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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Universidade de São Paulo

AUP0278 | Planejamento Urbano: Estruturas


Fichamento Aula 3
Julia Nariçawa | N°Usp: 12505454

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AUGUSTO, K. C. F. Também é pelo transporte que uma mulher negra não consegue chegar aonde ela
quer: perspectiva interseccional sobre lógicas a que o sistema de transporte da cidade de São Paulo
está sujeito. In: SANTINI, D.; SANTARÉM, P.; ALBERGARIA, R. (orgs.). Mobilidade anti-racista.
São Paulo: Autonomia Literária, 2021, pp. 308-327.

Kelly Cristina Fernandes Augusto é uma arquiteta e urbanista formada pela FAU MACKENZIE,
especialista em Economia Urbana e Gestão Pública. Suas pesquisas são dedicadas à análise da
associação entre o desenvolvimento urbano e à expansão dos sistemas de transporte.
O capítulo intitulado “Também é pelo transporte que uma mulher negra não consegue chegar aonde
ela quer: perspectiva interseccional sobre lógicas a que o sistema de transporte da cidade de São Paulo
está sujeito” faz parte do livro “Mobilidade AntiRacista", publicado em 2021, que, ao compilar
escritos de diversos autores e estudiosos, coloca em foco a espacialidade, questão pouco discutida
sobre o racismo.

