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III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

III Semana Acadêmica do


PPG em Teologia da PUCRS

Teologia Fundamental
Teologia bíblica
Cristologia
Antropologia teológica
Eclesiologia

Organizadores
Érico João Hammes
Ludinei Marcos Vian
Rafael Martins Fernandes
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Fotografia / Imagem de Capa: John Towner - https://www.townerphoto.com/

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

HAMMES, Érico João; VIAN, Ludinei Marcos; FERNANDES, Rafael Martins (Orgs.)

III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS: Teologia Fundamental, Teologia bíblica, Cristologia,
Antropologia teológica, Eclesiologia [recurso eletrônico] / Érico João Hammes; Ludinei Marcos Vian; Rafael
Martins Fernandes (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022.

192 p.

ISBN - 978-65-5917-466-9

DOI - 10.22350/9786559174669

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Teologia Fundamental; 2. Teologia bíblica; 3. Cristologia; 4. Antropologia teológica; 5. Eclesiologia


; I. Título.

CDD: 200

Índices para catálogo sistemático:


1. Teologia 200
Sumário

Apresentação 9

1 11
Teologia ante os desafios atuais
Tiago de Fraga Gomes
Érico João Hammes

2 29
A encarnação de Deus a partir da cristologia de Romano Guardini
Cristian Fabiani
Carlos José Monteiro Steffen

3 47
Misericórdia e unidade na Igreja: a inspiração eclesiológica da Gaudium et Spes
diante da pluralidade ad intra
Darvan Hernandez da Rosa

4 62
A comprensão da identidade do leigo nos documentos das conferências gerais do
CELAM
Dorcelina do Carmo Alves Gomes

5 78
A relação entre ciências naturais e teologia e sua urgência para o futuro do planeta
Eliseu Lucas Alves de Oliveira
Luiz Carlos Susin
6 90
A Igreja Católica e o abolicionismo – a carta apostólica In Supremo Apostolatus
Fastigio (1839) de Gregório XVI e apontamentos sobre a sua integração no discurso
e no fazer teológicos
Fabiano Glaeser dos Santos
Roberto Hofmeister Pich

7 119
Ecologia integral como referência educativo-pastoral a partir da Laudato Si’
Luiz Carlos Selbach
Tiago de Fraga Gomes

8 133
Religião e realidade em tensão: diálogo entre Qohélet (Eclesiastes) e Dietrich
Bonhoeffer
Luiz Maria de Barros Coelho Neto
Cássio Murilo Dias da Silva

9 153
Bíblia e fundamentalismo: o discurso político
Rafael Holdefer Bohrer
Cássio Murilo Dias da Silva

10 164
O canto da “Igreja em saída”: uma releitura do Magnificat à luz da Evangelii Gaudium
Vinícius da Silva Paiva
Rafael Martins Fernandes

11 176
Marronnage: ponto de recusa da escravidão e eclosão da cultura afro-haitiana
Wilner Charles
Apresentação

Este livro é o resultado de onze pesquisas comunicadas na III Semana


Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul, realizada nos dias 4 e 5 de
novembro de 2021, de forma online. O objetivo do evento foi a promoção
da reflexão teológica e a divulgação das pesquisas dos estudantes de Teo-
logia da Graduação e da Pós-graduação desta egrégia Universidade.
Os artigos são apresentados em forma de ensaios teológicos e reúnem
diferentes temáticas. Os protagonistas, na sua maioria, são jovens teólogos
entusiasmados por vislumbrar novos percursos de reflexão da fé. O que
há em comum entre eles é o objetivo de aproximar teologia acadêmica e
vida eclesial, reflexão crítica e empenho pela evangelização no mundo con-
temporâneo. As páginas a seguir comprovarão este entusiasmo aliado à
capacidade de realização de reflexões sérias e pertinentes para o nosso
contexto.
O livro inicia com a conferência dos professores Tiago de Fraga Go-
mes e Érico João Hammes, proferida ao longo da Semana Acadêmica,
sobre a pesquisa teológica e os desafios atuais. O texto da conferência é
apresentado neste livro para identificar o lugar da teologia na pesquisa
acadêmica. Em seguida, o graduando em teologia Cristian Fabiani, junta-
mente com o professor Carlos José Monteiro Steffen, desenvolvem como
Romano Guardini, em sua cristologia, reflete sobre a encarnação de Deus.
Após, o mestrando em teologia Darvan Hernandez da Rosa trabalha o
tema da misericórdia e da unidade na Igreja a partir da inspiração eclesi-
ológica da Gaudium et Spes. No quarto artigo, a mestre em teologia
Dorcelina do Carmo Alves Gomes analisa a compreensão da identidade do
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leigo nos documentos das conferências gerais do CELAM. Na sequência, o


artigo do mestrando em teologia Eliseu Lucas Alves de Oliveira e do pro-
fessor Luiz Carlos Susin apresenta a relação entre ciências naturais e
teologia e sua urgência para o futuro do planeta. O tema da relação entre
Igreja católica e abolicionismo na carta apostólica In Supremo Apostolatus
Fastigio (1839), de Gregório XVI, é analisada pelo doutorando Fabiano
Glaeser dos Santos e pelo professor Roberto Hofmeister Pich. O sétimo
artigo, do mestrando em teologia Luiz Carlos Selbach e do professor Tiago
de Fraga Gomes, é um estudo da Carta Encíclica Laudato Si como referên-
cia educativa e pastoral para uma ecologia integral. Os dois textos
seguintes marcam a presença do estudo exegético na Semana Acadêmica
de Teologia e, por consequência, no presente livro. O primeiro deles, do
mestre em teologia Luiz Maria de Barros Coelho Neto e do professor Cássio
Murilo Dias da Silva, descreve a tensão entre religião e realidade a partir
do diálogo entre QOHÉLET (Eclesiastes) e Dietrich Bonhoeffer. O segundo,
do graduando Rafael Holdefer Bohrer e do professor Cássio Murilo Dias
da Silva, apresenta uma análise das narrativas fundamentalistas da Bíblia
no discurso político. Tem-se ainda outros dois artigos, um do mestrando
Vinícius da Silva Paiva e do professor Rafael Martins Fernandes, com o
título: “O canto da ‘igreja em saída’: uma releitura do Magnificat à luz da
Evangelii Gaudium”, e outro, do doutorando Wilner Charles, com o título:
“Marronnage: ponto de recusa da escravidão e eclosão da cultura Afro-
haitiana.”
Enfim, espera-se que a leitura destes artigos, em seus diferentes per-
cursos, contribua para o aprofundamento teológico e uma consequente
renovação das práticas educativas e pastorais.
1

Teologia ante os desafios atuais 1

Tiago de Fraga Gomes 2


Érico João Hammes 3

Questões introdutórias

A presente pesquisa visa refletir sobre a necessidade da teologia dizer


algo de relevante ante as questões com as quais as pessoas se defrontam
na atualidade. Para isso, é ineludível que a teologia considere a mediação
histórica da Revelação e sua necessária atualização pela consciência
humana hodierna, tendo em vista que é ao modo humano que a Palavra
de Deus penetra o mundo humano, para aí ser acolhida e interpretada.
A teologia se depara com o fato de que hoje em dia os sujeitos esco-
lhem em que acreditar. A prática religiosa não é inata. Não se nasce
religioso, torna-se religioso. É uma questão de opção. Sendo assim, diante
da disseminação do pluralismo religioso na esfera pública, emergem fun-
damentalismos, sob diferentes formas, como buscas por seguranças e
certezas. Cabe à teologia, enquanto instância crítica da fé, desvelar os me-
canismos perversos que contrapõem fé e razão, apontando para a
razoabilidade e credibilidade do ato de fé.
Percebe-se, também, que nas ambiências virtuais, prevalece a cultura
do individualismo. A cultura digital é paradoxal: facilita a comunicação e a
interação entre as pessoas, mas as desorienta com excesso de informações,

1
O texto é resultado de uma das conferências proferidas ao longo dos dias da Semana Acadêmica do programa de
graduação e pós-graduação em Teologia.
2
Doutor em Teologia pela PUCRS com estágio pela Ruhr-Universität Bochum, Alemanha. Pós-Doutorando pela
PUCRio. Professor do PPG em Teologia da PUCRS. E-mail: tiago.gomes@pucrs.br
3
Doutor em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana, Itália. Pós-Doutor pela Eberhard Karls Universität
Tübingen, Alemanha. Professor do PPG em Teologia da PUCRS. E-mail: ehammes@pucrs.br
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além de tornar superficial a maioria das relações. É preciso um olhar crí-


tico em relação aos conteúdos disponibilizados nos meios digitais, formar
as pessoas para o discernimento e educar para a cultura do encontro. Um
dos grandes desafios da teologia ante o mundo virtual consiste em propor-
cionar não apenas boa publicidade, mas proximidade.
Por fim, cabe ressaltar que no mundo globalizado, onde tudo está co-
nectado, com em uma grande rede, vive-se na iminência de contágios
massivos, propiciando que, em questão de dias, epidemias se transformem
em pandemias, as quais desmascaram a lógica perversa de uma economia
de mercado que gera desigualdade e violência. Diante disso, a teologia pre-
cisa colocar-se a serviço da vida plena para todos, não se furtando a refletir
e se engajar em prol de uma cultura de paz e não violência, como fruto da
justiça, a qual requer um ethos que envolve posicionamentos, comporta-
mentos e atitudes.

1 A questão de Deus que se “re-vela” na história

O ponto de partida do fazer teológico é a Revelação de Deus: sua “re-


velação” nos eventos e acontecimentos da história. Deus revela seu misté-
rio, que não deixa de ser mistério. Nesse sentido, teologizar é refletir sobre
os fatos divinos de um ponto de vista humano sob a inspiração divina; é
expressar o mistério divino em linguagem humana, elaborando uma crí-
tica interpretativa do conteúdo da Revelação (FISICHELLA, 2015, p. 83-
92). A consciência da dimensão hermenêutica do teologizar permite tratar
de temas delicados da fé de maneira criativa e aberta (GOMES, 2021, p.
159) e desenvolver uma leitura plural da Revelação cristã, compreendendo
o intellectus fidei ao modo humano, de forma relacional e não absoluta.
Sendo assim, a teologia precisa exercitar uma sensibilidade dialogal,
a fim de aceitar as provocações do tempo atual e estar em condições de
corresponder aos seus desafios (GEFFRÉ, 1989, p. 12; 2000, p. 3-4; 2004,
Tiago de Fraga Gomes; Érico João Hammes | 13

p. 30; 2013a, p. 6). O teólogo tem a missão de demonstrar a razoabilidade


e a relevância da mensagem revelada para a vida das pessoas de hoje
(GEFFRÉ, 1972, p. 78; 1989, p. 5-7). Para isso, precisa levar a sério a
mediação histórica da Revelação e sua necessária atualização pela
consciência humana pela via da interpretação (GEFFRÉ, 1990, p. 7-8;
2004, p. 113), ressaltando a dinâmica intelectiva da experiência de fé como
um processo em permanente construção.
A intelecção da mensagem revelada passa por um processo de incul-
turação e inspiração de experiências peculiares e distintas de fé (GEFFRÉ,
1982, p. 117-142; 1990, p. 15). Mesmo que o mistério divino seja absoluto,
sua compreensão, por parte do ser humano, é condicionada e provisória
(BERNHARDT, 1994, p. 119). Na própria dinâmica da economia salvífica é
perceptível que é ao modo humano que a Palavra de Deus penetra a con-
cretude do mundo humano, com o intuito de traduzir a transcendência do
mistério divino, para os parâmetros limitados da capacidade humana de
conhecer e compreender.
A própria encarnação do Logos (Jo 1,1-18) pode ser concebida como a
plenitude de um grande processo de tradução da comunicação de Deus à
humanidade, onde a pessoa de Jesus Cristo é a expressão por excelência
da estrutura fundamental do teologizar hermenêutico como interpretação
da transcendência divina na imanência humana, a partir de um compre-
ender histórico (GEFFRÉ, 2013a, p. 368; CORETH, 1973, p. 193).

