herdados depois de a pessoa passar por um
conjunto de provações e aprender a se comportar como Makonde.

Durante a minha investigação procurei explorar o que é que aconteceria com alguém que
mesmo indo aos ritos de iniciação, não mostrasse ter sido iniciado, através do seu comportamento
pós ritos. Os meus interlocutores referiram que quando ocorrem casos em que a iniciada se
comporta à margem do esperado, são accionados alguns mecanismos para fazer com que
finalmente a pessoa com comportamento desviante aja tal e qual se espera.

Em primeiro lugar é a mãe que chama atenção ao seu filho. Depois chama a madrinha ou padrinho e informa
que a criança está a comportar-se mal. A madrinha ou o padrinho chama a criança e diz: !nós já te chamamos
hoje. Não queremos te chamar mais para falar sobre este assunto”. Se não mudar de comportamento depois
de ter sido chamado (a) pelo padrinho ou madrinha, os rapazes ou meninas com quem foi iniciado (a) é que
aconselham. Se continuar com o mesmo comportamento, quando houver ritos de iniciação é novamente
iniciado, todos os responsáveis lá já sabem que é desobediente e prestam mais atenção nela ou nele. O que
será feito não será brincadeira (entrevista com Paula, 2018).

Os ritos constituem sofrimento para os meninos e meninas, por causa do que acontece. Ali há sofrimento. É
como se não fosse uma pessoa. É uma escola da vida. Se a criança é indisciplinada, quando sai dos ritos, vai
mudar. Ensinam a saber lidar com toda a gente, como cumprimentar, como respeitar, etc... Depois de saírem
dos ritos, observamos o comportamento das crianças. Se continuarem a comportar-se mal, vão ficar a cargo
das madrinhas num rito privado até acertar (entrevista com Julieta, PSK, 2018).

O relato de Paula levanta uma questão acerca do que é considerado mau comportamento.
Num outro momento ela me falou que nos ritos (femininos) ensinam questões relacionadas à

92

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

gestão da menstruação, respeito aos mais velhos e não só, ainda que estes não sejam da sua família,
cuidados com a higiene no geral, a realização das tarefas caseiras e não entrar no quarto dos pais
sem permissão. Caso a rapariga não se comporte de acordo com esse padrão, é rotulada como
malcomportada, pois como sustenta Lopes (2011) que realizou um estudo junto dos Makonde na
Zona Militar, não há como uma rapariga ser bem-educada entre os Makonde sem ter passado pelo
ing"oma (ritos femininos), porque é lá onde são ensinadas todas as regras que enunciei. Como se

pode notar nos relatos acima se espera que as meninas por um lado não se recusem a ir aos ritos,
mas por outro que uma vez tendo ido, se comportem de acordo com o que aprenderam. Caso não
o façam, são sujeitos a várias sevícias que variam desde uma conversa, advertência, reiniciação e
castigos. Todo esse enredo visa introduzir os meninos e meninas na ideologia de grupo e garantir
a perpetuação da (re) criação da identidade grupal.

Apesar de Julieta reconhecer que os ritos constituem sofrimento para as crianças, outra
interlocutora desdramatizou afirmando o seguinte:

Aquilo ali é para assustar, principalmente aos rapazes. Quando saem para o mato, os responsáveis dos ritos
pegam varras. Você como mãe ou pai pode pensar que estão a bater a tua filha, mas aquilo é uma simulação
para dar peso ao momento (entrevista com Leonor, 2020).

Tal como refere Leonor em seu relato é criado todo um enredo para dar peso ao momento dos
ritos e assustar as iniciandas para que levem à sério o momento e o temam, pois, de outro modo, o
cerimonial de iniciação seria encarado como algo banal. Apesar disso, alguns estudos recentes
sobre os ritos de iniciação em Moçambique, incluindo sobre os Makonde (Cfr. Osório &
Macuácua, 2013), têm denunciado aquilo que consideram como flagrantes violações dos Direitos
Humanos das crianças. Esses dois pontos de vista mostram diferentes cosmovisões, pois uma, a
dos defensores e praticantes dos ritos olham para as punições e agressões como meios de educação,
de integração dos noviços na sociedade, ou ainda como um conjunto de provas a que estes têm que
passar e ser aprovados. Por seu turno, os defensores dos direitos humanos afirmam que as crianças
que são submetidas aos ritos são violentadas e privadas do seu poder de escolha de participar ou
não da cerimónia iniciática.

93

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

A realização dos Ritos de Iniciação femininos (ing’oma) na PSK

Na PSK, os ritos de iniciação têm sido realizados entre os meses de dezembro e janeiro. Antes,
os mesmos eram realizados entre setembro e dezembro, comprometendo a assiduidade das crianças
à escola. O período de realização actual dos ritos coincide com as férias escolares, pois,
normalmente, em dezembro terminam as aulas e as crianças entram de férias. De acordo com
Bagnol (2013: 148), desde metade dos anos 1990, os ritos são realizados entre dezembro e janeiro
durante a época quente e chuvosa, assim como de férias escolares. Segundo Dias & Dias (1970),
os ritos eram realizados na estação seca. Foram movidos a época chuvosa após à independência
para haver uma harmonização com o calendário escolar.

Relativamente ao reajuste da duração dos ritos um dos meus interlocutores referiu o seguinte:

Antes de terminar a escola e se ter a certeza que se cumpriu com todas as atividades letivas não se recebe
nenhuma criança nos ritos de iniciação. É preciso mesmo considerar o estudo, cumprir na parte da escola,
depois é que podemos cumprir as nossas tradições (entrevista com Alberto, 2017).

O ajustamento da duração dos ritos às férias escolares deve-se a dinâmicas resultantes da


transformação social de alguns valores, na medida em que há um esforço de preservar a realização
frequente dos ritos de iniciação, sem prejudicar os estudos das crianças, mas também resulta dos
apelos que o governo tem estado a fazer no sentido de garantir que não haja desistência escolar.
Esse esforço mostra que os ritos de iniciação não constituem uma entidade estática, inalterável e
isolada. Ela vem acompanhando a dinâmica sociocultural e política do país, pois de acordo com
Bagnol (2013: 144) !há uma inter-relação dinâmica entre os ritos de iniciação e diversas esferas
do social: económica, religiosa, legal, política e cultural. Os rituais têm sido uma expressão dessas
interações, contradições e negociações”.

Por detrás da realização da cerimónia dos ritos de iniciação há toda uma estrutura
organizacional padronizada e que confere estatutos e papeis diferenciados aos diversos elementos
que a compõem. O primeiro passo para a materialização dos ritos de iniciação é a realização de
reuniões preparatórias que começam normalmente em setembro, sendo realizada uma reunião em
cada mês. Os pais dos potenciais iniciandos reúnem-se com o chefe de cultura dos Makonde e

94

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

manifestam a sua intenção. A pessoa que deseja ver o seu filho/a iniciado/a assina o seu nome
numa lista manifestando o seu desejo. Depois disso, quatro pais que desejam ter os seus
filhos/filhas iniciados, vão reunir com os vanalombo80 (pl. nalombo) para saber que valor eles
cobrarão pelo seu trabalho. Na PSK, a prática indica que os vanalombo têm cobrado 80081 meticais
por cada criança. No entanto, os pais podem negociar um desconto até 50082 meticais por criança
(sobretudo para quem tiver mais crianças por iniciar). Uma vez acordado o valor pelo trabalho dos
vanalombo, os representantes dos pais voltam para junto dos seus pares e explicam que acordo
alcançaram junto dos mestres de iniciação. Após isso, os pais reportam todo o processo de
conversação assim como os consensos ao chefe de cultura. Outro aspecto importante na PSK no
que toca à preparação dos ritos de iniciação é saber em que local é que os mesmos ocorrerão. Em
certa medida o que determina onde serão realizados os ritos de iniciação é o facto de existirem
crianças a serem iniciadas numa certa casa. Caso haja duas casas que tenham crianças por iniciar
tem que se chegar a um acordo, pois a cerimónia não pode estar a ser realizada em simultâneo em
dois locais na mesma comunidade, porque implica união, solidariedade e esforço conjunto para o
sucesso da iniciação das crianças, pois normalmente são as mesmas pessoas que trabalham para o
sucesso da cerimónia. Essa colaboração não se refere apenas aos Makonde na PSK. Também existe
uma coordenação entre os líderes Makonde da PSK, Zona Militar e Maragra para impedir que
coincidam na data de entrada nos ritos pelo mesmo motivo que se evita ter duas casas em que as
meninas são iniciadas na PSK. O acto de ajudar e de ser ajudado durante os ritos de iniciação pode
ser visto à luz da ideia de reciprocidade de Mauss (2003) que consiste basicamente em dar, receber
e retribuir, ou seja, quando a criança de certa pessoa entra para os ritos, as outras pessoas ajudam
na organização da cerimónia e em tudo que é necessário para que esta corra bem. Quando chega o
momento de serem iniciados os filhos da pessoa que ajudou a primeira, esta primeira também deve
retribuir a ajuda e, assim se instala !um ciclo vicioso”.

Os ritos de iniciação compreendem uma série de papéis, deveres, obrigações e interdições.


Os pais por exemplo, devem comprar comida que alimente as iniciandas durante todo o período

80
Palavra que em Shimakonde significa mestre de iniciação. O mesmo termo é utilizado para os mestres de sexo
feminino e do sexo masculino.
81 Cerca de 10,55 euros.
82 Cerca de 6,59 euros.

95

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

em que estiverem nos ritos, as kangas (capulanas) que serão utilizadas durante os ritos, assim como
a roupa que elas deverão vestir no dia da saída dos ritos e apresentação das !novas Makonde” à
sua sociedade. Cada família deve enviar uma bacia de comida por dia para o local de iniciação83,
à razão de 3 refeições por dia (1 para o matabicho84; 1 para a o almoço e 1 para o jantar), durante
30 dias. Essas refeições não são apenas para a sua mwali 85(pl. vali), mas para partilhar com todas
as vali. Elas partilham a comida, pois como a literatura antropológica avança, o momento da
iniciação fortalece os laços entre as iniciandas e reforça o sentido de communitas86. Turner (1969)
afirma que o estado de communitas apenas se verifica durante a fase liminar. Os meus dados sobre
o processo de preparação dos ritos na PSK sugerem que a communitas não ocorre apenas na fase
liminar. Na PSK ocorre uma communitas prévia quando os pais dos vali independentemente do
seu nível de escolaridade e de estatuto financeiro juntos procuram organizar a cerimónia de ritos
de iniciação. No meu entender, este aspecto mostra que os ritos variam muito de contexto para
contexto, daí a relevância de defini-los etnograficamente, pois, como assinala Bagnol (2013), o
andamento dos ritos de iniciação é determinado pelo mestre de iniciação e que alguns são mais
abertos às mudanças do que os outros.

Para além dos deveres acima descritos, os pais das vali não devem ter relações sexuais durante
o período de iniciação das suas filhas, sob pena de elas adoecerem ou o processo correr mal. Caso
tenham tido relações sexuais durante o período de interdição, tal atitude poderá ser revelada a todos
no dia de saída da filha dos ritos de iniciação (mais adiante quando falar da cerimónia de saída das
vali dos ritos elaborarei um pouco mais esta questão). Igualmente, cada família deve prover um
subsídio para a nalombo por transmitir os midimu (pl. ndimu, que são conhecimentos secretos) às
suas filhas, comprar a roupa que a mwali deve vestir no dia da saída dos ritos, roupa para a

83 As meninas são submetidas à fase liminar na casa da família que se prontifica a acolhê-las durante o período da
iniciação ou na casa que reunir consenso para o efeito no interior do bairro. Os rapazes passam a fase liminar numa
casa onde ninguém reside à entrada do bairro e que se aproxima da ideia de mato, onde normalmente os rapazes são
iniciados em Cabo Delgado. A necessidade de iniciar os rapazes num local parecido com o mato se prende com o
facto de eles serem submetidos a provas em ambiente considerado hostil, onde devem demonstrar a sua bravura.
84 Designação atribuída ao pequeno-almoço em Moçambique.
85
Menino ou menina que passa por vários ritos de passagem, frequentemente ligados ao crescimento sexual e onde
são divulgados os segredos de género relativos às máscaras e à iniciação (Israel, 2006: 110).
86
De acordo com Turner (1969: 96), communitas designa uma modalidade de relacionamento social de uma área de
vida comum. Ou seja, as vali independentemente de terem tido prestígio antes da entrada para os ritos de iniciação,
quando o fazem estão todos em igualdade de circunstâncias.

96

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

madrinha, para a mãe cuidadora e pagar a elas. O valor de pagamento é variável porque é
combinado entre as partes. Outra interveniente no ing"oma são as madrinhas. Para ser madrinha é
imperioso ter sido iniciada e só depois de dois anos é que pode ser madrinha de uma mwali.
Também tem que ser uma pessoa adulta e responsável, independentemente do seu estado civil. A
madrinha tem a missão de cuidar da mwali durante os 30 dias da iniciação. Cabe a ela velar pela
mwali caso adoeça. Por exemplo, se uma mwali tiver uma dor de cabeça, cabe à sua madrinha
medicá-la através de um paracetamol ou qualquer outro analgésico. Caso a dor de cabeça continue
e se agrave o seu estado de saúde, a madrinha deve pedir a nalombo que utilize o seu conhecimento
tradicional para restituir a sua saúde. A madrinha também deve velar pelo comportamento da
afilhada, dar banho, lavar a roupa e levar comida no dia da saída dos ritos. Também tendo
condições, deve comprar roupa que a mwali vestirá no dia da saída e um presente. À semelhança
dos pais biológicos, a madrinha também deve se abster de relações sexuais durante o período de
iniciação. Para além dos aspectos enumerados no parágrafo anterior, ser madrinha não é encarado
como algo fácil, pois significa também consentir sacrifícios, tal como abaixo transcrevo:

Para ser madrinha é preciso reconhecerem que tens bom comportamento, mas também que conseguirás fazer
alguns sacrifícios como acordar todos os dias as 3 horas da manhã para preparar mussiro87 e aplicar na pele
da tua afilhada. O mussiro serve para clarear a pele e para a deixar bonita. Também deves dar banho todos
os sábados durante o mês da iniciação (entrevista com Quitéria, 2020).

Como se pode depreender no relato de Quitéria, uma madrinha deve ter uma conduta exemplar,
pois é ela quem aconselhará a mwali para o resto da vida e será sua madrinha para sempre,
incluindo de casamento. Outra importância da escolha rigorosa da madrinha tem a ver com a
necessidade de ela garantir que a mwali mude de comportamento depois de ter sido iniciada e, tal
mudança deve ser observável para todos, pois, em caso de continuidade do comportamento prévio
ela é quem deverá conversar com a menina para mudar de comportamento e poderá cair em
descrédito por ter falhado ensinar, monitorar e vigiar o comportamento da afilhada.

87
O mussiro é uma planta medicinal usada há séculos para combater as manchas da pele. Há quem use o seu extrato
vegetal para se maquilhar em datas festivas, mas para muitas moçambicanas este é também um segredo de beleza
(https://www.dw.com/pt-002/mussiro-a-planta-que-%C3%A9-o-segredo-de-beleza-de-muitas-
mo%C3%A7ambicanas/g-43300110). Acesso a 28 de Agosto de 2020.

97

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

A família e a madrinha devem estar atentas para ver se a criança mudou de comportamento ou não. Se não
mudou, a família chama a madrinha. Se esta estiver longe, a família informa que a sua afilhada não está a se
comportar bem. A madrinha vem e conversa com ela. Caso a menina não mude, entra de novo nos ritos, mas
entra na sexta-feira que o grupo escalado para os ritos está a entrar. Ela não pode ficar muito tempo nos ritos,
porque já entrou (entrevista com Natércia, 2020).

A fala de Natércia remete para dois aspectos que considero ligados ao controlo social exercido
sob as vali. O primeiro aspecto tem a ver com o facto de mesmo depois de terem cumprido todas
as etapas do ritual e todas as provas a ele adstritas terem o seu comportamento monitorado. O
segundo tem a ver com a necessidade de impedir um contacto duradouro entre a rapariga já iniciada
e que se comporta mal com as noviças, pois, como já conhece todos os mistérios da iniciação e
não conformou o seu comportamento aos mesmos pode influenciá-las negativamente. Pese embora
haja controlo e expectativa na padronização comportamental das raparigas após os ritos, durante o
trabalho de campo soube do caso de uma menina que, mesmo tendo sido iniciada, se comportou
de modo contrário ao que se esperava dela:

Houve uma moça que entrou nos ritos e quando saiu logo ficou grávida. Ela foi levada aos ritos de novo, mas
ficou apenas uma semana. Depois de ter tido bebé foi submetida de novo nos ritos e teve que casar com o
rapaz que a engravidou. Ele não é Makonde, por isso não foi aos ritos. Os pais dela chamaram o rapaz e
conversaram com ele (entrevista com Laura, 2020).

Outra figura importante no ing"oma é a mãe cuidadora. Esta não é a mãe biológica, mas
alguém que tem funções específicas. Normalmente para ser mãe cuidadora, a visada gosta de uma
menina que está para ser iniciada e fala com a mãe desta. Caso cheguem a consenso, ela se torna
a mãe cuidadora. Esta mãe tem como tarefas: cortar cabelo a menina no dia que está para entrar
nos ritos (mais adiante falarei disto), uma vez a menina tendo se tornado mwali ensinar truques de
beleza e a ser mulher. Na sexta-feira que antecede a entrada para os ritos no sábado, as mães
cuidadoras e a madrinhas vão com as vali ao rio88. Diferentemente da madrinha, a mãe cuidadora
não precisa de ir à casa onde a mwali está a ser iniciada. Ela cuida da mwali durante três dias,

88 Não me foi possível apurar o que é que se faz no rio nessa sexta-feira, por eu ser namaako, tal como assinalou uma
das minhas interlocutoras quando questionei o que é que se fazia no rio: “mana isso já é outra coisa, rsrsrsrsrs...” E eu
perguntei, aquelas coisas que não posso saber? E ela disse que sim (entrevista com Teresa, PSK, 2020).

98

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

nomeadamente de sexta para sábado e de sábado para domingo (quando o ing"oma começa) e no
domingo da saída dos ritos. A mãe cuidadora, a madrinha e os pais da mwali devem comprar roupa
para ela vestir no dia da saída dos ritos. A proibição de relações sexuais também é extensiva à mãe
cuidadora. Quando terminam os ritos, as vali devem entregar toda a roupa que usaram durante o
ing"oma à mãe cuidadora. Ela deve lavá-la e guardar. O ato de ela guardar a roupa deriva de uma
analogia que se faz com o ritual praticado quando o umbigo da criança cai nalgumas sociedades
moçambicanas em que a mãe é que o guarda, pois se entende que ela é quem deve deter ou detém
o segredo da vida do filho.

A nalombo é uma da figura central dos ritos de iniciação entre os Makonde, pois ela é que
dirige os ritos e acredita-se que possua poderes ancestrais. Durante o meu trabalho de campo
questionei que requisitos são necessários para que alguém se torne nalombo.

Uma nalombo começa a ser preparada com 12 anos depois de ter sido iniciada. Numa casa em que existe uma
nalombo, pode escolher a filha a quem passar as patências para se preparar, mas não é obrigatório que ela aceite.
Ela explica tudo a pessoa que ela escolher. A escolhida tem que acompanhar a mãe onde quer que vá e observar
tudo o que esta faz. Depois de ver tudo o que quer ver, a mãe pergunta se ela quer se tornar nalombo. No dia-
a-dia, um ou uma nalombo é um curandeiro normal, mas quando chega o momento dos ritos de iniciação vira
nalombo. O ser nalombo não é só acordar e se tornar nalombo. Leva muito tempo. Implica alguns sacrifícios.
Por exemplo, tem que fazer uma oferenda aos seus espíritos, tem que chupar sangue. O chupar sangue significa
que podes estar com pessoas no carro e terem acidente, você sair morto e derramar sangue no chão, mas aquelas
pessoas saírem tal e qual entraram no carro, porque a vítima és tu. Depois disso, os espíritos recebem a oferenda
e ganhas poder como nalombo (entrevista com Alice, 2018).

Para além de mostrar que a nalombo é uma pessoa com bastante poder e prestígio, o discurso
de Alice também traz à tona uma noção importante, que é a de chupa sangue. Serra (1996) afirma
que nas comunidades rurais da província central da Zambézia, as pessoas acreditavam que, à noite,
seres estranhos penetravam nas palhotas e lhes “chupavam” o sangue com seringas, pela cabeça,
enquanto dormiam. Milhares de Zambezianos passaram, então, noites em claro, gritando, batendo
palmas, agitando panelas e outros utensílios para afugentar os anamawla (sugadores de sangue,
“vampiros" numa das línguas locais da Zambézia). Apesar de ter tido uma origem diferente, o sentido
em que os meus interlocutores empregam o termo chupar sangue não difere demasiado do original,

99

«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

porque alegam que para que alguém se torne nalombo é preciso que sugue o sangue e a energia de
outrem.

As vali, por seu turno, devem obediência e respeito à nalombo, madrinhas e mães cuidadoras,
que as acompanharão durante todo o processo. As meninas apenas são permitidas a sair do quarto
onde estão a ser iniciadas para o quintal da casa em que estão. Em casos de desobediência a essa
orientação, as !rebeldes” podem perder a razão, ou até mesmo saírem à rua e se perder. Durante o
trabalho de campo soube de dois casos de duas vali que desobedeceram a essa ordem. Uma delas
quando saiu, a capulana que amarrava em jeito de fralda caiu e foi encontrada sozinha, fora de si
e longe do lugar de iniciação. A sua madrinha a achou, amarrou-lhe a capulana novamente e a
levou de volta num estado de ausência mental. Teve que se realizar alguns rituais para que voltasse
a si. O outro caso é de uma mwali que também desobedeceu à ordem e perdeu a razão. Apesar de
múltiplos esforços no sentido de recuperar a sua razão esses se mostraram infrutíferos. Segundo o
que se diz, ela continua mentalmente perdida. Outros exemplos de resistência aos ritos prendem-
se com a recusa de certas raparigas de serem submetidas aos ritos. Apesar dessa recusa, o seu
esforço não resulta em nada, porque basta os seus pais anuírem que devem ser iniciadas elas
passam pelo processo. Algumas quando o seu cabelo é cortado procuram fugir, mas são agarradas
pela nalombo ou pelas madrinhas, pois os seus pais consentiram que elas fossem iniciadas.

As três fases dos Ritos de Iniciação femininos na PSK

Antes de descrever o que observei em campo nos ritos de iniciação, me parece pertinente
assinalar que a literatura antropológica sobre os ritos de iniciação não documenta todo o processo
de preparação existente em torno dos mesmos e confere demasiada atenção à fase liminar.
Considero que a preparação da cerimónia também faz parte dos ritos e que garante que os mesmos
aconteçam de modo contínuo, sequencial, rotineiro, padronizado e hierarquizado. No que concerne
à importância excessiva conferida à liminaridade na literatura antropológica, Da Matta (2000: 15)
questiona por que é que a fase de transição é a mais intrigante e que apresenta um simbolismo mais
rico nos ritos de passagem. O autor afirma que para Turner, Leach e Douglas, a liminaridade é
especial porque engendra uma ambiguidade classificatória. Tal ambiguidade classificatória
acarretaria um estado de !regressão” colectiva na qual os indivíduos perdem a sua consciência de
compartimentalização, autonomia e interioridade para se transformarem em matéria-prima a ser

100


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

moldada de acordo com certos valores sociais. O argumento central de Da Matta (2000: 23) é que
a liminaridade dos ritos de passagem está ligada à ambiguidade gerada pelo isolamento e pela
individualização dos noviços. É a experiência de estar fora-do-mundo que engendra e marca os
estados liminares, não o oposto. Em outras palavras, é a individualidade que engendra a
liminaridade. No fundo, os ritos de passagem tratam de transformar a individualidade em
complementaridade, isolamento em interdependência, e autonomia em imersão na rede de relações
que os ordálios, pelo contraste, estabelecem como um modelo de plenitude para a vida social.
Apesar da crítica que Da Matta (2000) e eu fazemos à exagerada enfâse que a literatura
antropológica confere à fase liminar, por uma questão de organização e compreensão dos dados,
descrevo o ritual na PSK, seguindo o esquema tripartido proposto por Arnold Van Gennep.
Apresento os factos que assisti durante algumas cerimónias de ritos de iniciação femininos,
nomeadamente a separação e a reagregação. No que concerne à fase liminar, apresento alguns
dados narrados pelas minhas interlocutoras, visto eu ser namaako e, por conseguinte, não ter
permissão para participar dessa fase.

Fase da separação

A separação das vali das suas famílias ocorre nas sextas-feiras e culmina com a entrada delas
na casa onde serão iniciadas no sábado por volta das 16 horas. Na sexta-feira, há muitas
performances artísticas e as pessoas ficam acordadas, porque é preciso que toda a aldeia saiba que
vai haver ritos de iniciação e que é uma celebração da !cultura Makonde”. Antes de as vali
entrarem para a fase liminar são levadas ao rio Umbelúzi89 por volta das 3 horas da manhã de
sábado trajando apenas uma capulana. Foram acompanhadas nesse processo pelas mães cuidadoras
e madrinhas. Depois disso, elas ficaram acordadas sensivelmente até as 14 horas, altura em que
foram postas sentadas e perfiladas na esteira trajando apenas uma capulana em forma de fralda,
que simboliza a sua condição de noviças, neófitas, ou de socioculturalmente crianças. Foram
estendidas algumas esteiras onde elas se sentaram. Apenas trajavam uma capulana amarrada em

89
É uma bacia internacional e possui uma área total de 5460Km2, dos quais 3140Km2 (58%) na Swazilândia, 80Km2
(1%) na RSA e 2240Km2 (41%) em Moçambique. http://www.ara-sul.gov.mz/unidade-de-gestao-da-bacia-do-
umbeluzi-ugbu/. Acesso a 15 de setembro de 2020.

101


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

jeito de fralda, sem blusa ou algo que tapasse os seios. As mães cuidadoras estavam de pé, cada
uma atrás da sua filha e mostravam a melhor forma de elas se sentarem e onde. Uma multidão
composta por Makonde da PSK e de outros lugares da província de Maputo, assim como por
pessoas de fora do bairro estava ávida para assistir ao corte de cabelo e apresentação das raparigas
se empurrava ferozmente para tentar estar na linha da frente para visualizar o momento. Uma das
pessoas que tentava estar numa posição privilegiada para observar ao momento era eu. Felizmente,
um senhor que ajudava a organizar os espectadores, me indicou um lugar na linha da frente. Não
sei !se gozei de tal privilégio” por se saber que eu era investigadora ou por qualquer outro motivo.
O que me chamou muita atenção foi crianças empurrarem gente adulta para assistir a tudo. Quando
notaram que estavam a ser repelidas e preteridas para assistir, usaram de alguns estratagemas,
como por exemplo ficar de cócoras ou mesmo deitados e espreitar por entre os espaços que os
corpos das pessoas que estavam na linha da frente deixavam. Depois de se garantir que as vali
estavam devidamente alinhadas, as mães cuidadoras mobilizaram lâminas e máquinas de barbear
para rapar o seu cabelo. Antes de rapar o cabelo, foi trazida ao local uma bacia que continha uma
água e mitela90 (pl. ntela). De acordo com a Joana, rapariga Makonde que me acompanhava e ia
explicando algumas coisas, as mitela que são colocadas no cabelo e no peito das meninas têm uma
função purificadora e protetora. Apenas depois de se jogar sob elas as mitela é que o cabelo foi
devidamente rapado. Observei que alguns homens também participavam do corte de cabelo das
vali. Perguntei quem eram homens a rapar o cabelo das meninas, já que anteriormente me disseram
que eles não têm qualquer papel nos ritos das mulheres e vice-versa e me responderam que aqueles
são os pais das vali e como tal, podiam participar do seu corte de cabelo. Tal acto é encarado como
satisfação e anuência pelo facto de as suas filhas estarem a ser iniciadas. Para além de satisfação e
anuência à participação das filhas nos ritos, Cossa (2014: 77) afirma que, entre os Makonde, o acto
de rapar o cabelo se configura, primeiro, como um acto de renúncia simbólica da tutela, do cuidado
e suporte da inicianda pelos seus pais. Num segundo momento, trata-se de uma resposta ao apelo
dos mestres e matronas para que os pais das iniciandas/iniciandos compareçam à primeira prova
iniciática que comprova o compromisso da família com os fazedores dos ritos. Depois de as vali
serem colocadas a água e mitela para a purificação foram levadas à casa de banho para serem
lavadas. Por aquilo que observei, não precisavam esperar umas pelas outras. À medida que iam

90
Substâncias mágico-religiosas.

102


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

sendo aspergidas água e mitela, cada uma era levada à casa de banho para ser lavada pela sua mãe
cuidadora. Depois de serem lavadas, foram untadas umas substâncias. De seguida, foram levadas
num cortejo pelas ruas da aldeia, acompanhadas por uma multidão91, incluindo os seus pais e
madrinhas. Num primeiro momento caminharam e depois correram entoando certos cânticos.
Quando regressaram desse cortejo, foram confinadas por um mês na casa onde os ritos iam ocorrer
e aprenderam os ensinamentos da tradição Makonde e onde foram apenas vistas pelas suas
madrinhas e pela nalombo, até ao dia em que foram levadas ao nkamango 92. Tal como referi
anteriormente neste capítulo não tenho dados sobre o que se faz em concreto e se ensina no
nkamango, porque sou namaako.

91
Makonde e pessoas de outros grupos etnolinguísticos assistem à fase pré-liminar.
92 Fim da iniciação feminina que acontece num sábado. As mulheres mais velhas e saem com as raparigas iniciandas
e vão exibir as danças das mulheres com a máscara feminina e um falo de barro (Dias & Dias, 1970; Roseiro, 2013:
85).

103


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 10. Vali posicionadas pelos organizadores dos ritos para o corte de cabelo- foto da autora, PSK, 2016.

104


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 11. Mitela colocada no cabelo das vali para a sua purificação e posterior corte de cabelo na fase pré-liminar
dos ritos de iniciação- foto da autora, PSK, 2016.

105


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 12. Autora presenciando o corte de cabelo das vali- foto de Sara, PSK, 2016.

106


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 13. Vali caminhando pelo bairro após o corte de cabelo- foto da autora, PSK, 2016.

107


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 14. Multidão acompanhando a procissão das vali pelo bairro após ao corte de cabelo-foto da autora, PSK,
2016.