O capítulo inicia apontando como um erro a sobreposição da técnica e da tecnologia sobre a vida das
pessoas nos debates acerca do transporte e mobilidade urbana, o que infelizmente acaba por ser
perpetuado e legitimado por atores sociais e econômicos. Cada um desses agentes traz para as
discussões pontos de vistas e argumentos diferentes, de acordo com seus objetivos e interesses: por
exemplo, um órgão público tem seu foco em questões operacionais, já empresas privadas de serviços
buscam maior custo-benefício e eficiência.
Segundo Urry, o transporte é um fenômeno de duplo-sentido, isto é, é resultado, ao mesmo tempo, da
mudança social e do deslocamento pelo espaço (atividade-meio). Nesse sentido, o transporte
transforma-se em um mecanismo de reprodução das lógicas às quais está submetido, o que se traduz,
sobretudo no Brasil, na reprodução da desigualdade e da segregação socioespacial (separação de
determinados grupos de pessoas com base em suas etnias e/ou raças do restante da sociedade, onde a
distância física se torna equivalente à distância social).
Diante dessa perspectiva, dando enfoque à realidade da cidade de São Paulo, tem-se que o seu
sistema de transporte foi desenvolvido com um vínculo quase intrínseco a sistemas opressivos de raça,
gênero e classes, os quais, por sua vez, moldaram a sociedade paulistana. Dessa forma, o transporte,
além de ser projeto e produto do racismo estrutural que fundou o município e perpetua até hoje, ele
também é uma ferramenta de perpetuação dessa lógica. As mulheres negras (pretas e pardas), então,
são as mais afetadas por essa dinâmica perversa.
O predomínio do transporte coletivo por ônibus na populosa Região Metropolitana de São Paulo
(RMSP) tem suas raízes no seu processo de formação. O aumento populacional das cidades
brasileiras, sobretudo da capital paulista, entre as décadas de 1960 e 1970 resultou em uma tipologia
de ocupação urbana dispersa e difusa, associada à expansão da frota de ônibus, desvinculando o
crescimento da mancha urbana do sistema de trens, muito importante no século anterior. Com a
possibilidade desse novo meio de locomoção circular por por vias estreitas, curvas, inclinadas, foi
possível a ocupação de áreas afastadas, que à princípio eram rurais, levando a uma disseminação de
loteamentos ‘ilegais’ ” nessas regiões. Nesse contexto, através de políticas higienistas, a população
trabalhadora que morava em cortiços e habitações precárias foi expulsa da região central, indo morar
nas periferias da cidade.
Entretanto, apesar de indesejáveis pela elite como moradores das “áreas nobres” da cidade, essa classe
trabalhadora era essencial para a continuidade das funções urbanas, econômicas e domésticas. Surgiu,
então, uma necessidade de vencer essas distâncias crescentes entre o local de residência e de trabalho,
uma vez que as atividades econômicas e oportunidades de emprego estavam concentradas nas regiões
centrais. Houve, então, um crescimento acelerado da demanda diária por transporte coletivo,
resultando em uma oferta limitada de transporte precário.
Essa nova frente de urbanização paulistana, baseada na expansão rodoviária com objetivo conectar
áreas afastadas ao centro,foi chamada pelo geógrafo Langenbuch de subúrbio ônibus. Tendo como
característica em comum com as demais classificações (subúrbio rodoviário e
subúrbio-entrocamento) “a baixa densidade demográfica, predominância do uso residencial e com
setor terciário em formação” (Langenbuch, 1968), a viabilidade de ocupação do subúrbio ônibus está
condicionada à disponibilidade de linhas de ônibus, o que produziu um crescimento linear da mancha
urbana, ao longo das vias por onde passava esse meio de transporte, criando centralidades locais ao
redor dos pontos de ônibus, uma vez que, por conseguinte, se concentravam as dinâmicas e fluxos.
Ainda, tudo isso somado à negligência do poder público quanto à fiscalização dos loteamentos que
estavam surgindo e à carência e precariedade da infraestrutura acabou por resultar no surgimento de
novos loteamentos clandestinos.
Ademais, com o aumento da pressão da crescente população das periferias por serviços e
equipamentos urbanos, foi criado, em 1947, a Companhia Municipal de Transportes Coletivos
(CMTC). Nesse contexto, a CMTC passou a ser a responsável por grande parte das linhas de ônibus,
sobretudo por aquelas que passavam pela “cidade formal”. Contudo, as áreas periféricas,
historicamente negligenciadas pelo poder público, não foram suficientemente atendidas pelo
transporte público, continuando a depender de meios clandestinos para se deslocar.
O transporte coletivo por ônibus, com o passar do tempo, tornou-se o principal meio de transporte de
um grande contingente populacional e passou a ser visto por muitos empresários como uma
oportunidade de investimento rentável. Nesse cenário, os interesses dessas empresas privadas,
operando a partir de concessões dadas pela SPTrans, empresa municipal que substituiu a extinta
CMTC, se sobrepunham, por exemplo, à criação de políticas direcionadas à melhoria das viagens
centro-periferia.
Já nos anos mais recentes, o sistema de transporte foi parcelado em 32 lotes, o que, em teoria,
permitiria que mais empresas participassem do processo de licitação. Entretanto, na realidade, a
competitividade desse processo foi baixíssima, quase nula, em decorrência da presença de vícios no