2 Realidade incontornável do pluralismo religioso

Dentre as múltiplas questões emergentes na consciência histórica do


ser humano contemporâneo, destaca-se a realidade incontornável e proe-
minente do pluralismo religioso (BINGEMER, 2002a, p. 312) que lança
novos desafios à teologia cristã, provocando-a a discernir e a repensar
muitos de seus paradigmas tradicionais (DANNER, 2014, p. 71; RIBEIRO,
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2012, p. 213; 2013, p. 54; 2014, p. 211; 2017, p. 241). Enquanto realidade
intransponível e crescente no panorama mundial, a dinâmica do plura-
lismo religioso convida cada experiência religiosa a reinterpretar sua
identidade e singularidade (GEFFRÉ, 2013b, p. 90; TEIXEIRA, 2008, p. 119-
122; ROLIM, 1991, p. 53-54).
Quando encarado de maneira positiva, o encontro com outras cultu-
ras e experiências religiosas, oferece ao cristianismo novas possibilidades
e horizontes inéditos de leitura e interpretação de suas tradições. Este en-
contro tem o potencial de proporcionar a emergência de cristianismos
inculturados e plurais (MIRANDA, 1994, p. 385). Nesse empreendimento,
pode-se tomar como referencial teórico os documentos promulgados pelo
Concílio Vaticano II. A teologia católica, após séculos de uma postura en-
dógena e autorreferencial, com o Concílio Vaticano II – e seu anseio por
diálogo e aggiornamento –, abriu-se para uma perspectiva mais arejada e
aberta aos “sinais dos tempos” (LIBANIO 2005, p. 145-146).
Nota-se que no mundo atual, a prática religiosa não é mais uma ati-
vidade hereditária, mas encontra-se na ordem da opção. Os sujeitos
escolhem em que acreditar e o que erigir como credo que paute o caminho
de suas ações e sinalize um horizonte vital para onde trilhar. Como conse-
quência, a fragmentação religiosa é um fenômeno crescente, diminuindo
a fidelidade às instituições religiosas tradicionais (HORTAL, 1994, p. 204-
205). Não são necessárias leituras complexas para se perceber que hoje em
dia, não se nasce religioso, mas torna-se religioso: é uma questão de esco-
lha. Doravante, a religião como espaço de exercício da autonomia da
vontade e da capacidade de decisão, caracteriza-se mais pela categoria de
experiência, que pela categoria de herança (CARVALHO, 1994, p. 22-23).
Diante da disseminação do pluralismo na esfera pública, afetando to-
das as áreas e dimensões da vida, emerge na atualidade diversas formas
de fundamentalismos, literalistas e integristas, os quais podem ser
Tiago de Fraga Gomes; Érico João Hammes | 15

interpretados como buscas por seguranças e certezas, suscitadas por con-


textos extremamente relativistas. As ideologias fundamentalistas
pretendem, no fundo, negar todo aspecto de relatividade, a fim de reduzir
as complexidades (GEFFRÉ 2004, p. 25). Contudo, o resultado disso são
ideologias obtusas, que, paradoxalmente, mais fecham do que abrem ao
diálogo e à convivência com as diferenças.
Nesse contexto, extremamente plural, mas impregnado de funda-
mentalismos religiosos e integrismos doutrinais, o cristianismo é
provocado a ampliar sua visão e experiência de fé, não como uma totali-
dade uniforme, ao modo de cristandade, mas ao estilo de cristianidade 4
(GOMES, 2021, p. 22), como comunhão na diversidade, buscando perceber
os sinais de Cristo para além de si mesmo. A necessidade de uma nova
sensibilidade acompanha os apelos do tempo presente, e faz ver que na
medida em que há espaço no interior do cristianismo para múltiplas ex-
pressões de fé, este se torna capaz de se apresentar diante de uma
sociedade pluralista e diferenciada como uma alternativa plausível e per-
tinente (MIRANDA, 1991, p. 88).
Na medida em que estiver disposto a uma abertura dialogal aos de-
safios que pulsam no mundo atual, o cristianismo – e outras experiências
religiosas – estará em condições de propor ofertas de sentido consideradas
relevantes para a vida das pessoas (GIDDENS, 1995, p. 13), dispondo-se,
assim, ao aprendizado da diversidade, em atitude de alteridade e empatia
(SWIDLER, 1988, p. 80-83), atitudes, estas, fundamentais para a convi-
vência na ambiência plural na esfera pública.

4
Em referência à doutrina patrística do Logos spermatikós, a cristianidade presente nas diversas tradições culturais
e religiosas da humanidade – apesar de suas ambiguidades e contradições –, refere-se às expressões peculiares do
mistério abundante de Cristo que se manifesta na história (GOMES, 2021, p. 134).
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3 Redes de “des-conexão”

Uma questão de grande relevância a ser pensada no tempo atual é a


que se refere aos meios digitais enquanto redes de “des-conexão”. Vive-se,
hoje, graças aos recursos digitais, uma conexão tão intensa, que muitas
vezes se almeja por momentos onde se possa “se desconectar para viver”.
A facilidade como se elaboram links de reuniões, não só proporcionou o
encurtamento das distâncias, como também, do tempo. A ambiência digi-
tal se consolida cada vez mais em várias atividades da vida cotidiana das
pessoas. Esse é um processo que já vinha se configurando, mas que foi
acelerado e intensificado pelo contexto da pandemia.
O acesso à internet com velocidade oportuniza usufruir de conteúdos
disponíveis. Se o sinal da internet é fraco ou se não existe wi-fi, percebe-
se, logo, desconforto ou até mesmo irritação. Parece inadmissível não estar
conectado. As ambiências virtuais e as conexões mudaram os antigos esti-
los de vida. Contudo, trouxeram consequências deletérias para a vida,
como a massificação e problemas de saúde mental. Além disso, os conteú-
dos são apresentados de maneira nova no mundo digital: no passado, o
conteúdo era denso e duradouro; já no ambiente digital, vive-se a égide
dos fast-thinkers que simplificam temas complexos. Os conteúdos ficam
sob o controle daqueles que dominam os likes. De modo geral, os especia-
listas das mais variadas áreas de conhecimento não são mais referências
para os jovens, pois qualquer amador despreparado, que se projete bem,
pode postar sua opinião e sobrepujar argumentos qualificados
(NENTWIG, 2020, p. 10-11).
Uma nova forma de se relacionar opera no mundo digital, caracteri-
zada pelas conexões em redes, com forte inclinação à coletivização,
enquanto promove uma espécie de globalização onde todos estão conecta-
dos. Porém, prevalece a cultura do individualismo: a rede aproxima as
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pessoas, as conecta, mas, igualmente, as afasta umas das outras. Vive-se


só em um universo marcado pela ubiquização: é possível estar em toda
parte a qualquer momento, e estar no isolamento, ou mesmo, no anoni-
mato; é possível conectar-se funcionalmente com muitas pessoas ou
grupos, sem um entrosamento próximo ou existencial, levando ao au-
mento do sentimento de solidão (NENTWIG, 2020, p. 11).
A cultura digital é paradoxal, pois, ao mesmo tempo que facilita a co-
municação e a interação entre as pessoas, também desorienta com excesso
de informações e torna superficial a maioria das relações. O aparato tec-
nológico insere-se no contexto da indústria cultural, baseada em interesses
capitalistas e ideológicos que desapropriam a habilidade de pensar e influ-
enciam os desejos e a vontade, bloqueando a disposição crítica
(HABOWSKI; CONTE, 2018, p. 711-714).
Sendo assim, é necessário exercitar um olhar crítico em relação aos
conteúdos disponibilizados nos meios digitais, pois nas redes sociais en-
contram-se informações que, muitas vezes, são postadas de maneira
descontextualizada ou superficial. A linguagem imagética, pela qual majo-
ritariamente se transmite as informações, faz com que questões complexas
sejam simplificadas, ao ponto de serem coisificadas, não indo às raízes das
causas (HABOWSKI; CONTE, 2018, p. 716). A mistura de conceitos anta-
gônicos entre si, banaliza e desfaz a dimensão orgânica das mais variadas
áreas do conhecimento, e potencializa posições conflituosas. Quando a re-
alidade é difusa e dissolvida, quando a fragmentação e o individualismo
são marcantes, facilmente as personalidades tornam-se mais frágeis, inse-
guras e fragmentadas (NENTWIG, 2020, p. 12).
Diante desse contexto, é preciso formar para o discernimento. Todos
estão mergulhados na rede. Lá navegam e também naufragam. Lançar as
redes da evangelização nas redes digitais é um grande desafio na atuali-
dade. Formar as novas gerações para o bom uso da internet é uma
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prioridade, nesses tempos de redes de “des-conexão” e de solidão no meio


da multidão. Além da escolha dos conteúdos que são veiculados e consu-
midos – certamente há muito conteúdo bom, mas facilmente as
banalidades ocupam grande parte do tempo de acesso ao universo digital
–, algumas das grandes questões que se podem frisar, se relacionam com
o engajamento em relações de solidariedade e responsabilização em tem-
pos de radicalização do solipsismo e descartabilidade humana e ecológica
(NENTWIG, 2020, p. 14).
É bem conhecido o desafio da disseminação de fake news e sua reper-
cussão na vida social, política e religiosa. Há uma pluralidade de vozes
repercutindo simultaneamente no mundo digital, embora sem a mesma
autoridade para emitir uma opinião balizada. Seria possível falar de uma
heteroglossia, ou seja, uma existência mútua de diferentes vozes, muitas
vezes dissonantes, sobre os mais variados assuntos (BAKHTLIN, 2000). O
termo heteroglossia aplicado ao contexto digital, lembra, paradoxalmente,
tanto a confusão das línguas humanas em Babel (Gn 11-1-9), quanto a plu-
ralidade comunicativa inteligível em Pentecostes graças à ação do Espírito
Santo (At 2,1-11).
Hoje, o mesmo Espírito continua atuando para ajudar a tornar a plu-
ralidade inteligível. O Papa Francisco, na Gaudete et Exsultate, fiel à sua
tradição jesuíta, indica o caminho do discernimento: examinar o que há
dentro do ser humano, mas também o que há fora, com o intuito de pers-
crutar os sinais dos tempos, a fim de compreender, escolher e decidir (GE
168). Trata-se de formar as pessoas para uma autonomia moral, para que
sejam sujeitos maduros que, à luz do Espírito e imbuídos dos valores cris-
tãos, façam boas escolhas de forma livre e comprometida com a dinâmica
do Reinado de Deus. É urgente acompanhar e educar para uma liberdade
responsável, com base no discernimento (Diretório para a Catequese, n.
370).
Tiago de Fraga Gomes; Érico João Hammes | 19

Sobretudo, é fundamental educar para a cultura do encontro, pois é


no face-a-face que o “eu” torna-se “ser de encontro”, e no “tu”, se realiza
(BUBER, 2001). Tendo em vista um contexto extremamente polarizado na
expressão de ideias e visões de mundo, é importante frisar que a verda-
deira comunicação é respeitosa e acolhedora, gera vínculos e promove a
colaboração e a paz. Além disso, especialmente na esfera religiosa, urge
resgatar a dinâmica da “religação”, pois no mundo digital, um dos grandes
desafios consiste em unir quem está separado, criar redes de relações, usar
a rede para gerar comunhão, promover diálogo aberto, sem imposições
(SBARDELOTTO, 2017).
A Igreja vive sua catolicidade como rede tecida pela comunhão, na
qual a união não se funda em “likes”, mas sobre a verdade assumida e
testemunhada (AGASSO, 2019). De acordo com o Documento de Apare-
cida, a missão cristã consiste em compartilhar uma experiência, nunca se
trata de um projeto pronto que é imposto (DAp 145). Se o mundo digital
gera separação, solidão e individualismo, é preciso criar espaços de comu-
nhão e acolhida que sejam especialmente significativos para as pessoas, no
contexto urbano (EG 73). Por isso, entre os grandes desafios que a teologia
é chamada a corresponder ante o mundo virtual está o de proporcionar
não apenas boa publicidade, mas proximidade (NENTWIG, 2020, p. 16)
que cria relações e que impulsiona a ir ao encontro das periferias existen-
ciais.