108


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 15. Autora acompanhando a dança de jovens Makonde pelo bairro na fase pré-ritual-foto de Tomás, PSK, 2016.

Fase liminar

Normalmente, as vali entram para a fase liminar no sábado. Durante esse dia houve muita
movimentação das famílias, das mães cuidadoras e das madrinhas das vali. Durante este período
algumas precauções são tomadas com elas. Por exemplo, no que concerne à alimentação, as
famílias é que cozinham e levam a comida para as filhas. Quanto aos rapazes se deve procurar um
homem que cozinhe para eles. A diferença de quem cozinha para os vali e para as vali me foi
explicada nos seguintes termos:

Para os rapazes não se aceita comida de casa, porque por exemplo, se alguém não gosta do meu filho lá pode
trazer comida enquanto colocou algo para lhe fazer mal. Se um rapaz passar mal por causa da comida não se
saberá a sua origem, porque os rapazes diferentemente das meninas despejam e comem na mesma bacia.
Você pode trazer arroz e caril, vão pegar e despejar na mesma bacia para todos comerem juntos, enquanto

109


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

que as meninas, apesar de serem ensinadas a partilhar a comida, cada uma come no seu recipiente
(entrevista com Alice, 2018).

Tal como indica a literatura antropológica (Cfr. Turner, 1969), as vali estão num estado de
vulnerabilidade, por isso são oficiados alguns rituais para as proteger de mau olhado, inveja e de
pessoas mal-intencionadas. A nalombo é que realiza esses rituais de purificação ou proteção. Uma
das minhas interlocutoras referiu o seguinte acerca do assunto:

A pessoa que faz essa cerimónia de proteção das crianças é a nalombo. Se por acaso levares tuas coisas para
a criança passar mal, ela vai detetar. Por exemplo, aquela água com remédios que colocam na cabeça quando
está para se entrar para os ritos serve para tirar todo o mal e a nalombo sabe o que é que faz com a pessoa
que queria prejudicar a criança e o mal volta para ela. Por exemplo, quando entrei para os ritos havia um
nalombo que já faleceu. Ele fez um remédio para nós em jeito de pulseira. Usando essa pulseira quando você
quer ir para fora de noite, havendo um perigo, não sentes vontade de ir. Normalmente, de noite, nos levam
para o quintal. Se houver algo mau, não iremos sentar ali (entrevista com Rosa, 2018).

Apesar de ser considerada pelos Makonde namaako, num dos ing"oma tive a oportunidade de
ver as vali na casa onde estavam confinadas93. Fui à casa em que as vali estavam a ser iniciadas
com a Joana, que era madrinha de uma das meninas. Eram seis meninas com idades compreendidas
entre 11 a 13 anos94, a julgar pela minha observação. A nalombo e as madrinhas estavam sentadas
lá fora a conversar. A Joana e eu nos juntamos a elas quando chegamos. Passado um tempo, ela
disse que podíamos entrar para que eu visse as meninas. Entramos no quarto em que as meninas
estavam !segregadas” e a Joana foi fazendo questões a elas sobre os seus pais e proveniência. De
certa forma, ela as colocou à prova questionando se elas sabiam o que lhes esperava e mostraram
que não tinham noção do que estava prestes a acontecer, começando pelo facto de que teriam que
cortar o cabelo por si mesmas. Caso não o fizessem, as mães cuidadoras o fariam com recurso a
uma garrafa e poderiam ficar com feridas na cabeça. Uma das meninas me chamou atenção, porque

93 Normalmente apenas as vanalombo, as madrinhas e as mães cuidadoras é que têm livre trânsito ao local da iniciação
feminina.
94
A idade com que as meninas são iniciadas tende a reduzir, pois, a menarca tem estado a aparecer mais cedo. Algumas
meninas começam a menstruar aos 8,9, ou 10 anos o que constitui preocupação para as organizadoras dos ritos de
iniciação, na medida em que temem que estas entrem para a iniciação enquanto já têm alguns conhecimentos sobre
como gerir o ciclo menstrual, o que as vezes pode gerar contradicções entre o que são ensinadas fora e dentro do
espaço ritual.

110


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

notei em seu olhar inconformismo e desconhecimento do que se ia passar, tanto é que quando foi
anunciado que lhe seriam cortadas as suas longas meixas, ela ficou abalada e visivelmente
revoltada. A Joana perguntou de que bairro ela era e a mwali disse que de um dos bairros da cidade
de Maputo. A Joana questionou por que é que a levaram para tão longe quando mesmo na cidade
de Maputo ela poderia ser iniciada pela comunidade Makonde residente no ex-bairro militar?
Respondendo, a mwali disse que não sabia. Em jeito de comentário, a Joana disse que ela devia
ser mesmo rebelde a ponto de os pais a levarem a PSK para ser iniciada, porque lá há fama de
muito rigor e disciplina no processo de iniciação. Esse tratamento que a Joana deu às vali, realça,
na minha perspetiva o que a teoria antropológica afirma, quando Turner e outros autores como
Rapport & Overing (2003) afirmam que: !a liminaridade tem a ver com a não identidade
sociocultural. Nesse período fica-se invisível e são tratados como impuros, desordeiros e fonte de
perigo para os demais, por isso não podem estar em contacto permanente com eles. A sua vida fica
em posse daqueles que já estão puros e que podem reintegrá-los de modo puro à vida social,
enquanto eles já têm uma identidade”. Olhando para o caso da menina que a Joana provocou, nota-
se que ela apesar de não ter verbalizado, não estava satisfeita com o que estava a acontecer, o que
mostra que as vali têm as suas próprias visões sobre os assuntos. Relativamente ao sentimento e
experiência dos iniciandos ao que lhes é feito durante a iniciação, Cohen (1994: 57-58) propõe
uma leitura alternativa dos ritos de iniciação, uma vez que a literatura sobre o assunto avança que
a sociedade se reproduz e se impõe aos indivíduos através dos mesmos. Segundo o autor, tem que
se olhar para a iniciação como algo que confere experiência social que aumenta, em vez de
diminuir. Este autor questiona se a iniciação transforma os indivíduos numa réplica do sistema
social ou fornece aos iniciados um texto que eles assimilam e assim transformam em sua própria
experiência.

O argumento que Cohen é reconhecer que os indivíduos têm consciência da sua diferença,
das suas identidades distintivas, mesmo se essas são mascaradas pelas etiquetas sociais de
estereótipo, ortodoxia, categoria ou identidade colectivamente impostas. Os ensinamentos são
passados com violência e força, mas mesmo assim ainda é necessário procurar a experiência
individual, talvez mais quanto mais traumático for o modo de entrega. Partindo desta ideia penso
que em Moçambique na actualidade os rapazes e raparigas que são iniciados têm as suas próprias
ideias sobre o que lhes acontece na iniciação. Por exemplo, num estudo sobre os ritos de iniciação

111


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

com alguns grupos etnolinguísticos moçambicanos, incluindo os Makonde, Osório & Macuácua
(2013: 204) mostram que alguns adolescentes submetidos aos ritos têm as suas próprias opiniões
acerca do cerimonial. Alguns deles não colocam em causa a permanência da prática porque
afirmam ser a sua cultura, mas consideram que têm que ser feitos de outro modo e sem recurso à
violência. Essa constatação de Osório & Macuácua me parece importante na medida em que
desafia o pressuposto de que pela iniciação, o comportamento dos indivíduos deve ser/estar
padronizado e conformado à estrutura social, como se eles não tivessem pensamentos, sentimentos
e opiniões acerca da realidade que os circunda. Igualmente, numa pesquisa em que participei sobre
os ritos de iniciação no distrito de Mogovolas (província nortenha de Nampula), as raparigas
referiram que não gostariam de se casar e ter filhos cedo, mas ter a oportunidade de estudar e ter
o seu próprio sustento (Cfr. Pedro et al., 2019). Os dados etnográficos da pesquisa de Osório &
Macuácua, de Bagnol e da minha própria pesquisa mostram que as meninas têm as suas próprias
aspirações e que a estrutura social que lhes é importa não lhes retira a auto-reflexividade e o
agenciamento. Bagnol (2013: 161) vai mais longe ao afirmar que os ritos de iniciação suscitam a
incorporação dos discursos dominantes e sua reprodução. Mas, de facto, os rituais de iniciação
também dão às mulheres de diferentes idades e status uma oportunidade de reflectir, transformar
e reproduzir formas de respeito e obediência, bem como contestações.

Fase de reagregação

A cerimónia de saída (ing"oma kujaluka) das vali ocorre num domingo. Nesse dia, os pais
devem levar as suas filhas para casa e retornar com elas ao local de iniciação para a cerimónia da
sua apresentação, já de banho tomado trajando roupa nova e encharcados de perfume. Antes da
apresentação pública, as vali ficam dentro da casa onde foram iniciadas e com os rostos
completamente cobertos (vide foto abaixo).

112


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 16. Vali à espera de serem apresentadas a multidão na qualidade de iniciadas-foto da autora, PSK, 2017.

As vali apenas são autorizadas a sair do interior da casa quando todas as outras já estão
prontas. À semelhança do que aconteceu no dia da separação, na reagregação as vali também são
perfiladas em pé na esteira, onde é colocado na face o óleo de rícino (maúta la dimbalika) e o seu
rosto é segurado. Caso o óleo não escorra em linha recta ou simétrica no rosto da mwali é sinal de
que os seus pais, madrinha ou mãe cuidadora cometeram uma transgressão: tiveram relações
sexuais durante o período em que a sua filha ou protegida esteve segregada, o que é estritamente
proibido e reprovável. Caso haja sinal de que um deles teve relações sexuais estes são mal vistos
e alvo de cânticos jocosos e de censura. Uma vez as meninas perfiladas, os pais animados,
orgulhosos e entoando cânticos em shimakonde carregam e levantam os filhos para que todas as
pessoas vejam que conseguiram ter o filho/filha iniciada, algo que é tido como de grande prestígio.
No processo de reagregação ou incorporação das vali no domingo, ocorre uma grande festa
recheada de cânticos e dança. Algumas das performances incluem a actuação dos vanalombo95 e
bailarinos de mapiko. Os batuques vão se preparando durante a manhã, ensaiando as coreografias
para os que vão dançando, reforçando a sua indumentária, se pintando, preparando e aquecendo
os batuques.

95
Essas performances são feitas pelos bailarinos que acompanham os vanalombo e não pelos mestres de iniciação.

113


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 17. Multidão posicionada para presenciar a saída das vali dos ritos de iniciação -foto da autora, PSK, 2016.

114


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 18. Organizadores dos ritos fazendo escorrer óleo de rícino no rosto das vali-foto da autora, PSK, 2020.

115


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 19. Dança dos Vanalombo-foto da autora, PSK, 2016.

Várias mulheres e homens, mas sobretudo mulheres, se desdobram em garantir que tudo
esteja pronto para que as iniciadas sejam apresentadas à aldeia. Pessoas de todos os grupos
etnolinguísticos existentes na PSK vêm assistir à cerimónia, dançam e se divertem aguardando
pelo momento de culminação da cerimónia, que é a apresentação das meninas à comunidade e os
rituais a que são submetidas nesse momento. Para além dos moradores da PSK, aparecem
Makonde que vivem noutros locais da província de Maputo, como os da ex-zona militar da cidade
de Maputo e da açucareira Maragra e pessoas de outras cidades e distritos aparecem para presenciar
a celebração do nascimento das !novas Makonde”.

116


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 20. Vali apresentadas aos presentes no fim dos ritos de iniciação-foto da autora, PSK, 2020.

Os ritos de iniciação masculinos (likumbi)

O processo de organização dos ritos de iniciação masculinos na PSK também obedece ao


mesmo processo organizacional e às interdicções dos ritos femininos. Igualmente, duram um mês
por causa da observância do calendário escolar e das condições materiais dos pais para custear
todas as despesas inerentes ao processo de iniciação. Diferentemente das meninas que são iniciadas
numa casa no interior do bairro e sob o olhar atento e vigilante de todos, os rapazes são iniciados
numa casa abandonada que só é habitada por altura da sua iniciação. Quando os ritos masculinos
estão a ocorrer coloca-se um sinal informando que é proibido passar ou entrar lá. Essa casa fica à
entrada do bairro e dista consideravelmente da zona habitacional. O tempo de caminhada dessa
casa de iniciação masculina até ao centro do bairro e vice-versa é de cerca de 30 a 45 minutos,
dependendo da velocidade a que cada pessoa consegue caminhar. Indo de carro o tempo reduz-se
para cerca de 7 a 10 minutos, mas por conta das más condições da via pode chegar aos 15 a 20
minutos. A diferença do local de iniciação tem a ver com o que se espera que aconteça durante a
iniciação feminina e masculina. De acordo com Osório & Macuácua (2013: 271), os rituais que

117


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

separam os rapazes das suas mães servem para construir uma identidade hegemónica, ou seja, uma
masculinidade estruturada pela sexualidade e pela oposição em relação ao feminino. Igualmente,
espera-se que os vali saiam dos ritos transformados em homens e cientes do seu papel de
dominadores. Partindo deste posicionamento enunciado por Osório & Macuácua nota-se que de
certa forma se espera que o local de iniciação masculina permita levar a cabo uma série de provas
para que os vali provem a sua masculinidade através de testes violentos. Ainda segundo esses
autores, os espaços rituais, principalmente nos ritos masculinos, eram concebidos como lugares
permanentes, com características próprias e invioladas de geração em geração (idem: 273). Por
exemplo, a casa supostamente abandonada onde ocorrem os ritos masculinos na PSK serve apenas
para esse efeito, ocorrendo aquilo que os autores apelidam de deslocação do valor simbólico que
os espaços rituais continham, visto que outrora os ritos masculinos Makonde ocorriam no mato.
Nos ritos femininos nota-se uma tendência mais pronunciada de “informalização96” (Osório &
Macuácua, 2013: 273).

À semelhança dos ritos femininos, o nalombo é a figura central dos ritos masculinos, porque é
quem os dirige. Outras figuras dignas de realce são os tios, os pais, os padrinhos ou vambwana, as
madrinhas e os vali (Dias & Dias, 1970). Na PSK, para além dessas figuras, os meninos à
semelhança das meninas têm uma mãe cuidadora. Toda a roupa que eles usam durante a iniciação
deve ser entregue à mãe cuidadora aquando da sua saída. Ela lava e fica e com a roupa, porque é
feita uma metáfora em torno desse acto. Gabriel, um dos meus interlocutores disse que esse acto é
comparado à queda do umbigo do bebé que após cair fica sob a guarda da mãe. É como se o
segredo da vida dele estivesse com ela.

Roseiro (2013: 69) afirma que os ritos de iniciação masculinos Makonde consistem na
circuncisão e isolamento durante um a dois meses na época chuvosa ou nas férias. Na PSK, os vali
passam pelos ritos praticamente no mesmo período em que as vali também o fazem, isto é, entre
os meses de dezembro e janeiro, período de férias escolares. Diferentemente das vali que têm como

96
De acordo com Osório & Macuácua (2013: 273), a informalização não significa a ausência das componentes
educativas subjacentes às finalidades educativas dos ritos de passagem, mas ao aparecimento de inúmeras
especificidades que não permitem a identificação de tendências. Concordo com este posicionamento porque tal como
mostrei quando abordei os ritos femininos, o que determina o local de realização do ing’oma é o acordo que deve
existir entre os organizadores dos ritos, mostrando que não existe um lugar frequente para o efeito.

118


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

marco decisivo para a sua iniciação a menarca, para os rapazes, segundo Dias & Dias (1970) e
Roseiro (2013), é difícil determinar quando é que devem ser iniciados, uma vez que o seu ritual
não corresponde à puberdade no sentido fisiológico, ficando sob a responsabilidade dos pais e tios
as características ou o momento certo para a iniciação. Apesar desse aspecto, normalmente são
iniciados quando têm entre 7 a 14 anos de idade.

Os ritos masculinos também obedecem ao esquema tripartido enunciado por Arnold Van
Gennep: separação, fase liminar e reagregação. Na fase de separação é-lhes rapado o cabelo, até
ficarem literalmente carecas. A seguir são untados com Nnumbati97, da cabeça aos pés, podendo a
mãe ou uma a pessoa escolhida pelos pais do rapaz untar apenas a cabeça. Dada a importância do
acontecimento, e para saber se o período iniciático irá correr bem, procede-se à matança de um
galo como sinal adivinhatório. O galo é morto uma hora antes da entrada dos rapazes no likumbi.
O teste do milingu98 consiste no seguinte: Se o galo ao morrer ficar com as patas bem alinhadas, é
sinal de que durante o tempo de retiro no mato tudo vai correr bem; se as patas ficarem
assimétricas, isso pode comprometer o processo de iniciação. É nesse momento que as madrinhas
dos rapazes (as pessoas indicadas pelas famílias ou pelos pais dos jovens) são ensinadas pelo
nalombo quanto aos cuidados a manter com o rapaz, enquanto está envolvido no processo. Para
assegurar os cuidados efectivos, as madrinhas ficam por vezes sem tomar banho. Isso pode
acontecer durante os primeiros dias da iniciação, após a entrada dos pequenos na nova residência
no mato. Recai também sobre as madrinhas, manter a proibição quanto ao consumo de carnes,
sobretudo as vermelhas (Roseiro, 2013: 72).

Na fase liminar procede-se à circuncisão dos rapazes e prepara-se o “remédio mágico” que
os faz resistir aos perigos que os esperam no mato. Os ensinamentos de quais os tabus a considerar
no que diz respeito às mães, aos mais velhos e a não entrar no “quarto dos pais” também fazem
parte desta etapa. São os vanalombo que têm a seu cargo a responsabilidade e animação durante o
likumbi, coordenando com os músicos e dançarinos as danças rituais da pantomina. Os portadores
do conhecimento são os responsáveis de todos os passos adequados a cada acto. A festa de

97
Segundo Roseiro (2013) é uma tintura colorida feita da trituração da casca e dos ramos secos da árvore também
designada com o nome de ntumbati (chanfuta).
98
Galo.

119


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

iniciação começa com o nalombo, acompanhado ou não pelos pais ou tios dos iniciados, a escolher
qual o melhor local no mato, sendo regra geral um local isolado, onde se vai construir a palhota
(kulikumbi). As mães são colocadas na lipanda, que é a casa da pessoa que teve a iniciativa de
fazer o likumbi nesse ano. Quando o nalombo chega à lipanda, antes do início dos rituais, para dar
conselhos às mães, encontra-as à sua espera estendidas no chão, com a cara virada para o solo. É
nesta altura, que as mães depositam numa taça algumas moedas para o mestre, como forma de
pagamento (idem: 72).

A técnica cirúrgica era feita nos mesmos moldes dos outros povos vizinhos, como os Yao e os
Makua: o prepúcio é puxado para cima e para a frente, para expor o freio, sendo a excisão feita
com um corte rápido e oblíquo dirigido de cima para baixo. Antigamente esta intervenção era
executada sem os conhecimentos actuais de assepsia e o instrumento, conhecido como nchenhe,
moderadamente afiado, não permitia um corte suave, rápido e indolor. Após a intervenção os
rapazes permaneciam dois ou três meses em retiro, na cabana preparada para o efeito. Para
assegurar que o pénis não tocasse no solo, era colocado um anel feito de raízes, (hoje usam-se tiras
de pano entrançado) e o órgão sexual pendurado com um cordel atado à cintura (in’gata). Entre os
Makonde, depois da circuncisão, usa-se a polpa de um fruto (lipudi) como antisséptico e
cicatrizante. Actualmente muitos pais recorrem ao hospital para fazer a circuncisão. Esta é feita
com um bisturi, os materiais são esterilizados e a intervenção é feita por médicos ou enfermeiros
preparados (idem). Osório & Macuácua (2013: 200), fazem notar que nas cidades foram os pais/
famílias que iniciaram o movimento de entregar os filhos a uma rápida e simbólica intervenção de
agentes profissionais sem necessariamente essa atitude ter reconhecimento comunitário. Essa falta
de reconhecimento comunitário faz com que nas zonas urbanas, depois da circuncisão feita nas
Unidades Sanitárias ou por enfermeiros chamados para o efeito, os vanalombo tenham que marcar
o corpo das crianças (idem).

Durante os meses em que decorre o isolamento, os iniciados aprendem várias artes e ofícios
e outras actividades, como caçar e pescar, sendo simultaneamente transmitidos aos
rapazes/homens conhecimentos acerca da sexualidade, vida familiar e social. Aprendem a estar
com uma mulher, sem vergonha, quais as formas de praticarem o acto sexual, para serem bons
amantes. Os rapazes que tenham “passado pela faca” ganham na sociedade um novo estatuto, pois

120


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

possuem, agora, capacidade para executar as tarefas destinadas aos homens, sobretudo a serem
“homens de honra” e a preservarem a cultura e os segredos do ritual. Antecedendo a saída final da
reclusão da iniciação, os rapazes são submetidos a um exame final (shipito) que entre outras
finalidades, visa conhecer os segredos do mapiko. Assim, quando saem da palhota, têm cá fora à
sua espera duas fileiras de homens antigos iniciados, tendo os rapazes de passar pelo meio.
Antigamente estes homens empunhavam varas com as quais batiam nos rapazes; actualmente,
apenas simulam que vão bater. Estes homens encaminham os jovens directamente para a figura do
dançarino lipiko (singular de mapiko). A figura do lipiko é imponente, os rapazes tentam retirar-
lhe a máscara, a fim de verificarem se este não é um espírito de um morto, mas apenas um homem.
Só quando o conseguem, é que acaba a revelação do segredo. Apenas após esta descoberta os
jovens poderão dançar o mapiko (Roseiro, 2013: 73-74).

No penúltimo dia da iniciação, normalmente acontece numa uma quinta-feira, os jovens


iniciados são conduzidos a um espaço onde se encontram, sobre umas tábuas, um martelo sem
cabo e uns frutos chamados lipudi, um fruto de cor verde, matizado de verde pálido ou branco
creme, de casca muito rija e não comestível. A polpa é branca com sementes pequenas,
semelhantes às do melão, o suco é branco, transparente e espumoso com acentuada viscosidade.
A polpa branca é usada como sabão pelas mulheres Makonde. Como cicatrizante tem uma acção
terapêutica relevante, daí ser aplicada após a circuncisão. Assume também particular importância
nos jogos de simulação, durante o período de aprendizagem da vida sexual. O fruto lipudi e o
martelo são usados, habitualmente, na iniciação masculina no dia da saída do mato. O responsável
pela cerimónia, o nalombo, faz um buraco redondo no fruto, com uma faca e escava o seu interior.
O diâmetro do orifício é variável, mas suficiente para a introdução do pénis do rapaz. Durante esta
simulação do acto sexual, os rapazes têm de penetrar primeiro o buraco do martelo, sendo-lhes
explicado que esta, será a sensação que poderão experienciar se fizerem sexo com uma mulher
mais velha. (uma experiência desrespeitosa, desagradável e desconfortante). As ilações que terão
dessa circunstância, é que devem respeitar sempre as mulheres mais velhas. Por outro lado, quando
penetram o fruto (lipudi) têm uma sensação suave e agradável, já que o interior do fruto é mole e
húmido, simbolizando o ambiente vaginal. Depois da simulação sexual, os rapazes chupam uma
bebida, por uma espécie de palhinha, que põem na boca e cospem. É uma bebida alcoólica
tradicional (ugualua). O acto de cuspir significa que estão a afugentar o mal e a evitar agressões

121


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

entre as pessoas que estão na festa do Mapiko. Assim os rapazes estão preparados para o
nambango, términus deste ritual, o que lhes permite ter o primeiro contacto com a mãe, isto é, com
as mulheres, passando a ser vistos como homens e dar início a prática da vida activa. É o último
dia, procedendo-se à queima da palhota Kulikumbi que serviu de retiro aos iniciados e iniciam a
caminhada para o rio onde encontrarão os familiares (idem: 77).

Os ritos de iniciação e a construção dos papéis de género

Apesar de os ritos femininos e masculinos terem o mesmo objectivo de garantir a integração


de ambos no grupo étnico, também criam diferenças identitárias entre homens e mulheres, pois
segundo Dias & Dias (1970: 160-163), cada um tem o seu ritual que envolve os seus interesses e
destinos, incluindo cada um uma série de segredos fundamentais que nunca poderão ser revelados
aos indivíduos de outro sexo em circunstância alguma e em nenhuma época da vida.

A sociedade Makonde é por regra linhageira. Isso pressupõe que a criança logo que nascesse
era desligada do grupo linhageiro do pai, pois era pelo lado da mãe que recebia a sua inserção na
sociedade. Por conseguinte, a linhagem do pai não tinha peso na identificação do indivíduo (Dias
& Dias, 1970; Daniel, 1997: 23). Por forma a contrabalançar esse poder feminino, os homens
servem-se do mapiko, que de acordo com Dias & Dias (1970: 196) é a parte mais importante do
ensino ministrado aos rapazes durante a iniciação, porque é à volta dele que gravita o poder secreto
dos homens sob as mulheres. Sendo a sociedade Makonde matrilinear, as mulheres são as donas
das casas, dos campos e das linhagens makola. Através do mapiko, os homens procuravam
convencer às mulheres e aos namaako que o bailarino mascarado (lipiko) era um homem morto
(Dias & Dias, 1970: 196; Ngole, 1996: 38; Roseiro, 2013: 90-91). Esta versão também foi várias
vezes verbalizada por alguns dos meus interlocutores. Israel (2014:43) critica a ideia de que o
mapiko serve para afirmar a supremacia masculina sob a feminina e argumenta que esta constitui
uma forma de produção da diferença de género, pois, nos rituais de puberdade Makonde, o jogo
do segredo ritual gera uma dinâmica feroz de rivalidade cismogenética entre homens e mulheres.
A atmosfera das iniciações é de inveja mútua, provocação e suspeita, na qual homens e mulheres
são constantemente levados a comparar os seus respectivos domínios e a agir como espectadores
das performances dos outros. A coreografia de iniciação e as canções secretas ensinadas aos
meninos e às meninas, nas quais aprendem a insultar (kutukana) o sexo oposto, são todas voltadas

122


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

para exacerbar essa rivalidade. Israel conclui afirmando que a rivalidade induz os meninos a serem
meninos e as meninas a serem meninas; ela os molda em forma; ensina-lhes seus lugares; inculca
as características do eu de género e dos outros. Alio-me ao posicionamento de Israel (2014) por
porque, apesar de se afirmar com frequência que na sociedade Makonde as mulheres detêm poder,
na prática elas não mandam na educação dos filhos e na aldeia, então, esse suposto poder é
inexistente. Na minha perspectiva, confunde-se a matrilinearidade com a matrifocalidade99. Nos
tempos actuais, é difícil fazer uma distinção clara entre as linhagens matrilinear e patrilinear,
porque as pessoas estão em constante fluxo e misturadas (Cfr. Osório, 2006). Embora, Dias & Dias
(1970) afirmem que há um espírito de rivalidade e competição entre mulheres e homens por conta
do excessivo poder detido por estas na sociedade Makonde, convém notar que, por a PSK não ser
o local de origem desse grupo étnico, as mulheres não detêm campos e casa. A terra foi cedida
pelo governo aos veteranos da luta armada para que pudessem produzir. Pelo que observei na PSK,
o poder da mulher Makonde é de índole mais simbólica, pois é ela que é considerada a likola
(matrilinhagem). Por exemplo, na casa onde fui acolhida, a esposa é quem oficia os rituais e dá os
aconselhamentos aos filhos, netos e outros parentes e familiares. No que toca à terra elas auxiliam
os parceiros na produção agrícola, já que essa é a principal actividade económica da região. Em
segundo lugar, durante o meu trabalho de campo no bairro PSK algumas mulheres Makonde
disseram que quando chega o momento de os rapazes entrarem para os ritos são alvo de piadas e
cantos jocosos por parte das mulheres e raparigas que, estando de longe (porque sabem que não se
podem aproximar do espaço em que estão os homens e rapazes no contexto dos ritos), fazem um
conjunto de provocações. Quando chega o momento de as meninas entrarem para os ritos também
são alvo das mesmas acções por parte dos homens e rapazes. Essa rivalidade não é apenas típica
dos Makonde. Ela verifica-se também nalgumas regiões da província nortenha de Nampula,
vizinha da província de Cabo Delgado, de onde os Makonde são oriundos. Por exemplo, num
grupo focal que conduzi no contexto de uma outra pesquisa com mulheres no Distrito de
Mogovolas, mulheres afirmaram que quando os homens entram para os ritos são alvo de cânticos
provocatórios, insultos e até de posturas corporais que expressam insulto. Lembro-me que na
ocasião ocorria por perto um grupo focal de homens dirigido por outro pesquisador e as mulheres

99 A matrifocalidade repousa na ausência e/ou desprezo social dos homens nas funções paternas, no seu envolvimento
esperado em papéis sexuais heteronormativos e na sacralização social das mães, que são vistas como devotadas aos
filhos que às vezes criam sem parceiro estável, mas com a ajuda de outras mulheres da família (Mulot, 2013: 2).

123


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

que comigo estavam reproduziam os gestos que normalmente fazem quando os rapazes entram
para os ritos, mas uma delas chamou atenção ao facto de os homens estarem por perto e poderem
ver o que elas faziam, porque é assunto delas e os homens não têm que saber. Arnfred (2015: 187)
afirma ter notado que para as mulheres adultas a iniciação tinha uma dupla função: além de ser a
iniciação à vida adulta das suas filhas, também fornecia um tipo de espaço livre onde as mulheres
podiam se reunir por conta própria, sem a interferência dos homens, pois esse era o local onde se
divertiam e brincavam entre si. Arnfred (2010: 75) afirma que as mulheres, ao compartilharem
segredos, uma linguagem e um comportamento particular, criam um vínculo e uma comunidade.
Fazer parte desse conhecimento e desse comportamento faz parte da feminilidade. Assim, os ritos
de iniciação são sobre a criação de género no geral, e no caso das minhas interlocutoras sobre a
produção da feminilidade Makonde. Para além de a iniciação ser um momento de diversão, ele
permite que as mulheres mais velhas estejam temporariamente aliviadas dos papéis que a
sociedade lhes impõe. A esse respeito Dias & Dias (1970: 233) afirmam que “(...) na presença dos
homens as mulheres se comportam sempre com dignidade, delicadeza e autodomínio”. Essas duas
posturas diferentes das mulheres no momento de iniciação e quando não estão nos ritos remetem
para o que Cossa (2014:117) afirma: “(...) as iniciadas devem saber que em alguns momentos
dependendo do tipo de actividade e dos papeis sociais atribuídos através das diferenças
morfológicas entre os sexos são inferiores hierarquicamente aos homens iniciados. Porém em
outras circunstâncias e momentos, fazendo jus a estas mesmas diferenças, elas se engrandecem
perante os homens e eles se tornam superiores”. Outro aspecto que mostra diferenças de género
engendradas a partir os ritos de iniciação é o facto de a despeito de serem um espaço tipicamente
feminino, os homens poderem actuar em alguns papeis prescritos pela mulher mais velha à frente
das cerimónias (Arnfred, 2015: 188). Esse ponto de vista corrobora de certa forma o
posicionamento de Cossa (2014), que faz notar a existência de uma instabilidade e plasticidade da
hierarquia fundada nas diferenças morfológicas entre os sexos.