edital, produto histórico de relações econômicas, políticas e sociais, que sempre prejudicaram as
populações periféricas, negras e empobrecidas. Dessa forma, faz-se urgente a ruptura com esses
padrões, que tornaram banais cenas de ônibus lotados circulando por vias das periferias.
A rede de ônibus paulistana atualmente é constituída por um “sistema-tronco” alimentador, isto é, é
baseado na articulação de terminais de ônibus, pontos de paradas e corredores exclusivos, na tentativa
de articular as locomoções entre as diversas regiões da capital. Foram adotados ainda dispositivos
técnicos, como o Bilhete Único e as baldeações, na tentativa de diminuir os custos e o tempo dos
deslocamentos. Entretanto, esses mecanismos serviram somente para levar diariamente milhares de
pessoas para seus trabalhos (na maioria das vezes em regiões centrais) e trazê-las de volta para áreas
periféricas e municípios vizinhos.
Isso deixa clara a existência de uma divisão social do trabalho, em que a população empobrecida
moradora de áreas afastadas são essenciais para a reprodução do capital, que fica concentrado nas
mãos das elites moradoras das regiões centrais. Segundo o geógrafo Milton Santos, “ A localização
das pessoas no território é, na maioria das vezes, produto de uma combinação entre forças do mercado
e decisões do governo.”. Sendo assim, tem-se um maior investimento em infraestrutura nas áreas
centrais, em detrimento das periferias, onde a grande massa trabalhadora reside, o que constitui, a
partir de uma lógica centralizadora atrelada ao rodoviário, um entrave para a mobilidade urbana e
social. A localização, portanto, torna-se razão de uma disputa social, à medida que o tempo e o custo
gasto com o transporte diário tem influência sobre o acesso a oportunidades de emprego, favorecendo,
na grande maioria das vezes, quem ocupa uma maior posição socioeconômica.
Diante dos desafios cotidianos dos moradores de periferias inerentes ao uso da rede de ônibus, como
viagens demoradas, veículos lotados, etc, houve um aumento significativo do uso de transporte
privado motorizado por camadas de mais baixa renda, sobretudo pelos homens. Por outro lado, as
classes mais abastadas passaram a usar cada vez mais o metrô. Isso, por sua vez, significa um a
intensificação do desgaste físico e emocional e do comprometimento de renda sobretudo para as
mulheres negras, que historicamente são desfavorecidas social e economicamente. Toda essa
conjuntura, somada a infraestrutura urbana deficitária nas periferias paulistanas, “que é perpetuada a
cada nova gestão, formando um acúmulo de ausências” (Augusto, 2021), reverbera a lógica
segregacionista do passado de sistemas de transporte, sobretudo de ônibus, que “favorece a formação
de dependências territoriais e minam a autonomia das periferias” (Augusto, 2021).
Trazendo uma série de dados estatísticos, a autora mostra que existe uma segregação residencial na
capital paulista: grande parte da população negra mora nas periferias da cidade, enquanto as áreas
centrais concentram uma população majoritariamente branca. Nessa perspectiva, a segregação em São
Paulo não é puramente por classes sociais, uma vez que negros e brancos de classe médias vivem em
áreas completamente diferentes. As relações raciais, portanto, assumem um papel de estruturador da
metrópole.
Os efeitos da imobilidade relacionados à localização e transporte afetam principalmente as mulheres
negras da periferia. Pesquisas mostram que elas “ocupam funções no mercado de trabalho
principalmente no setor de serviços e com enorme concentração nos empregos domésticos, de menor
rendimento, consequentemente, menos renda, menos mobilidade” (Haydée Svab), na maioria das
vezes nas proximidades de suas residências. Isso explica o fato de que as mulheres se deslocam
sobretudo com objetivo de resolver problemas familiares e de saúde e de fazer compras. Isso as
transformam em base do equilíbrio e manutenção da vida familiar e, em última instância, em
estruturadoras da sociedade. Por isso, quando as mulheres negras são impossibilitadas de se
movimentar, tanto física como socialmente, significa que “toda nossa sociedade está presa em uma
estrutura de opressão e dominação” (Augusto, 2021). Mas ainda é possível desestabilizá-la através da
articulação dos moradores dessas periferias, através da dinamização das áreas comerciais, de
movimentos políticos sociais antirracistas e feministas.

O texto, por ter sido escrito recentemente, já em um cenário pandêmico, traz reflexões muito
importantes para a atualidade. Pensar que a implementação de um sistema de transporte rodoviário no
século passado ainda reverbera veementemente nos dias de hoje ainda parece inacreditável. Havia no
século XVIII cerca de 900 km de trilhos urbanos, que foram substituídos por redes de ônibus que não
atendem adequadamente e igualmente toda a população da cidade de São Paulo. Esse texto contribuiu
muito para as discussões sobre a subprefeitura do Butantã que tem distritos localizados na periferia da
metrópole e que são atendidos somente por linhas de ônibus e vias rodoviárias. Além do mais, houve
também uma interdisciplinaridade com a matéria de projeto, pois meu grupo está projetando linhas de
trens urbanos na tentativa de desmantelar esse sistema rodoviarista hegemônico.

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