4 Pandemia e periferias existenciais

A pandemia que assola atualmente o mundo, está sendo um período


de reflexão sobre a globalização das crises que afetam toda a humanidade
e que faz pensar sobre o valor da vida diante de mecanismos economicistas
que sacrificam os mais frágeis no altar de um mercado insaciável por lucro
a todo custo. Impõe-se, assim, o desafio de ir ao encontro das periferias
20 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

existenciais, levando sensibilidade e solidariedade, a fim de vencer a ten-


tação do consumismo e do descarte da vida humana e do meio ambiente.
A história humana é continuamente marcada por crises que colo-
quem em xeque os valores que movem a sociedade, e que fazem pensar
sobre o que realmente importa na vida. Em situações de crise social – como
é o caso das pandemias –, as periferias, com suas condições precárias de
subsistência, são os contextos onde as pessoas estão mais vulneráveis.
No mundo globalizado, onde tudo está conectado, como em uma
grande rede, vive-se na iminência de contágios massivos, proporcionando
que uma epidemia possa se transformar em uma pandemia em questão de
dias. Nas pandemias fica evidente a fragilidade da condição humana diante
da doença e da morte, atiçando um sentido de finitude, geralmente igno-
rado no contexto cotidiano. Além disso, as pandemias desmascaram as
desigualdades sociais e a lógica perversa de um capitalismo selvagem, no
qual a vida não tem um valor em si, mas apenas instrumental (CUNHA,
2020, p. 484-497).
Diante desse contexto, o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, con-
voca a teologia, enquanto instância crítica da fé, a dar uma resposta,
interpelando os cristãos a reavivarem o seu dinamismo missionário, a fim
de avançarem sem medo ao encontro dos necessitados, indo às encruzi-
lhadas dos caminhos, ousando em tomar a iniciativa! Trata-se de assumir
a postura missionária adotada por Jesus, que muitas vezes, se antecipou
diante das necessidades de libertação das pessoas. Os evangelhos apresen-
tam muitas cenas em que Jesus toma a iniciativa para acudir as pessoas.
Nesse sentido, a teologia precisa inspirar cada cristão a primeirear diante
das grandes questões da humanidade (EG 24).
Importa não só o conteúdo da fé cristã, mas a forma de praticá-lo.
Diante de um mundo carente de paz, cabe sair do próprio comodismo e
das próprias seguranças, arriscando-se pelas estradas do mundo (EG 49),
Tiago de Fraga Gomes; Érico João Hammes | 21

exercitando o ministério da misericórdia e do serviço em prol de uma vida


mais plena para todos.

5 Exercício do poder: violência ou paz?

O tema do exercício do poder é fundamental para pensar teologica-


mente a dimensão da paz e não violência no contexto atual. Não há nada
mais urgente no mundo que a paz. Em sentido bíblico, a paz – shalom,
eirene – diz respeito às aspirações mais profundas de bem-estar e felici-
dade que dinamizam as dimensões fundamentais da vida humana em sua
integralidade. Sem paz, como fruto da justiça (Is 32,17), não é possível a
plenificação da vida humana e do planeta (OLIVEIRA, 2005, p. 78-81).
A teologia não pode se furtar a refletir sobre a paz. Partindo dos en-
sinamentos e do testemunho de Jesus de Nazaré, é preciso perscrutar
alternativas teóricas e práticas que fundamentem um novo ethos social.
No sermão da montanha (Mt 5–7), Jesus expressa importantes ensina-
mentos sobre paz e não violência que nada têm a ver com irenismo, mas
com reconciliação e busca da justiça e do bem do próximo. A paz está no
centro da atividade de Jesus e é expressão privilegiada dos dons do Res-
suscitado à humanidade (Jo 20,19), como primícia de um novo tempo que
há de se estabelecer (BINGEMER, 2002b, p. 239-243). Pode-se dizer que a
promoção da paz é o grande desafio dos discípulos de Jesus.
A paz requer um ethos que envolve comportamentos e posiciona-
mentos; diz respeito à postura que se assume e aos processos que se
empreende; é um acontecimento dinamizado pela prática da justiça
(HAMMES; RABUSKE, 2012, p. 447-449), e requer, por parte dos cristãos,
que se adote as grandes causas da humanidade: luta pela justiça, promoção
dos direitos humanos e defesa da vida (AQUINO JÚNIOR, 2012, p. 374-375.
Ante um pluralismo disseminado, é necessário que se cultive a habilidade
e a disposição para o diálogo e a resolução de conflitos (SANTOS, 2015, p.
22 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

1894), sendo um dos resultados mais relevantes do diálogo inter-religioso,


o empenho em prol da paz através de uma cooperação mútua (TEIXEIRA,
1995, p. 91-93), para além de uma mera interlocução doutrinal
(MOLTMANN, 2004, p. 29-30).
O Papa Francisco ressalta na Evangelii Gaudium que a paz social só
poderá acontecer desde que haja justiça social, pois a paz não é mera au-
sência de violência (EG 218), mas exige que os conflitos não sejam
ignorados ou dissimulados (EG 226), mas que sejam trabalhados. O Evan-
gelho da paz (Ef 6,15) convoca os cristãos, os religiosos em geral e as
pessoas de boa vontade a serem instrumentos de pacificação e reconcilia-
ção (EG 239), no compromisso pela defesa da dignidade humana, pela
edificação de uma convivência pacífica entre os povos e pela guarda da
criação (EG 257). A teologia não pode deixar de lado a questão do engaja-
mento em questões sociais em prol da promoção humana (GEFFRÉ,
2013a, p. 335; 1989, p. 188).

À guisa de conclusão - apontamentos teológicos de um caminho a seguir

Na visão de Tracy, a teologia, enquanto discurso público, precisa con-


siderar os desafios emergentes na atualidade, em interlocução com a
tradição eclesial, a racionalidade acadêmica e a sociedade contemporânea
(2006, p. 68). A dimensão pública da teologia cristã, partindo da própria
prática de Jesus, precisa elaborar uma linguagem acessível aos seus inter-
locutores, traduzindo e atualizando seus conteúdos numa racionalidade
acessível à compreensão secular. Sendo assim, sua relevância na esfera
pública é provada pela sua capacidade de dialogar com as ciências, as cul-
turas e as religiões, atenta aos desafios socioestruturais emergentes na
sociedade hodierna. Alguns referenciais teóricos podem auxiliar a teologia
nesse sentido: o pensamento da alteridade de Levinas, o pensamento
Tiago de Fraga Gomes; Érico João Hammes | 23

complexo de Morin, o pensamento fraco de Vattimo e o pensamento her-


menêutico de Geffré.
Segundo Levinas, uma ontologia que não questiona o Mesmo é uma
filosofia da injustiça (1977, p. 70). A ética da alteridade é um antídoto con-
tra o narcisismo e o egoísmo que cegam o ser humano para sua
corresponsabilidade em seu contexto vital. Uma teologia que não dá voz
ao outro, não ouve, por isso, não é dialógica. Sendo assim, não é pública.
Morin lembra que os saberes são tecidos conjuntamente, de maneira com-
plexa, compreendendo incertezas e indeterminações (2007, p. 35). A
complexidade se abre ao acaso, ao imprevisto, ao contrário de sistemas
doutrinários fechados, caracterizados pelo pensamento simples.
Vattimo alerta que a teologia na esfera pública precisa se conscienti-
zar sobre seus limites, rejeitando toda espécie de fundamentalismo
literalista ou integrista (2004, p. 64). O pensamento fraco de Vattimo
ajuda a ver a teologia como um fazer provisório, a serviço da verdade e do
bem comum. Nessa linha de pensamento, Geffré concebe que o pluralismo
cultural e religioso presente na esfera pública convida a reinterpretar mui-
tas das verdades fundamentais do cristianismo (2004, p. 131), em atitude
de serviço à verdade, e não de propriedade com relação à mesma (2013, p.
61), pois não é salutar se entrincheirar em um itinerário fixista. Nesse sen-
tido, é preciso interpretar os fundamentos da fé de maneira nova,
operando de forma criativa, indo ao encontro dos anseios mais profundos
das pessoas de hoje (1989, p. 270).
Em suma, a teologia precisa atualizar profeticamente a mensagem da
Revelação, a fim de que esta não seja apenas compreensível às pessoas de
hoje, mas toque suas mentes e seus corações, a fim de empreenderem um
verdadeiro caminho de conversão pessoal e comunitária, impregnando a
sociedade com os valores e a dinâmica do Reinado de Deus.
24 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

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2

A encarnação de Deus a partir


da cristologia de Romano Guardini 1

Cristian Fabiani 2
Carlos José Monteiro Steffen 3

Em diversos períodos da história da teologia o questionamento sobre


a pessoa de Jesus Cristo ganhou inúmeras obras. Os primeiros Concílios
da Igreja e os Santos Padres foram os responsáveis para compreender e
iniciar o processo de estruturação, a partir da Sagrada Escritura, de todos
os grandes temas cristológicos como o messianismo, a morte e Ressurrei-
ção, a união hipostática, Jesus e a sua relação com Trindade e outros. Após
esse período inicial, que inclusive foi marcado por heresias na tentativa de
compreender melhor quem é Jesus, o período escolástico/medieval procu-
rou sistematizar, de forma mais organizada, os conteúdos da Revelação e
da Tradição. Desde então, a grande tarefa dos teólogos é procurar atualizar
esses conteúdos sem modificá-los na sua essência, mas aprofundá-los a
fim de obter uma melhor compreensão e poder transmiti-los, hoje, para o
povo de Deus.
Entretanto, muitas dificuldades apareceram especialmente na Mo-
dernidade e a teologia precisou responder a esses questionamentos
ligados, sobretudo, à pessoa de Jesus. Em termos cristológicos, a pergunta
pela compreensão de Jesus Cristo é um dos temas mais complexos e

1
O escrito constitui uma síntese do Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do título de Bacharel em Teologia
pela mesma universidade.
2
Graduado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (2017) e graduando em Teologia pela PUCRS. Email:
cristian.fabiani@edu.pucrs.br
3
Graduado em Engenharia Civil pela UNISINOS (1985), graduado em Teologia pela PUCRS (1990), mestre em Direito
Canônico pela Pontificia Università Gregoriana (2012), mestre em Teologia pela PUCRS (2014), doutor em Teologia
pela PUCRS (2019). Email: carlos.steffen@pucrs.br
30 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

continua sendo objeto de discussão. Romano Guardini (1885-1968), teó-


logo ítalo-alemão, buscou recuperar na Tradição da Igreja elementos
teológicos para responder cristãmente, no seu tempo, à fragmentação do
pensamento que se produziu na Modernidade. Para ele, a compreensão do
processo da Encarnação e da Páscoa de Jesus constitui a chave para se
compreender quem realmente é Jesus Cristo, o Senhor, o ungido de Deus
e, ao mesmo tempo, compreender quem é o Messias que prometeu a sal-
vação do ser humano já prefigurado e anunciado no Antigo Testamento
(AT).
Nas páginas seguintes, explanar-se-á, de forma resumida, a compre-
ensão da Encarnação de Deus nos Evangelhos sob uma leitura na ótica
guardiniana e um breve estudo dos personagens anteriores à Encarnação
que foram fundamentais para a realização do projeto de Deus.