Outra questão relativa à produção de lugares distintos através dos ritos de iniciação tem a ver
com a possibilidade de estar ou não presente no espaço da iniciação do sexo alheio ou ter acesso
ao que lá acontece. De acordo com Bagnol (2013: 150), os homens não podem aproximar-se da
casa onde está a decorrer a iniciação feminina, não podem ver as raparigas que cobrem o seu rosto
quando vão para fora, embora em alguns casos possam ouvir canções ricas em metáforas sexuais.

124


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Aspectos relacionados com a dor, punição corporal, angústia (humilhação, isolamento, separação
da família e amigos e restrição de movimentos e comportamentos) são dificilmente descritos e
verbalizados. A regra é não revelar a pessoas de sexo oposto, a pessoas não iniciadas naquela
tradição específica ou noutra, o que aconteceu durante a cerimónia e como é que a experienciou.
O acto de revelar o que se passou nos ritos de iniciação é encarado como uma transgressão e a
pessoa que o faz é ameaçada de doença ou morte para si ou para a sua família. Muitas pessoas
adultas estão conscientes de que tal ameaça é uma forma de guardar o segredo, mas a razão para o
segredo em si não é explicada. Existem ambiguidades e ambivalências na questão do segredo, pois
durante a sua pesquisa constatou que raparigas e mulheres de outros grupos podiam ser iniciadas
em troca de pagamento a nalombo num valor superior ao que as raparigas do mesmo grupo
etnolinguístico. !As estrangeiras” são vistas como pessoas que podem !aprender o segredo e
revelá-lo” (idem).

Apercebi-me durante a minha experiência de campo que homens e mulheres já tinham ouvido
alguma coisa acerca da iniciação do sexo oposto, pese embora possam não saber com propriedade
o que lá se diz ou se faz. Alguns limitavam-se a dizer que isso é assunto de mulheres ou assunto
de homens. Relativamente ao segredo, Bellman (1984: 79-106) afirma que ele é a substância do
ritual e que os membros de certas categorias sociais podem ter o mesmo conhecimento, mas não
têm o mesmo direito de falar sobre o assunto e têm que conhecer os procedimentos para saber
como comunicar essa informação protegida. Na mesma linha de pensamento Taussig (1999:6) fala
sobre o segredo público. Segundo ele, é algo comumente sabido, mas que não pode ser verbalizado.
Ou seja, todo o mundo deve saber o que não deve saber. Para além das explicações facultadas por
Bellman e Taussig, considero que a intenção por detrás de guardar o segredo !a sete chaves”
prende-se com a necessidade de garantir a eficácia do ritual, ou seja, ao revelar-se o que aconteceu
nos ritos, estes correriam o risco de ser banalizados e ser de domínio de todos. Sendo que
conhecimento é poder, como diz o adágio, não haveria hierarquia e diferenciação de pessoas na
sociedade.

Ainda no decurso do trabalho de campo, Lúcia, uma das minhas interlocutoras, afirmou que
existem mulheres que sem serem Makonde entram nos ritos. Apesar disso, a mesma referiu que na
PSK não aceitam iniciar raparigas e mulheres que já menstruam e que já tiveram ou têm relações

125


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

sexuais, porque vêm com os seus “vícios”, o que dificulta a sua “formatação”. Arnfred (2010:70)
apresenta uma explicação para o controlo da menstruação. Segundo essa autora, a razão para a
reclusão começar no momento da menstruação foi (é claro) o controle da reprodução. Em algumas
partes do norte de Moçambique, as regras para brincadeiras sexuais entre crianças eram bastante
permissivas; no entanto, quando a menina começa a menstruar, aplica-se um controle estrito. Não
para censurar o sexo, mas para garantir que a reprodução ocorra em condições controladas e
institucionalizadas, como por exemplo, após o casamento.

A respeito da virgindade, Osório & Macuácua (2013: 291) afirmam que ela constitui condição
central para poder ser aceite nos ritos Makonde no meio urbano, sendo as meninas sujeitas a
provas. Em nenhum momento me foi revelado na PSK que as meninas passem por uma prova de
virgindade, mas baseando-me na conversa que tive com Lúcia, acredito que as raparigas passem
por um teste para comprovar que ainda não menstruam e que são virgens. A possibilidade de
mulheres de outras etnias serem iniciadas nos ritos Makonde pode suscitar a curiosidade de
perceber até que ponto é que elas se tornam realmente Makonde e como é que se desenvolve esse
processo de pertença, se se atender e considerar que é através dos ritos de iniciação que se aprende
a ser Makonde. Esta questão não é nova. Dias (1998: 86) mostra que para os Makonde o elemento
diferenciador entre os grupos é a cultura e não o sangue. Citando um dos seus interlocutores, afirma
que quando os Makonde capturassem povos vizinhos os tornavam Makonde: “Mas nós fazíamo-
los antes Macondes!” “As mulheres e crianças eram tatuadas primeiro e depois assimiladas. E
como tinham a cultura Maconde, eram Macondes” (idem). Partindo desse pressuposto de
assimilação sugerido por Dias, nota-se que desde que a pessoa seja iniciada ela é considerada
Makonde. Entretanto, é preciso entender que há diferenças nas motivações por detrás da iniciação
de mulheres de outros grupos etnolinguísticos no tempo em que Dias realizou o seu estudo e na
actualidade. No presente momento os Makonde não buscam fazer escravos ou aumentar a sua
população para se fortalecer em número e em capacidade produtiva e defensiva, tal como acontecia
por volta do período em que Dias os estudou. No momento actual algumas mulheres de outras
etnias são iniciadas procurando aprender recursos para a sedução masculina. No meu entender, os
Makonde estão cientes de que nem todas as pessoas de outras etnias iniciadas nos seus ritos têm
como verdadeiro interesse o aprendizado da sua “cultura”, mas outros objectivos. Durante o
trabalho de campo fiquei a saber que entre os Makonde da ex-zona militar, da Maragra e os de

126


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Cabo Delgado, são iniciadas mulheres adultas e que não são Makonde. Quando questionei o
motivo para iniciá-las, algumas das mulheres da PSK disseram que o faziam por dinheiro, porque
as vanalombo e as madrinhas sabem que algumas mulheres adultas entram nos ritos para
aprenderem técnicas de sedução masculina e não propriamente para se tornarem Makonde. Tal
fenómeno ocorre porque no imaginário social de algumas pessoas em Moçambique, se acredita
que uma mulher que foi instruída nos ritos de iniciação está apta para proporcionar prazer sexual
ao seu parceiro.

Tenho uma tia que vive no distrito de Magude. Ela não é Makonde, mas o meu tio, marido dela é. Ela sempre
dizia que queria entrar nos ritos e o meu tio negava. Todos os filhos deles entraram nos ritos. Por curiosidade
e insistência entrou. Quando saiu dos ritos disse que não viu o que é que estava à espera de ver. Quando
perguntamos o que é que queria ver disse que queria aprender novas formas de seduzir o marido. Conclusão,
gastou dinheiro de borla (entrevista com Teresa, 2020).

A postura das vanalombo e das madrinhas de não ensinarem ou mostrarem aquilo que as
iniciandas adultas pretendem saber mostra que estão cientes de que estas não vão para os ritos pelo
espírito dos mesmos, mas sim porque têm outro tipo de objectivos a atingir. Essa atitude vai na
linha do que Kermod (1979) apud Bellman (1984) defende, quando afirma que os rituais não são
necessariamente impenetráveis, mas os estranhos poderão entendê-los mais. Outro aspecto do
segredo tem a ver com o facto de muitos homens e mulheres do mesmo grupo etnolinguístico e
área geográfica que foram iniciados em geral saberem o que acontece na iniciação do sexo oposto
e o que é revelado não é completamente novo (Bagnol, 2013: 151).

Outro aspecto que deve ser considerado no quadro das relações de género criadas pelos ritos
de iniciação é a divisão social do trabalho. Daniel (1997) e Cossa (2014) fazem notar que
antigamente entre os Makonde as actividades económicas para a sua sobrevivência eram a
agricultura e a caça, sendo divididas entre homens e mulheres. Às mulheres cabia-lhes trabalhar
na horta do grupo linhageiro, enquanto os homens iam à caça. Os homens mais velhos eram os
responsáveis pelos rituais e cerimónias mágico-religiosas. As mulheres mais velhas controlavam
a distribuição dos produtos agrícolas. Os ritos de iniciação nessas comunidades foram estruturados
tendo em conta esses aspectos e essa divisão social do trabalho (Cossa, 2014: 117). Importa realçar
que essa divisão de trabalho se refere a tempos idos. Actualmente e por conta de diversas

127


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

transformações socioeconómicas e políticas decorrentes da colonização, da luta armada, da


independência, migrações, abertura do país ao multipartidarismo e à economia do mercado, os
Makonde abriram-se a outras ontologias, sem, contudo, deixarem de se lembrar e inspirar nas
práticas culturais dos seus ancestrais e do seu local de origem. Na PSK essa divisão social do
trabalho não é mais seguida à risca, mas as vali são ensinadas que como futuras mulheres Makonde
devem saber como era a vida dos seus antepassados. As mulheres, assim como os homens
Makonde mais velhos que residem na PSK, têm como principal actividade a agricultura. Por seu
turno as mulheres mais jovens também praticam a agricultura, estudam e fazem pequenos
negócios. As mulheres mais velhas, assim como as mais novas são as responsáveis por cuidar da
casa. Alguns dos homens mais novos são militares, seguindo o legado dos pais, veteranos da luta
armada. Alguns também praticam a agricultura e fazem pequenos negócios. Apesar dessas
transformações nota-se que continua a haver entre os Makonde espaços diferenciados em função
do género, pese embora algumas actividades coincidam para homens e mulheres.

Outro ensinamento ministrado nos ritos de iniciação que molda e mostra o lugar de homens e
mulheres é a questão da senioridade e o respeito por ela. Cossa (2014: 116-117) afirma que entre
os Makonde se valoriza a senioridade, que pode ser traduzida como sabedoria e experiência de
vida. A palavra do mais velho deve ser respeitada, porque está repleta de sabedoria. Relativamente
à questão da senioridade, Arnfred (2015: 188) afirma que há uma relação de autoridade e
dominação das mulheres mais velhas sob as mais novas. Na PSK, assim como em todos os locais
onde ocorrem os ritos Makonde, são as mulheres mais velhas que os dirigem e que infligem uma
série de humilhações, provas e castigos às vali. Alguns dos meus interlocutores referiram-se muito
à questão do respeito, afirmando que um dos primeiros ensinamentos dos ritos para meninas e
rapazes é saber respeitar e obedecer aos mais velhos, não entrar no quarto dos pais sem permissão,
saber cumprimentar e ajudar os mais velhos. Através da metáfora do fruto lipudi narrada na secção
sobre o likumbi é ensinado aos rapazes que não se devem envolver sexualmente com uma mulher
mais velha, porque ela é mãe e merece o seu respeito. Quanto às meninas, espera-se que elas sejam
bem-educadas (kukamalanga na mene), estatuto que só atingido através da iniciação feminina
(Lopes, 2011). Ser bem-educada significa também saber respeitar a senioridade das pessoas mais
velhas (homens e mulheres).

128


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Os ensinamentos que meninos e meninas recebem durante a iniciação mostram que existem
relações de poder assimétricas entre homens e mulheres Makonde. Apesar de alguns estudos acima
apresentados defenderem que as mulheres Makonde têm mais poder que os homens, uma nova
corrente de estudos de género a partir dos ritos afirma que os ritos conferem um estatuto subalterno
às mulheres vis-à-vis com os homens (Cfr. Osório & Artur, 2002; Osório & Macuácua, 2013).
Distancio-me dessa corrente de estudos e associo-me ao ponto de vista de Bagnol (2013), que
defende que as mulheres adquirem nos ritos ensinamentos secretos que lhes permitem obter dos
parceiros aquilo que desejam e maximizar os seus ganhos. Numa pesquisa em Mogovolas (Cfr.
Pedro et al., 2019), as mulheres disseram-me que se eu fosse iniciada o meu marido faria tudo o
que eu quisesse e que quando estivesse no serviço estaria ansioso para voltar para casa para estar
comigo. Isso mostra que as mulheres têm consciência de que nos ritos aprendem formas de exercer
poder sob os homens, pese embora no quotidiano estes sejam vistos como dominantes.

Os meus dados de campo, assim como a literatura consultada mostram que nos ritos de iniciação
se ensina como é que homens e mulheres devem ser, como é que se devem comportar com pessoas
do mesmo sexo e de sexo diferente, assim como que devem conhecer, reconhecer e agir de acordo
com a sua posição na estrutura hierárquica do seu grupo étnico. Para tal, devem reconhecer e
valorizar a senioridade.

Ritos de iniciação e diferença intergrupal

Para além de engendrarem diferenças entre os Makonde, os ritos de iniciação também


criam diferenças entre os Makonde e os seus vizinhos na PSK. Para além deles, vivem na PSK
mais sete grupos, nomeadamente: Nyanja, Ajaua, Nyungwe, Rhonga, Changana, Chopi e Sena. Os
grupos que praticam ritos na PSK são os Makonde, os Nyungwe e os Chopi. Quando questionei
qual era a diferença entre os seus ritos e dos seus vizinhos, alguns deles forneceram as seguintes
respostas:

A diferença está relaccionada com os ritos de iniciação. Os Chopi é que fazem os ritos quase como nós, mas
a principal diferença está no facto de nós levarmos os rapazes para o mato, coisa que eles não fazem
(entrevista com Joel, 2015).

129


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Aqui na PSK para além de nós Makonde, os outros que fazem ritos são os Nyungwe. Posso dizer que a
diferença está na duração. Enquanto nós ficamos nos ritos um mês, eles ficam apenas uma semana
(entrevista com Janete, 2017).

As diferenças entre os ritos Makonde e dos seus vizinhos residem no tempo de duração, local
e modo de realização. Apesar de tais diferenças, noto uma semelhança na forma como (re)
constroem a sua identidade de grupo, na medida em que a função dos ritos de puberdade em
qualquer sociedade é conferir o sentido de pertença e afiliação (Israel, 2006: 110). No meu
entendimento, a principal diferença entre os ritos dos Makonde e dos seus vizinhos reside no facto
de cada grupo rotular os seus ritos como seus, afirmarem que os fazem à sua maneira e, porque
através destes, se (re) produz a identidade de grupo.

Uma das minhas interlocutoras se referindo à diferença entre quem passou ou não pelos ritos
e diferença entre os Makonde e outros grupos etnolinguísticos, referiu o seguinte:

Nota-se que alguém é Makonde através da fala e do comportamento em si, principalmente para nós que
vivemos com os nossos pais e que vem de Cabo Delgado para PSK. Para além de nós Makonde, posso dizer
que se nota uma diferença de comportamento entre nós do Norte e as pessoas daqui. Nós olhamos para as
pessoas e não nos intimidamos com elas. Aqui em Maputo é diferente. É difícil notar quem é Makonde e
quem não é, porque o comportamento parece igual. Em Cabo Delgado se consegue notar quem é e não é
Makonde. Por exemplo, a partir do vestuário se nota quem é de lá e quem não é. Aqui em Maputo
praticamente estamos a copiar o comportamento das pessoas daqui. Agora é raro encontrar uma Makonde
que amarra capulana e está a passear pela cidade, mas em Cabo Delgado uma moça ou um moço usam
capulana na cintura ou na cabeça e você vai notar este é Makonde ou não. Quanto aos rapazes, a circuncisão
já não é o factor de diferença, porque os dos outros grupos também fazem. Para os rapazes, se nota que são
Makonde quando entram nos ritos porque a fala é diferente. Quando estão lá são muito intimidados. São ditos
que estão a passar de uma fase para a outra e que devem ver a pessoa que está lá fora com respeito como se
fosse sua mãe ou irmã (entrevista com Gertrudes, 2020).

O relato de Gertrudes realça a diferença que os Makonde percebem entre si e com os outros.
Por um lado, ela reconhece que vivendo em Maputo, eles estão misturados com as pessoas dos
demais grupos etnolinguísticos e que tal facto influencia no seu comportamento. Outrossim, ela
reconhece que no caso dos rapazes a circuncisão que em tempos era tida como factor de
diferenciação entre homens do seu grupo e dos demais não mais o é, na medida em que o sector

130


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

de saúde tem instado aos pais a circuncidar os filhos por questões de higiene e prevenção de
doenças, tais como a contração do HIV/SIDA. A par dos ritos de iniciação, a minha interlocutora
também evoca aspectos comportamentais como o vestuário e a frontalidade no olhar como factores
de diferenciação.

Mapiko como vector de identidade Makonde na PSK

Durante a pesquisa assisti a várias performances de mapiko e notei que eram executadas
como uma forma de os Makonde que vivem no bairro não se esquecerem da sua cultura, uma vez
que estão longe da sua terra de origem, igualmente para que os seus filhos e netos nascidos na PSK
o conheçam, como um mecanismo de afirmação e diferenciação étnica. Quando perguntei a alguns
membros do grupo de Mapiko da PSK sobre a importância da execução da dança na aldeia, eles
referiram o seguinte:

Mapiko é a nossa cultura. Se não dançarmos vai desaparecer (entrevista com Félix, 2016).

A fala de Félix remete para o mesmo receio que os Makonde no bairro têm relativamente aos
ritos de iniciação. Alguns deles, sobretudo os mais velhos, afirmaram que por estarem longe da
sua terra de origem e no meio de muita mistura cultural temem que os seus filhos desconheçam a
sua história e ancestralidade, motivo pelo qual uma vez por ano os submetem à iniciação. Essa
postura remete para a discussão que Bernardi (2007:128) faz relativamente à desculturação. Para
este autor, a desculturação consiste no aspecto negativo da dinâmica cultural que pode decorrer da
perda de energia que consequentemente anula a vitalidade dos etnemas que, se não for renovada e
reforçada por outras aquisições antropémicas, acaba por se exaurir, enfraquecer, cair em desuso
ou esvanecer.

A importância da dança mapiko na aldeia PSK é de transmitir muita mensagem e história dos Makonde, pois
ela é praticada desde o tempo colonial, por isso que é muito importante para nós os Makonde (entrevista

com Romeu e Júlio, 2020).

No que concerne à importância da dança mapiko na PSK, Muendane (2014: 39) refere que o
mapiko constitui um dos factores da identidade social dos Makonde e existem três factores que

131


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

estariam por detrás da continuidade da dança mapiko. O primeiro está relacionado ao facto de ser
uma dança que representa o mistério sagrado da tradição Makonde; o segundo está relacionado ao
facto de esta constituir um veículo de transmissão de ensinamentos às novas gerações, e o terceiro
tem a ver com ao facto de ela constituir um mecanismo de geração de renda. Ao longo do trabalho
de campo não consegui visualizar a componente mapiko como gerador de renda, até porque nos
últimos dois ou três anos as actuações começaram a diminuir, porque alguns dos membros do
grupo arranjaram empregos. Ora, se o mapiko constituísse fonte de renda como afirma Muendane,
estes não teriam necessidade de arranjar empregos, até porque quando vão dançar para o Município
não auferem qualquer remuneração.

Relativamente ao mapiko ser um mecanismo de afirmação e diferenciação étnica, Israel


(2005: 1) refere que o mapiko não é apenas um ritual fechado de autoafirmação étnica, mas pelo
contrário, é um poderoso instrumento de crítica cultural, muitas vezes dedicado à representação da
alteridade. Apesar de concordar com Israel, os dados da minha pesquisa, assim como os da
pesquisa de Muendane (2014), também sugerem que os nossos interlocutores ao dizerem que
praticam o mapiko para não se esquecerem da sua cultura, mostram que o utilizam como um
marcador de autoafirmação e diferenciação étnica.

O grupo de mapiko foi criado em 1999 pelo líder Makonde e não tem um número certo de
membros, pois de acordo com as explicações que recebi todos aqueles que entram para os ritos de
iniciação e os que já passaram por eles são membros do mesmo.

O número de membros do grupo é infinito porque somos muitos. Cada ano nós metemos, cada ano nós
tiramos. Em cada ano em ano, em novembro, nós sempre metemos os miúdos nos RI. Podem ser por aí 30
crianças que entram lá, então tem que se trocar. É só pensar que metendo pessoas nos ritos cada ano até aqui
quantos somos (entrevista com dois membros do grupo de mapiko, 2020).

Apesar de serem muitos membros no grupo, fiquei a saber que existe um número fixo. São
cerca de dez os membros fixos que no quotidiano respondem pelo grupo. Para além destes existem
alguns que já se aposentaram, mas que estão em prontidão para ajudar caso seja necessário.

132


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

O que faz com que alguém se torne membro fixo e focado é o foco, flexibilidade, interesse. A atitude em si,
aquilo que ele apresenta dia-a-dia. Ninguém escolhe. Os seus actos é que escolhem, nos mostram o seu foco
nisso. Então, nós acabamos dizendo que faça coisa X (entrevista com Artur, 2020).

Independentemente de todos que entram nos RI serem considerados membros do grupo, existe
no seio deles uma hierarquia. Existem os cabeçais, os demandas e os demais membros. Perguntei
a um dos cabeçais o que é que isso significa e ele respondeu assim:

Cabeçal não é chefe. São membros próximos. Membros que podem responder a qualquer aventura, aqueles
que estão mais focados no assunto. Somos muitos, mas nem todos são focados. Os cabeçais são aqueles que
a qualquer momento conseguem actuar. Havendo uma actividade qualquer, o chefe grande é capaz de me
ligar, pronto, então eu tenho que ligar para os meus homens e perguntar estão prontos para fazer coisa X? De
longe consigo responder, mas fisicamente também. Para além do grande chefe existimos nós os demandas,
nós somos inferiores aos cabeçais. Recebemos ordens deles e transmitimos aos nossos inferiores (entrevista

com Augusto, 2020).

O chefe grande referido por Augusto é o líder Makonde que me acolheu em sua casa. É ele
que coordena e orienta todas as actividades referentes ao seu grupo. Durante o trabalho de campo,
reparei que apesar de ele deter esse poder, sempre articulava e trabalhava em colaboração com as
demais pessoas. Apesar de existir hierarquia no seio do grupo, a mesma é irrelevante para
determinar quem é o primeiro a entoar a canção, porque isso depende de quem conhece a música,
independentemente da sua idade e status. O essencial é acompanhar o ritmo da música e dança até
ao próprio fecho. Pese embora o líder Makonde na PSK seja de likola diferente da dos outros
Makonde, arrisco-me a dizer que ele acaba desempenhando a função de nang'olo mwene shilambo
(proprietário mais velho da terra), pois é dele que emanam certas orientações para a vida dos
Makonde na PSK.

O grupo de mapiko da PSK possui um repertório de 6 canções que apresento abaixo:

Vashitenda ing'ondo, ing'ondo, ing'ondo ya kulyambola! Os que estavam a fazer a guerra, guerra de libertação
Yakalaa! Há muito tempo
Avelee Ngungunhane namudje Malapende! Era Ngungunhane com o amigo dele Malapende
Vashitenda ing'ondo ya kalyambola ku Moçambique! Fizeram guerra de libertação de Moçambique

133


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

A canção acima enaltece a heroicidade de Malapende e de Ngungunhane. Apesar de serem


oriundos de lugares e serem culturalmente diferentes, ambos são citados como os últimos redutos
da resistência ao colonialismo português nas suas respectivas regiões. Relativamente à Malapende,
alguns dos meus interlocutores afirmaram que os portugueses quando queriam ocupar o planalto
de Mueda enfrentaram intensas batalhas com os Makonde comandados por ele. Ngungunhane,
antigo imperador do Reino de Gaza que foi capturado por Mouzinho de Albuquerque. O império
de Gaza foi o último reino a resistir e a sucumbir à opressão colonial na zona sul de Moçambique.
Perguntei aos meus interlocutores por que é que sendo eles Makonde entoam uma canção em que
se enaltece Ngungunhane que era do sul de Moçambique e eles disseram que ele foi um bravo
guerreiro e que combateu ferozmente os portugueses. Essa resposta faz-me lembrar outra dada por
um Makonde que foi um dos primeiros a ir ao campo de treino militar da FRELIMO na Argélia.
Numa conversa ele disse-me: “minha filha, em Moçambique se não existisse Makonde no Norte e
Changana no Sul, não teria havido independência em Moçambique, porque os Makua que estão
no meio são traidores e sempre foram amigos dos portugueses”. Esse pensamento ainda existe no
imaginário de certas pessoas em Moçambique. A rivalidade entre Makonde e Makua é algo
histórico. Existe desde a altura em que a região de que ambos são originários ou habitam era um
corredor de caça e tráfico de escravos (vide capítulo 1 desta tese).

Moto, moto Fogo, fogo


Kumbeluzi moto, No Umbelúzi há fogo
Moto ukalivata undapya Fogo, fogo se tropeçar há-de se queimar
Moto, moto Fogo, fogo
Kumbeluzi moto No Umbelúzi há fogo
Moto ukalivata undapya Fogo, fogo se tropeçar há-de se queimar

A canção acima retrata a rivalidade que existe entre os grupos de mapiko. É uma espécie de
piada musical quando estão reunidos os grupos de mapiko do Umbelúzi (PSK), da Manhiça
(Maragra) e da zona militar (cidade de Maputo). O grupo da PSK entoa a canção acima para
assustar os rivais, passando a ideia de que são melhores que eles. A esse respeito, um dos membros
do grupo de mapiko da PSK referiu o seguinte:

Quando eles vêm para aqui e sempre quando nos encontramos o objectivo é ganhar. Queremos perceber se

134


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

eles são mais, ou nós estamos em baixo. Há intercâmbio entre os grupos de mapiko, brincamos juntos, esse
é o objectivo. Eles vêm para cá, nós também vamos para lá. O essencial é brincarmos (entrevista com

Augusto, 2020).

Apesar de os meus interlocutores terem dito que a finalidade das apresentações dos grupos de
mapiko nos três lugares acima mencionados é brincarem, me parece que a competição não pode
ser deixada de lado. Israel (2014: 6-7) mostra que a rivalidade e a inovação existem desde os
tempos imemoriais e que ambas se estimularam de maneira decisiva. Ainda segundo este autor
todas as invenções no domínio do mapiko foram concebidas como desafios competitivos-
geracionais, de género, pessoais ou entre grupos ligados por parentesco ou localidade. Durante o
trabalho de campo constatei que é importante o grupo saber que ganhou. O juiz do concurso é o
povo, não existe um júri constituído para determinar quem é o vencedor. Os grupos por conta do
ânimo no momento da performance podem não notar se ganharam ou não. Normalmente, depois
da actuação, as senhoras que acompanham os grupos é que dizem que eles actuaram bem. Sobre
esse aspecto, um dos integrantes do grupo de mapiko afirmou:

Nós conseguimos ver, mas o povo é que diz que nós actuamos bem, mas algumas pessoas de outros grupos
reconhecem e dizem: njomba100, vocês actuaram bem”! Nós também conseguimos admitir que outro grupo
actuou bem e fazemos esforço para superar a performance deles. Nós não gritamos que hoje vamos actuar.
O grupo que entra tem que saber que tem que dar o seu melhor. Cada grupo está a ver e escutar o aplauso das
pessoas, as maravilhas, os movimentos e o barulho em si (entrevista com Victor, 2020).

Shilambo ashi shetu Essa terra (país), mundo, região é nosso


Shetu shilambo ashi shetu É nossa, essa terra é nossa
Shilambo ashi shetu Essa terra (país), mundo, região é nosso
Shetu shilambo ashi shetu! É nossa, essa terra é nossa

Shilambo, significa literalmente terra, espaço onde habitam as pessoas, também pode
significar país, região, ou na dimensão global pode se chamar mundo, mas Israel (2017: 1164),
chama atenção para o sentido ambíguo do termo. Na origem, define a terra sob a autoridade de um
líder de linhagem, o "proprietário mais velho da terra" (nang'olo mwene shilambo) e, portanto, em

100 Apesar de em Shimakonde njomba significar tio materno, notei que alguns amigos se tratam utilizando essa
palavra.

135


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

essência mutante e não territorial. Olhando para a canção acima, entendo que o grupo de mapiko
da PSK, está a afirmar que Moçambique em geral e a PSK em particular é a terra deles, porque foi
conquistada através do combate à opressão colonial. Por conseguinte, eles têm o direito de se
sentirem livres e viverem à vontade. Partindo do pressuposto avançado por Israel, parece-me que
mais do que entidade espacial, a noção shilambo na canção acima tem que ser problematizada,
pois, os Makonde desde a ocupação colonial do seu planalto, sofreram uma desestruturação do seu
modo de vida “comunitário” baseado nos laços de parentesco em que viviam sob a autoridade de
um chefe linhageiro. Na PSK, onde eles convivem com outros grupos etnolinguísticos não se pode
falar de shilambo no sentido espacial ou territorial, pois eles não vivem sob o domínio de nenhum
líder linhageiro, mas sim do Estado moçambicano que na sua relação com os diversos grupos
etnolinguísticos aplica o direito positivo sem discriminá-los em função da sua proveniência
geográfica ou cultural.

Tuke, tuke, tuke (2x) Vamos, vamos, vamos (2X)


Ata kukalepa tuke Mesmo sendo muito longe vamos
Pamo namu wako Juntos com você
Ata kukalepa tuke Mesmo sendo muito longe vamos

Há um princípio de “assimilação” latente entre os Makonde, pois, qualquer pessoa que se


aproxime deles por bem e que manifestar a vontade de aprender a sua “cultura” é bem-vindo. Esta
não é uma coisa recente. Dias (1998) afirma que os Makonde aceitam qualquer pessoa que queira
aprender as suas práticas culturais.

Lúcia mwali wambone Lúcia é moça bonita


Kulavalava kwakee aninomba A sua forma de vadiar
Manyungwe Casou-se com um Manyungwe
Animamena mancheto Lhe fizeram comer carne de raposa
Ulolee Para aprender

Esta canção retrata a estória de Lúcia que era tida como uma bela e boa mulher, mas por causa das suas
brincadeiras acabou casando com um Nyungwe101 e passou a chorar de sofrimento. Nós os Makonde não

101 Grupo etnolinguístico da província de Tete, no centro de Moçambique.

136


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

podíamos fazer nada, senão olhar (entrevista com Cremildo, 2020).

Questionei ao Cremildo se era proibido Makonde casar com um Nyungwe. Ele disse que não
sabia responder com exactidão e que a música apenas diz isso e que os mais velhos anteriormente
pensavam que cada pessoa devia casar no seio do seu grupo etnolinguístico. Na minha perspectiva,
a canção mostra uma tentativa de não misturar Makonde com pessoas de outros grupos, pois numa
entrevista que tive com os Makonde mais velhos eles disseram que antigamente e, na província de
Cabo Delgado de onde são oriundos havia o costume de os Makonde casarem entre eles para
salvaguardarem a identidade grupal (voltarei a este assunto no próximo capítulo).

As canções patentes nesta tese mostram por um lado que de certa forma os Makonde na PSK
possuem no seu repertório canções que também são entoadas em Cabo Delgado. Por exemplo, a
canção sobre Malapende é do tempo da luta armada, o que mostra que as canções remetem ao local
de origem e à exaltação da identidade Makonde.

Ainda no que concerne às canções, os meus entrevistados, afirmaram o seguinte:

Transmitimos mensagens históricas e educativas, mas também falamos sobre o colonialismo e sobre a luta
armada. Mesmo Samora tentou proibir, mas mesmo assim acabou deixando porque os Makonde não
deixavam de dançar (entrevista com Agostinho, 2020).

Tenho algumas ressalvas a fazer sobre o relato anterior, porque literatura que consultei sobre
proibições impostas pelo Governo no pós-independência o mapiko não figura, tanto é que Israel
(2014) mostra no seu livro que o mapiko está em sintonia com os tempos e, nalgum momento foi
apropriado pelos dirigentes da FRELIMO como uma das danças executadas no decurso da luta
armada e depois.

A escolha das canções que são entoadas depende em larga medida do local onde será feita a
actuação. Por exemplo, nas actuações na PSK, o grupo tem mais tempo para o efeito, do que
quando vai actuar num outro local, como por exemplo no Município de Boane.

Quando vamos actuar a convite do Município cantamos por aí 3 músicas por causa do tempo, mas quando a

137


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

actuação é na PSK, nós é que determinamos a duração da dança. Quando o Município nos chama nós é que
escolhemos que canções cantar, mas procuramos abordar aspectos relacionados à campanha eleitoral
(entrevista com Herculano, 2020).

Nós cantamos e dançamos consoante o tempo que nos é dado para actuar. Então, se são 10 minutos ou 5
minutos, conseguimos cantar uma música. Quando digo uma música temos o começo, a música no meio e o
desfecho (entrevista com Artur, 2020).

Não obstante o tempo de execução do mapiko variar em função da audiência, o tópico das
canções não varia muito nos dois locais, excepto quando chega a altura da campanha eleitoral, em
que o Município solicita que o grupo se apresente, sem, contudo, determinar que mensagens devem
ser transmitidas. Respeitando o momento, o grupo entoa as canções condizentes com a ocasião.

Quando é tempo de campanha existem improvisos que surgem ali mesmo, como meter os nomes dos
concorrentes. Se é Nyusi vamos falar de Nyusi102, se é Loureiro103, vamos falar de Loureiro (entrevista

com Artur, 2020).

Durante o trabalho de campo questionei quem escrevia as canções que o grupo entoa e me
disseram que existe um repertório fixo e que os membros mais jovens não compuseram nenhuma
canção.

Quanto à criação das músicas desde que o grupo foi criado, o que posso dizer é que nós somos continuadores.
Então, nós seguimos o que eles já traziam, tanto na parte da música como da dança. Não queremos fugir disso
e nem aumentar nada (entrevista com Luís, 2020).

O relato de Luís reforça a percepção que tive durante o trabalho de campo de que os Makonde
mais velhos estão mais familiarizados com o mapiko do que os mais novos e exercem sob eles
algum poder. Bortolot (2007: 123-124) faz notar que a partir do momento em que os Makonde
mais jovens começaram a migrar para o Tanganhica, começaram a inovar nas máscaras de mapiko.

102
Filipe Nyusi é o actual Presidente da República de Moçambique e que está no seu 2º mandato iniciado a 15 de
Janeiro de 2020.
103
Jacinto Loureiro é o actual Presidente do Município de Boane e que está também no seu 2º mandato, iniciado em
2018.

138


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Esta súbita onda de inovação iniciada pelas gerações mais jovens sinalizou uma mudança radical
nas relações sociais no Planalto de Mueda. Tradicionalmente, os grupos mapiko, como a sociedade
Makonde, eram organizados de acordo com a antiguidade masculina dentro dos clãs matrilineares.
Os tios e avós mais velhos detinham a maior autoridade em grupos de dança e impunham suas
próprias ideias sobre mapiko a seus parentes mais jovens, da mesma forma que controlavam muitos
aspectos de suas vidas além do espaço de apresentação. Simplificando, a participação criativa no
baile de máscaras era igual a poder e autoridade na vida quotidiana (idem). A desestruturação das
linhagens e a alteração nos padrões residenciais provocados pela ocupação colonial, assim como
pela luta armada de libertação e pela mobilidade das pessoas Makonde, gerou alterações no modo
como homens mais velhos e mais novos se relacionam na actualidade, sobretudo no que se refere
aos Makonde que vivem nas cidades ou próximo delas, como na PSK.

Outro aspecto que me parece relevante no relato de Luís decorre da leitura que fiz ao trabalho
de licenciatura de Muendane (2014) sobre a globalização cultural e o grupo de mapiko da PSK,
em que a autora realça que as performances do grupo sofrem influência da globalização, pois, os
meus interlocutores referiram que eles apenas inovam nas coreografias e não nas canções, o que
mostra que o mapiko não é estático e está em sintonia com os tempos, tal como advoga Israel
(2014) no seu livro in step with the times.

Quanto à coreografia isso já depende de nós. O meu colega pode vir com uma música que se lembrou ou que
foi ensinado por uma pessoa idosa. Eu como coreógrafo posso conseguir colocar um passo que vai ao
encontro daquela música, mas isso depende da eventualidade ou ação do momento. O ânimo as vezes nos
ultrapassa e é provável que metamos passo de pandza104 ou essas novas dancinhas de nada só para animar o
ambiente (entrevista com Artur, 2020).

104
O ‘Dzukuta-Pandza’ ou simplesmente ‘Pandza’ é um ritmo musical bastante popular em Moçambique. O ‘Pandza’
surge na segunda metade da década de 2000 e é uma mistura de ‘zukuta’, ‘marrabenta’, ‘hip-hop’ e outros ritmos
moçambicanos. Tem um carácter comercial e os seus hits são ‘Maboazuda’, ‘Menina’, ‘Casa 2” e ‘Teresinha’. Os
cantores mais conhecidos são DJ Ardiles, Ziqo e N’Star. A Dzukuta-Pandza surge como resposta aos críticos do
movimento ‘rapper’ moçambicano, que era visto pela sociedade como uma alienação cultural. Assim, este ritmo é
criado por jovens que se identificam com Moçambique e a sua cultura. É cantado em português e em línguas nacionais.
Regra geral, os temas abordados são de crítica social, o dia-a-dia, os problemas que afectam a maioria da população
urbana, explicando-se assim a sua popularidade. O seu apogeu deu-se entre 2006 e 2008 quando as discotecas, rádios,
e os populares ‘chapa 100’, assim como nas festas, o ‘pandza’ passa a ser uma constante.
https://www.buala.org/pt/palcos/o-dzukuta-pandza-esta-a-bater-em-mocambique. Acesso a 7 de Janeiro de 2021.

139


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Coloco como hipótese para os jovens inovarem na coreografia, mas não poderem fazê-lo no
repertório a seguinte: por aquilo que vi na PSK, os mais velhos não dançam o mapiko com muita
frequência, porque ele demanda muito esforço físico, a roupa que têm que vestir é pesada e o
tempo de preparação para a performance é demorado. Outrossim, os jovens são dançarinos mais
flexíveis e são 3 podendo alternar-se entre os dias de apresentação, o que confere certo dinamismo
à dança. Outro facto a considerar tem a ver com o domínio das canções em si, uma vez que como
demonstrarei na secção em que abordo o shimakonde, os jovens não dominam a língua como os
mais velhos. No dia em que entrevistei alguns membros do grupo de mapiko ficou claro que
existem canções curtas e longas. As longas, por aquilo que percebi, são mais de domínio dos mais
velhos, isso porque eles se expressam melhor em shimakonde. Pedi aos membros do grupo para
entoarem uma canção longa e afirmaram que não conseguiriam, porque a letra escapava da sua
memória.

A flexibilidade que se verifica no manuseamento das coreografias também se verifica no traje


que é utilizado pelo lipiko, em função da ocasião e da audiência. O traje do quotidiano é diferente
do que usa noutras ocasiões.

A nossa veste no quotidiano é diferente, porque existem pessoas mais novas e mais velhas. Vestimos roupa
com foco nos mais velhos no feriado. Por exemplo, quando nos convidam para a missa de um Makonde,
levamos aquele nosso dinembo 105 com tatuagens. Quando estamos na missa de um Makonde por vezes
ficamos de sexta-feira a domingo. Aí temos muito de trabalho de programar como é que o mapiko estará
durante esses dias. Mudamos a fralda. Se é sexta-feira, podemos colocar fralda branca, no sábado que é dia
da cerimónia conseguimos colocar uma fralda que representa o luto. A fralda do luto pode não ser preta, pode
ser azul e da cintura para cima vestimos tudo preto. Nós somos ensinados a fabricar a fralda e a roupa durante
os ritos de iniciação. Quando estamos entre jovens não costumamos escolher o traje. (entrevista com

Augusto, 2020).

Relativamente aos momentos ou ocasiões em que o mapiko é executado, Luís, um dos meus
interlocutores, afirmou que mapiko na PSK é dançado durante o fim-de-semana ou nos feriados.
Apesar de Luís referir que existem dias estipulados para se dançar mapiko, as performances
tendem a ser executadas com menos frequência, pois alguns dos membros do grupo estão ocupados

105 Tatuagem Makonde.

140


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

com outras actividades.

O mapiko é frequentemente dançado nas cerimónias como missas e outras cerimónias Makonde, mas
sobretudo nos ritos de iniciação. Quando há ritos de iniciação, o grupo sai de um sítio para o outro para ir
dançar. Também se dança o mapiko nos feriados e quando o grupo é convidado pelo Governo (entrevista

com Júlia, 2020).

Figura 21. Dançarino de mapiko em performance sob o olhar atento das crianças-foto da autora, PSK, 2015.

No que concerne à obtenção do material para a performance do mapiko, os meus interlocutores


afirmaram que o adquirem na província de Cabo Delgado, sua terra de origem, pois na província
de Maputo não existe.

Quanto ao tipo de máscara que o bailarino de mapiko utiliza os meus interlocutores disseram o
seguinte:

141


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

O bailarino veste a máscara shetani que significa diabo. Apesar de assustar as pessoas, essa máscara deixa
as pessoas mais atentas e assim mais gente assiste. Mesmo quando vamos atuar no Município utilizamos
essa máscara (entrevista com Bartolomeu, 2020).

A despeito de os meus dados me levarem a afirmar que o mapiko é executado na PSK como
mecanismo de autoafirmação étnica, notei que de certo modo transcende essa dimensão, porque
quando os Makonde começam a tocá-lo e a dançá-lo, a aldeia toda se mobiliza em torno do
dançarino mascarado. Ou seja, sendo a PSK uma aldeia multiétnica, todas as pessoas já sabem em
que dia de semana, a que horas e que duração terá a performance. Prova disso, uma vez durante o
trabalho de campo uma rapariga natural da província de Maputo (Rhonga) disse que os Makonde
dançavam mapiko aos sábados, domingos e feriados a partir das 15 horas. Essa resposta mostra
que o mapiko foi apropriado pelos não Makonde também como algo que ocorre com normalidade
e já faz parte da vida da aldeia.

A foto abaixo ilustra uma performance de um dançarino de mapiko em que não estavam apenas
presentes os Makonde, mas pessoas de outros grupos etnolinguísticos que vivem na aldeia.

142


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 22. Dançarino de mapiko ladeado de jovens e crianças durante uma performance- foto da autora, PSK, 2015

143


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 23. Bailarino de mapiko durante performance-foto da autora, PSK, 2016.

O Shimakonde como factor identitário entre os Makonde na PSK

O uso da língua Makonde na PSK depende muito do momento, de com quem se está a
comunicar e do grau de entendimento da língua do emissor e do receptor da mensagem. Na PSK,
os Makonde lá residentes falam três línguas: shimakonde, português e Xichangana. O shimakonde
é a língua da sua terra de origem, o português língua do colonizador que posteriormente foi
adoptada pelo governo pós-independente como língua oficial, visto haver muitas línguas nacionais
em Moçambique e o Xichangana é língua falada no sul de Moçambique. Notei que os Makonde
falam shimakonde entre si no quotidiano de forma normal, mas sobretudo durante os ritos de
iniciação e execução do mapiko.

Observei que os Makonde mais velhos por vezes começavam uma conversa em shimakonde,

144


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

mas de seguida podiam se comunicar em Xichangana ou em português, ou vice-versa. Quando


comunicassem em Xichangana se notava que eles não são oriundos daquele lugar, uma vez que
têm uma dicção diferente dos nativos. Isso não sucede apenas com os Makonde, mas também com
as pessoas de outros grupos etnolinguísticos que não são originários do contexto da PSK. Quando
comunicam entre si, normalmente não misturam com outras línguas, a menos que notem que as
pessoas com quem dialogam não dominam o shimakonde.

Constatei que os mais velhos começavam e terminavam conversas em shimakonde. Apenas


misturavam as línguas quando estivessem com pessoas de outros grupos etnolinguísticos. Os
jovens, por seu turno, misturavam as línguas. Por vezes falavam shimakonde com os mais velhos
e, depois, utilizavam outra língua por não serem de todo fluentes em shimakonde. Desse modo,
pode afirmar-se que o shimakonde constitui um marco nas relações de poder entre os mais velhos
e mais novos. Observa-se um poder gerontocrático, na medida em que os mais velhos é que detêm
o conhecimento da “tradição”. Várias vezes questionei os mais jovens acerca de algumas coisas e
sempre me diziam para colocar as perguntas aos mais velhos. Notei que, diferentemente dos mais
velhos, os mais novos comunicam entre si mais em português e Xichangana. Questionei uma
jovem por que é que tal acontece, ela respondeu:

Não sei. Não sei se é por termos nascido aqui ou por causa da influência, mas com mais velho você lhe
encontra, cumprimenta e falam shimakonde, mas entre nós jovens é difícil (entrevista com Aventina,

2020).

Considero que o facto de os jovens Makonde na PSK não falarem o shimakonde com
frequência e não serem fluentes como os mais velhos não se deve apenas à distância geográfica da
sua zona de origem, mas acima de tudo por causa da diferença de língua de socialização entre os
mais velhos e eles. Os mais velhos foram socializados em shimakonde e os jovens na PSK têm à
sua disposição três línguas: português, Shimakonde e Xichangana. Igualmente, esses jovens
residem num local que teve a sua génese e onde se apregoa constantemente a necessidade de haver
unidade nacional, o que significa que convivem e partilham particularismos culturais. Nesse
sentido, os Makonde têm uma identidade pluridimensional, ou seja, a identidade étnica deles não
é a única através da qual eles se movem no quotidiano. Eles são um conjunto de coisas ao mesmo

145


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

tempo e, em função de quem são os seus interlocutores, uma dessas várias identidades se acentuará.
Nesse sentido, num contexto em que existem pessoas de vários grupos etnolinguísticos, considero
normal que eles escolham a língua em que melhor comunicarão entre eles (visto terem domínio
diferente) e com os demais.

A constatação de os jovens na PSK falarem mais português e Xichangana entre eles suscitou a
curiosidade de saber se eles falariam Shimakonde e em que ocasião. Coloquei essa questão aos
meus interlocutores e afirmaram o seguinte:

Nós falamos shimakonde mais lá dentro dos ritos, porque as vezes somos madrinhas ou mães cuidadoras e
temos que dominar o shimakonde, porque as mais velhas lá explicam as coisas em shimakonde e você como
madrinha tem que traduzir para a menina (entrevista com Aventina, 2020).

Os ensinamentos transmitidos nos ritos de iniciação e a execução do mapiko são em


Shimakonde. É através do Shimakonde que primeiramente se transmite a cultura, a tradição e o
ser Makonde na PSK. Apesar de os midimu dos ritos de iniciação serem feitos em shimakonde, há
espaço para que estes também sejam ministrados em português, dependendo do domínio que as
vali têm do Shimakonde.

Aqui falamos mais o shimakonde nos ritos, mas também português porque há pessoas que não sabem falar
shimakonde. Se as pessoas sabem falar português, também falamos entre nós (entrevista com Raquel,

2018).

O fraco conhecimento do Shimakonde pelos jovens limita o seu entendimento e domínio de


outras componentes relevantes para a “cultura Makonde”. Por exemplo, no que concerne às
canções de mapiko, o baixo conhecimento da língua faz com que os jovens não consigam entoar
as canções longas, ou as canções referentes à luta armada. Os meus interlocutores mais jovens
atribuem esse fraco domínio das canções de mapiko às misturas à que estão sujeitos na PSK.

Aquelas músicas sobre a luta armada focam muito na língua Makonde. Este sangue novo com as misturas
que existem aqui não conseguem cantá-las devidamente, mas os mais velhos cantam. Agora canta-se aquelas
canções curtas, porque as longas as pessoas calam porque não entendem a língua (entrevista com Artur,

146


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

2020).

Na minha perspectiva, o relato de Artur mostra que a língua pode constituir um veículo de
integração e afirmação identitária, mas nalguns casos também pode ser um meio de diferenciação
entre os que dominam e os que não dominam a língua. Sendo a língua parte integrante da cultura,
quando as pessoas não a dominam não podem desfrutar da “cultura” na sua plenitude. Segundo
Mercer (1997: 5), a língua é nossa ferramenta cultural essencial: costumamos compartilhar a
experiência e, portanto, dar-lhe sentido colectivo e conjunto. Ela constitui um meio de transformar
a experiência em conhecimento e compreensão cultural. Gerações sucessivas de uma sociedade se
beneficiam da experiência do passado, especialmente através da língua falada e escrita, e cada
nova geração também usa a língua para compartilhar, discutir e definir a sua nova experiência. A
língua é, portanto, não apenas um meio pelo qual os indivíduos podem formular ideias e comunicá-
las, mas também é um meio para as pessoas pensarem e aprenderem juntas. Partindo do
pressuposto avançado por Mercer e pelos dados de campo que avancei no parágrafo anterior nota-
se que o shimakonde exerce essa função socializadora, de compreensão mútua, de partilha e
sentido de pertença e afiliação ao grupo. Apesar dessa constatação, parece-me que ao longo do
tempo o shimakonde poderá sofrer alterações ou fazer empréstimos de palavras de outras línguas,
uma vez que os Makonde falam algumas dessas línguas. Por conta disso, o shimakonde pode estar
em risco de deixar de ser um marcador que identifique e diferencie com objectividade os Makonde
entre si e os outros.

Na PSK nota-se que os Makonde lá residentes têm orgulho da sua língua e da sua origem, por
isso que falam o shimakonde. Alguns deles referiram que não têm vergonha de falar e assumir a
sua língua, como alguns Makonde da Zona Militar.

Nós falamos à vontade. Os da Zona Militar têm vergonha de falar. Acho que é por estarem na cidade, mesmo
quando vem para aqui não falam shimakonde. Se você fala shimakonde até te olham. Quando chegamos lá
falamos shimakonde porque eles nem percebem. Outras senhoras lá nem sabem falar a nossa língua. Você
pode estar com um Makonde ao lado e não saber, pois não fala a língua. Os da Manhiça falam shimakonde e
xichangana (entrevista com Artemisa, 2020).

A diferenciação feita por Artemisa no uso do Shimakonde pelos Makonde da PSK e os da

147


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Zona Militar demonstra que existe uma percepção de alteridade entre eles. Tal como afirmo na
introdução desta tese não olho para os Makonde como homogéneos. Reconheço que há diferenças
entre eles em função da idade, nível académico, zona residencial, profissão, entre outros.
Igualmente, a diferenciação no uso do shimakonde feita por Artemisa, foi também documentada
no trabalho de Cristóvão (2018) que realizou uma pesquisa na Zona Militar com o intuito de
analisar qual o contributo do Shimakonde na identidade cultural dos Makonde naquele bairro. Uma
das principais conclusões do estudo é de que alguns jovens Makonde por ele entrevistados teriam
vergonha de falar Shimakonde no seio de jovens de outros grupos etnolinguísticos. Essa
constatação me remete para abordagem de Goffman (2002: 13-14), quando afirma que quando
uma pessoa chega à presença de outras, existe em geral alguma razão que a leva a actuar de forma
a transmitir a impressão que lhe interessa transmitir. Independentemente do objectivo particular
que o indivíduo tenha em mente e da razão desse objectivo, será do interesse dele regular a conduta
dos outros, principalmente a maneira como o tratam. Nesse sentido, considero que interessa a esses
jovens fazer crer aos seus pares que por estarem a viver na cidade capital do país não têm nada a
ver com a sua cultura. O relato de Artemisa mostra ainda que a língua é considerada entre os
Makonde como um marcador identitário, de tal forma que apesar de alguém ter sido iniciado (a),
se não domina o idioma é considerado um Makonde incompleto.

Conclusão

Neste capítulo procurei compreender que marcadores os Makonde que residem na aldeia PSK
utilizam para afirmarem a sua identidade étnica e se diferenciarem das pessoas dos outros grupos
etnolinguísticos que lá residem. Os marcadores que eles utilizam para se afirmarem como
Makonde e se diferenciarem dos outros grupos etnolinguísticos são os ritos de iniciação, o mapiko
e o Shimakonde. Importa referir que apesar de estarem longe do seu contexto de origem, os
Makonde procuram replicar os ritos de iniciação tal como eram feitos antigamente pelos seus
ancestrais. Os dados sugerem que eles têm consciência de que estão longe da terra natal, mas
mesmo procuram representar os ritos de forma simbólica. Por exemplo, os rapazes são iniciados
numa casa abandonada distante da zona habitacional, inspirada no mato, onde originalmente os
meninos são iniciados na sua província. Os ritos geram diferença não só entre os Makonde e os
seus vizinhos, mas também entre eles. A primeira diferença se verifica entre os que foram e não
foram iniciados, independentemente do sexo, e entre homens e mulheres, ou seja, ambos os sexos

148


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

passam por ritos individualizados onde aprendem a ser mulheres ou homens Makonde.

Os dados sugerem que os Makonde na PSK executam o mapiko como um mecanismo de


autoafirmação da sua identidade étnica, como forma de garantir que essa prática cultural não
desapareça com o tempo não só por conta da globalização, mas também porque eles vivem num
bairro multiétnico onde os seus filhos nasceram e foram socializados. Para além da componente
autoafirmação étnica, os dados indicam que o mapiko tem estado em sintonia com os tempos, se
moldando e adaptando a eles, o que explica a sua pertinência e persistência ao longo do tempo,
prova disso é a capacidade que os seus executores têm de introduzir passos ou coreografias de
outros estilos e danças, abordar temas do quotidiano ou temas pontuais.

O Shimakonde é mais falado no quotidiano pelas pessoas mais velhas do que pelas mais jovens.
Os jovens por estarem mais expostos a outros ambientes e a uma multiplicidade de valores utilizam
mais o Shimakonde quando estão com os pais ou em cerimónias que dizem respeito aos Makonde.
O conhecimento dos ritos de iniciação e a execução do mapiko são feitos em shimakonde, por
forma a garantir que a língua de origem seja utilizada no processo de (re) produção da identidade
grupal. Apesar disso, por vezes o processo de iniciação é feito em língua portuguesa ou Changana,
porque nem todas as pessoas sabem falar o Shimakonde.

149


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Capítulo IV

Entre os meandros da etnicidade e da moçambicanidade

Introdução

Este capítulo procura responder a algumas questões de pesquisa que coloquei durante a fase
de elaboração do projecto de doutoramento, nomeadamente: o que é ser Makonde na PSK?
Quando é que se identificam como Makonde ou como moçambicanos? As suas identidades
étnica e nacional conflituam ou convivem harmoniosamente? A linha teórica que sigo neste
capítulo defende que a etnicidade pode coexistir e se sobrepor a outros marcadores de identidade
grupal. As solidariedades paralelas podem responder como princípios orientadores a situações
fundamentalmente distintas da experiência do grupo (Amselle, 1990, 2014; Lentz, 1995; Keese,
2010). Os indivíduos estão em constante fluxo e fazem o seu quotidiano em diferentes espaços e
com diferentes pessoas pois tal como assinala Hannerz (1996: 15), “normalmente a pertença a um
grupo étnico, do ponto de vista da identidade social, poderia ser uma coisa ou outra; estar dentro
ou fora”. Ainda de acordo com Hannerz é importante perceber que nem todas as distribuições da
cultura entre pessoas e relações têm de seguir as mesmas linhas. Nesse sentido, também procuro
neste capítulo dar conta do modo como os Makonde mais velhos e os mais novos experienciam a
etnicidade e a moçambicanidade, assumindo e recuperando o que afirmei na introdução desta tese
que não os concebo de modo homogéneo.

Ao longo deste capítulo apresentarei elementos que procuram mostrar que devido ao facto de
o bairro PSK ter sido formado e povoado por decisão governamental que seguiu o ideal de unidade
nacional apregoado desde o campo de treino militar da FRELIMO em Nachingweia e que se
estendeu às zonas libertadas e aldeias comunais, a etnicidade ou a identidade étnica Makonde é
uma das várias identidades que os Makonde que vivem na PSK possuem no seu quotidiano. Há
outros idiomas de convivência e sociabilidade que no quotidiano se sobrepõem à Makondidade.
Essa sobreposição não significa que a identidade Makonde seja impercetível, inexistente ou
irrelevante, mas sim que ela é accionada em momentos tidos como vitais e que reforçam a sua
pertença a uma identidade étnica, tais como os ritos de iniciação, as performances de mapiko e

150


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

quando se fala o Shimakonde. Os Makonde têm noção de que vivem num local em que residem
pessoas de outros grupos etnolinguísticos, respeitam, não exacerbam as diferenças que têm para
com eles, mas continuam com as suas práticas culturais. Outro elemento que levanto neste capítulo
é que existem diferenças na apropriação e manifestação da etnicidade e da moçambicanidade por
parte dos Makonde mais velhos e mais novos. Os meus dados de campo sugerem que os mais
velhos estão mais familiarizados com as questões da etnicidade do que os mais novos, porque eles
nasceram em Cabo Delgado e a maioria dos jovens Makonde nasceram na PSK. Porém, isso não
significa que os mais novos não estejam expostos à etnicidade, mas sim que a sua etnicidade é
mais negociada e em mais espaços do que a dos mais velhos. No que concerne à moçambicanidade,
os jovens e os mais velhos apresentam diferentes concepções de moçambicanidade, se se assumir
que esta vai variando de acordo com as transformações sociopolíticas e económicas.

Dinâmicas de etnicidade entre os Makonde na PSK

Numa acepção geral, a etnicidade significa a auto-identificação e reconhecimento de um certo


de grupo de pessoas de características comuns e a sua diferenciação de outros grupos. Para efeitos
de análise neste capítulo destaco alguns elementos que na minha perspectiva remetem à etnicidade
e que emergiram na fala dos meus interlocutores e nas minhas observações em campo. Tais
elementos são a relação com o local de origem, a escolha de parceiros e relações maritais e a
educação dos filhos. No capítulo anterior referi que os marcadores identitários dos Makonde na
PSK são os ritos de iniciação, o mapiko e o Shimakonde. Apesar desses elementos constituírem
marcadores Makonde na PSK, durante o trabalho de campo notei que os mais novos têm menos
domínio dos mesmos, porque por um lado eles nasceram na PSK, lugar de misturas étnicas, mas
por outro, porque são os mais velhos que detêm o conhecimento sobre essas práticas. Foi frequente
durante o trabalho de campo fazer algumas perguntas sobre aspectos ligados à etnicidade e os
jovens dizerem: “isso quem sabe são os velhos”. Essa resposta dos jovens remete na minha análise
para um poder gerontocrático, onde os mais velhos é que detêm o conhecimento sobre o universo
da tradição, mas ao mesmo tempo indicia que na qualidade de jovens eles têm domínio e estão
mais preocupados com outras coisas que têm a ver com a sua faixa etária.

151


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Relação com o local de origem

Quando se pretende estudar a identidade étnica de pessoas que nasceram num certo lugar e
depois se fixaram noutro por diversos motivos, é importante tentar perceber se mantêm contacto
com o seu lugar de origem, com que frequência e por que motivo. Um dos meus interlocutores
assinalou que está ciente da sua condição de “viente” (migrante) e de seus companheiros veteranos.

Antes de tudo nós somos Makonde, nossa terra é Cabo Delgado. O que nos trouxe aqui foi a guerra e a
independência. Dizemos isso aos nossos filhos (entrevista com Romão, 2020).

O relato de Romão espelha o que a maioria dos veteranos Makonde, assim como de outros
grupos etnolinguísticos com que interagi disseram durante o trabalho de campo: “que eles foram
se fixar na PSK por causa da sua afiliação à FRELIMO, participação na luta armada de libertação
nacional e, no pós-independência obedeceram ordens do governo pós-independente de fixarem
residência onde este determinasse”. Apesar de cumprirem com a directiva de se fixarem onde o
governo estipulasse, eles não deixaram de ser Makonde. Por essa razão continuam com algumas
práticas tidas por eles como aquelas que os identificam, tal como mostra o relato abaixo:

Os ritos são nossa tradição e nós valorizamos muito a nossa tradição, por isso não acaba (entrevista com

Raul, 2016).

Outro veterano referiu que também diz aos seus filhos que a sua chegada e vida na PSK foi
contingencial, pois fixaram residência na zona por deliberação governamental no pós-
independência.