1 Os principais discípulos do período pré-encarnação

O conceito de discipulado na teologia e na Bíblia possui diversos sen-


tidos. No Evangelho de João, por exemplo, o discípulo amado é a
“testemunha por excelência de Jesus” (KONINGS, 2016, p. 18), que fala a
verdade e conhece Jesus. Em Marcos, a finalidade do discipulado é “estar
com Ele” (MAZZAROLO, 2016a, p. 118). Para Mateus, o discípulo é aquele
que se propõe a ser sal da terra e luz do mundo (cf. 5,13-14) e, para Lucas,
é o amigo de Deus (Θεόφιλος) que se mantém fiel a Ele (MAZZAROLO,
2013, p. 111-113). Todos esses sentidos possuem uma ligação em comum
que é o seguimento a Jesus.
No contexto da Encarnação, como ela precisou ser preparada anteci-
padamente envolvendo diversas pessoas, é possível considerar a existência
de um discipulado ou, pelo menos um pré-discipulado, a Jesus Cristo atra-
vés dessas pessoas. Elas assumem todas as características bíblicas do
discipulado antes mesmo do nascimento do mestre. As duas principais
Cristian Fabiani; Carlos José Monteiro Steffen | 31

são: João Batista e Maria. Elas experimentaram a missão da preparação,


estando mais próximos de Jesus oferecendo suas vidas para o projeto de
Deus.

1.1 João Batista

João Batista é o precursor de Jesus (cf. GUARDINI, 1964, p. 26). A


compreensão de sua figura como imprescindível para a preparação da
vinda do Messias está fundamentada no AT. Elias é o grande profeta do
AT, servidor do Senhor, para o qual a palavra do Senhor lhe foi dirigida
(cf. 1Rs 17,1ss). Após cumprir o seu ciclo como profeta, deixou em seu lu-
gar, o profeta Eliseu, como o Senhor lhe havia mandado (cf. 1Rs 19,16) e
foi arrebatado ao céu (cf. 2Rs 2,11). No entanto, o Senhor prometeu ao
povo que um dia Elias haveria de voltar para que se completasse a escato-
logia judaica (cf. Ml 3,23-24).
Jesus, no Novo Testamento (NT) explica sem deixar dúvidas que João
Batista é aquele que possui o espírito de Elias: “Mas eu vos digo que Elias
já veio e não o reconheceram; antes, fizeram com ele o que quiseram. [...].
Então os discípulos entenderam que Jesus lhes tinha falado a respeito de
João Batista” (Mt 17,12-13). Nesse sentido, afirmar que o Batista é Elias, é
também afirmar que ele é um profeta, como seu pai compreendeu e can-
tou: profeta do Altíssimo (cf. Lc 1,76); da linhagem profética de Samuel,
Elias, Eliseu... (cf. GUARDINI, 1964, p. 27); possuidor do espírito de Elias
(cf. Lc 1,17); foi eleito pelo Senhor desde o ventre materno (cf. Lc 1,15; Jz
13,4-5; Is 49,1); é o último dos profetas do AT (cf. Lc 16,16) e, por isso, deve
ser aquele que prepara para o Senhor um povo perfeito (cf. Lc 1,17), ou,
em outras palavras, deve preparar o caminho do Senhor (cf. Lc 3,4; Is
40,3) cumprindo a sua missão.
No entanto, há uma diferença entre a mensagem profética de João e
dos antigos profetas – inclusive de Elias. Enquanto estes pregavam,
32 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

especialmente, o “Dia do Senhor” como aquele dia que Deus visitaria a


terra para manifestar a sua cólera sobre o mundo (por exemplo, Is 2.11,12;
13.6,9; 34.8), João prega a conversão no intuito de iluminar o caminho do
pecador para chegar na salvação: “Para iluminar os que estão sentados nas
trevas e na sombra da morte, e guiar nossos pés para o caminho da paz”
(Lc 1,79). A vocação de João era, em resumo, fazer o ser humano passar de
um estado e uma condição de morte por causa da des-esperança para uma
condição de ser esperançoso que encontrará o seu cumprimento na vinda
do Messias. Afirma Daniélou (1965, p. 39):

A mensagem de João dirige-se a um mundo cativo da morte e do pecado e


impotente para livrar-se deles, a um mundo voltado à morte e incapaz de jus-
tiça, a um mundo sem esperança. E sua vocação feliz consiste em anunciar que
todas as cadeias serão quebradas, que o amor será o mais forte. Já é a mensa-
gem da graça.

Daniélou ao afirmar que em João já se encontra a mensagem da


graça, pressupõe que a pregação do Batista não somente prepara o povo
para receber uma graça – que é o Cristo – mas já é a graça na medida que
ela se desenvolve e acontece na vida de quem ouve e é batizado por João 4.
O batismo aqui, é considerado um batismo de conversão, que procura in-
citar ao homem uma nova vida e a sua preparação para a possibilidade da
salvação (cf. Mc 1,15).
Nesse sentido, pode-se dizer então, que João, então, assume uma du-
pla figura: prega a salvação do povo de Israel através da conversão do
coração pelo batismo e aplaina o caminho para a Encarnação do Verbo no
mundo pecador. Essa compreensão da missão de João atende o desejo ju-
daico, mas também prefigura um novo modo de pensar o Messianismo

4
É a compreensão da gratia gratum facis da Teologia da Graça.
Cristian Fabiani; Carlos José Monteiro Steffen | 33

pois a mensagem profética não acentua apenas o cunho social e político –


tal como nos profetas do AT, – mas, sobretudo, o religioso-salvador. Con-
sequentemente, com a Encarnação de Deus, de uma forma diversa do
Messias esperado, a profecia de João, para uma parte dos judeus, não se
realiza em Jesus.
Nesse sentido, pode-se dizer que João carrega um lado trágico na sua
missão. Ele sabe o que o povo esperava. Mas também sabia que o Messias,
provavelmente não viria tal como o povo queria ou como alguns dos pro-
fetas anteriores haviam profetizado. João sentia a dureza do coração dos
homens e a dificuldade de transformar essa dureza (cf. Jr 4,4; Ez 36,26),
por isso desejava a conversão. Tocar e transformar essa indiferença era a
missão de João. Em termos joaninos, João Batista se encontra contrastado
entre a testemunha da luz – sua missão – e a força das trevas – corações
de pedra. Assim, João torna-se como que um incômodo para os homens
das trevas, mas sabia que era essa sua missão e ele a assumiu de modo que
despertou, em muitos, a esperança para uma nova vida.

1.2 Maria

Maria é Mãe de Deus (θεοτόκος), porque, por obra do Espírito Santo,


concebeu, no seu seio virginal, e deu ao mundo Jesus Cristo, o Filho de
Deus. Assim, Ele, ao nascer da Virgem Maria, “tornou-se verdadeiramente
um de nós” (Gaudium et Spes, n. 22) e fez-se homem. Pode-se considerar,
segundo o Evangelho, como a principal palavra pronunciada por Maria, a
de Lucas 1,38: “Eis a serva do Senhor: aconteça comigo segundo a tua pa-
lavra”. Essa afirmação de Maria além de expressar a aceitação ao pedido
de Deus por meio do Anjo, de ser a mãe de Jesus, traça e modela toda a sua
vida: fazer a vontade de Deus conforme a palavra que lhe for dirigida.
Afirma Guardini (1964, p. 17):
34 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

A maneira como Maria responde à saudação do anjo tinha um caráter real,


nobre. Algo extraordinário lhe era proposto. Pedia-se-lhe um salto para o es-
curo, uma entrega a Deus. Fê-lo com uma grandeza simples, de que ela própria
não estava consciente. Boa parte dessa grandeza, decerto lhe veio da nobreza
inata do seu ser. A partir de então, o seu destino modela-se pelo do seu filho.
Começa a ser assim imediatamente, e assim será sempre.

Guardini chama atenção para uma consideração de Maria como al-


guém nobre, portadora de uma realeza. Essa qualidade de Maria vem do
seu espírito de pobreza. Maria canta no Magnificat: “Derrubou poderosos
de tronos e elevou os humildes” (Lc 1,52). Pobreza e humildade são dois
atributos de Maria que, na sua pessoa, foram herdados do AT. São os “Ana-
win de IHWH”, os pobres do Senhor. O salmo 34,19 diz: “Iahweh está
próximo daqueles que tem um coração contrito e salva os que têm um
espírito humilde” e no Levítico há duas passagens que privilegiam o pobre
que não possui recursos financeiros/materiais para sobreviver. Elas pe-
dem para os ricos deixarem uma parte dos seus campos para eles
trabalharem (cf. Lv 19,9-10) e não cobrarem impostos (cf. Lv 25,36). Tam-
bém no Levítico, a terra, no ano jubilar, deveria retornar ao seu antigo
dono para que ele pudesse usufruir daquilo que perdeu privilegiando, as-
sim, o pobre social (cf. Lv 25,23-34). Essas passagens mostram o privilégio
que os pobres e humildes possuem diante de Deus. Humanamente, sabe-
se que nem sempre os requisitos da lei do AT foram cumpridos pelos che-
fes imperiais. Mas, mesmo assim, na lei do Senhor, os pobres não são
esquecidos, ao contrário, são colocados em primeiro.
Maria, nesse sentido do AT, é uma mulher pobre, mas diante de Deus,
na lógica inversa, possui uma realeza grandiosa pois se verifica em toda a
sua vida cada uma das bem-aventuranças evangélicas. Nisso ela é rica. Ma-
ria é então uma grande e nobre serva do Senhor, uma Anawin que foi
Cristian Fabiani; Carlos José Monteiro Steffen | 35

revestida da maior realeza possível como mãe de Jesus Cristo, o verdadeiro


Rei:

A noção de pobreza não é a única apreendida na expressão ‘serva do Senhor’.


Acontece que ‘servo ou serva do Senhor’ tem no Antigo Testamento uma sig-
nificação particular. Os patriarcas, os profetas, os grandes guias religiosos do
povo eleito (Abraão, Moisés, Josué, Davi e outros), chamam-se ‘servidores do
Senhor’ por uma razão especial: são homens de Deus encarregados por ele
para uma determinada missão religiosa a que consagram toda a vida. Nesse
mesmo espírito, mas com uma amplidão infinitamente mais vasta, Maria
aceita sua missão de se tornar mãe do Messias-Rei. Em sua humilde inconsci-
ência, ela proclama o seu papel de ‘Rainha dos patriarcas e profetas’
(SCHILLEBEECKX, 1968, p. 28).

Essa realeza lhe custou a vida. Não num sentido negativo, mas a par-
tir do seu fiat, Maria tomou consciência que tudo na sua vida dependeria
de seu Filho. Aparentemente parece ser uma missão não muito complexa
pois toda a mulher deveria, naquele contexto, ser mãe e ela também sabia
que poderia contar com a mão de Deus. No entanto, muitos episódios
evangélicos narram alguns sofrimentos de Maria (por exemplo: Lc 2,35.41-
52 e Jo 19,25-27). Mesmo nessas tensões, Maria permanece ao lado de Jesus
até o fim. O anjo na Anunciação, após a saudação diz: “O Senhor está con-
tigo!” (Lc 1,28). O verbo estar significa que Deus realmente estava com
Maria e essa era a sua missão, estar com Ele, no Filho. Essa missão exigiu
de Maria uma confiança cega, mas convicta, esperançosa em Deus. So-
mente assim poderia ter dado certo. Foi uma questão de fé, de acreditar
na obra de Deus pelo seu povo necessitado. Nessa confiança cega, de fé,
Maria se faz discípula do Filho Jesus.
36 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

2 A encarnação na perspectiva evangélica e guardiniana

2.1 Evangelho de Marcos

Sobre o nascimento de Jesus no Evangelho de Marcos, Guardini ape-


nas escreve um parágrafo:

O princípio da existência de Cristo aparece diversamente nos evangelhos de S.