Costumo dizer aos meus filhos que aqui apenas viemos através da independência. A nossa província é lá em
Cabo Delgado onde está a maioria da nossa família. Eles aceitam que Cabo Delgado é a nossa terra, apenas
não vão por causa das condições. Agora não sei quanto custa, porque já há algum tempo que não vou, mas
antes era 4500106 ida, 4500 volta. Para chegar lá saindo daqui de Maputo são 4 dias: 3 no caminho e 4º dia
chegada (entrevista com Dinis, 2020).

106
Cerca de 49,76 euros.

152


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

O relato de Dinis levanta alguns aspectos que na minha perspectiva se relacionam com as
condições precárias em que vive a maioria dos veteranos da luta armada de libertação nacional.
Os mesmos têm como actividade económica predominante a agricultura. Alguns deles recebem
pensões pagas pelo Estado moçambicano, mas as mesmas são insuficientes para sustentar a si e
suas famílias. Por exemplo, em 2015, a pensão mensal de um veterano da luta armada era de cerca
de 20 euros, o equivalente na altura a 1120 Meticais. Como se pode depreender, o custo de uma
viagem à Cabo Delgado ultrapassa de longe o valor mensal pago aos veteranos. Pese embora os
veteranos da luta armada sejam considerados heróis, alguns deles não recebem a pensão mensal a
que tem direito, ou recebem o valor irrisório acima mencionado. Alguns estudos como de Wiegink
(2013) têm demonstrado o quão sinuoso tem sido para os veteranos beneficiar da pensão a que têm
direito. Apesar de a autora afirmar que existe uma relação de dependência entre o governo e os
veteranos, nota que o único ponto de discórdia entre ambos se refere à questão das pensões, pois
nem todos eles as recebem. As conexões entre a AMODEG107, a estrutura do Partido FRELIMO,
ou instituições no governo local no processo de atribuição de pensões mostra que a logística à nível
local desempenha um papel de relevo na distribuição de pensões aos antigos soldados do governo,
acelerando ou retardando algumas solicitações. Em Setembro de 2020, nas vésperas da
comemoração do dia 7 de Setembro, considerado dia da vitória, o então 108 ministro dos
combatentes Carlos Siliya 109 , referiu: "todos os veteranos têm pensões fixadas no país. Neste
momento, o processo de registo em curso é para os combatentes da defesa da soberania e
integridade territorial, mas somente para aqueles que estão abrangidos no processo dos Acordos
Geral da Paz. Espera-se que até ao fim do quinquénio o registo destes termine". Ora, na PSK, os
veteranos com que interagi afirmaram que recebem as suas pensões com regularidade, mas apenas
lamentam o valor que consideram irrisório. Quando questionei se já escreveram ou reclamaram
junto a quem de direito, os veteranos responderam:

Ainda não fui chorar e não reclamei por escrito. Apenas lamento sozinho (entrevista com veteranos,

2020).

107
Associação Moçambicana dos Desmobilizados de Guerra.
108
Carlos Siliya foi exonerado do cargo pelo Presidente da República a 1 de Março de 2022.
109
Pronunciamentos feitos ao Jornal O País de Moçambique em Setembro de 2020. Fonte: https://www.dw.com/pt-
002/veteranos-devem-combater-terrorismo-em-cabo-delgado-refere-ministro/a-54827213. Acesso a 17 de Março de
2021.

153


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Nós podemos dizer que os nossos problemas estão a ser resolvidos, porque temos onde os colocar. Já sabemos
para onde encaminhar os documentos, só que o que mais nos faz lamentar é o vencimento, porque é pouco,
por isso estamos a reclamar. Os nossos responsáveis é que sabem se a reclamação será atendida e temos
esperança, porque estamos a informar ao nosso chefe, talvez amanhã o vencimento melhore (entrevista

com veteranos, 2020).

Nós apresentamos os nossos problemas aos nossos responsáveis quando temos reuniões (entrevista com

Jaime, 2020).

Perguntei aos veteranos quem era o responsável deles e em uníssono afirmaram que se trata da
ACCLIN. Segundo eles, a ACCLIN é que é a sua interlocutora e canaliza as suas preocupações
para junto do Governo. Também procurei saber quando é que foi a última visita que eles receberam
da ACCLIN e eles disseram que o Secretário Geral da agremiação se deslocou à PSK pela última
vez em 2015. Também perguntei se quando colocam as suas preocupações elas são resolvidas. Os
veteranos afirmaram que nas reuniões que têm com a ACCLIN às vezes explicam a que é que eles
têm direito, mas mesmo assim nem todos se beneficiam.

Apesar de os veteranos afirmarem que a viagem para Cabo Delgado é onerosa, fazem esforço
de pelo menos uma vez criarem condições para que os filhos possam ir para lá. Esse é o caso de
Teresa que mesmo sem ter nascido em Cabo Delgado, foi para lá uma vez.

Eu nasci aqui na PSK, mas fui para Cabo Delgado em 1999, quando tinha um ano de idade. Vim de lá para
cá quando tinha oito anos. Este 2020, era para ser a primeira vez a ir para lá, mas por causa da pandemia não
pude ir. Os meus pais é que vão e voltam. As vezes quando vão ficam lá três meses e depois voltam
(entrevista com Teresa, 2020).

Em várias conversas que mantive com Teresa durante o trabalho de campo ela afirmou que tem
consciência de que a sua terra de origem é Cabo Delgado e que é importante lá ir. Segundo ela, o
seu pai sempre diz que a terra deles é Cabo Delgado e a sua chegada na PSK foi contingencial.
Ouvir ser pai falar sempre de Cabo Delgado como sua terra de origem, permite que Teresa idealize
e se familiarize com o lugar onde ele nasceu. O relato de Teresa acima apresentado mostra que

154


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

para ir para Cabo Delgado, mesmo sendo dentro de Moçambique, é preciso planificar bem a
viagem em termos monetários e de duração, pois, comprar a passagem de ida e volta, significa
hipotecar ou sacrificar o poder de compra familiar, na medida em que como referi acima, os
veteranos não dispõem de muitos recursos financeiros. Desse modo, a decisão de ir para Cabo
Delgado visitar familiares, amigos, túmulos ou adquirir alguns materiais não é de todo uma decisão
isolada e meramente pessoal, porque essa planificação inclui pensar em casa de que familiar serão
recebidos, quem irão visitar e quando, assim como o que deixar para os que ficam em Maputo.
Durante o trabalho de campo notei que a relação que os Makonde da segunda geração mantêm
com Cabo Delgado é passiva, porque a ligação tem sido de iniciativa dos seus pais, mas a sua
incapacidade de custear viagens por vezes atrapalha a sua intenção de aproximar os filhos da sua
Makondidade. Esse esforço de fazê-los manter o contato com a terra de origem não tem a ver com
o contacto físico, mas sim com a necessidade de os fazer reconhecer a sua herança ou pertença
étnica.

Visto estar-se na era da globalização e Tecnologias de Informação e Comunicação, alguns dos


meus interlocutores referiram que mesmo que não consigam ir à Cabo Delgado, conseguem
interagir algumas vezes com os seus parentes que lá vivem através do telemóvel e algumas redes
sociais. Manuela, uma das minhas interlocutoras, disse que ela e outros membros da sua família
residentes na PSK, comunicam com os seus parentes que estão em Cabo Delgado de três em três
meses. Outros interlocutores, apenas diferem de Manuela e de seus familiares na frequência com
que mantêm o contato com os seus parentes na terra de origem. Durante o trabalho de campo, notei
uma reciprocidade no acolhimento entre os Makonde residentes na PSK e os seus parentes que
vivem em Cabo Delgado. Do mesmo modo que quando vão para lá se hospedam em casa de alguns
deles, os seus familiares também recorrem a eles em momentos que precisam de ser acolhidos na
província de Maputo. Por exemplo, um dos meus interlocutores referiu durante uma entrevista que
recebeu alguns parentes vindos de Cabo Delgado e que estavam a fugir dos ditos ataques terroristas
que assolam a província desde 2017. Não pude conversar com essas pessoas, pois se encontravam
traumatizadas por conta das atrocidades que testemunharam, inclusive a decapitação de um dos
seus familiares.

A maioria dos meus interlocutores afirmou ir a Cabo Delgado visitar parentes/familiares e

155


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

túmulos, mas alguns jovens revelaram que vão a Cabo Delgado não só porque a maioria da família
está lá e para a visitar, mas também para adquirir alguns materiais relevantes para a continuidade
das performances de mapiko na PSK.

A importância de irmos a Cabo Delgado é visitarmos as nossas famílias e comprarmos as máscaras de


mapiko, porque aqui raramente encontramos a madeira que se usa para a sua produção. Para além das
máscaras, é lá onde adquirimos aquelas coisas que colocamos na cintura para fazerem barulho e chamarem
a atenção das pessoas quando estamos a dançar (Luís e Artur, 2020).

Luís e Artur realçam o lugar de origem não apenas como local de emoções e convívio
familiar, mas também como o garante de manutenção da sua etnicidade na PSK, na medida em
que é lá onde compram os materiais que corporizam as performances de mapiko. Nesse sentido,
concordo com o posicionamento de Carlos (2007:22) quando afirma que “a análise do lugar
envolve a ideia de uma construção tecida por relações sociais que se realizam no plano vivido, o
que garante a constituição de uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela história (...)
que produz a identidade homem-lugar, que no plano vivido vincula-se ao conhecido-reconhecido”.
Assim, o lugar não se circunscreve apenas ao espaço físico ou à terra, mas a todos os significados
e usos que existem em torno do mesmo. Trazer esses objectos também permite tentar encurtar a
distância que existe entre os meus interlocutores e a sua terra de origem. A ideia e a percepção que
os Makonde da segunda geração têm sobre Cabo Delgado é imaginada a partir do que lhes é dito,
pois não possuem uma experiência direta com a terra.

Escolha de parceiros e relações maritais

No que concerne à escolha de parceiro e às relações maritais, nota-se uma convergência de


pensamento entre os veteranos Makonde e os seus filhos, na medida em que ambas as gerações
diferenciam os espaços e o que se fazia antes e actualmente. A seguir apresento um relato de uma
jovem Makonde e de seu pai.

No começo nossos pais diziam que um Makonde deve casar com outro Makonde. Em Cabo Delgado isso
ainda funciona. Dizem que não podemos casar com uma pessoa que não é Makonde, porque vai nos tirar o
apelido e nos levar para outra província. Mas agora nós os filhos já não aceitamos, porque estamos a fazer as
nossas escolhas. Principalmente nós que estamos aqui na cidade, não aceitamos. Antigamente tiravam foto
da pessoa, do tal marido e te diziam este aqui é o teu marido e tinhas que aceitar. Agora nós escolhemos o

156


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

marido que achamos melhor (entrevista com Alice, 2020, PSK).

Implicitamente, Alice faz uma distinção entre os Makonde que vivem na cidade e a sua terra
de origem. Fazendo uma análise das suas palavras, depreende-se que a cidade constitui um espaço
de maior liberdade e de desenraizamento cultural, onde o poder da parentela/familiar sofreria uma
erosão, nos moldes do modelo Parsoniano de análise dos laços familiares em meio urbano (Cfr.
Parsons 1968; Parsons, 1969). Na opinião de Alice, a família ou a parentela na cidade, perde o
poder de decidir quem será o esposo ou a esposa do seu filho ou filha, mas mesmo assim tal não
implica que o candidato ou candidata a esposo ou esposa não deva preencher alguns critérios, tal
como mostrarei no discurso do pai de Alice. Igualmente, o relato de Alice remete à canção sobre
a rapariga Lúcia que apresentei na secção sobre o mapiko no capítulo 3 desta tese. De acordo com
a canção, Lúcia era uma jovem Makonde bela e por conta da sua “vadiagem” casou-se com um
jovem Nyungwe e ela começou a sofrer, pois, durante muito tempo os Makonde casavam entre si,
para garantir que a coesão do grupo não fosse abalada, pois acreditavam que se casassem com
pessoas de outros grupos etnolinguísticos poderiam perder os seus valores culturais, na medida em
que os outros grupos poderiam não realizar os ritos de iniciação nos moldes que eles o fazem.
Actualmente, as raparigas Makonde na PSK estão mais preocupadas em encontrar um homem que
amem, que as respeite, cumpra com os procedimentos necessários para a formalização do seu
relacionamento, mas que também mostre que tem futuro, ou seja, alguém que esteja a estudar, um
emprego ou consiga se sustentar, mas de forma honesta. Importa realçar que a possibilidade de
recusar um pretendente escolhido pelos pais não é recente ou fruto de uma suposta modernidade.
Dias & Dias (1970: 66) afirmam que as preferências das raparigas pelos noivos são altamente
influenciadas pela atracção pessoal e houve casos em que raparigas rejeitaram terminantemente o
noivo proposto pela tradição e conselho familiar, aguentando todas as consequências, às vezes bem
dolorosas, que resultaram de se opor ao casamento tradicional em favor de um indivíduo escolhido
pelo coração. A canção sobre a rapariga Lúcia sintetiza as consequências de não optar por um
casamento arranjado pelos pais ou familiares.

O pai de Alice quando coloquei a questão relativa às relações maritais e escolha de parceiros,
afirmou o seguinte:

157


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Se a minha filha vier com um rapaz que não é Makonde e quiser casar eu vou aceitar desde que seja respeitoso
e tenha boas intenções. Lá em Cabo Delgado é que antigamente um Makonde casava com outro. Não sei se
ainda é assim. Era uma questão de tradição, porque como fazemos ritos e outros de outros grupos não fazem,
então não era fácil nos juntarmos. Agora já não sei se se usa muita tradição, porque o Estado diz que tem que
se registar o casamento (entrevista com Alfredo, 2020).

Tal como referi quando analisava o discurso de Alice acima apresentado, o facto de os pais
não mais escolherem os cônjuges dos filhos, não significa que os mesmos estejam isentos de
preencher determinados critérios. É notório no discurso do pai dela que eles actualmente esperam
por um genro com boas intenções. Uma pessoa com boas intenções seria alguém que quer casar,
respeitar o parceiro (a), os seus pais e cuidar deles. Outro aspecto digno de realce no discurso do
pai de Alice tem a ver com o facto de ele diferenciar comportamentos relativos à tradição e à
modernidade. Nesse sentido, ele associa os ritos à tradição e o Estado à modernidade. Nota-se que
para o meu interlocutor, o Estado é um símbolo da modernidade e que coloca todos os grupos
etnolinguísticos na “mesma página”. Outro factor que me parece relevante assinalar olhando para
os relatos é que os pais, por serem veteranos, reconhecem que os filhos ou filhas podem casar com
pessoas de outras etnias, pois foi neles inculcado durante o treinamento militar, na luta armada e
na convivência com essas “outras pessoas” “o gene da unidade nacional”, diferentemente daqueles
que mesmo estando na província de Cabo Delgado onde iniciou a epopeia libertadora, estiveram
expostos de perto e “sentiram na pele” os ideais apregoados pela FRELIMO. Esse é um ganho da
socialização militar em Nachingweia, em que as pessoas independentemente da sua origem
geográfica e cultural poderiam estar juntas e até contraírem matrimónio. Segundo um dos meus
interlocutores, algumas pessoas de grupos etnolinguísticos diferentes casaram-se durante a luta
armada como mecanismo de matar aquilo que os dirigentes da FRELIMO denominavam de
tribalismo. Após fixação dos Makonde na PSK, os que não tinham ainda constituído família o
fizeram com mulheres locais.

Em Cabo Delgado actualmente essa prática já não acontece. Há muito tempo, a escolha era com base nos
critérios colocados pela etnia Makonde e se obedecia. Por exemplo, eu já sou grande para ter uma mulher. A
minha família antigamente teria que procurar a filha de um tio meu para casar comigo. Se a mulher do tio
concebesse e desse a luz a uma menina, logo ela era atribuída como mulher a alguém. Outro critério que era
utilizado era se o jovem estivesse pronto para casar, os tios tinam que procurar uma moça bem-educada e
que trabalha bem na machamba e se pedia a sua mão em casamento. Dependendo do comportamento de

158


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

ambos, mesmo sem conhecerem-se casavam, pois, os tios é que tinham o poder de escolher (entrevista

com Paulino, 2020).

Olhando para os relatos de Alfredo e Paulino, nota-se que tanto os Makonde mais velhos
quanto os seus filhos reconhecem que não estão no seu “meio original” e, por conta disso, certas
práticas como a escolha de parceiro (a) por parte dos pais estão descontinuadas. Quanto a Paulino,
nota-se que ele atribui a paragem de escolha de mulher ou marido para os filhos ao tempo.
Questionei por que é que acha que se parou de escolher marido ou mulher para os filhos em Cabo
Delgado e sem hesitar ele disse:

Acho que é por causa da dinâmica da vida social “globalização”. Nos tempos vivíamos em pequenos grupos
(clãs) e pensávamos diferente do que se pensa hoje (entrevista com Paulino, 2020).

Paulino, terminou recentemente uma licenciatura na área de Gestão e Estudos Culturais. Por
conta disso, está familiarizado com a temática da globalização. Apesar de ele atribuir essa mudança
à globalização, me parece que mais do que globalização, o que ocasionou essa paragem na escolha
de maridos ou mulheres pelos pais ou tios no seio dos Makonde, foi a desestruturação do modo de
vida comunitário e de base linhageira no seio deste grupo, decorrente da luta armada e da nova
ordem política no pós-independência. Israel (2006) refere que em nenhum outro lugar em
Moçambique houve uma revolução real como no planalto de Mueda e, por conta disso,
verificaram-se transformações profundas e radicais nas seguintes componentes: mudança nos
padrões residenciais, unificação, educação e nacionalização, militarização, prestígio regional,
coletivização, diminuição do poder tradicional e empoderamento da nova geração. Nesses
elementos que Paolo Israel aponta e no que concerne à escolha de parceiros e relações maritais
considero relevante destacar a mudança nos padrões residenciais. West (1998) apud Israel (2006:
117) refere que os Makonde viviam em pequenas aldeias matrilineares com a população variando
de famílias nucleares a centena de pessoas. Durante a luta armada essas pessoas viviam em
conglomerados de pequenas cabanas escondidas debaixo das árvores na floresta, principalmente
nas terras baixas. No fim da guerra, elas se juntaram ao projecto da FRELIMO de aldeias
comunais, que construiu centenas de aldeias organizadas, onde juntou pessoas de diferentes
lugares e clãs. Assim, os Makonde estiveram expostos à desestruturação dos seus laços

159


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

comunitários primários desde a luta armada e à convivência com pessoas de diferentes lugares e
práticas culturais. Esse fenómeno contribuiu para a sua abertura e convivência com a diferença,
razão pela qual actualmente é permitido que um Makonde ou uma Makonde se case ou viva
maritalmente com uma pessoa de outro grupo etnolinguístico, o que demonstra que a etnicidade
não é estática e se reconfigura em meio a diversas transformações que vão acontecendo, tal como
advoga Israel (2006: 122) “ a ideologia da unidade nacional evitou que os Makonde desprezassem
e criticassem pessoas de outros grupos etnolinguísticos por conta da sua identidade étnica ou
parentesco”.

Ainda no que concerne às questões ligadas ao casamento, sobressaiu nas conversas que
mantive com algumas jovens que elas recebem conselhos sobre a vida matrimonial, sobretudo
sobre como se comportar perante os sogros. Gilda, disse-me que os pais dela costumam dizer que
ela tem que cuidar bem do seu lar, que ela deve ser firme, não ser criança, ser uma pessoa que tira
os dentes em qualquer altura. Importa referir que esse ensinamento é dado quando a mulher
apresenta o seu namorado aos pais e já existe alguma perspetiva de casamento ou de ir viver com
ele. Também dizem que ela não pode se comportar como alguém que está a ir a uma guerra onde
vai lutar com os sogros para ganhar o marido. Ela deve cuidar bem dos sogros, tal como cuida do
marido. Os pais de Gilda utilizaram uma metáfora para ensinar-lhe que deve estar sempre
sorridente, pois a expressão tirar os dentes, pelo menos na cidade e província de Maputo significa
sorrir ou rir. Ao sorrir ou rir para os sogros, ela denota felicidade e alegria. Espera-se que sempre
os receba com alegria e de braços abertos. Esse ensinamento é dado principalmente às mulheres e
tem muito ver com os papéis de género construídos para a mulher entre os Makonde. Essa postura
indica que acima de tudo a rapariga é bem-educada. Lopes (2011) que realizou um estudo sobre o
que é ser bem-educada entre os Makonde na ex-zona militar na cidade de Maputo afirma que entre
os Makonde naquele lugar só é considerada bem-educada a rapariga que tiver passado pelos ritos
de iniciação, porque é lá onde elas aprendem a comportar-se de acordo com as expetactivas sociais.
Uma dessas expectativas é saber e reconhecer que os mais velhos têm domínio de vários elementos
que constituem o mundo e que a senioridade é uma dádiva oferecida pelos ancestrais a quem
passou toda a vida respeitando a tradição (Cossa, 2014: 116). Partindo dos achados de pesquisa de
Lopes e Cossa sobre a noção kukamalanga na mene, questionei uma mulher makonde acerca do
que é ser uma boa nora entre eles. Ela respondeu que a noção significa que a rapariga é sábia ou

160


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

inteligente, mas também o termo se aplica a quem de modo geral respeita a família, sabe
cumprimentar as pessoas ao acordar ou às pessoas que encontra na rua. Segundo a minha
interlocutora, a noção também se aplica a quem sabe cuidar-se. Partindo dessa noção e do que a
minha interlocutora disse, considero que “mostrar os dentes” aos sogros se enquadra na categoria
kukamalanga na mene, porque é sinal de respeito pela sua idade, papel e senioridade.

A educação dos filhos

A educação dos filhos dos Makonde na PSK obedece a um modelo híbrido, se considerar-se
que a educação ocorre em diversos espaços e não se circunscreve apenas à escolarização. No caso
dos Makonde na PSK, a sua educação ocorre num seio mais formal e governamental, que é nas
escolas e no meio mais informal, que é dos ritos de iniciação. O que constatei na PSK me leva
afirmar que os Makonde dão importância à educação formal e à informal e que têm consciência
da diferença, importância, dos momentos e dos espaços em que ambas ocorrem. Nesta secção não
irei me debruçar sobre a educação formal, mas sim sobre os padrões educacionais comunitários
que na minha perspectiva inculcam os valores da etnicidade. Normalmente entre os Makonde na
PSK, a educação dos filhos depende do sexo da criança, ou seja, se for menina quem a educa é a
mãe, se for rapaz é o pai.

Se o casal vive junto, os dois é que devem educar, pois a criança tem que saber que este é papá e esta é mamã.
Se a criança vive apenas com um deles irá receber a educação da pessoa com quem mora (entrevista com

Alice, 2020).

No meu caso quem me dá educação é a minha mãe, porque vivo só com ela. O meu pai saiu há dez anos e só
vem uma vez por ano, mas agora por causa do coronavírus está cá. O meu pai é Makonde e a minha mãe
Changana (entrevista com Bartolomeu, 2020).

Bartolomeu, tem estado a ser educado pela sua mãe, porque o pai passa mais tempo em Cabo
Delgado do que na PSK. Nesse sentido, a mãe acaba tendo duplo papel, que é ser mãe e tentar ser
pai em simultâneo. Isso mostra que apesar de os meus interlocutores colocarem de forma clara de
quem é a responsabilidade de educar os filhos, “as excepções confirmam as regras”, ou seja, há
casos de famílias monoparentais, onde pela ausência do outro, um deles tem que assumir as mais

161


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

variadas funções e tarefas. O caso de Bartolomeu indicia que apesar de ter passado pelos ritos de
iniciação, pode não agir de acordo com aquilo que está padronizado para um homem Makonde,
por viver e passar maior parte do tempo com a sua mãe.

O pai de Alice respondeu à questão relativa à educação dos filhos afirmando o seguinte:

Se for um rapaz o pai é quem educa, se for menina é a mãe, mas se o Makonde tiver se casado com uma
senhora de outra província, ele é quem educa a criança mesmo sendo menina (entrevista com Alfredo,

2020).

De certa forma os relatos de Bartolomeu e Alfredo convergem, pois denotam a separação


de espaços considerados de esfera masculina e feminina, contudo, o relato de Alfredo mostra ainda
a centralidade dos ritos de iniciação para os Makonde. Mesmo sendo uma menina, caso a mãe
discorde ou ignore a importância dos ritos de iniciação para a sua filha, o pai faz questão de decidir
levá-la aos ritos para garantir que esta aprenda o modus vivendi do seu grupo, tenha bom
comportamento e, através disso, ele e sua família sejam bem vistos na comunidade, pois como
documenta Cossa (2014:66) “ a honra está muito presente na decisão de enviar as filhas para os
ritos de iniciação (...) o esforço intelectual, material e físico que os pais empreendem para enviar
os seus filhos aos ritos de iniciação é importante na imagem que estes constroem de “bons pais” e
pessoas engajadas na manutenção da tradição”. Por isso, apesar de os pais saberem que os filhos
nasceram na PSK, sempre procuram educá-los dentro da tradição Makonde.

Para além do sexo da criança há que considerar a origem étnica dos pais no momento de
decidir se se envia os filhos ou não para os ritos de iniciação. Por exemplo Graça, uma das minhas
interlocutoras disse que uma mulher Makonde, caso case com um homem de outra etnia não pode
impor que ele aceite que os filhos sejam submetidos aos ritos de iniciação. Perguntei como é que
ficaria a imagem dela perante os outros Makonde, visto ser para eles de capital importância levar
os filhos aos ritos. Segundo ela, ficaria envergonhada se a criança fosse uma menina, pois a
educação da menina é da responsabilidade da mãe e ela é que conhece os segredos femininos.

Apesar de os Makonde na PSK realizarem ritos de iniciação que são considerados um padrão

162


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

entre eles, alguns deles reconhecem que há diferenças no comportamento entre eles e os que estão
em Cabo Delgado.

Aqui na PSK é difícil notar quem é Makonde e quem não é, porque o comportamento parece igual. Em Cabo
Delgado consegue se notar quem é e quem não é. Através do vestuário você consegue se é Makonde ou não.
Aqui em Maputo nós praticamente estamos a copiar o comportamento das pessoas daqui. É raro aqui
encontrar uma Makonde que está aqui na cidade a passear enquanto amarrou capulana, mas em Cabo Delgado
tanto moças, assim como moços você vai ver de capulana. A moça você vai encontrar com uma capulana na
cabeça e na cintura. Você vai notar que ela é Makonde. Os rapazes que estão nos ritos de iniciação você vai
notar que são Makonde por causa da fala. Quando estão lá são muito intimidados, são ditos que estão a passar
de uma fase para outra. Também são ditos que quando saírem as mulheres que encontrarem lá fora tem que
ser tratadas como suas mães e tias, do mesmo modo que trataria as pessoas que estão na sua casa (entrevista

com Alice, 2020).

Olhando para a fala de Alice, nota-se que enfatiza a cidade como lugar de liberdade e
desenraizamento cultural. Segundo ela, a capulana seria uma marca distintiva entre os Makonde
que vivem na cidade de Maputo e os de Cabo Delgado. Vezes sem conta durante as nossas
interacções, repisou que os Makonde de Cabo Delgado são diferentes daqueles que vivem na
cidade. Parece-me que ela olha para os de Cabo Delgado como os Makonde originais e que não
teriam sofrido qualquer influência. Na minha perspectiva, esse posicionamento advém das coisas
que o seu pai fala acerca de Cabo Delgado e dos Makonde lá residentes. Ela afirmou em várias
ocasiões que os Makonde da ex-zona Militar têm comportamento diferente do deles e consideram-
se melhores por viverem na cidade. Ela também destacou que os Makonde da ex-Zona Militar não
agem de forma diferente apenas com os da PSK, mas também com outros conterrâneos residentes
no bairro da Malhangalene, cidade de Maputo.

Os Makonde da ex-Zona Militar e os da Malhangalene eram o mesmo grupo, mas de repente discutiram.
Aqueles ali têm nhenhenhém110, são pessoas da cidade. Não sabem se unir, não sabem! Quando há ritos de
iniciação os Makonde da Malhangalene vem pedir reforço a nós para ajudarmos a organizar na cerimónia.
Eles pedem nossa nalombo e arcam com todas as despesas. Malhangalene e ex-Zona Militar são zonas
próximas, porque é que vêm pedir ajuda na PSK que é distante? Quando chega momento dos ritos na Zona

110
Nhenhenhém é uma expressão da língua portuguesa que significa falatório, conversa mole. Também é usada para
descrever alguém que fala demais, que resmunga e cuja conversa tem sempre um tom incomodativo ou monótono.
https://www.significados.com.br/nhenhenhem/. Acesso a 21 de Março de 2021.

163


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Militar podem entrar 50 crianças e na Malhangalene apenas 2, mas não se ajudam. Podiam juntar e fazer
apenas uma cerimónia. Nós aqui na PSK podemos marcar uma data e Malhangalene marcar a mesma data e
todos virem para cá, ou adiarem a data de entrada nos ritos esperando que nós acabemos deste lado para
irmos reforçá-los (entrevista com Alice, 2020).

Como se pode constatar no excerto anterior Alice elenca alguns factos que na sua perspetiva
fazem com que os Makonde da ex-Zona Militar ajam de modo errático. Seguindo a sua fala se
percebe que ela afirma que eles não são pessoas de fácil trato e que gostam de conviver, porque
vivem na cidade. Uma vez mais ela atribui o comportamento dos seus conterrâneos à cidade como
lugar de ausência de solidariedade e sentido de partilha. Também afirma que por conta do seu
comportamento houve cisão entre eles e os que estão na Malhangalene. Percebe-se que no seu
imaginário deveria haver uma solidariedade e união entre os Makonde, independentemente da sua
área de residência e dos valores a que estão expostos. Penso que este último ponto é interessante
na medida em que a própria Alice noutras ocasiões disse que entre os líderes Makonde baseados
na cidade (ex-Zona Militar e Malhangalene) e província de Maputo (PSK e Maragra) há união e
colaboração. Isso me faz pensar que a desunião se verifica no seio dos jovens, pois num outro
momento ela se queixou da falta de acolhimento dos Makonde da ex-Zona Militar aos seus
conterrâneos da PSK quando estes vão para lá para participar dos ritos de iniciação.

Paulino, também me falou das diferenças que existem na educação dos filhos na PSK e em Cabo
Delgado:

A educação tradicional nas cidades não se faz sentir, como nas zonas rurais, devido ao ambiente em que se
encontram. Por exemplo, as crianças Makonde nas zonas rurais brincam com o mapiko muito cedo, enquanto
que nas cidades isso não acontece. A educação cultural no campo tem maior impacto em relação aos centros
urbanos. O factor língua materna/bantu é um dos meios importantes na transmissão dos valores culturais. A
educação dos filhos das cidades limita-se à língua portuguesa e existem algumas palavras que os adultos
conhecem em shimakonde, mas que desconhecem o seu sentido (entrevista com Paulino, 2020).

A fala de Paulino remete-me às discussões antropológicas acerca da distinção rural versus


urbano. Visto eu sempre procurar olhar para as coisas através da perspectiva dos meus
interlocutores, perguntei ao Paulino o que é que distinguiria na sua opinião o urbano do rural e ele
referiu o seguinte:

164


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Para mim a cidade pode ser caraterizada pelo número de habitantes em uma dada área, conexões urbanas e
um estilo particular de vida. Esses são alguns aspetos que diferenciam uma cidade do meio rural. Acho que
a população de uma certa cidade tende a levar o mesmo estilo de vida, partindo dos seus hábitos e costumes,
uma vez que convivem com pessoas de diferentes etnias e cultura. A meu ver na cidade vigora mais a questão
da globalização. Nas zonas rurais as pessoas vivem em pequenos grupos, ou por outra podem existir muitas
etnias no mesmo distrito. Cada bairro é caraterizado por uma etnia e nessas zonas, cada grupo demonstra o
que é (entrevista com Paulino, 2020).

Paulino, a seu modo acaba por reificar a velha distinção feita outrora na literatura
socioantropológica em torno do rural e do urbano como entidades antagónicas. A sua fala elenca
aspetos como a densidade populacional, ou seja, segundo ele, no meio rural as pessoas vivem em
pequenos grupos. A ideia de que na cidade há mais pessoas carece de contextualização, pois, por
exemplo, em Moçambique, estatísticas111 indicam que a maior parte da população reside no meio
rural. Paulino também afirma que a cidade tem um modo de vida caraterístico. Sem se aperceber
e sem estar à par das teorias antropossociológicas sobre o urbano e o rural, recupera a visão de
Wirth (1938), pois este afirma que o urbanismo constitui um modo de vida, quando diz que a
cidade possui um estilo de vida particular. Outro aspecto que me chama atenção é Paulino dizer
que na cidade as pessoas têm o mesmo estilo de vida. Parece-me que isso seja pouco provável, na
medida em que olhando para a cidade de Maputo gente de diversas origens e zonas do país
confluem nesse espaço e mesmo as pessoas nascidas nesse espaço são e agem diferente uma das
outras. Na minha perspectiva, o relato de Paulino também olha para o meio rural de modo
romântico e estático, pois levanta a ideia de uma pretensa autenticidade, o que de certa forma vai
no sentido contrário do termo globalização que ele emprega. Ora a globalização tem estado a fazer-
se sentir até nos locais tidos como remotos, daí eu considerar que independentemente do local, as
pessoas estão constantemente em fluxos e fazem a ligação entre um local e outro. O rural e o
urbano se interpenetram no quotidiano das pessoas. Mesmo a PSK que à primeira vista pode
representar um contexto rural por conta da agricultura e pastorícia, apresenta alguns traços de
urbanismo, se o concebermos como um modo de vida que não está necessariamente adstrito às
cidades. As pessoas que lá vivem oscilam entre essas duas categorias tidas como dicotómicas,

111
Segundo o último Censo Geral da população de 2017, 66,6% da população moçambicana reside no meio rural e,
33,4% reside no meio urbano (INE, 2017).

165


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

porque estudam e trabalham nas cidades, levando de lá alguns hábitos para a sua zona residencial.
Ademais, e como referi na introdução desta tese, a PSK não está muito longe da vila Municipal de
Boane, que é um corredor que liga por via de fronteiras terrestres Moçambique aos países vizinhos
África do Sul e Eswatini (ex Swazilândia).

Outro aspecto que procurei ver se influenciaria na (re) construção da identidade Makonde na
PSK é o diálogo entre a socialização escolar e a identidade étnica. Os Makonde da segunda geração
disseram-me que na escola apenas se fala do seu grupo etnolinguístico quando se aborda a matéria
relativa à luta armada e que eles se sentem orgulhosos disso112. Em nenhum momento referiram
que a escola molda o entendimento que eles têm da sua identidade étnica, mas importa realçar que
esta, à semelhança dos ritos, é parte dos diversos espaços de socialização. Ambas contribuem para
a formação das identidades, se bem que de modo diferenciado. Desse modo, a escola está mais
orientada para desenvolver nos alunos a consciência de cidadania e dotá-los de conhecimento para
o desempenho de profissões futuras. A escola não tem como atribuições enaltecer ou exaltar
identidades ou culturas particulares, mas tende a olhar e tratar as pessoas de igual maneira. A
mistura de ensinamentos a que os jovens Makonde residentes na PSK estão sujeitos os dotam de
diversos conhecimentos que são mobilizados e evidenciados em função da ocasião. A esse
respeito, Louro (2010:204) apud Osório & Macuácua (2013:239) afirma que, circulando por
diferentes espaços, os sujeitos estão em trânsito e “ao se deslocarem os sujeitos se transformam”.
Isto significa que os jovens, através dos processos de incorporação de novas disposições adquiridas
pela interacção com outros espaços, ao mesmo tempo que se constituem como sujeitos, se
reconhecem como pertença ao grupo (Osório & Macuácua, 2013: 239).

Uma etnicidade imposta e (re)negociada

Olhando para os relatos dos meus interlocutores da primeira geração, nota-se que praticamente
impõem a identidade étnica aos seus descendentes através dos ritos de iniciação, que é o espaço
onde a Makondidade é adstrita. Os mais velhos detêm maior domínio dos assuntos da etnicidade
quando comparados aos mais novos. Esse “défice de conhecimento étnico” por parte dos mais
jovens é notório quando se entoa canções de mapiko, onde por conta do fraco domínio linguístico

112
Israel (2006) faz notar que os Makonde foram a espinha dorsal da FRELIMO durante a luta armada de libertação
nacional e que foram a sociedade que mais efeitos sofreu dessa guerra.

166


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

do shimakonde, não percebem algumas composições e passa a cantar-se somente as curtas. Em


contrapartida, observei que os mesmos são fluentes em Xichangana, língua falada nas províncias
de Maputo e Gaza. Ser fluente em Xichangana é no meu entender, reflexo de terem nascido na
PSK, de não dominarem a sua língua de origem e de o Xichangana ser a par do português, a língua
com que mais se comunica no bairro. Os próprios pais dos jovens reconhecem que os filhos não
são fluentes no shimakonde, pois afirmaram que eles estão a aprender e que eles são os
responsáveis por fazê-los aprender.

Nós fazemos ritos de iniciação e dançamos mapiko aqui na PSK para não esquecerem a nossa cultura. Lá
ensinamos todos os regulamentos Makonde, porque uma criança saindo daqui e indo para Cabo Delgado sem
saber falar Makonde não vai conseguir se comunicar. Quando estão nos ritos, costumamos perguntar a elas
se entenderam o que falamos e se não tiverem entendido, nós interpretamos até que entendam (entrevista

com veteranos, 2020).

Como se pode depreender na fala acima, é importante para os pais que filhos apreendam os
valores da Makondidade para não se esquecerem da terra de origem e para quando eles irem a
Cabo Delgado conseguirem interagir com os seus familiares/parentes que lá vivem, o que atestaria
que apesar de viverem longe da terra natal, foram educados dentro dos preceitos idealizados para
um/uma Makonde. Desse modo, seus pais seriam vistos como pessoas honradas e que sabem
educar os seus filhos, mesmo estando longe da terra natal. Apesar dessa “etnicidade imposta”, a
minha percepção é que a etnicidade dos jovens é mais negociada do que a dos adultos, pois são
mais expostos a vários valores, espaços e identidades. A maioria dos jovens Makonde tende a
adoptar as normas e instituições do lugar onde foram ou estão a ser criados, nomeadamente da
província e cidade de Maputo. Eles acabam por não escolher a sua terra de origem e o local para
onde os seus pais se mudaram. Parece-me que eles procuram encontrar um equilíbrio entre os
recursos concorrentes e as restrições que circulam neles, procurando maximizar as oportunidades
que lhes são apresentadas. As suas experiências não são se resumem a um continuum da história e
vida dos seus pais na terra de origem. Por exemplo, os jovens fazem o ensino primário no bairro
PSK e em seguida têm que passar a frequentar a escola secundária na Vila Municipal de Boane.
Para além de terem de continuar com os estudos fora do bairro, são os jovens que mais trabalham
fora, pois os mais velhos (principalmente os veteranos da luta armada) trabalham mais a terra e
poucas vezes saem do bairro. É em meio a estes fluxos, continuidades e rupturas que os jovens

167


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Makonde negoceiam a sua identidade. Aspectos como amizade, camaradagem e redes de


solidariedade estão presentes em suas vidas e moldam as suas cosmovisões, atitudes e
comportamentos.

O único espaço institucionalizado para promover a identidade étnica Makonde na PSK são
os ritos de iniciação. Não vi e não ouvi falar durante a minha experiência de campo de
organizações comunitárias que fomentassem a Makondidade. Sendo os pais as pessoas que
procuram fazer com que os seus filhos mantenham uma relação com o local de origem, explorei
se eles teriam criado organizações dessa natureza e não foi identificada sequer uma. As únicas
organizações de que os veteranos fazem parte são o partido FRELIMO e a ACCLIN. Nesses locais,
não se fomenta ou enaltece os particularismos culturais, mas sim a ideia de que todos são
moçambicanos e devem cultivar a unidade nacional e o desenvolvimento. Igualmente procurei
compreender se as religiões professadas pelos Makonde desempenhariam de algum modo um
papel na preservação e/ou fomento da sua etnicidade, já que vários estudos como de Dias & Dias
(1970), Ngole (1996) e Arnfred (2015) mostram que a religião influenciou certas práticas culturais
dos Makonde, mormente nos ritos de iniciação. Apesar de praticarem ou possuírem diferentes
orientações religiosas, as mesmas apenas lidam com aspectos religiosos e não têm interesse em
assuntos ligados à cultura dos seus crentes.

Uma moçambicanidade em sintonia com os tempos

Nesta secção recupero e debato com a ideia de moçambicanidade proposta por Ngoenha
(1998). Segundo este autor, a identidade moçambicana resulta da criação de uma Nação
moçambicana e historicamente ela constitui um projecto político singular. A moçambicanidade
queria-se uma comunidade ideal de cidadãos e simplesmente reconhecia cidadãos iguais,
independentemente das particularidades étnicas, regionais, culturais, linguísticas e religiosas de
cada um. O Estado inscreve a Nação no Espaço. Por isso, a moçambicanidade é uma identidade
política territorializada, mas sobretudo histórica. De acordo com ele, a !identidade moçambicana:
já e ainda não”, pois decorre do projecto político de luta pela independência que fundou o Estado-
Nação moçambicano, mas considera que a moçambicanidade não deve ser vista de modo estático,
porque os desafios que enfrenta hoje são mais sérios que o colonialismo português. A existência
da nação moçambicana depende da capacidade do projeto político de resolver as rivalidades e os

168


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

conflitos entre os grupos sociais, religiosos, regionais ou étnicos, segundo as regras reconhecidas
como legítimas (Ngoenha, 1998: 28-31). Partindo do posicionamento de Ngoenha acima exposta
e dos meus dados de campo considero que o ideal de moçambicanidade que os veteranos têm
deriva por um lado do projecto político antagónico ao colonialismo que buscava unir todos os
moçambicanos independentemente da sua raça, cor, religião ou cultura, mas por outro, da dinâmica
sociopolítica e económica. No que concerne à primeira parte, eles foram e são parte desse projecto
político. A fala de Alfredo é disso exemplo:

Eu me juntei à FRELIMO quando tinha 14 anos. Eu fui treinar na Tanzânia e estava no segundo grupo.
Samora era o nosso líder. Eu entrei na FRELIMO por saber que este é o meu país e sou obrigado a lutar
contra o colonialismo português para que eu como africano ficasse no meu país (entrevista com Alfredo,

2020).

No relato de Alfredo nota-se claramente que a moçambicanidade assenta no paradigma


libertador, que conduziu à unificação dos movimentos protonacionalistas e consequente formação
da FRELIMO, entidade que conduziu a insurreição armada contra o colonialismo português e
fundou o Estado-Nação. Essa consideração sobre a moçambicanidade não é exclusiva de Alfredo.
Outro veterano da luta armada também se referiu a isso numa entrevista.

A nossa guerra de libertação começou em 1964, mas a organização dos nossos companheiros nacionalistas
começou entre 1960 a 1962. Para me engajar nessa guerra não fui obrigado. Foi a vontade de libertar o país.
Era jovem, tinha 15 anos de idade e sempre ouvia na rádio que em alguns países africanos se estava a alcançar
a independência. Eu me perguntava o que é a independência? Ficava triste porque do outro lado da fronteira
chamavam o nosso país de companhia e não de país (entrevista com Meque, 2015).

A segunda parte da sua moçambicanidade tem a ver com o facto de apesar de os veteranos
afirmarem que se juntaram à FRELIMO para combater o colonialismo português para conquistar
a independência, o seu ideal de moçambicanidade não ficou parado no tempo. Mesmo tendo um
ideal de moçambicanidade que coincide com o projecto político que gerou a FRELIMO, libertou
do jugo colonial e fundou o Estado-Nação moçambicano, eles estão atentos às mudanças que
ocorrem no cenário sociopolítico do país e têm sempre algo a dizer. Por exemplo, uma questão
que toca aos veteranos em geral e os Makonde em particular na PSK e não só, refere-se aos ataques

169


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

que têm estado a ocorrer desde 2017 na província de Cabo Delgado que são denominados na
nomenclatura oficial assim como no senso comum terroristas ou insurgentes. Sendo eles oriundos
da província em que tais actos têm estado a ocorrer e estando ligados ao partido no poder desde a
independência nacional, explorei junto deles as percepções sobre as motivações e dinâmicas desse
fenómeno. Realizei uma entrevista colectiva com alguns veteranos Makonde e a resposta começou
em jeito de comparação que confesso me comoveu.

P: Agora eu vou perguntar uma coisa que acho que é preocupação vossa como pessoas que vêm de Cabo
Delgado. O que é que acham do terrorismo que está a acontecer lá na vossa terra? Acham que aquela guerra,
se é assim que podemos chamar surgiu por que motivo, o que é que está a acontecer lá?
R: O papá aqui deu exemplo, por exemplo mamã nasceu filho ou uma filha, então ficou doente e chegou a
falecer. Então, mamã ha-de ficar satisfeita?
Não (resposta minha).
R: mamã não ha-de ficar satisfeita por causa da sua filha que morreu. Então, nós também não estamos
satisfeitos por causa da guerra que há lá. Nós não estamos a gostar porque há muita gente a perder a vida lá.
P: o que é que acham que está a acontecer, por que é que está a acontecer aquela guerra? Eu estou a perguntar
isso porque algumas pessoas dizem que é porque há luta entre Makonde e Mwani113, por exemplo. Outros
dizem que é porque há pobreza, jovens estão a ser levados para ir trabalhar nas minas de forma ilegal. Então,
eu queria saber o que é que os papás acham sobre isso. Acham que essas são as causas da guerra?
R: sim, esse problema é complicado para sabermos a verdade, porque se Makonde e Mwani não se entendem,
essa guerra podia surgir por exemplo em Mueda, mas pelo contrário começou em Mocímboa, Mocímboa é
terra dos Mwani. Os Mwani também estão a morrer, também estão a matar, mas esses insurgentes se colocam
como Mwani, mas estão a matar os irmãos deles. Os Makonde estão em Mueda, Muidumbe, por isso é
complicado saber qual é a causa.
P: Mas então esse argumento de que é pobreza, outra coisa que estão a dizer é que estão a levar jovens em
Cabo Delgado e vão estudar em mesquitas noutros países quando voltam são esses que se tornam terroristas
e começam a matar os irmãos. Acham que é por causa de pobreza que as pessoas entram no terrorismo?
R: Estamos a acompanhar que as crianças estão a ser levadas para as mesquitas. Então vão estudar e depois
voltam. Outra parte que nos interrogou se está a ouvir de que lá os jovens estão a ir por causa de pobreza ou
não pobreza, aqui nós estamos a duvidar (gargalhadas...) Sobre a pobreza, primeiramente temos que analisar
no início da guerra, porque onde há conflitos existem pobres e ricos. Nalgum momento é difícil respondermos
por que isso começou quando estamos aqui no Sul, se fosse que estamos em Cabo Delgado poderíamos
perceber melhor. Aqui nós estamos a duvidar porque esses jovens que estão a ser levados para lá, estão a ir
estudar e estão a ser ensinados o islão. Quando voltam chegam aqui não sei se lá fazem esse tipo de curso de

113
Um dos grupos etnolinguísticos da província de Cabo Delgado.

170


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

fazer mal ao outro, ninguém sabe. E também quando chegam aqui, as vezes outros não sabem o que estão a
fazer. Por exemplo essa coisa de lutar, outros são apanhados só e dizem vai lá. Você é dado o que está a ser
dado lá, então volta de lá e vem fazer estrago na família. Outros estão a fazer de forma obrigatória. No início
entrava na mesquita sem saber qual era o objectivo. Pensavam que tinham ido rezar, enquanto eles têm
objectivo deles, mais tarde dividem dinheiro, depois eles compram aquilo que precisam, carro, outros
constroem barraca e depois te dizem vamos no mato. Levaram dinheiro, mas não sabiam que era para ir para
o mato, depois são perseguidos.
P: É como se tivessem dívida?
R: Isso mesmo, é dívida! Eles levaram dinheiro e foram ditos vão fazer o que vocês pretendem e depois foram
fazer aquilo ali. Se negarem são perseguidos e mortos.
P: Mas como é que acham que a guerra pode acabar? Como é que acham que o governo pode acabar com a
guerra, solução?
R: Custa pensarmos como acabar porque se fosse a RENAMO seria fácil lutar porque conhecíamos que é o
partido X e o presidente do partido é X, é Dlhakama. Então, isso é melhor porque se conhece quem é o chefe
daquele grupo, mas aquela guerra que está a acontecer lá nem se conhece quem é o chefe deles, porque se se
conhecesse o chefe deles, o nosso presidente ia conversar com aquele chefe deles. Não sabemos nós que
estamos aqui se os nossos máximos os conhecem. Ele é que pode dizer nós conhecemos o chefe deles é X,
ele é que pode saber de tudo. É uma guerra que não tem cara, não se conhece quem são, quem é o presidente
deles, quem é o responsável deles, o que é que eles querem.
P: Mas no planalto eles ainda não entraram?
R: Só Macomia e Mocímboa.
P: Mas por que é que acham que ainda não entraram? Têm medo de combatentes?
R: Não sabemos, talvez têm medo.
P: Os papás foram desmobilizados? São combatentes da luta de libertação, se o governo vos chamar agora
para irem lutar contra essas pessoas lá que estão a fazer mal em Cabo Delgado, podem ir?
R: (Gargalhadas...) nós somos velhos agora. Estou a olhar para ti, mas parece estou a ver duas pessoas
(gargalhadas...). Então, não vou conseguir ver onde é que está o inimigo por causa do problema de vista.
P: Eu estou a perguntar isso porque no dia 7 de setembro vi na TV alguns veteranos que disseram que estão
prontos se o governo disser está aqui arma, por isso que perguntava se vocês também podem ir.
R: Está a ver este colega estava a contar a dizer que antes de ontem os insurgentes, esses Al-Shabab entraram
centro de Magaia (Muidumbe, Cabo Delgado) e morreram muitos.
P: Então os veteranos que estão lá não foram desmobilizados? Ainda têm armas?
R: Dizem o governo deu. Os combatentes da luta de libertação sempre dizem em Cabo Delgado nos dê armas
e mandem voltar os nossos filhos.
P: Por isso que eu estava a perguntar se governo vos der armas vocês podem ir lutar?
R: Rsrsrsrsrs (todos os participantes) podemos ir, não há como.

171


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Analisando a fala dos meus interlocutores acima, percebe-se que eles à semelhança da
maioria dos moçambicanos não sabem o que é que terá motivado o começo da “tal ação
terrorista ou insurgente”. Segundo Habibe et al., (2019: 6), o país foi surpreendido a 5 de
Outubro de 2017, com notícias de um ataque armado às instituições do Estado na vila-sede da
Mocímboa da Praia, província de Cabo Delgado. Segundo estes autores, tal ataque foi
perpetrado por um grupo desconhecido, com reivindicações da prática de um islão radical, este
ataque armado era um fenómeno novo no processo político moçambicano e apesar de se ter
dado importância ao assunto, as informações desde o primeiro ataque continuam escassas.
Apesar de existirem algumas teorias114 sobre a dita insurgência ou sobre o dito terrorismo, os
Makonde na PSK colocam dúvidas relativamente à validade de cada uma delas, como de pode
perceber na minha interlocução com eles acima apresentada. Por estarem ausentes da sua terra
de origem, eles se sentem alheios à realidade no terreno, mas apesar disso não deixam de ter
opiniões sobre as teorias que circulam relativamente ao fenómeno. No relato dos veteranos
também é possível perceber que por os ditos insurgentes não “darem a cara” faz com que não
se saiba quais são as suas reivindicações e quem são. Nota-se que os veteranos fazem uma
analogia entre a dita insurgência ou terrorismo com a luta armada e a guerra civil entre o
governo e a RENAMO, no sentido em que tanto na luta armada e na guerra civil os inimigos
estavam devidamente identificados. A alusão à RENAMO e ao seu ex-presidente falecido
Afonso Dlhakama deriva do facto de desde que se assinou o Acordo Geral de Paz entre o
governo Moçambicano e a RENAMO em 1992, sempre que houvesse uma ação armada por
parte deste grupo, encontrava-se um mecanismo de diálogo e o líder da RENAMO sempre vinha
a público manifestar as suas inquietações. Os vídeos que circularam nas redes sociais
supostamente sobre a insurgência em Moçambique mostravam alguns jovens mascarados
gritando Allahu akbar, ou seja, Allah é maior, dizendo que queriam instalar um califado na
província de Cabo Delgado e retirar o governo da FRELIMO do poder. Outro aspeto que me
parece merecer atenção na entrevista acima citada é o facto de os veteranos conservarem o

114
De acordo com Santos (2020: 14-15), algumas dessas teorias advogam que a dita insurgência ou terrorismo tem
como causas uma das seguintes: aliança entre negócios ilícitos e islamitas armados, insurgentes como braço do ISIS,
homens grandes Makonde e secessão de Cabo Delgado, revolta Mwani inspirada pelos islamismos contra a dominação
Makonde e da FRELIMO e antigos detentores de poder e recursos contra os interesses dos novos poderosos e
sobreposição parcial de cenários. Habibe et al (2019: 22-30) advogam que a “insurgência” em Cabo Delgado se deve
a três factores, nomeadamente: pobreza, desemprego e baixa escolaridade, fantasias pessoais, busca de aventura,
camaradagem e criação de uma nova ordem e questões identitárias baseadas em etnia.

172


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

sentido de hierarquia, quando afirma que talvez os seus chefes saibam quem são os líderes dos
“insurgentes” e que essa matéria não é de seu domínio. Como corolário desse sentido de
hierarquia, apesar de reconhecerem que já não são jovens e que não têm mais o mesmo vigor,
mantêm o seu sentido patriótico quando afirmam que caso sejam alistados pelo governo podem
ir combater a “insurgência”. Apesar de nalgum momento eles afirmarem que já são idosos,
mostram que caso sejam convocados pelo governo moçambicano para combater a dita
insurgência na sua província, eles aceitariam a missão. Tal aceitação revela, na minha
perspectiva, que eles se consideram ainda uma reserva estratégica do partido e do Estado
prontos para encarar qualquer desafio, apesar da sua idade avançada e de terem sido
desmobilizados há muito tempo, tal como mostrei no capítulo três desta tese.

Relativamente à moçambicanidade dos jovens, durante o trabalho de campo constatei que os


jovens sabem que a mesma foi uma conquista dos seus pais através da luta armada, mas eles
experimentam uma moçambicanidade diferente da dos seus progenitores. Os Makonde da segunda
geração por viverem outros tempos e misturados com outros grupos etnolinguísticos têm outro tipo
de aspirações e preocupações como estudar, trabalhar e ter um futuro melhor que os seus pais. Por
exemplo, a actividade económica dominante entre os Makonde da primeira geração é a agricultura.
Dos jovens Makonde com que interagi, a Sara foi a única que disse ter machamba, mas ela própria
está preocupada em estudar e melhorar a sua condição de vida. Quando a conheci acabava de
concluir o ensino secundário, mas não conseguia emprego. Ela soube que ia começar um curso de
educadores de infância e se inscreveu. Terminado o curso, foi colocada num centro infantil para
estágio. Por motivos que desconheço não conseguiu colocação na mesma, tendo passado a ficar
em casa. Em 2020 ela começou a fazer um curso de enfermagem e a sua vida tem oscilado entre o
mundo do bairro PSK e a cidade da Matola, capital da província de Maputo, onde está situada a
instituição onde está a estudar. À semelhança de Sara, os jovens Makonde na PSK estão entre uma
moçambicanidade histórica (legado dos pais) e uma mais em sintonia com os tempos. A forma
como essa identidade vai sendo reconstruída também se repercute no modo como eles a
experienciam, tal como advoga Ngoenha (1998), a “existência da nação moçambicana depende da
capacidade do projecto político de resolver as rivalidades e os conflitos entre os grupos sociais”.
Entendo esses conflitos não só como ligados à arena política, mas também as desigualdades
económicas. Apesar de serem filhos de pessoas que deram a juventude pela libertação do país,

173


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

esses jovens na PSK não gozam de eventuais privilégios. Apenas os que são filhos de veteranos
bem posicionados no partido FRELIMO e economicamente é que têm gozado de tais privilégios
(Cfr. Sumich, 2008; Cortez, 2018). Na PSK por aquilo que observei e me foi dito não existe
nenhum veterano proeminente e nenhum dos seus filhos goza dos privilégios que advêm da
condição do seu pai. Existem alguns Makonde proeminentes em Moçambique. Perguntei aos
veteranos da PSK se os mesmos alguma vez os visitaram e procuraram de algum modo ajudá-los.
Eles afirmaram que não foram os visitar e que se precisarem de falar com eles teriam que pedir
uma audiência através da ACCLIN. O facto de os Makonde da PSK terem que pedir audiência
para falarem com os outros Makonde bem posicionados mostra que existem diferenças de estatuto
e de classe no seu seio.

Lembro-me que perguntei aos veteranos na PSK se os seus filhos beneficiavam de alguma bolsa
de estudo ou redução de propinas e responderam desconhecer essa possibilidade.

Eu não sei se os meus filhos têm direito de não pagar propinas ou não. Só sei que quando chega o período de
matrícula, as crianças pedem um valor e dizem que é necessário na escola (entrevista com Castro,

2020).

O líder Makonde por conta do seu estatuto tem mais informação sobre os benefícios a que os
veteranos têm direito e pôde durante a entrevista colectiva aclarar os seus companheiros sobre os
procedimentos para aceder aos benefícios reservados aos seus filhos.

Depende de requerimento porque se o veterano tiver conhecimento que o filho está a entrar para a escola,
tem que ir requerer junto da Direção Provincial de Educação para que ele tenha bolsa ou isenção de
pagamento de propinas. Agora se o pai não souber, a criança fica de fora (líder Makonde, 2020).

A moçambicanidade vivenciada pelos jovens Makonde nos tempos actuais está envolta
naquilo que Honwana (2013: 27) designa de waithood. Segundo esta autora, waithood constitui
uma zona de penumbra, uma situação ambígua em que, por um lado, os jovens pretendem ser
independentes, mas por outro lado, enfrentam grandes dificuldades para encontrar emprego estável
e para assumir as responsabilidades sociais de adultos. Apesar de os jovens Makonde carregarem
o legado da identidade nacional e da epopeia de libertação narrada pelos pais, ao mesmo tempo

174


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

eles são confrontados no quotidiano com questões materiais que precisam ser resolvidas, tal como
a maioria dos jovens do país. Na minha perspectiva a questão é perceber até que ponto o legado
dos seus pais subsiste em meio as dificuldades monetárias e de inserção no contexto educacional
e no mercado de emprego. É disso que Ngoenha fala quando afirma que só poderá existir essa
identidade nacional se conseguir se resolver as diferenças de diversa natureza entre os
moçambicanos. Mesmo havendo uma bandeira, um legado baseado na libertação do país e a ideia
de comunidade imaginada como diria Benedict Anderson, tais símbolos são insuficientes para
garantir o sentido de pertença e a coesão. Nesse sentido, concordo com Renan (1882) quando
afirma que a nação é um plebiscito diário.

Redefinição da identidade Makonde através da moçambicanidade

Tal como referi anteriormente neste capítulo, apesar de as identidades étnica e nacional dos
Makonde se sobreporem no quotidiano, cada uma manifesta-se em momentos específicos. A
moçambicanidade na PSK é muita das vezes evocada quando há eventos oficiais como os feriados
nacionais, uma vez que estes servem para relembrar e memorializar as conquistas da luta armada
e a respetiva independência. A esse propósito, Canivete (2016: 74) afirma que em Moçambique os
feriados nacionais também jogaram um papel importante na construção da memória da luta
armada. Todos os feriados de Estado foram ligados à luta armada de libertação nacional. No que
concerne à comemoração de feriados, na PSK, os Makonde assim como os veteranos de outros
grupos etnolinguísticos não fogem à regra. Por exemplo, no que concerne aos feriados mais
relacionados à luta armada e aos veteranos como o 7 de setembro dia dos acordos de Lusaka e o
25 de setembro dia das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, o Município de Boane, assim
como a Administração do Distrito convidam os veteranos a participarem das cerimónias oficiais,
na cidade da Matola, capital da província de Maputo, ou na vila de Boane, em que eles trajam o
uniforme dos veteranos da luta armada.

175


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Figura 24. Veteranos da Luta de Libertação Nacional trajando o uniforme que devem portar em datas festivas e
relacionadas com eles-foto de DW/M. Mueia.