Mateus, Marcos e Lucas. S. Marcos não fala da Encarnação. Os oito primeiros
versículos falam do Precursor; e diz-se imediatamente depois: ‘Jesus, por
aqueles dias veio de Nazaré da Galileia e foi, por João, batizado no Jordão
(GUARDINI, 1964, p. 13).

O Evangelho de Marcos não possui um nascimento ou uma genealo-


gia de Jesus nem mesmo faz menção ao Verbo encarnado como em João.
Contudo, no primeiro versículo, pode-se inferir que Deus mesmo se en-
carnou e habitou na comunidade humana: “1Início do Evangelho de Jesus
Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1).
Nesse versículo há o anúncio do conteúdo do livro de Marcos e é o
suficiente para compreender a Encarnação: o Evangelho de Jesus Cristo
que é Filho de Deus. Porém, antes de anunciar que é o Evangelho, o autor
bíblico usa o termo ᾿Αρχὴ que quer dizer início, começo. É a partir do
᾿Αρχὴ que inicia o Evangelho. Esse termo seguido das demais palavras do
versículo mostram que o Evangelho começa com Cristo, ou então, Cristo
é o começo (MAZZAROLO, 2016a, p. 41). Esse fato já identifica que o Evan-
gelho parte de Jesus que é o Cristo, ou seja, da Encarnação, Paixão, Morte
e Ressurreição do Filho de Deus. É a Boa-Nova (εὐαγγελίου) que Deus dá
ao mundo: Jesus Cristo encarnado que veio para anunciar e instaurar o
Reino de Deus. Explicita Mazzarolo (2016a, p. 42): “O Evangelho de Jesus
Cristo é aquilo que Ele é e aquilo que Ele anuncia”. Nesse mesmo sentido,
Maldonado (1954, p. 33), também explana que o versículo se propõe a
Cristian Fabiani; Carlos José Monteiro Steffen | 37

dizer que é o início da pregação de Jesus porque ele mesmo é o Evangelho


vivo.

2.2 Evangelho de Mateus

Em Mateus, o livro inicia com a genealogia de Jesus: “Livro da gene-


alogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1). Após esse
versículo introdutório segue a genealogia até chegar em Jesus: “[...]. Jacó
gerou José, o esposo de Maria, de quem nasceu Jesus, que é chamado o
Cristo” (Mt 1,16). O objetivo de Mateus é mostrar a importância que tem
Jesus na descendência de Abraão, ou seja, na descendência davídica, da Lei.
A genealogia, para o povo antigo é muito importante, tida como algo de
sagrado pois ligava o ser humano à divindade ou ao poder de legitimação
de uma pessoa: este é filho de tal que é descendente de tal imperador ou,
é filho de tal que é da descendência de Adão, filho de Deus (cf. Lc 3,38).
Mateus precisava apresentar uma genealogia a Jesus para legitimá-lo
como Messias, como filho de Davi que vem ungido para exercer a função
régia, profética e sacerdotal, que possui autoridade política e religiosa (cf.
MAZZAROLO, 2016b, p. 14). São Jerônimo ainda destaca que é somente no
Evangelho de Mateus que Jesus é compreendido como o Cristo régio, ou
seja, como sucessor, por direito, do trono de Davi no fim dos tempos como
o soberano restaurador de Israel (cf. JERÔNIMO, 2011, p. 138).
A sequência do texto evangélico (Mt 1,18-25) apresenta o anúncio do
anjo a José e, ao mesmo tempo, a concepção de Jesus. Dessa perícope, é de
tamanha importância o versículo vinte e o versículo vinte e três: “20José,
filho de Davi, não temas tomar Maria, tua esposa, pois o que nela foi ge-
rado é do Espírito Santo”. [...]. 23Eis que uma virgem ficará grávida e dará
à luz um filho, e lhe darão o nome de Emanuel, que traduzido significa:
‘Deus está conosco’” (Mt 1,20.23). O primeiro versículo retoma a ideia que
apresentamos acima de José como descendente direto de Davi, e como pai
38 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

de Jesus, lhe confere a descendência messiânica. O anjo exorta a José tomar


Maria sem medo. O verbo utilizado em grego, παραλαμβάνεται (no texto,
παραλαμβάνω), constitui a chave para compreender a ordem do anjo. A
tradução é tomar consigo, levar, receber ou associar-se. O anjo suplica a
José para que ele não somente receba Maria, mas imediatamente leve-a
para casa para celebrar o casamento a fim de evitar um constrangimento
maior quando o menino nascesse (cf. MAZZAROLO, 2016b, p. 24). José
possuía o direito de abandoná-la, conforme determina o código deutero-
nômico (cf. Dt 22,23-24), entretanto, escutando o anjo, assume-a como
esposa e o menino como filho.
O segundo versículo retoma a passagem de Isaias 7,14 onde uma jo-
vem, que provavelmente é a jovem esposa por excelência, ou seja, real,
dará à luz a um menino que será um sinal. Como esse oráculo se dirige à
casa de Davi, o menino é constituído como o herdeiro dinástico. Em Ma-
teus, esse oráculo além de ser aplicado à Maria, há a substituição da
palavra hebraica jovem ‫ ﬠַלְ מָ ה‬pela palavra grega παρθένος que significa
virgem (cf. TEB, 2015, p. 615, nota de rodapé o). Assim, o texto confere o
atributo da virgindade à Maria, que concebe, então, Jesus na virgindade. O
texto ainda resgata a ideia do AT de Emanuel (Ἐμμανουήλ), em hebraico
(‫)ﬠִ מָּ נוּאֵ ל‬, que quer dizer Deus conosco. Esse conceito é muito importante
para o AT pois ele apresenta o Deus que está em marcha, que caminha
com o seu povo e que se mantém fiel a todo o seu povo. Contudo, o nome
Emanuel não é propriamente um novo nome dado a Jesus, nem mesmo
um título. Mas uma recuperação da tradição judaica que permeia todo o
Evangelho de Mateus (cf. 17,17; 18,20; 26,29) além de concluir o texto no
último versículo: “Eis que eu estou convosco todos os dias, até o fim dos
tempos” (Mt 28,20b). Mateus sublinha a presença de Deus desde a sua
Criação, até a Consumação. A partir de Jesus, Ele, como o gerado do Espí-
rito Santo, é o que cumprirá a missão de acompanhar o povo, de ser o
Cristian Fabiani; Carlos José Monteiro Steffen | 39

Deus-conosco. Assim, Cristo passa a ocupar o lugar central da história sal-


vífica.

2.3 Evangelho de Lucas

A narrativa do nascimento de Jesus no Evangelho de Lucas é a que


mais possui detalhes antropológicos e ocupa muitos versículos. Também
há uma genealogia, porém diferente de Mateus. Este, parte de Abraão. Lu-
cas passa por Abraão, mas chega a Adão. Adão significa o homem feito a
partir do barro e representa a humanidade inteira. Nesse sentido, ele pode
ser considerado tanto pai do judeu, como do grego, como do pagão. É pai
de todos. Como Lucas escreve para os pagãos, (cf. MAZZAROLO, 2013, p.
24) apresenta Jesus como o Messias que não está limitado apenas ao judeu,
mas está voltado inclusive para os pagãos e se revela como um salvador
misericordioso e compassivo também para os que estão à margem. Expli-
cita Mazzarolo (2013, p. 79): “Abraão é um arquétipo da fé, mas
aprisionado pelo judaísmo, enquanto Adão torna-se o paradigma do ser
humano”. O evangelista ao buscar a raiz da genealogia em Adão, deixa-a
com um caráter mais universalista mostrando Cristo como “mediador
único e pleno” (cf. Dei Verbum n. 2) entre Deus e todos os homens.
No primeiro capítulo do Evangelho de Lucas, há o anúncio do anjo
Gabriel à Maria que ela conceberia um Filho e lhe poria o nome de Jesus e
ele se chamaria Filho de Deus. (cf. Lc 1,26-38). Os versículos trinta e dois
e trinta e três precisam mais ainda: “Ele será grande e será chamado Filho
do Altíssimo [υἱὸς ὑψίστου]. O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu
pai, e ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó e o seu reino não terá
fim”.
Nota-se que o anjo ao pronunciar que o Filho “reinará para sempre”,
retoma diversas passagens bíblicas do AT onde há a promessa do reinado
duradouro, como em Samuel: “A tua casa e a tua realeza subsistirão para
40 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

sempre diante de ti, e o teu trono se estabelecerá para sempre” (2Sm 7,16).
Entretanto, o anjo apresenta à Maria, nesse versículo, o lamento de Israel
por não ter conseguido, ainda, uma verdadeira realeza onde não houvesse
a infidelidade do povo e, sobretudo, dos reis. Em Jesus Cristo, porém, o Pai
cumpre com a promessa do reinado sem fim, pois o envia como herdeiro
definitivo do trono de Davi, tal como a genealogia já apresentou. Explana
Ratzinger (2012, p. 34): “O anjo anuncia que Deus não esqueceu a sua pro-
messa; agora, no menino que Maria conceberá por obra do Espírito Santo,
a promessa tornar-se-á realidade: ‘o seu reinado não terá fim’ – diz Gabriel
a Maria”.
O reinado de Jesus Cristo supera o reinado de Israel pois compre-
ende-se que ele se estende por todo o mundo. É o que está descrito no final
do Evangelho de Lucas: “O Cristo deverá sofrer e ressurgir dos mortos ao
terceiro dia, e em seu nome deverá ser anunciada a todas as nações a con-
versão para o perdão dos pecados. Começando por Jerusalém, vós sereis
testemunhas disso” (Lc 24,46b-48). O reinado de Cristo também supera o
de Israel pois é o próprio Deus que é o Rei, assim, Jesus eleva a categoria
de reinado terrestre à categoria de reinado celeste ou de Reinado de Deus.
Essa elevação além de universalizar a possibilidade de participação do rei-
nado para todos os povos, apresenta o Filho como único e verdadeiro Rei
que é justo, misericordioso e que pode resgatar Israel da sua culpa de infi-
delidade. Assim, sinteticamente, pode-se concluir que para Lucas, Jesus é
o Rei, Filho do Altíssimo.