Todos os feriados celebramos da mesma forma, não há diferença. Não existe aquele que é bom ou mau para
nós. No feriado de 16 de Junho, dia do massacre de Mueda, o nosso grupo cultural costuma participar.
Dançamos mapiko, mas não somos os únicos. Os outros também dançam. Costumamos ir ao cemitério limpar
campas e não limpamos só dos Makonde, mas de todos os veteranos que faleceram. Nós os veteranos, líderes
da aldeia organizamos as comemorações. Caso alguém queira participar, tem que se aproximar a nós e
explicar o que quer fazer para depois ser aprovado (entrevista com Timóteo, PSK, 2020).

Como se pode notar no depoimento desse veterano Makonde, eles, assim como os demais
veteranos continuam ligados umbilicalmente ao partido FRELIMO, outrora frente a qual se
filiaram quando jovens - e exercer a sua moçambicanidade passa por ser o garante da rememoração
da luta armada e da independência na PSK. Apesar de os veteranos afirmarem que comemoram
todos os feriados do mesmo modo, Alice referiu numa das entrevistas que nota uma diferença na
forma como os Makonde celebram os feriados.

Todos os feriados são comemorados da mesma forma, só que o do massacre de Mueda é comemorado de

176


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

modo diferente. Todos os homens e todas as mulheres compram capulanas. O mapiko é dançado pelos mais
velhos e o fazem entre as 10 às 19 horas. As pessoas de outras províncias comemoram o feriado do massacre
também, mas vem mais para assistir ao mapiko e depois vão almoçar. Posso dizer que o feriado do massacre,
é mais feriado dos Makonde. Quando esse feriado calha no meio da semana, as pessoas vão trabalhar e adiam
a comemoração para o final de semana (Alice, 2020).

O relato de Alice levanta alguns aspetos relacionados ao massacre de Mueda que ocorreu a 16
de junho de 1960. Esse acontecimento tem uma grande relação com a identidade étnica dos
Makonde e a FRELIMO, assim como com a história de libertação do país. Foi no planalto dos
Makonde, onde ocorreu um dos mais famosos e controversos massacres em Moçambique. Israel
(2017: 1157) afirma que o massacre ocorrido na cidade de Mueda, no norte de Moçambique, a 16
de Junho de 1960, está inscrito na narrativa nacionalista como o ponto de ruptura da agitação
anticolonial e o detonador da luta armada de libertação. Mueda é por conta disso vista na
historiografia oficial e de certo modo no imaginário social como o berço da luta armada em
Moçambique. Mueda é também parte do planalto dos Makonde e é lá que reza a história oficial
que alguns Makonde como Faustino Vanomba e Kibiriti Diwane foram reivindicar a
independência do país. Apesar de Mueda ocupar esse lugar mítico na história moçambicana, várias
tem sido as versões e as controvérsias em torno do que realmente aconteceu no dia do massacre
(Cfr. Israel, 2017). O que pretendo ao evocar o massacre de Mueda suscitado pelo discurso de
Alice é que para os Makonde o 16 de junho significa recordar o que os seus conterrâneos passaram
nas mãos do regime colonial português e quando chega essa data, o acontecimento é objecto de
rememoração.

Relativamente ao facto de serem os mais velhos os únicos a executarem o mapiko nesse feriado,
penso que se relaciona com o facto de o mapiko ser contextual, ou seja, a performance é em função
da ocasião, da mensagem que se pretende passar e do significado do momento. Nesse sentido, são
os mais velhos que estão mais familiarizados com o que aconteceu em Mueda e podem de certo
modo encenar e representar o sucedido. Outro aspecto que me parece digno de relato na fala de
Alice é o facto de dizer que quando o feriado calha no meio de semana, os Makonde transferem a
sua comemoração para o fim-de-semana. Isso sugere que o mesmo tem que ser celebrado “com
pompa e circunstância”, ou seja, há todo um enredo e cerimonial elaborado para assinalar a data e
o que ela representa. Para além dos feriados, a moçambicanidade também é mobilizada quando os

177


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

veteranos falam das suas memórias de treinamento nos campos militares da FRELIMO e na luta
armada, mas diferentemente dos Makonde bem posicionados hierarquicamente e
economicamente, eles não têm escritos publicados sobre isso. Alguns dos que estão bem
posicionados escreveram livros onde contam na primeira pessoa como é que decorreu a luta
armada e como é que se alcançou a independência nacional. Apesar de não terem nada escrito, os
veteranos da PSK têm um posicionamento relativamente ao assunto. Em duas ocasiões diferentes
e em entrevistas colectivas, questionei aos veteranos da PSK se poderiam contar a sua versão dos
factos e obtive respostas diferentes. Na primeira vez alguns deles disseram o seguinte:

Se nós tivéssemos recursos também poderíamos escrever a nossa versão (entrevista com veteranos,

2015).

Pode depreender-se no excerto anterior que os veteranos têm consciência de que têm algo a
contar relativamente à sua experiência de treino nos campos da FRELIMO, assim como sobre a
sua participação na luta armada de libertação nacional. Apesar disso reconhecem que não possuem
meios para o efeito. Em 2020, voltei a colocar a mesma questão a um outro grupo de veteranos,
composto maioritariamente por alguns que não estiveram na ocasião acima mencionada e deram
uma resposta diferente nos seguintes termos:

Caso venha uma pessoa querer saber sobre a história, se quisermos segui-lo, podemos seguir, mas a história
principal, a história real que nós lutamos para libertar o país contra o colonialismo. Nós não queríamos que
alguém saísse do seu país para vir nos fazer mal. Pegamos em armas para expulsar o colono, fazê-lo voltar à
sua terra e nós ficarmos livre com a nossa terra. A história essencial é essa. Não contaríamos outra história
(entrevista com veteranos, 2020).

O segundo relato dos veteranos enfatiza a metanarrativa que reclama o seu papel na libertação
do colonialismo português, conquista da independência nacional e constituição do Estado-Nação
moçambicano que silencia outras eventuais versões concorrentes (Cfr. Coelho, 2006; Souto, 2013;
Meneses, 2015). Considero difícil os veteranos na PSK contarem outra versão sobre a luta armada,
na medida em que eles são parte do processo, mesmo se tiver havido nuances que contrariem a
versão oficial de constituição do Estado-Nação moçambicano.

178


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Pese embora os veteranos Makonde e os demais veteranos da PSK não tenham nada escrito
acerca da sua participação na luta armada, alguns, a seu modo, procuram perpetuar a epopeia da
libertação l através do contacto interpessoal com os seus filhos e outros jovens.

Eu costumo falar os meus filhos sobre a história da FRELIMO e sobre a luta armada de libertação nacional.
Há momentos aqui em casa em que os chamo e sento com eles. Não é sempre, é quando me recordo das
coisas. As vezes eles próprios me perguntam algo sobre isso. Também costumo falar com rapazes que entram
nos ritos de iniciação. Há um momento próprio nos ritos em que falamos sobre isso (entrevista com

Armando, 2020).

Tal como referi no capítulo dois desta tese, a FRELIMO é estruturante nas relações entre pais
e filhos. Os próprios filhos também referiram em alguns excertos patentes nesta tese que os seus
pais falam sobre as suas experiências na luta armada de forma regular. Praticamente impõem o seu
legado sob eles. Apesar de os veteranos não documentarem as suas memórias por incapacidade ou
por concordarem com a metanarrativa, o seu papel de disseminadores da epopeia de libertação não
é anulado. Diferentemente dos veteranos Makonde melhor posicionados socialmente que eles, os
veteranos da PSK são pessoas de tradição oral, ligada à sua condição de camponeses, enquanto
que os melhor colocados sofreram uma ascensão social que os possibilita dispor de recursos para
eternizar as suas memórias. Ainda assim, os veteranos da PSK servindo-se da sua tradição oral no
local onde se encontram passam o seu legado às gerações mais novas. Aliás, igualmente no
capítulo dois argumentei que eles constituem a reserva estratégica do governo da FRELIMO e isso
não significa que o sejam apenas em momentos de conflito armado, mas também como difusores
da ideologia de unidade nacional e do legado do processo de libertação nacional junto daqueles
que não viveram e não participaram da luta armada.

Apesar de os veteranos se sentirem a própria FRELIMO, por conta da questão hierárquica e de


“fidelidade canina” ao partido, me parece que alguns deles temem falar certas coisas. Por exemplo,
numa entrevista apenas com os veteranos Makonde questionei o que é que eles acham da

179


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

governação do presidente Filipe Nyusi 115 e eles se mostraram temerosos em responder com
precisão a certos aspectos.

Nyusi é nosso dirigente e está a dirigir. Dirigiria bem, mas de momento podemos dizer que não está a dirigir
bem, por causa das coisas que estão a acontecer que são pesadas. Por exemplo, vamos supor que você tem
carro e eu não tenho e eu passo a te odiar (gargalhadas...), mas não é sua culpa eu não ter. Então, Nyusi está
a ser odiado. Nós não sabemos os motivos, mas é estranho que desde que ele subiu ao poder surge essa guerra
em Cabo Delgado e até agora não sabemos quem é que anda a matar as pessoas. Também está a verificar-se
essa pandemia e outros problemas. Não sabemos como responder. Não conhecemos quem são as pessoas que
o odeiam, não podemos afirmar. Amanhã senão vão nos procurar e perguntar quem é que nos disse isso
(entrevista com veteranos, 2020).

A fala patente no excerto anterior assinala na minha perspectiva que os veteranos acreditam
que Filipe Nyusi governaria bem, mas entendem que ele tem estado a ser vítima de sabotagem.
Mesmo no que se refere às questões globais como a pandemia da covid-19, questionam por que é
que a governação do actual presidente não tem estado a ser um período de paz e prosperidade. É
como se também atribuíssem os fenómenos naturais nefastos à “mão externa”. Por acreditarem
numa teoria conspiratória contra a governação do presidente temem represálias que eventualmente
possam advir do facto de dizerem sem receio o que pensam. Lembro-me que quando comecei a
pesquisa em 2014, ano em que Nyusi venceu as eleições presidenciais pela primeira vez, perguntei
aos veteranos Makonde que expetactivas tinham relativamente a ele na qualidade de presidente e
disseram que ele seria presidente de todos os moçambicanos sem qualquer distinção em função da
origem étnica das pessoas. Também questionei se achavam que mereciam ter um conterrâneo no
poder para poderem aceder aos recursos naturais existentes na sua província porque há uma dívida
para com eles por causa da sua ampla participação na libertação nacional. Afirmaram que as
riquezas que estão no subsolo devem ser partilhadas entre todos os moçambicanos, porque foi para
isso que se libertou o país, para que os seus cidadãos se tornassem livres e dispusessem das riquezas
existentes. Agora, no segundo ano do seu segundo mandato, noto que as expetativas que esses

115
Primeiro presidente moçambicano oriundo de fora da zona sul do país. Filipe Jacinto Nyusi é Makonde e circula
no seio de algumas pessoas a ideia de que a transição de poder entre as regiões do país tinha que acontecer para poder
se acomodar as aspirações dos outros grupos etnolinguísticos. Nesse sentido, os Makonde seriam os primeiros na linha
de sucessão, porque há a ideia de que eles foram os mais sacrificados na luta armada.

180


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

veteranos carregavam foram frustradas, no seu entender devido a um suposto ódio de que o
presidente Makonde é vítima.

Com base nos meus dados de campo afirmo que a autoafirmação e a diferenciação étnica
acontecem quando ocorrem eventos típicos ou particulares dos Makonde como os ritos de
iniciação, a execução do mapiko e no uso do Shimakonde. O que explica a meu ver a permanência
no tempo dessas práticas na PSK, um contexto diferente daquele de onde são oriundos os Makonde
é a capacidade de maleabilidade e adaptabilidade dessas instituições ao contexto circundante.
Bagnol (2013) por exemplo afirma que as mudanças ocorridas nos ritos nas últimas décadas
concernentes à idade de iniciação e no período em que ocorrem reflectem o dinamismo dessa
prática e a sua ligação com o político, o social e o económico. Por seu turno Israel (2014) mostra
que o mapiko resiste no tempo porque consegue estar em sintonia com os tempos, conseguindo
incorporar aspectos actuais nas suas performances e aparência. Para além dessa maleabilidade e
adaptabilidade, outro aspecto que para mim explica o facto de os Makonde continuarem com as
suas práticas, mesmo num contexto diferente como a PSK, tem a ver com o significado partilhado
que estas têm para eles, ou seja, é de consenso entre eles que os ritos de iniciação, o mapiko e o
shimakonde são as marcas da Makondidade naquele lugar e não as deixam para trás porque é o
que no seu entender os diferencia dos demais.

Pese embora a identidade Makonde e a moçambicanidade se manifestem em ocasiões


específicas, no quotidiano existem outras práticas, solidariedades e pertenças sobrepostas e que
coabitam com a identidade Makonde. Lembro-me de estar no quintal da casa da família que me
acolheu sentada com os seus integrantes e, de repente, pessoas de outros grupos etnolinguísticos
apareceram e sentaram-se por longas horas para conversar, inclusive comigo. A forma como a
aldeia foi construída ancorada na ideia de unidade nacional, faz com que as pessoas sejam muito
mais que apenas Makonde ou Nyanja, mas também sejam moçambicanas e convivam mesmo se
reconhecendo como culturalmente diferentes. Na casa onde eu estava, pessoas de Maputo, Gaza e
de outras províncias acarretavam água para o seu consumo e não era cobrado qualquer valor pelo
uso do líquido. Vezes sem conta pessoas entravam e saíam para buscar água. A mesma pessoa
voltava várias vezes. Também vinham ajudar a cozinhar mesmo sem se estar no momento dos
ritos. Cabe assinalar a onda de solidariedade que se verifica nos ritos de iniciação e não só. Durante

181


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

o trabalho de campo reparei que mulheres de outros grupos se encontravam na casa onde as vali
estavam confinadas a ajudarem a cozinhar, assim como a desempenhar outras tarefas. Esses
episódios em campo que acabei de narrar me levam a pensar que os laços de solidariedade e o
quotidiano partilhado entre os Makonde e os seus vizinhos é mais importante que a diferenciação
étnica. Essa relação próxima e de irmandade entre os Makonde e os seus vizinhos me remete para
a ideia de amiticia116. Hannerz (1991) apud Pina-Cabral (2010:5) sugere que devemos ver o mundo
contemporâneo como uma ecumene; quer dizer como um espaço indiviso de intercomunicação
humana, uma rede de redes. Partindo da noção de amiticia, fica claro que os indivíduos não ficam
apenas amarrados no seio dos seus grupos de origem, mas a sua vida perpassa categorias
étnicas/culturais. Como afirma Granjo (2014) por vezes somos mais próximos de pessoas de outros
grupos, do que do nosso. Por exemplo, durante o trabalho de campo alguns Makonde mencionaram
que os da Zona Militar eram mais próximos dos seus vizinhos não Makonde do que deles e dos
Makonde da Maragra e que os Makonde residentes nas várias zonas de Maputo se encontram com
alguma frequência quando ocorrem os ritos de iniciação.

Conclusão

Ao longo deste capítulo me ative ao modo como são vivenciadas as identidades étnica e
nacional pelos meus interlocutores. Interessava-me perceber como é que ambas dialogam no
quotidiano deles. Os dados sugerem que há diferenças no modo que os Makonde da primeira e da
segunda geração vivenciam a sua identidade étnica. Os mais velhos estão mais a par das questões
étnicas, na medida em que eles nasceram na província de Cabo Delgado, mas mesmo assim tiveram
que aprender a renegociar a sua etnicidade, desde o tempo da formação militar para a luta armada,
em que foram expostos a conviver com pessoas de outras etnias. Na PSK, também tiveram que
aprender a conviver com pessoas de outras identidades étnicas e assimilar alguns dos seus valores
e práticas culturais, sem esquecerem de onde são oriundos e o que os faz diferentes dos demais,
razão pela qual continuam com as suas marcas culturais. Relativamente aos jovens considero que
apresentam uma etnicidade imposta e negociada, pois por um lado a maioria deles nasceu na PSK
e tudo que sabem acerca da identidade Makonde tem a ver com o que os seus pais ensinam. Por

116
Pina-Cabral afirma que traduzindo esse termo para inglês, se torna difícil fazê-lo para o português, por isso que
optou por ficar com a sugestão latina.

182


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

outro lado, a identidade étnica dos jovens é inculcada nos ritos de iniciação, que é o único espaço
que existe para aprenderem a sua etnicidade, por isso considero que entre os Makonde na PSK
ocorre uma imposição étnica. O ir ou não aos ritos de iniciação não é uma opção a negociar, mas
sim a cumprir. Apesar disso, os Makonde da segunda geração negoceiam mais a sua identidade
étnica do que os seus pais, uma vez que o quotidiano deles ocorre em meio a fluxos que
transcendem o bairro, estando por isso mais expostos a outros valores que por vezes concorrem
com os da sua etnicidade. Nalgumas vezes eles não escolhem os valores da etnicidade, ou os da
PSK onde nasceram, mas procuram encontrar um equilíbrio que os permita se adaptar às condições
contextuais.

No que concerne à identidade nacional procurei mostrar que esta é um processo inacabado,
pois está em sintonia com os tempos. O que era moçambicanidade ontem, não o é hoje. Seguindo
a visão de Ngoenha (1998) argumento que actualmente, a moçambicanidade enfrenta outros
desafios. Também argumento que há diferenças na forma como os Makonde da primeira geração
e os da segunda experimentam essa dinâmica da moçambicanidade. Os da primeira geração fazem
parte daquilo que deu origem à moçambicanidade que foi a necessidade de união para derrotar o
colonialismo português. Apesar disso, eles não estão alheios aos problemas que perigam a
moçambicanidade na actualidade. Por exemplo, a questão da dita insurgência que tem estado a
ocorrer na província de Cabo Delgado, sua terra natal. Os Makonde da segunda geração estão
abrangidos por uma moçambicanidade que procura dar conta dos desafios actuais. Argumento que
à semelhança dos demais jovens do país, os Makonde enfrentam problemas de realização pessoal
e profissional. Pese embora os seus pais tenham dado a vida pela libertação do país, eles não gozam
dos privilégios que permitem melhorar a sua condição de vida.

Os resultados também sugerem que ocorre uma redefinição da identidade Makonde através da
moçambicanidade. O facto de os Makonde terem sido grande parte dos guerrilheiros que
alimentaram a FRELIMO durante a luta armada, de ter sido na sua província iniciou e se
desenrolou grande parte do conflito e de ter sido a sociedade que mais transformações sofreu por
conta da luta, afirmo que a moçambicanidade que surgiu por conta da união contra o colonialismo
criou uma simbiose entre esta e a identidade étnica dos Makonde, sem que eles abandonassem as
suas práticas culturais. Por conta disso, no quotidiano essas duas identidades convivem sem se

183


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

ferirem. Eles se movem entre diversas pertenças e solidariedades. O idioma da etnicidade é, por
conseguinte, um dos demais rótulos que eles possuem e se identificam.

184


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Considerações finais

O ponto de partida da pesquisa que deu origem a esta tese foi a existência de Makonde na
PSK e a minha pretensão de estudar de que modo é que os ritos de iniciação constituíam um
mecanismo de (re) produção cultural entre eles. Alertada acerca do essencialismo e reificação
patente nesse tema, decidi alargar os meus horizontes e maximizar o facto de os Makonde
residentes na PSK serem na sua maioria veteranos da luta de libertação nacional. Sendo eles leais
à FRELIMO e ao legado da luta armada, desobedeceram a ordem do partido-Estado pós-
independente de pararem de praticar os ritos de iniciação. Segundo alguns dos meus interlocutores,
continuaram a fazê-lo e algumas vezes com a conivência dos chefes locais colocados pela
FRELIMO. Essa desobediência gerou em mim a curiosidade de perceber por que é que os
Makonde sendo leais à FRELIMO pautaram por continuar a praticar os ritos e entender que
significado estes têm para eles na PSK, um contexto sociocultural diferente do seu e onde vivem
com pessoas de outros grupos etnolinguísticos. Diante dessa inquietação comecei a tentar perceber
que como é que as identidades étnica e nacional dos Makonde convivem, que marcadores eles
mobilizam para elas, em que momento é que elas se manifestam, como e para quem.

Desde o começo da minha pesquisa ficou claro que a melhor porta de entrada para a
interlocução em campo eram os veteranos da luta armada de libertação nacional, em especial os
Makonde que constituíram os principais interlocutores e sobre quem falo nesta tese. Foi crucial
para a etnografia ter sido acolhida pelo líder Makonde e pela sua família, pois pela casa dele
passavam os Makonde ali residentes, os que moram noutros locais da cidade e província de
Maputo, assim como pessoas de outros grupos etnolinguísticos. Para além de ter interagido com
os Makonde, desde os veteranos a seus filhos, a estadia em casa do líder Makonde foi bastante
relevante, pois apresentou-me aos outros veteranos e, por conta disso, fui aceite no seu seio. A
aceitação por parte dos outros veteranos foi precedida por um teste. Indirectamente, eles me
questionaram qual é o meu partido. Para eles, era importante ter certeza da minha filiação partidária
na medida em que a PSK é bastião da FRELIMO desde a sua formação.

Para perceber quem são os Makonde e as imagens que circulam sobre eles, realizei pesquisa de
arquivo e revisão da literatura por forma a levantar essas imagens. Uma das imagens que quase

185


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

sempre existiu e de certo modo perdura até hoje é a de que os Makonde como ferozes, selvagens,
rapaces, irascíveis e de difícil trato. Essa imagem deriva do século XIX por conta das razias de que
eram vítimas e que também protagonizavam para com os seus vizinhos. Apesar dessa imagem de
selvagens, rapaces e irascíveis, os Makonde também foram vítimas dos eventos históricos pelos
quais passaram. Por forma a fugir dessa depredação, os Makonde se refugiaram no planalto de
Mueda, pois lá as pessoas podiam se proteger melhor e construir fortificações em torno de
assentamentos elevados e invadir zonas vizinhas para aumentar o seu número. Por conta dessa
experiência histórica compartilhada de resistência ao tráfico de escravos foi forjada uma
consciência colectiva de insubmissão, desejo de liberdade e independência que os Makonde
transportaram consigo quando foram dominados pelos portugueses em 1917.

Depois da ocupação colonial portuguesa no planalto dos Makonde pelos portugueses, o


governo colonial instalou a sua máquina administrativa e no quadro da necessidade de também
colonizar cientificamente os seus territórios ultramarinos, destacou a missão antropológica de
Moçambique chefiada pelo etnólogo Jorge Dias para fazer um estudo exaustivo da “cultura
Makonde” que culminou com a publicação de 4 volumes daquela que até hoje é considerada a
mais completa monografia elaborada por um antropólogo português. Para além do mérito, a obra
de Dias foi alvo de algumas críticas por estar num registo considerado descritivo sem analisar as
tensões sociopolíticas existentes no norte de Moçambique por aquela altura. Dias é por vezes visto
como um “espião” a serviço do regime colonial português, pois nos relatórios confidenciais que
enviava ao governo dava conta de situações sociopolíticas que poderiam gerar rebelião entre os
Makonde, por conta da emigração destes ao Tanganhica e da influência que os ideiais uhuru
estavam a ter. Durante a fase colonial, os Makonde que já vinham com a fama de rebeldes e
insubmissos, resistiram ao governo colonial de variadas formas, a saber: a emigração clandestina,
a arte Makonde, organização em associações e em grupos políticos, planear e negociar a libertação
do domínio colonial, tal como refere Laranjeira (2016). Para além dessas formas de resistência os
camponeses Makonde também queimavam as sementes de algodão para que não germinassem.
Foi no planalto dos Makonde que ocorreu o evento considerado pela versão oficial da
historiografia moçambicana como o embrião do nacionalismo moçambicano. Esses eventos
mostram e reforçam que a experiência do tráfico de escravos que gerou uma consciência colectiva
de insubmissão, sempre esteve presente nas diferentes fases históricas vivenciadas pelos Makonde.

186


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Com a independência, muitos Makonde foram morar em várias zonas de Moçambique por
determinação governamental em centros de produção, também conhecidos por aldeias ou bairro
dos antigos combatentes. Foi assim que surgiu o bairro PSK. Inicialmente e por conta do que ouvia
antes de me fazer ao bairro pensava que se tratava apenas de um bairro habitado por Makonde,
tanto que a alcunha do lugar até hoje é Makondene. Logo na primeira interacção com os veteranos
estes me explicaram que no bairro vivem oito grupos etnolinguísticos, nomeadamente: os
Makonde, os Nyanja, os Ajaua, os Nyungwe, os Sena, os Chopi, os Rhonga e os Changana. O
facto de viverem pessoas de diferentes grupos etnolinguísticos na PSK, me fez procurar entender
que motivações estariam por detrás da formação de um bairro multiétnico? Que dinâmicas
propiciaram o encontro e convivência de pessoas de contextos geográficos diversificados? Sendo
um local fundado pelo Estado moçambicano inicialmente apenas habitado por veteranos da luta
armada e posteriormente por civis, me pareceu importante perceber como é que convivem ex-
militares e civis e se há hierarquias entre eles. Assim, a partir desses questionamentos, a pesquisa
numa primeira fase se focou na história oral em combinação com investigação nos arquivos,
entrevistas semiestruturadas, conversas informais e observação participante por forma a
aprofundar a história do lugar e das suas gentes. Através dessas ferramentas, foi possível perceber
que a formação e o povoamento da PSK tiveram origem na determinação governamental logo a
seguir ao pós-independência que postulou a criação de centros dos antigos combatentes, em que
estes para além de produzir para o seu consumo e para a exportação, deviam também instalar a
FRELIMO e serem o garante do cumprimento da disciplina e directivas partidárias, disseminar a
ideologia da FRELIMO, assim como servirem de reserva estratégica para qualquer eventualidade.

O povoamento da PSK foi feito em três momentos. Foi no primeiro momento de povoamento
que os Makonde se fixaram na PSK. Não se pode dissociar a sua chegada e fixação na PSK da
chegada dos veteranos de outros grupos etnolinguísticos. A sua chegada não foi por vontade
própria, mas sim por determinação governamental. No segundo momento o povoamento teve
como motivação a busca de segurança na PSK por parte das populações vizinhas, pois se estava
em plena guerra civil que opunha o governo moçambicano à RENAMO. Igualmente nesse segundo
momento, algumas populações vizinhas se refugiaram na PSK por conta de calamidades naturais.
No terceiro momento cabe destacar a livre fixação de pessoas na PSK para ficarem próximo dos
seus familiares ou parentes, assim como a busca de terras para a construção de habitações ou de

187


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

cultivo. Este terceiro momento verifica-se até hoje e parece que irá perdurar por mais algum tempo,
a menos que aconteça algo extraordinário que force a retirada ou a chegada de pessoas. Apesar de
ser um momento de fixação livre, importa realçar que as pessoas que desejem viver ou obter um
pedaço de terra para a prática agrícola devem ser conhecidas pelas lideranças do bairro, o que de
certo modo mostra que existe um controlo das pessoas que entram, saem e que vivem no bairro.

Sendo a PSK um bairro multiétnico criado pelo Estado e em que o ideal de unidade nacional é
a bandeira na interacção das pessoas que lá vivem, sobretudo dos veteranos, se mostrou relevante
identificar e compreender que marcadores os Makonde utilizam para se caracterizar como tal, se
diferenciarem dos seus vizinhos, assim como se diferenciarem entre si. Para entender essa auto-
identificação, auto-diferenciação e diferenciação étnicas, segui as sugestões teóricas
antropológicas que afirmam que no processo de inclusão e exclusão identitária, é necessário definir
o que nós temos em comum e em que é que os “outros” se diferenciam de “nós” e assim, ocorre
um processo de manipulação de semelhanças e diferenças (Granjo, 2014). Desse modo e com
recurso à observação participante e entrevistas, constatei que os marcadores identitários dos
Makonde na PSK são os ritos de iniciação, o mapiko e o Shimakonde.

Adoptei uma perspectiva etnográfica dos ritos, tal como sugere Peirano (2010), no sentido em
que foi com os meus interlocutores que aprendi as terminologias inerentes aos ritos, assim como
o processo de organização, a sequência, fases, os intervenientes e os seus papeis. Os ritos
constituem a principal instituição social Makonde não só na PSK, mas em praticamente todos os
lugares onde eles vivem. Pude notar durante o trabalho de campo que os ritos constituem um
mecanismo de integração, aceitação e de diferenciação. Todo aquele ou aquela que se diz Makonde
e não passou pelos ritos de iniciação não é reconhecido como tal, ainda que tenha nascido de pais
Makonde. Para além dessa diferenciação geral entre os que passaram pelos ritos e os que não
passaram, os ritos engendram também diferenças de género. Homens e mulheres são através dos
ritos segregados em seus respectivos espaços, que são interditos ao sexo oposto. No que tange à
diferenciação que os ritos engendram entre os Makonde e os seus vizinhos, importa salientar que
na PSK alguns grupos etnolinguísticos como os Chopi, os Nyanja e os Ajaua também praticam
ritos de iniciação. Quando questionei aos Makonde quais seriam as diferenças entre os seus ritos
e os dos demais afirmaram que são diferentes sem se referirem com precisão à diferença. Visto

188


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

esta pesquisa ser sobre os Makonde, não aprofundou alguns aspectos como os ritos dos seus
vizinhos. Futuras pesquisas sobre os ritos na PSK poderão abordar os ritos dos Makonde e dos
seus vizinhos para poder compará-los quanto à duração, propósito, intervenientes, fases e
organização. Fica também por detalhar o que é que sucede na fase liminar dos ritos femininos,
uma vez que não pude estar presente por ser namaako. Se for iniciada futuramente ou se outra
investigadora interessada no tema for iniciada poderá trazer algumas luzes acerca desta fase
“ultrassecreta”.

Relativamente ao mapiko, procurei fugir à explicação funcionalista que olha para o mapiko
apenas como um mecanismo de afirmação da identidade, apesar de não descurar desse aspecto. As
falas dos meus interlocutores mostram que para eles o mapiko é uma forma de não esquecerem da
sua cultura, mas também mostram a sua grande relação com o likumbi (ritos masculinos). Olho
para o mapiko de modo dinâmico e como diz Israel (2014) em sintonia com os tempos. As
performances de mapiko na PSK variam dependendo do local, da audiência e da ocasião. O
repertório é executado de acordo com o tempo de duração da actuação, mas normalmente é
composto por 3 a 6 canções. A inovação verifica-se nos passos executados, onde os mais novos
são livres de introduzir passos novos, podendo mesclar diversos estilos de dança, diferentemente
do repertório de canções que foram compostas pelos mais velhos e se mantém inalterado com o
passar do tempo, pois o mapiko de certa forma espelha as relações de poder, assente numa base
gerontocrática. De um modo geral, as canções evocam a identidade Makonde, assim como o
orgulho que sentem de serem quem são. Também enaltecem a sua bravura e entrega pelo bem-
estar nacional. A pesquisa buscou perceber como é que o mapiko constitui um marcador identitário
na PSK, mas não explorou a questão da estética e performance para compreender que tipo de
máscara é utilizada, por que motivo e os aspectos estéticos e de género estilístico. Futuras
pesquisas sobre o grupo de mapiko da PSK podem abordar este aspecto e enriquecer a abordagem
sobre esta prática.