2.4 Evangelho de João

O prólogo do Quarto Evangelho oferece a seguinte resposta à per-


gunta “Quem é Jesus Cristo?”: Jesus é o Verbo que fez habitação no mundo
armando a sua tenda (v. 14). Para compreender a profundidade dessa afir-
mação é preciso olhar para o início do texto: “No início era o Verbo (λόγος)
Cristian Fabiani; Carlos José Monteiro Steffen | 41

e o Verbo era Deus” (v. 1). Diferente de Mateus e Lucas onde Jesus possui
um nascimento (cf. Mt 1,18-25), pertence à descendência de Adão (cf. Lc
3,38) e de Marcos que é o Filho de Deus (cf. Mc 1,1); no Quarto Evangelho,
Jesus é o λόγος que se encontra no próprio Deus e parte de Deus para o
mundo, tal como afirma Guardini (1964, p. 12) ao iniciar a sua reflexão
cristológica: “Esta origem [do Verbo] reside em Deus”.
O termo Logos, ao se traduzir do grego quer dizer Palavra (cf.
DUFOUR, 1996, p. 48), ou na forma latinizada, Verbo. Ao buscar-se no AT
uma possível origem do termo Logos aplicado a Deus, não se encontram
referências explícitas (cf. DUFOUR, 1996, p. 49), apenas uma possível
aproximação ao conceito de “sabedoria de Deus” (RIENECKER, 1995, p.
161). Nesse sentido, pode-se dizer que o termo utilizado pelo evangelista,
embora já pertencente à tradição filosófica (cf. DUFOUR, 1996, p. 48), foi
empregado de forma excepcional a Deus, mais especificamente ao Filho de
Deus que se fez carne.
No primeiro versículo, o evangelista diz que o “Verbo estava voltado
para Deus” e no terceiro versículo que “Tudo foi feito por meio dele [do
Verbo] e nada foi feito sem ele”. Em um simples olhar exegético é possível
concluir que Deus não está sozinho na Criação pois o texto explicita que o
Verbo é eterno estando junto a Deus. Essa perspectiva parece estranha
pois ao longo da tradição, sobretudo filosófica, mas também, no senso re-
ligioso comum ocidental, Deus sempre foi considerado uma realidade
absoluta e única, especialmente com a Modernidade. Contudo, a perspec-
tiva do Quarto Evangelho permite inferir que o Deus da concepção
Moderna ocidental não se aproxima da realidade do Deus cristão porque
não compreende a possibilidade da Encarnação de Deus. Corrobora Guar-
dini (1964, p. 12): “A Revelação diz-nos que não existe o Deus puramente
único, tal como foi concebido pelo judaísmo pós-cristão, pelo Islão e em
geral, pela consciência moderna”. O Evangelho e a cristologia entendem
42 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

que o Verbo possui uma “existência ontológica” (HACKMANN, 1997, p.


185) pois está fundamentado na geração eterna de Deus. Isso é inconcebí-
vel para os filósofos Modernos. Entretanto, esse é o Deus cristão.
De acordo com Sesboüe (2005, p. 105-106), na concepção oriental,
diferente do pensamento Moderno-ocidental, a compreensão da eterni-
dade do Verbo junto de Deus não gera uma discussão filosófica em torno
dos atributos de absoluto e único. Da mesma forma, a Encarnação do
Verbo a partir do Quarto Evangelho é posta e compreendida em paralelo
ao Hino Cristológico da Carta de São Paulo aos Filipenses (2,5-11) pois, na
sua teologia, o ponto enfático é o movimento de descida do Filho para de-
pois demonstrar a Ascenção gloriosa onde retorna para o Pai. Por isso o
dado teológico oriental é expressivo mais antropologicamente do que teo-
logicamente. Irineu (2014, p. 180), com base na tradição oriental, faz uma
síntese cristológica dizendo a finalidade de toda a Encarnação, Morte e
Ressurreição de Jesus de modo muito simples: “[...] Cristo sofreu por nós
e ressuscitou por nós”.

3 Síntese cristológica e fundamentação guardiniana da encarnação

A breve análise dos Evangelhos na perspectiva da Encarnação expla-


nou a entrada de Deus na história concreta através de uma pessoa, Jesus
Cristo. Contudo, ainda é possível perguntar o porquê Deus quis se fazer
história humana. Bultmann faz essa pergunta numa entonação mais enfá-
tica: “Por que o evento salvador de que falamos não é algo milagroso,
sobrenatural mas é um acontecimento histórico no tempo e no espaço?”
(BULTMANN apud KASPER, 1992, p. 53). Os escolásticos, de muitas ma-
neiras tentaram elaborar tratados e teses sobre essa questão. Três teses
ficaram famosas (cf. HACKMANN, 1997, p. 186-189): de Duns Scoto que
acreditava na Encarnação como uma realização da própria Criação en-
quanto tal. Outra de Anselmo, que defendia a Encarnação para libertar o
Cristian Fabiani; Carlos José Monteiro Steffen | 43

homem do pecado, redimindo-o. E a última, de Tomás de Aquino, que de-


fende a Encarnação como um remédio para o pecado do homem, mas
alerta para a não exclusão da encarnação perfectiva, ou seja, que a encar-
nação poderia acontecer mesmo sem o pecado.
Guardini não assumiu nenhuma dessas posições escolásticas, apenas
afirma que a Encarnação se deu pela liberdade de Deus e assim, Ele en-
trando na história, tomou para si um destino:

Deus entrou na temporalidade por uma forma especial: mercê de uma decisão
toda poderosa em pura liberdade. O Deus eterno e livre não tem qualquer des-
tino; só o homem na história tem um destino. Mas aqui quer dizer-se que Deus
entrou na história e quis tomar para si um destino.

A categoria de destino, para Guardini, é a chave para se compreender


o motivo da Encarnação. Na antropologia, ele definiu destino como aquilo
que é inerente ao homem e do qual ele não pode escapar, por exemplo, a
sujeição ao tempo, a inclinação para o mal (concupiscência), o envelheci-
mento. Em tese, essa concepção, não se verifica no âmbito da Revelação,
pois embora todo ser humano possua limitações seja física ou psíquica ou
espiritual ou mesmo em função do pecado que consiste numa debilidade
humana-espiritual, quando a Revelação ressoa na sua vida através da fé
em Jesus Cristo, o sentimento do destino é transformado por causa da es-
perança cristã 5. A razão disso está no fato da Revelação.
Pode-se concluir, então, que todo o destino da vida de Jesus está em
relação e em função da salvação do mundo e do homem: “Jesus sabe que
tudo o que lhe acontece se destina à salvação do mundo, a fazer surgir uma
nova criação” (GUARDINI, 1958, p. 171). Então, todos os elementos da vida

5
Entende-se pelo conceito de esperança, para Guardini, como o próprio Deus que se apresenta na condição de Amor
incondicionado e que possui o poder de libertar, amar, redimir e transformar o seu povo. Cf. GUARDINI, 1958, p.
220-221; Cf. GUARDINI, 1964, p. 23; Cf. BENTO XVI. Spe Salvi, n. 26.
44 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

terrena de Jesus, desde a sua Encarnação, passando pela sua Páscoa até a
sua Ascensão estão dirigidos ao homem, como declarou o credo no Concí-
lio de Constantinopla: “Qui propter nos homines et propter nostram
salutem” (Denzinger-Hünermann, n. 150). Numa linguagem espiritual, em
suma, pode-se resumir que o destino de Jesus se configura, então, como a
salvação e a redenção de todo o gênero humano pela sua Paixão e Morte,
por causa do seu “amor por nós”. Numa só palavra, a finalidade da Encar-
nação, é “Seu Amor por nós”.

Conclusão

Os Evangelhos apresentam uma grande resposta à pergunta “Quem


é Jesus Cristo?” Para Marcos, Jesus é o Filho de Deus, o próprio Evangelho;
para Mateus, Jesus é o Emanuel; para Lucas, Jesus é o Cristo rei e salvador
e para João, Jesus é o Verbo encarnado. Em nenhum desses conceitos en-
contra-se Jesus como aquele que veio restaurar Israel, que veio devolver,
materialmente, tudo o que foi perdido, que reconstruiu o Templo com ti-
jolos – tal como os judeus esperavam. Ao contrário, Jesus restaurou o povo,
o reinado, o sacrifício de uma forma totalmente nova e diferente. E o início
de seu ministério como Messias, o nascimento, provou a diferença. Jesus
não desceu à terra numa forma portentosa, espalhafatosa; mas numa
grande austeridade e pequenez na criança de Belém que dependeu de um
homem e de uma mulher, José e Maria, para prover os seus cuidados, para
lhe alimentar, para, em última análise, cuidar do Filho de Deus.
Assim, pode-se dizer que o percurso dos textos bíblicos que narram
sobre a Encarnação de Deus evidencia a vontade de Deus estar próximo do
seu povo, especialmente dos mais humildes. Povo que, a partir de então,
não corresponde apenas ao judeu/hebreu/israelita, mas a todos. O lugar
no nascimento, os primeiros discípulos, a família de Jesus e os seus pri-
meiros gestos concretizam a nova compreensão de Deus e de Povo de
Cristian Fabiani; Carlos José Monteiro Steffen | 45

Deus. E, a sua vida, especialmente o momento da Cruz, configura-se como


o testemunho da verdade que Deus cumpriu com aquilo que prometera
desde a primeira aliança, a saber, o cuidado para com o homem. Por isso,
Romano Guardini, após percorrer todo o itinerário cristológico do Evan-
gelho chega apenas a uma conclusão – que já é de conhecimento na própria
Palavra de Deus – explicativa da novidade, do destino e do mistério da
Encarnação: o seu Amor por nós. Esse amor ultrapassa qualquer limite
histórico e humano que pode ser exercido. É algo que vem de Deus e que
não se encontra num cristão qualquer, apenas em Jesus Cristo. Ele é o
Amor que entregou a vida por nós (cf. 1Jo 3,16).

Referências

BÍBLIA, Português. TEB: Bíblia Tradução Ecumênica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2015.

DANIÉLOU, Jean. João Batista: testemunha do Cordeiro. Petrópolis: Vozes, 1965.

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vraria Agir, 1964.

HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. Jesus Cristo, nosso Redentor: iniciação à cristologia
como soteriologia. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

IRINEU. Contra as Heresias: denuncia e refutação da falsa gnose. V. 18,3. São Paulo: Paulus,
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JERONIMO, São. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo testamento e artigos siste-
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46 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

KASPER, Walter. Jesus, el Cristo. Trad. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1992.

KONINGS, Johan. O Evangelho do discípulo amado: um olhar inicial. São Paulo: Loyola,
2016.

MAZZAROLO, Isidoro. Evangelho de Marcos: estar ou não com Jesus. 3. ed. Rio de Janeiro:
Mazzarolo Editor, 2016a.

______. Evangelho de Mateus: ouvistes o que foi dito...? Eu, porém, vos digo...! Coisas ve-
lhas e coisas novas. 2. ed. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2016b.

______. Lucas: a antropologia da salvação. 3. ed. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2013.

RATZINGER, Joseph. A infância de Jesus. São Paulo: Planeta, 2012.

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1995.

SCHILLEBEECKX, Edward. Maria, Mãe da Redenção: linhas mestras religiosas do mistério


mariano. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1968.

SESBOÜÉ, Bernard. História dos dogmas: o Deus da salvação: séculos I-VIII. Vol. I. São
Paulo: Loyola, 2005.
3

Misericórdia e unidade na Igreja:


a inspiração eclesiológica da Gaudium
et Spes diante da pluralidade ad intra
Darvan Hernandez da Rosa 1

Introdução

Com o advento do Concílio Vaticano II o ambiente eclesial tornou-se


mais plural. Segundo Kaiser o “aggiornamento era uma palavra bastante
ousada para o papa utilizar na Roma aeterna, onde nada nunca mudou”
(KAISER, 2012). Esta sã pluralidade trouxe junto de si o desafio das con-
testações que muitas vezes provocam feridas na própria unidade da Igreja,
unidade tão cara para Cristo (cf. Jo 17,11). O nosso mundo digital – tão
rápido – e marcado pelo individualismo – eu sei de tudo e quem não con-
corda comigo eu deleto -, no qual a Igreja está inserido, influencia
fortemente os cristãos, inclusive pastores, dificultando o enfrentamento
deste problema. Será que o Concílio que provocou a pluralidade ad intra e
com ela este fenômeno, não terá uma chave de resposta para seu enfren-
tamento? Além disso, o pontificado de Francisco, grande filho do Concílio,
na busca pela unidade e integração da Igreja não nos dá igualmente luzes
para este preocupante problema?