Outro marcador identitário identificado foi o shimakonde. Este marcador é bastante evidente
na diferenciação entre os Makonde e os seus vizinhos, todavia, ele também permite a diferenciação
no seu seio. Os Makonde da primeira geração são mais fluentes na língua do que os da segunda.
Tal diferenciação explica-se pelo facto de os mais velhos terem nascido na província de Cabo

189


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Delgado, terem baixo nível académico se comparados com os seus filhos e sentirem-se mais
confortáveis em interagir uns com os outros na sua língua vernacular. Os Makonde da segunda
geração têm mais contacto com o shimakonde quando recebem os midimu aquando do ing’oma e
likumbi. É em shimakonde que essa transmissão é feita. Apesar disso, eles não comunicam em
shimakonde por muito tempo. Os jovens entre si, comunicam-se mais em português e Xichangana.
A comunicação com os mais velhos pode até iniciar em shimakonde, mas depois muda para
Xichangana ou português, que são as línguas que os jovens dominam. Por seu turno, os mais velhos
começam e terminam as suas interacções em Shimakonde.

A pesquisa não se limitou apenas a identificar e a discutir os marcadores identitários dos


Makonde na PSK, mas também a analisar por que é que alguns marcadores que eram gerais a todos
os Makonde em Moçambique foram abandonados e por que é que os restantes persistem. Até por
altura da independência nacional de Moçambique, constituíam marcadores de identidade Makonde
as escarificações faciais, o uso da indona, os ritos de iniciação, o mapiko e o Shimakonde. Os dois
primeiros foram descontinuados no tempo, mas os ritos de iniciação, o mapiko e o shimakonde
perduram. Importa realçar que no concernente aos ritos e ao mapiko, estes têm perdurado em todos
os locais onde vivem Makonde devido à sua capacidade de maleabilidade, adaptabilidade e ao
facto de conseguirem fazer coisas diferentes em diversos momentos e locais. Mesmo em meio a
diversas mudanças sociopolíticas e económicas, essas duas instituições têm sabido negociar a sua
pertinência e existência. Um exemplo disso é o reajustamento no período de realização e duração
dos ritos para que os meninos e meninas não faltem à escola. Outro exemplo dessa negociação é a
capacidade de o mapiko abordar temas pertinentes e actuais, como a actuação do grupo da PSK
nas campanhas eleitorais, improvisando e cantando temas relacionados à ocasião.

Para além de dizer o que é que aproxima e afasta os Makonde dos seus vizinhos e entre si,
também se afigurou necessário compreender através dos idiomas dos meus interlocutores como é
que a etnicidade e a identidade nacional se relacionam. Distanciei-me das abordagens
essencialistas que olham para a etnicidade e para a identidade nacional como entidades estáticas e
dadas como adquiridas. Olho para a etnicidade e para a identidade nacional como idiomas que
podem existir de forma paralela com outros. Nesses termos, adopto a perspectiva Brubaker (2002:
167) que propõe uma fuga ao grupismo. Assim, procurei examinar que categorias práticas, idiomas

190


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

culturais, esquemas cognitivos, estruturas discursivas, rotinas organizacionais, formas


institucionais, projectos políticos e eventos contingentes ocorrem entre os Makonde na PSK. Esse
posicionamento teórico significa antes de mais olhar para a etnicidade como ferramenta de
sociabilidade e interacção entre os indivíduos e não como algo que amordaça os actores sociais
dentro das suas fronteiras e que os mantém próximos uns dos outros, pois algumas vezes as pessoas
são mais próximas de pessoas de outros grupos. A minha postura permitiu entender que os
Makonde não ficam amordaçados no seio do seu grupo etnolinguístico, mas que mobilizam a sua
etnicidade em momentos bastante específicos, assim como o fazem com a identidade nacional. Por
olhar para e etnicidade como uma das várias identidades que os meus interlocutores têm, foi
possível perceber que por vezes eles são mais próximos das pessoas de etnias diferentes da sua. A
noção de amiticia é bastante útil nesse aspecto, porque mostra que existe uma rede de
relacionamentos que por vezes ultrapassa as nossas solidariedades tidas como primárias.
Outrossim, distanciar-me das definições rígidas de etnicidade ajudou-me a compreender de que
modo diferentes pessoas mesmo estando sob a umbrela de grupo etnolinguístico Makonde
experimentam e manifestam de modo diferente a sua identidade étnica, assim como a nacional.
Outro ganho de evitar o grupismo foi perceber que os Makonde, sobretudo os da segunda geração
se movem em muitos espaços e neles encontram uma multiplicidade de valores que os colocam
muitas opções de escolha. Quando chega o momento de escolher entre elas, muita das vezes não
o fazem por serem Makonde ou não, mas escolhem aquilo que faz sentido para eles. Por exemplo,
quando chega o momento de escolherem um cônjuge, não o fazem em função da origem étnica
das pessoas, mas sim pelo sentimento e pelas perspectivas de vida que esse relacionamento pode
oferecer.

Por fim, importa realçar que a identidade Makonde é maleável e consegue negociar e se ajustar
aos novos tempos e espaços mantendo a sua relevância para os indivíduos que se identificam e se
afirmam como tal. Apesar disso, a afirmação dessa auto-identificação não impede que manifestem
outras identidades paralelas, razão pela qual argumento que os meus interlocutores são
moçambicanos, mas antes Makonde.

191


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Referências bibliográficas

Adam, Y. (2006). “Uma história iconoclástica de Moçambique pós-colonial: uma revisão crítica
da literatura”, in: escapar aos dentes do crocodilo e cair na boca do leopardo, trajectória pós-
colonial (1975-1990). Maputo, Moçambique: Promédia.

Adam, Y & Gentili, A. (1983). O movimento dos Liguilanilu no planalto de Mueda 1957-1962.
Est. Moç. (4) 1983: 41-75.

Adam, Y & Dyuti, H. (1993). O massacre de Mueda: falam testemunhas. Arquivo: Boletim do
Arquivo Histórico de Moçambique 14, 117-128.

Alpers, E. (1967). The East African Slave Trade. Nairobi, Kenia: Historical Association of
Tanzania.

________. (1984). To seek a better life”: the implications of migration from Mozambique to
Tanganyaka for class formation and political behavior. Canadian Journal of African Studies, vol.
18, No.2, 367-388.

Amselle, J.L & M’Bokolo, E. (Cood.). (2014). Pelos Meandros da Etnia: etnias, tribalismo e
Estado em África. Luanda, Angola: Edições Pedago.

Anderson, B. (1983). Imagined communities: reflections on the origins and spread of nationalism.
London, England, New York, USA: Verso.

__________. (2006). Immagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism.
London, England, New York, USA: Verso.

Arnfred. S. (2010). Feminism and gendered bodies: on female initiation rituals in northern
Mozambique. Quaderns 26. Pp. 61-82.

192


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

__________. (2015). Notas sobre género e modernização em Moçambique. Cadernos Pagu (45).
Pp. 181-224.

Astuti, R. (1995). People of the sea: identity and descent among the Vezo of Madagascar.
Cambridge, England: Cambridge University Press.

_________. (2017). On keeping up the tension between fieldwork and ethnography. Journal of
Ethnographic Theory, 7 (1), 9-14.

Bagnol, B. (2013). Female Initiation Rituals in Northern Mozambique. In. C. Donna (Ed.) The
essential handbook of women sexuality. Santa Barbara, USA: Praeger.

Balaton-Chrimes, S. (2015). Ethnicity, Democracy and Citizenship in Africa: Political


marginalisation of Kenya’s Nubians. Farnham, London: Ashgate, Aldershot.

Barth, F. (1969). Introduction. In Ethnic Groups and Boundaries: The Social Organization of
Culture Difference. F. Barth (Ed.), Ethnic Groups and Boundaries, the social organization of
culture difference (pp.9-38). Oslo, Norway: Scandinavian University Books.

Bastos, C & Sobral, J. (2018). Portugal, Anthropology. In H. Callan (Ed.), The international
encyclopedia of Anthropology. New Jersey, Estados Unidos da América: John Wileyand sons.

Bellman, B. (1984). The language of secrecy, symbols and metaphors in Poro ritual. New Jersey,
USA: Rutgers University Press.

Bernardo, B. (2007). Introdução aos Estudos Etno-Antropológicos. Lisboa, Portugal: Edições 70.

Bertelsen, B. E. (2016). Violent Becomings: State Formation, Sociality, and Power in


Mozambique. New York, USA: Berghahn Books.

193


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Bortolot, A. (2007). A language for change: creativity and power in Mozambican makonde masked
performance circa 1900-2004. (Tese de doutoramento não publicada). Columbia University, New
York.

Brito, L. C. (2019). A FRELIMO, o Marxismo e a Construção do Estado Nacional 1962-


1983. Maputo, Moçambique: Instituto de Estudos Sociais e Económicos.

Brubaker, R. (2002). Ethnicity without Groups. Arch. europ. Sociol., XLIII, 2, 163-189.

Cabaço, J. (2007). “Identidades, conflito e liberdade”. In Bastos, C (Ed.). Travessias. Revista de


Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa, nº 4/5.

___________. (2007). Moçambique: identidades, colonialismo e libertação (tese de doutoramento


não publicada). Universidade de São Paulo, São Paulo.

Canivete, B. C. (2016). História e memória em Moçambique: disputa sobre memória na cidade


da Beira (Tese de doutoramento não publicada). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro.

Cahen, M. (1999). The Mueda case and Maconde political ethnicity. African studia, n´2, Nov, pp.
29-46.

Carlos, A. F.A. (2007). O lugar no/do mundo. São Paulo, Brasil: FFLCH.

CEA. (1983). A situação nas antigas zonas libertadas de Cabo Delgado. Maputo, Moçambique:
UEM.

__________. (1986). Poder popular e desagregação nas aldeias comunais do planalto de Mueda.
Maputo, Moçambique: Oficina de História.

194


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Coelho, J.P.B. (2019). Política e história contemporânea de Moçambique: dez notas


epistemológicas. Rev. Hist, no. 178, a07318, 2-19.

Cohen, A. (1994). Self-consciousness: an alternative anthropology of identity. London, England:


Routledge.

Cortez, E. (2018). Velhos amigos, novos adversários: as disputas, as alianças e reconfigurações


empresariais na elite política moçambicana (Tese de doutoramento não publicada). Universidade
de Lisboa, Lisboa.

Cossa, S. N. (2014). Corpos ubíquos: estudo etnográfico sobre a construção social dos corpos em
Moçambique (tese de mestrado não publicada). Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto
Alegre.

Cristóvão, K. (2018). O Contributo da Língua Shimakonde na Construção da Identidade Cultural


dos Makonde no ex-bairro Militar na Cidade de Maputo (tese de licenciatura não publicada).
Instituto Superior de Artes e Cultura, Maputo.

Daniel, J. (1997). As relações de género e o acesso e controle da terra pela mulher na sociedade
Maconde no Planalto, 1930 à actualidade (tese de licenciatura não publicada). Universidade
Eduardo Mondlane, Maputo.

Dias, J, Guerreiro, V & Dias, M. (1960). Relatório da missão de estudos das minorias étnicas do
ultramar português durante o ano de 1959. Lisboa, Portugal: Missão de Estudos das Minorias
Étnicas do Ultramar Português.

Dias, J & Dias, M. (1970). Os Macondes de Moçambique III: vida social e ritual. Lisboa, Portugal:
Junta de Investigações do Ultramar, Centro de Estudos de Antropologia Cultural.

195


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Dias, J. (1998). Os Macondes de Moçambique: aspectos históricos e económicos (Vol. I). Lisboa,
Portugal: Instituto de Investigação Científica Tropical e Comissão Nacional para as comemorações
dos Descobrimentos Portugueses.

Dove, R, Dava, F, Mudender, A & Malimusse, L. (2015). Vida e obra de Paulo Samuel
Kankhomba. Maputo, Moçambique: ARPAC.

Duarte, R. (1987). Escultura maconde. Maputo, Moçambique: Núcleo Editorial do Departamento


de Arqueologia e Antropologia da Universidade Eduardo Mondlane.

Egero, B. (1990). Mozambique: a dream undone, the political economy of democracy, 1975-1984.
Uppsala, Sweden: Nordiska afrikainstitutet.

Eriksen, T. (1991). Ethnicity versus nationalism. Journal of Peace Research, vol. 28, no. 3, 263-
278.

___________. (2001). Small places, large issues: an introduction to Social and Cultural
Anthropology. Londres, Inglaterra: Pluto books.

___________. (2001). “Ethnic identity, national identity and intergroup conflict”. In:
Ashmore. R; Jussim, L & W. David (Eds.) Social identity, intergroup conflict and conflict
reduction. Oxford, England: Oxford University Press.

Fabian, J. (2001). Anthropology with an attitude: critical essays. California, USA: Stanford
University Press.

Feixa, C & Leccardi, C. (2010). O conceito de geração nas teorias sobre a juventude. Revista
Sociedade e Estado, volume 25, 185-204.

196


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Fernandes, C. (2011). Dinâmicas de pesquisa em Ciências Sociais no Moçambique pós-


independente: o caso do centro de Estudos Africanos, 1975-1990 (Tese de doutoramento não
publicada) Universidade Federal da Bahia, Bahia.

FRELIMO. (1975). Mensagem ao povo de Moçambique por ocasião da tomada de posse do


Governo de Transição a 20 de setembro de 1974. Lourenço Marques, Moçambique: Imprensa
Nacional. Disponível em:
http://www.mozambiquehistory.net/people/samora_speeches/1974/19740920_smm_discurso_tra
nsicao.pdf. Acesso a 10 de abril de 2021.

________. (1977). O partido e as classes trabalhadoras moçambicanas na edificação da democracia


popular: Relatório do comité central ao 3º congresso. Disponível em:
http://www.mozambiquehistory.net/people/samora_speeches/1977/19770200_3_congresso_cc_r
eport_opt.pdf. Acesso a 10 de abril de 2021.

Fry, P. (2003). Culturas da diferença: sequelas das políticas coloniais portuguesas e britânicas
na África Austral. Afro--‐Ásia, 29/30, 271--‐316.

Gecau, K. (1999). History, the arts and the problem of national identity: reflections on Kenya in
the 1970’s and 1980’s. In. M. Palmberg (Ed.) National identity and democracy in Africa. The
human sciences research council of Africa, the Mayibuye centre at the university of the Western
Cape and the Nordic African Institute.

Geffray, C. (2000). Ni père, ni mère, crítica do parentesco: o caso Macua. Lisboa, Portugal:
Ndjira.

Goffman, E. (1993). A apresentação do eu na vida de todos os dias. Santa Maria da Feira, Portugal:
Relógio d’Água.

_________. (2002). A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, Brasil: Editora Vozes.

197


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Goody, J. (1998). Cozinha, culinária e classes: um estudo de sociologia comparativa. Oeiras,


Portugal: celta editora.

Gow, P. (2006). Da etnografia à história: introdução e conclusão de of mixed blood: kinship and
history in Peruvian Amazonia. Cadernos de campo, nº 14/15, 1-382.

Granjo, P. (2014). Raça e racismo são coisas que se aprendem. In. P. Granjo, et al., all. o que é
racismo? Lisboa, Portugal: Escolar Editora.

Gupta, A & Fergurson, J. (1992). Beyond “culture”: space, identity and politics of difference.
Cultural Anthropology, vol. 7, no. 1, 6-23.

Habibe, S, Forquilha, S & Pereira, J. (2019). Islamic Radicalization in Northern Mozambique: The
Case of Mocímboa da Praia. Research Report (Cadernos IESE nº17/2019). Maputo, Mozambique:
IESE.

Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade (11ª edição). Rio de Janeiro, Brasil:
DP&A Editora.

Hannerz, U. (1997). Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional.


Mana 3 (1), 7-39.

Hastrup, K. (2004). Getting it right: knowledge and evidence in anthropology. Anthropological


theory, 4 (4), 455-472.

Hedges, D, Rocha, A, Medeiros, E, Liesegang, G & Chilundo, A. (1993). História de Moçambique


vol. 3, 1930-1961. Maputo, Moçambique: Universidade Eduardo Mondlane.

Hobsbawm, E. (1994). Nations and nationalism since 1780. Cambridge, England: Cambridge
University Press.

198


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Hobsbawm, E & Ranger, T (Orgs.). (1997). A invenção das Tradições (6ª edição). Rio de Janeiro,
Brasil: Paz e Terra.

Honwana, A. (2013). O tempo da juventude, emprego, política e mudanças sociais em África.


Maputo, Moçambique: Kapicua Livros e Multimédia.

Israel, P. (2005). Mapiko masquerades of the Makonde: performance and historicity. In. Eastern
African contours: Reviewing Creativity and Visual Culture. H. Arero & Z. Kingdon (Eds).
London, England: The Horniman Museum and Gardens, 113.

_________. (2006). Kummawangela Guebuza: the mozambican general elections of 2004 in


Muidumbe and the roots of the loyalty of Makonde people to FRELIMO. Revue lusotopie
13.2, 103--‐125.

_________. (2014). In step with the times, mapiko masquerades of Mozambique. Ohio, USA:
Ohio University Press.

__________. (2017). Mueda massacre: the musical archive. Journal of Southern African
Studies, vol.43, no. 6, 1157-1179.

Keese, A (Ed.). (2010). Ethnicity and long-term perspective: the African experience. Bern,
Switzerland: Peter Lang AG, International Academic Publishers.

Kuhn, T. (1998). A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Brasil: Editora Perspetiva.

Laranjeira, L. (2016). Mashinamu na uhuru: conexões entre a produção de arte makonde e história
política de Moçambique (1950-1974). (Tese de doutoramento publicada). Universidade de São
Paulo, São Paulo.

199


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

__________. (2018). Mashinamu na uhuru: arte Makonde e história política de Moçambique


(1950-1974). (Tese de doutoramento publicada). Universidade de São Paulo, São Paulo.

Leal, J. (2016). A antropologia em Portugal. SocioL. Antropolog, v.06.02: 293-319.

Leiner, P. (2009). A etnografia como extensão da guerra por outros meios: notas sobre a pesquisa
com militares. Mana, vol. 15, n.1. 59-89.

Lentz, C. (1995). Tribalism and ethnicity in Africa: a review of four decades of anglophone
research. Cah. Sci. hum. 31(2), 303-328.

_________. (2000). Colonial constructions and African initiatives: the history of ethnicity in
northwestern Ghana. Ethnos, vol. 65: I, 107-136.

Lepri, I. (2003). We are not the true people, notions of identity and otherness among the Ese Ejja
of northern Bolivia (Unpublished PhD thesis). London, University of London.

Linnekin, J. & Poyer, L. (Eds.) (1990). Cultural Identity and Ethnicity in the Pacific. Honolulu,
Hawaii: University of Hawaii.

Liesegang, G. (2007). Sur les origines et l’histoire des makondes du Mozambique. In. D. Macondé,
Mozambique La Rèunion (catálogo de exposição): Musée Historique de Villèle.

Lopes, D. B. (2011). “Ser bem-educada”: os ritos de iniciação da rapariga (Ing’oma) entre os


Maconde na zona militar em Maputo (tese de licenciatura não publicada)., Universidade Eduardo
Mondlane, Maputo.

Macagno, L. (2002). Lusotropicalismo e nostalgia etnográfica: Jorge Dias entre Portugal e


Moçambique. Afro-Ásia, 28, pp. 97-124.

200


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

__________. (2003). Política e cultura no Moçambique pós--‐socialista. Novos estudos


CEBRAP, nº 67, 75--‐89.

Macaringue. E. (2017). Modernização dos Espaços Agrários em Moçambique versus


expropriação de terras: reflexão em torno das políticas agrárias implementadas entre 1975-
2015. Revista Sapiência, Sociedade, Saberes e Práticas Educacionais, V.6, N.2, 235-268.

Maples, C. (1880). Masasi and the Rovuma District in East Africa. London, Inglaterra: Royal
Geographical Society.

Matta, R. Da. (2000). Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de


passagem e a modernidade. Mana 6 (1), 7-28.

Mauss, M. (2003). Sociologia e Antropologia. São Paulo, Brasil: Cosac Naify.

Meigos, F.M. (2016). Sobre a nachingweização de Moçambique: utopia versus distopia.


Comunicação apresentada no seminário re-significando pátria e nação. Maputo,
Moçambique.

Meneses, M.P. G. (2015). Xiconhoca: o inimigo: narrativas de violência sobre a construção


da nação em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, 106, 2015, 9-52.

Muendane, A. (2014). Desafios da dança mapiko face à globalização cultural: o caso do grupo
PSK de Boane (Tese de licenciatura não publicada). Instituto Superior de Artes e Cultura, Maputo.

Muiambo, A. (1996). Impacto da barragem dos pequenos libombos nos recursos naturais do
distrito de Boane (Tese de licenciatura não publicada). Universidade Eduardo Mondlane, Maputo.

Mulot, S. (2013). Caribbean Matrifocality is not a Creole Mirage. L’Homme, volume 207-208,
159-191.

201


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Ngoenha, S. E. (1998) Identidade moçambicana: já e não. In: C. Serra (dir.). Identidade,


Mocambicanidade e Mocambicanização (pp. 17-32). Maputo, Moçambique: Livraria
Universitária da UEM.

Ngole, S. (1996). Ritos de iniciação masculinos e suas transformações sociais no Planalto de


Mueda entre 1924-1994 (tese de licenciatura não publicada). Universidade Eduardo Mondlane,
Maputo.

Osório, C. (2006). Sociedade matrilinear em Nampula: estamos a falar do passado? Boletim Outras
Vozes, no. 16, 9-12.

Osório, C & Macuácua, E. (2013). Os ritos de iniciação no contexto actual: ajustamentos, rupturas
e confrontos-construindo identidades de género. Maputo: WLSA.

Parsons, T. (1968). La estrutura de acción social. Madrid, España: Guadarrama.

________. (1969). Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. São Paulo, Brasil:


Pioneira.

Pedro, V, Matavele, O & Nhachote, R. (2019). O impacto dos ritos de iniciação na Saúde Sexual
e Reprodutiva nos distritos de Mogovolas e Moma: Relatório de pesquisa, Maputo, Moçambique:
Plan International.

Peirano, M. (2003). Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro, Brasil: Jorge Zahar Editor.

Penvenne, J.M. (2006). African oral history: rethinking oralcy-ways of knowing and telling truths.
Lecture series of post-graduate module in history and social sciences. Maputo, Mozambique:
Eduardo Mondlane University.

202


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Pereira, R. (2005). Conhecer para dominar: o desenvolvimento do conhecimento antropológico


na política colonial portuguesa de Moçambique, 1926-1959 (Tese de doutoramento não
publicada), Universidade Nova de Lisboa, Lisboa.

Pina Cabral, J. (1991). Os contextos da antropologia. Lisboa, Portugal: Difel.

___________. (2010). Lusotopia como ecumene. RBCS, vol.25, no. 74, 5-20.

Rapport, N & Overing, J. (2003). Social and Cultural Anthropology: the key concepts. London
and New York: Routledge.

Renan, E. (1882). O que é uma Nação? Comunicação apresentada em conferência na Sorbonne,


Paris, França.

Rita-Ferreira, A. (1982). Fixação portuguesa e história pré-colonial de Moçambique. Lisboa,


Portugal: Instituto de Investigação Científica Tropical/ Junta de Investigações Científicas do
Ultramar.

Roque, R. (2001). A antropologia colonial portuguesa (c. 1911-1950). In C. Diogo (Dir.), Estudos
de Sociologia da leitura em Portugal no século XX. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste
Gulbenkian.

Santos, F.A. (2020). Guerra no norte de Moçambique: uma região rica em recursos naturais, seis
cenários. CMI Insight, no.3.

Serra, C. (1996). Mudança social e crenças anómicas em Moçambique. Comunicação apresentada


no III Congresso Português de Sociologia. Lisboa, Portugal.

Smith, A. D. (1991). National Identity. Nevada: USA: Nevada University Press.

203


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Sokefeld, M. (1999). Debating self, identity and culture in Anthropology. Current Anthropology,
volume 40, number 4, 417-447.

Souto, A. (2013). Memory and identity in history of Frelimo: some research directions. In. R.
Assubuji, P. Israel & D. Thompson (Eds.). The liberation script in the Mozambican history.
Kronos 39, Southern African Histories.

Strathern, M. (2014). O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo, Brasil: Cosac Naify.

Sumich, J. (2008). Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana. Análise
Social, XLIII (2º.), 319--‐345.

Tajú, G. (1998). The social integration of demobilised ex-combatants in Mozambique.


(Unpublished master thesis). University of Witwatersrand, Johannesburg.

Taussig, M. (1999). Defacement: public secrecy and the labour of the negative. Stanford, USA:
Stanford University Press.

Tembe, J. (2013). Uhuru na Kazi: recapturing the Manu nationalism through the archive. In. R.
Assubuji, P. Israel & D. Thompson (Eds.). The liberation script in the Mozambican history.
Kronos 39, Southern African Histories.

Teuttsch, F. (1999). Collapsing expectation: national identity and disintegration of the state in
Somalia. Edinburgh, Scotland: Centre of African Studies.

Thomson, J. (1882). Notes on the basin of the river Rovuma, East Africa. London, Inglaterra: Royal
Geographical Society.

Turner, V. (1966). The ritual process: structure and anti-structure. New York, USA: Cornell
University Press.

204


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Van Gennep, A. (1978). Os ritos de passagem. Petrópolis, Brasil: Editora Vozes.

Viegas, S & Mapril, J. (2012). Mutualidade e conhecimento etnográfico. Etnográfica, 16 (3), 513-
524.

West, H. (2001). “Sorcery of construction and socialist modernization ways of understanding


power in postcolonial Mozambique”. American Ethnologist, 28, 119--‐150.

___________. (2004). Villains, victims or makonde in the making? Reading the explorer Henry
O’Neill and listening to the headman Lishehe. Ethnohistory: 51: I.

_________. (2009). Kupilikuxa: o poder invisível em Mueda, Moçambique. Lisboa, Portugal:


Instituto de Ciências Sociais.

Weule, K. (2000). Resultados científicos da minha viagem de pesquisas etnográficas no


sudeste da África Oriental. Maputo, Moçambique: projecto arte Makonde do Departamento
dos museus do Ministério da Cultura.

Wiegink, N. (2013). The forgotten sons of the State: the social and political positions of
former Government soldiers in post-war Mozambique. Colombia Internacional 77. Pp. 43-
72.

Wimmer, A. (2008). The making and the unmaking of ethnic boundaries: a multilevel process
theory. AJS. Volume 113 (4), 970-1022.

Wirth, L. (1938). Urbanism as a way of life. American Journal of Sociology, vol. 44, no. 1, 1-24.

205


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Arquivo

AHM. Fundo ISANI, Cota 91-Província de Moçambique, Inspecção dos Serviços Administrativos
e dos Negócios Indígenas. Relatório da Inspecção Ordinária ao Distrito de Cabo Delgado (3ª parte),
1944-1951.
AHM. Fundo Aldeias Comunais. Província de Maputo. Cota AC/159.

AHM. Fundo Aldeias Comunais. Documentos da 1ª reunião nacional das aldeias comunais. Cota
AC/15.

AHM. Fundo Aldeias Comunais. Aldeias comunais existentes. Cota AC/143.

ANTT/AOS/D/N/1/2/2. Informação nº 829/61-GU enviada à presidência do conselho a 22.5.1961,


aos ministérios do ultramar, interior, defesa e exército e ao subsecretariado da aeronáutica
(relatório secreto).

ANTT/AOS/D/N/1/2/2. Informação nº 773/61 GU-Enviada à presidência do conselho, aos


ministérios do Ultramar, Interior, Defesa e Exército a 19 de janeiro de 1961

ANTT/AOS/D/N/1/5/26. Informação nº 492/61-GU enviada à Presidência do Conselho e aos


Ministérios do Ultramar, Interior, Defesa Nacional e Exército.

ANTT/TT/SCCIM/C/1/6. Memorando de entendimento submetido pela MANU ao Comité


Especial das Nações Unidas para territórios sob a administração portuguesa em Dar-Es-Salaam,
14 de Maio de 1962.

Imprensa

Jornal Notícias de 10 de Junho de 1982.

Jornal Notícias de 11 de Junho de 1982.

206


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

Revista Tempo, nº 469 de 7 de setembro de 1979.

http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/politica/40125-preservar-a-paz-e-unidade-nacional-
afirma-fernando-faustino-em-boane

https://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/sociedade/23271-vila-de-boane-da-municipalizacao-
a-pressao-demografica.html

http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/sociedade/41579-novo-regadio-para-boane. Acesso a
10 de Novembro de 2015.

http://www.rm.co.mz/rm.co.mz/index.php/component/k2/item/12826-pais-916-combatentes-da-
luta-de-libertacao-nacional-condecorados-hoje.html

https://www.dw.com/pt-002/veteranos-devem-combater-terrorismo-em-
cabo-delgado-refere-ministro/a-54827213

https://www.dw.com/pt-002/veteranos-devem-combater-terrorismo-em-cabo-delgado-refere-
ministro/a-54827213

https://www.dw.com/pt-002/mussiro-a-planta-que-%C3%A9-o-segredo-de-beleza-de-muitas-
mo%C3%A7ambicanas/g-43300110)

Portais Web

http://psimg.jstor.org/fsi/img/pdf/t0/10.5555/al.sff.document.ae000092_final.pdf.

http://www.mozambiquehistory.net/politics/veterans/19820621_tarefa_dos_antigos_combatentes
.pdf.

207


«Somos moçambicanos, mas antes Makonde»

http://vida-africa.org/escolas.html.

http://www.ara-sul.gov.mz/unidade-de-gestao-da-bacia-do-umbeluzi-ugbu/.

https://www.buala.org/pt/palcos/o-dzukuta-pandza-esta-a-bater-em-mocambique

https://www.significados.com.br/nhenhenhem

https://jornalvisaomoz.com/aldeia-paulo-samuel-kankhomba-sem-agua-ha-um-ano/

208

Você também pode gostar