1. O fenômeno da pluralidade e da dissenção

Os primeiros discípulos levaram a sério o pedido do Senhor de que


todos “sejam um” (Jo 17,11), “procurando conservar a unidade pelo vínculo
da paz” (Ef 4,3). Este esforço é evidenciado no chamado primeiro concílio

1
Mestrando no PPG em Teologia PUCRS. Bolsista da CAPES. darvanrosa@gmail.com ou darvan.rosa@edu.pucrs.br.
48 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

de Jerusalém (At 15,5-29). É patente também, por outro lado, a pluralidade


no seio da Igreja nascente que se manifesta na diferença entre os Apósto-
los, na diversidade das línguas no dia de Pentecoste (At 2,1-41), nos pontos
de vista sobre o acolhimento dos pagãos (At 15,5-6) entre outros elemen-
tos. Esta diversidade só foi aumentando com o passar do tempo, na medida
que o Evangelho chegava a novas culturas e povos. Quando a pluralidade
transbordava para a ruptura, os concílios garantiam a unidade.
Com a ruptura ocorrida na Reforma do século XVI, o Concílio de
Trento estabeleceu uma uniformidade na Igreja latina que n’alguma me-
dida foi percebida em quase todas as modalidades da vida eclesial. Esta
uniformidade relativa durou até o Concílio Vaticano II, onde a abertura das
janelas da Igreja para o Espírito redundou no ressurgimento de vários no-
vos carismas e organismos. É ponto pacífico que a pluralidade na vida da
Igreja é um dos grandes dons do Espírito Santo. Esta pluralidade se ob-
serva nas múltiplas teologias, no surgimento de muitos movimentos,
comunidades, congregações, ministérios.
Este fenômeno da pluralidade é bem-vindo, pois evidencia que o Es-
pírito, com o devido discernimento, não é sufocado (cf. 1Tes 5,19) no seio
da Igreja. Esta reaprende com Ele que não há apenas uma maneira de in-
terpretar e expor a Palavra, uma única maneira de celebrar, um único
método evangelizador e que ninguém possui o monopólio da inspiração
divina, a qual dá mostra de preferência pelos mais humildes. Pois àqueles
que “sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por
todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que
tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos
da riqueza inesgotável do Evangelho” (FRANCISCO, 2013, n. 40).
Atualmente esta pluralidade é percebida de maneira mais evidente, e
por vezes dolorosa, com o surgimento de muitos grupos católicos que rei-
vindicam elementos da vida eclesial que pouco a pouco tinham caído em
Darvan Hernandez da Rosa | 49

desuso: latim na liturgia, a celebração da chamada missa na forma extra-


ordinária, a exigência do cumprimento minucioso das normas litúrgicas,
a exigência de que os sacerdotes usem a veste eclesiástica, sobretudo a ta-
lar, a comunhão na boca, a reedição de livros antigos de teologia e de
escritos de santos das mais diferentes épocas, a leitura literal e sem her-
menêutica dos textos bíblicos e do magistério antigo, a crítica contumaz e
feroz contra o marxismo, o liberalismo e outras filosofias modernas, con-
tra os abusos litúrgicos, contra as facilidades nas nulidades matrimoniais
etc. Estes elementos, embora tragam perplexidade a uma Igreja acostu-
mada com um certo monolitismo pré-conciliar e, portanto, desgostosa de
novidades, podem ser aceitos com facilidade dentro do espírito conciliar
da pluralidade eclesial, desde que estes grupos que reivindicam tais ele-
mentos aceitem, por sua vez, a sã diversidade ad intra.
Surgiram no seio da Igreja outros grupos que de alguma forma ex-
trapolaram esta sã pluralidade. São aqueles que se recusam a aceitar vários
ensinamentos da Igreja no Concílio Vaticano II, entre eles a liberdade reli-
giosa, o ecumenismo, a reforma litúrgica e a colegialidade episcopal.
Talvez o representante mais conhecido destes seja a Fraternidade Sacer-
dotal São Pio X, cujos bispos foram excomungados e sua excomunhão foi
levantada pelo Papa Bento XVI no ano de 2009. Importante ressaltar que
enquanto questionavam estes pontos, continuavam em plena comunhão
com a Igreja católica, embora trouxessem grande dor pelo seu fechamento.
Interessante para nosso assunto é que o motivo de sua excomunhão não
foi o fechamento aos ensinamentos do Concílio, mas a ordenação episcopal
sem autorização pontifícia. Outros semelhantes a estes, embora mais ra-
dicais, propugnam que a Sé de Roma está vacante, e que, portanto, não
precisam escutar o Papa e os bispos unidos a ele. Apesar disso denomi-
nam-se católicos e afirmam que os demais estão no erro.
50 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Nesta mesma linha, embora em lugares teológicos diferentes, apare-


cem aqueles que não aceitam vários ensinamentos católicos sobre a moral:
a proibição do aborto, da eutanásia, do uso de contraceptivos, do ato sexual
antes do matrimônio, da fecundação artificial, da prática homossexual e a
exclusão do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Estes também se
autodenominam católicos e inclusive alguns se institucionalizaram, como
por exemplo, as “Católicas pelo direito de decidir”, mesmo sabendo que o
apoio ao aborto é punido atualmente com a pena de excomunhão latae
sententiae (Codex Iuris Canonici, c. 1398). É bom salientar que alguns des-
tes fechamentos ao magistério atingem mesmo pessoas consagradas a
Deus e no múnus do pastoreio. Será que a mera punição os fará mudar
seu jeito de pensar num mundo profundamente secularizado, onde a voz
da Igreja não tem mais a mesma força de outrora?
Através das mídias sociais estes grupos conseguem rapidamente ex-
pandir e influenciar outros com seus critérios e seus ensinamentos.
Católicos insuficientemente formados tornam-se suscetíveis aos seus ape-
los e passam a engrossar suas fileiras. Aqui é necessário distinguir os que
assim trabalham movidos pela ideologia, que podem ser comparados com
os fariseus e mestres da lei – servindo-se da Igreja para suas teses – da-
queles que de boa-fé, pensando no Evangelho sinceramente, militam nos
seus quadros. Especialmente a estes – que são os pobres em espírito – é
necessário defender contra as garras da ideologia.
Como conseguir isso? Desprezando-os e seguindo a vida da Igreja por
um outro caminho simplesmente? Punindo-os com penas mais graves?
Respondendo seus ataques violentos com a mesma intensidade? O Concí-
lio Vaticano II parece dar uma resposta a esta situação, resposta que o Papa
Francisco assume profundamente: o diálogo movido pela misericórdia.
Darvan Hernandez da Rosa | 51

2. O Vaticano II, Francisco e a misericórdia

Antes do Concílio Vaticano II a Igreja estava fechada em relação ao


mundo moderno. Os ataques deste eram reagidos com condenações e des-
confianças, aumentando sempre mais o distanciamento. Com o Concílio,
e especialmente com a Gaudium et spes, ocorre uma virada copernicana.
A Igreja passa a olhar com bons olhos o mundo, não obstante seus inegá-
veis limites, e abre-se ao diálogo, tendo o número 22 da Constituição
pastoral Gaudium et spes como uma das suas expressões modelares:

O respeito e caridade devem se estender também àqueles que em assuntos


sociais, políticos e mesmo religiosos pensam e agem de maneira diferente da
nossa. Aliás, quanto mais intimamente com humanidade e caridade compre-
endemos o seu modo de pensar, tanto maior será a facilidade para poder
iniciar um diálogo com eles.

É evidente que o que moveu o coração dos Padre conciliares foi a mi-
sericórdia divina que se aproxima da ovelha desgarrada com amor e
diligência para encontrá-la (Lc 15,1-7). A Igreja não pode ficar indiferente
ao afastamento das ovelhas, ao seu fechamento, mas deve ir ao seu encon-
tro e ajudá-las a voltar para o rebanho onde terão vida em abundância.
Segundo Fernando Camacho os misericordiosos são “aqueles que habitu-
almente vão ao encontro das necessidades do próximo, seja ele quem for,
tentando remediá-las” (CAMACHO, 2009, p. 49).
A Igreja até o Vaticano II demonstrava um cuidado maternal para
com seus filhos, distanciando-lhes daquilo que era considerado o perigo
da modernidade. Representam este pensamento documentos como a Syl-
labus de Pio IX e Pascendi Dominici Gregis de Pio X. Ao mesmo tempo
alertava o mundo que não podia construir-se de costa para Deus, como
parecia enveredar. A partir do Concílio o olhar maternal da Igreja mudou
e voltou-se com misericórdia para tantos homens e mulheres que
52 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

pareciam se acostumar a viver longe de Deus e sem a mediação da Igreja.


Seu cuidado agora deve se manifestar aproximando-se com humildade e
já não mais com severidade; pedindo que os filhos afastados falem livre-
mente para que a Mãe possa escutar, compreender e na misericórdia
oferecer – não mais do que isso – a ajuda para que descubram a fonte da
vida, a alegria que procuram, a dignidade que perderam. O que atrairá já
não será mais a força dos argumentos e da autoridade somente, mas so-
bretudo a misericórdia, a caridade, a mansidão, a paz que o mundo não
pode dar: “com vínculos humanos eu os atraía, com laços de amor eu era
para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto” (Os
11,4); “misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (Mt 9,13).
Esta misericórdia e espírito conciliar influenciaram particularmente
o Papa Francisco que em seus gestos e palavras segue-os fielmente. Ele
pede à Igreja que saia da rigidez que afasta aqueles que se sentem pecado-
res e buscam uma salvação; e diz que

se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciên-


cia é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação
da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem
um horizonte de sentido e de vida (FRANCISCO, 2013, p. 49).

O Papa Francisco, mais que todos seus predecessores recentes, pede


que a Igreja, movida pela misericórdia, seja missionária e aberta aos feri-
dos. O missionário, movido pela misericórdia, “nunca se fecha, nunca se
refugia nas próprias seguranças, nunca opta pela rigidez autodefensiva”
(FRANCISCO, 2013, p. 45).
Todo este percurso pós-conciliar de abertura e diálogo com o mundo,
não são também indicação para a Igreja enfrentar este fenômeno que ora
tratamos, ou seja, de um conservadorismo violento e de uma dissenção na
doutrina moral? Como falar de ecumenismo sem dar importância a esta
Darvan Hernandez da Rosa | 53

verdadeira ou incipiente cisão interna? Como poderia a Igreja se aproxi-


mar daqueles que são diferentes deixando de lado os mais parecidos? Não
seria uma contradição com o espírito conciliar e digno de críticas por não
fazer o que prega? É preocupante que, como diz Kasper, “a crítica mais
grave que se pode fazer à Igreja seja, como já foi dito, a de que com fre-
quência não leva ou parece não levar à prática as suas palavras que falam
da misericórdia de Deus” (KASPER, 2015, p. 207).
Talvez se possa objetar que estes são semelhantes aos fariseus que se
fecharam e receberam severas críticas de Jesus. No entanto, reafirmo, con-
vém diferenciar os líderes ideológicos – que pensam egoisticamente ou
instrumentalmente na Igreja como meio – daqueles que de boa-fé são con-
vencidos por seus argumentos e pelos limites na coerência de vida da
Igreja. Estes últimos precisam ser protegidos como ovelhas dos lobos vo-
razes. “A Igreja não pode justificar o pecado, mas tem que apoiar
misericordiosamente o pecador” (KASPER, 2015, p. 208).
O melhor caminho para ajudar estes irmãos reencontrarem a uni-
dade é este que o Concílio delineou e que tem como princípio a
misericórdia que o Senhor ensinou no Sermão da Montanha e que praticou
na Cruz: “àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a es-
querda” (Mt 5,39), e “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
Esta atitude atraiu os bons corações para a verdade, enquanto o erro e o
mal desapareceram por si só com o tempo. E assim sempre ocorreu. A
força da verdade, do bem são sempre mais convincentes.
Aproximar-se com empatia, com desejo de ouvir e entender o que se
passa por detrás destas atitudes a princípio incompreensíveis, faz com que
seus corações também se abram para o que temos para falar. Ambas as
partes, expondo as razões das suas esperanças podem se enriquecer mu-
tuamente e fazerem as correções de rumos necessárias, bem como
demarcar aquilo que não é essencial e por isso não deve ser exigido. Como
54 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

não pensar nas relações católica-luterana, por exemplo, que enquanto es-
tavam na acusação recíproca e no indiferentismo apenas se mantinham
distantes? Quando pararam – movidas pelo espírito conciliar – e começou
um escutar mútuo e respeitoso, as barreiras caíram e houve um aprendi-
zado de parte a parte, num grande enriquecimento eclesial.
Concretamente, no entanto, como poderá ser feita tal aproximação
com estes grupos? O Papa Francisco pensando numa outra circunstância,
mas com o mesmo espírito de misericórdia, parece dar resposta a esta
questão também dolorosa.

3. Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade

O Papa Francisco na Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris laeti-


tia, referindo-se aos casais, traça um percurso para tratar aqueles que
estão em situação irregular canônica: acompanhar, discernir e integrar.
Estes três passos servem também para enfrentar o tema deste artigo. A
misericórdia que conduz à abertura, ao diálogo e à empatia precisa, con-
cretamente, destes momentos para ser eficaz.

3.1. Acompanhar

Nada mais antagônico à misericórdia pastoral do que a indiferença


ou a crítica destrutiva. É o que ocorre muitas vezes hoje na Igreja em rela-
ção a estes grupos aqui tratados. Do indiferentismo às críticas ácidas
perde-se a clareza de que é preciso enfrentar o problema. E para este pro-
blema são necessárias, sobretudo, a caridade e a misericórdia. Sem a
caridade e a misericórdia não se constrói a unidade da Igreja. E estas são
dons que devem ser pedidos na oração. À medida que são derramadas so-
bre a Igreja, levam-na a buscar e a compreender a fragilidade humana
qualquer que seja, inclusive a destes irmãos que não compreendem com
profundidade o ensinamento e a prática da Igreja. Qualquer ser humano –
Darvan Hernandez da Rosa | 55

mesmo os animais – percebe quando outro tem boa-vontade consigo. Esta


boa-vontade ou empatia – tida por Kasper como atualmente sinônimo de
compaixão (KASPER, 2015, p. 30) – leva à aproximação por parte do autor
e a uma abertura espontânea por parte de quem se sentiu buscado e que-
rido. Basta recordar aqui o dinamismo de uma visita caridosa a alguém
que, por sua vez, se sente impelido e à vontade para retribuí-la. Da mesma
forma na pastoral, a aproximação empática leva a se derrubar muitas bar-
reiras e a uma verdadeira amizade.
A aproximação pastoral tem como fruto o conhecimento. Só conhe-
cendo a fundo o interlocutor se pode acompanhá-lo nos passos que
precisar dar. Acompanhamento que, dependendo da situação, pode ser de-
morado e dolorido, mas sempre frutuoso. É preciso pôr em prática a lei da
gradualidade que João Paulo II propôs no itinerário moral dos esposos
(JOÃO PAULO II, 1998, n. 34). Este acompanhamento não deixará que o
interlocutor se afaste ainda mais do seio da comunidade.
Evidentemente que o acompanhamento não deve ser feito “de cima
para baixo” como alguém que tem algo para ensinar apenas e nada a
aprender. Esta humildade no acompanhamento levará não só à aprendi-
zagem mútua, mas também a permitir que o interlocutor descubra a
verdade e o erro no diálogo, sem forçá-lo com axiomas prontos; seme-
lhante ao que Francisco orienta aos sacerdotes no acompanhamento
pastoral: deixarem seus interlocutores chegarem consigo a conclusão so-
bre a verdade da sua situação (cf. FRANCISCO, 2016, p. 250-255).
Outro fator a ser levado em consideração é o envolvimento psicoló-
gico ou emocional de muitos fiéis com suas ideias. As paixões turvam a
razão e neste sentido o diálogo pastoral deve considerar que por vezes
mais que razões são necessárias também a simpatia. Scott Hahn afirma
que sua esposa Kimberly só quis se tornar católica depois que voltou a
tratá-la bem e com carinho; suas tentativas exaustivas de convencê-la pela
56 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

razão, por melhor que fossem, tinham até então fracassado e os afastado
mutuamente (HAHN, 2003, p. 159).
Mas o acompanhamento sem mais não é suficiente, é necessário dar
o segundo passo, aprofundar no conhecimento do interlocutor, daquilo
que pensa, confrontando com a verdade para, assim, ajudá-lo na sua ade-
quada integração.

3.2. Discernir

No adequado acompanhamento destes grupos, como fruto de uma


aproximação caridosa, surge o indispensável discernimento sobre a ver-
dade de suas afirmações e reivindicações. Ao escutar com atenção o
interlocutor sempre se achará elementos de verdade nas suas proposições,
por mais heterodoxas que sejam. Ter consciência disso prepara os interlo-
cutores para um diálogo paciencioso e sem preconceitos.
No entanto, o diálogo entre partes diferentes, fará aparecer elemen-
tos com falta de verdade ou com outros aspectos da mesma verdade. A
identificação e elucidação destes, num clima de busca e não de vitória so-
bre o adversário fará emergir a alegria de uma amizade mais profunda.
Fugir deste discernimento, sem dúvida, é fugir da caridade. Bento XVI as-
sinala “a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na
direção assinalada por S. Paulo da ‘veritas in caritate’ (Ef 4, 15), mas tam-
bém na direção inversa e complementar da ‘caritas in veritate’” (BENTO
XVI, 2009, n. 2).
O diálogo frutuoso e bem fundamentado, precedido da empatia e da
busca de compreensão, certamente dará frutos positivos naqueles cora-
ções puros que buscam a verdade, não raramente enganados pela
aparência de verdade em tantos discursos. Fazê-los perceber os seus en-
ganos através de um discernimento amoroso e firme ao mesmo tempo
será uma obra de misericórdia que redundará no benefício de muitas
Darvan Hernandez da Rosa | 57

pessoas: “Meus irmãos, se alguém dentre vós se desviar da verdade e outro


o reconduzir, saiba que aquele que reconduz um pecador desencaminhado
salvará sua alma da morte e cobrirá uma multidão de pecados” (Tg 5,20).
É necessário discernir também a motivação com a qual se defende a
verdade. Muitas vezes pode haver um motivo de fundo ideológico e não
propriamente a caridade. A ideologia amarra no orgulho e na soberba não
deixando ver cada pessoa individualmente com suas reais necessidades. O
importante é a ideia e não as pessoas. Fazer perceber isso e ajudar a colocar
a motivação em Cristo, que impõe a mão sobre cada um com compaixão,
libertará dos laços sufocantes das ideologias: “conhecereis a verdade, e a
verdade vos libertará” (Jo 8,32).

3.3. Integrar a fragilidade

O fim de toda evangelização é integrar na comunhão com Deus e com


os irmãos. “Deus criou o mundo em vista da comunhão com sua vida di-
vina, comunhão esta que se realiza pela ‘convocação’ dos homens em
Cristo, e esta ‘convocação’ é a Igreja” (CATECISMO, 2002, n. 760). Por isso
a Igreja não pode ser vista como um grupinho fechado, como uma elite de
pessoas melhores que as outras. Todos na Igreja são pecadores – com ex-
ceção de seu membro eminente, a Virgem Maria (Lumen Gentium n. 63)
– que amam Jesus Cristo e querem segui-lo movidos pela fé. Por isso deve
haver um desejo grande nos cristãos, sem exceção, de integrar todos os
seres humanos nesta comunhão divina. Integrar principalmente aqueles
que estão cercados de fragilidades na sua vida, no seu comportamento, nas
suas ideias, para que possam participar da vida daquele que pode – e so-
mente ele pode – libertar de todas estas misérias. Este é o grande desejo
de Deus. Portanto os membros da Igreja não podem ter uma conduta di-
ferente, sob a pena de talvez eles mesmo estarem se colocando fora desta
família de pecadores resgatados. O Papa Francisco lembra que o caminho
58 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

da Igreja é integrar na comunhão com Deus, e por isso nunca se deve fazer
juízos que não se levam em conta a real situação de cada pessoa
(FRANCISCO, 2016, p. 245-246). “Trata-se de integrar a todos, deve-se
ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comu-
nidade eclesial, para que se sinta objeto de uma misericórdia ‘imerecida,
incondicional e gratuita’” (FRANCISCO, 2016, p. 246).
Neste sentido Francisco não só ensina com a fala. Reveste-se de par-
ticular significado o gesto do Papa Francisco no Ano da Misericórdia de
estender indefinidamente no tempo a faculdade de todos os sacerdotes le-
vantarem a excomunhão daqueles que fizeram ou contribuíram de alguma
forma com o aborto. Isto não para diminuir a gravidade de tal ato, mas
para ressaltar ao mundo a misericórdia de Deus diante do mundo fragili-
zado no mau (FRANCISCO, 2016b, n. 12) e o seu desejo de que todos
estejam integrados na comunhão divina. Este gesto de abertura, concreta-
mente, ajudará muitas mães que se sentindo culpadas não se animavam a
voltar para a comunhão eclesial e assim se endureciam na maldade. A
abertura e a compreensão animam para experiência da misericórdia e
para integração que leva à caridade. Este gesto de Francisco, sem dúvida é
paradigmático na relação que a Igreja deve ter com estes grupos que esta-
mos tratando.
Outro ponto que deve ser considerado na integração destes irmãos é
que a unidade da Igreja no pós-concílio cada vez mais é vista como uma
grande diversidade. Portanto a integração não deve ser identificada com o
tornar-se igual. O que faz pertencer à unidade da Igreja é a profissão da
mesma fé, a celebração dos mesmos sacramentos e estar sob a orientação
dos mesmos pastores (CATECISMO, 2002, n. 815); as mais diversas ma-
neiras de testemunhar esta pertença não empobrece a unidade, antes pelo
contrário, a enriquecem. As mais diversas opiniões sobre assuntos opiná-
veis, igualmente fazem com na comunhão eclesial se perceba o limite em
Darvan Hernandez da Rosa | 59

se saber quais caminhos tomar para a construção da Igreja como Cristo e


quer, bem como de um mundo melhor.

Conclusão

A unidade da Igreja, tão quista por Cristo sempre teve que enfrentar
grandes desafios nestes 2000 anos. Os destes tempos são caracterizados
pelo imediatismo das vozes dissonantes e sua grande e rápida difusão. O
pecado divide a Igreja, o Espírito a une. Ter consciência de seus próprios
limites na aproximação daqueles considerados dissonantes é fundamental
para que os cristãos consigam cumprir sua missão de Igreja em saída, na
busca dos marginalizados na periferia eclesial. Esta humildade abre o co-
ração às razões profundas que levam estes irmãos a uma postura
heterodoxa ou de agressividade. E como diz Jesus, os mansos possuirão a
terra (cf. Mt 5,4), ou seja, esta atitude de humildade na escuta, fará com os
bons corações se abram para a verdade, que tem muito mais força e beleza
que o erro. Ajudará também os cristãos já engajados a perceberem suas
limitações, muitas vezes evidenciadas no diálogo franco e fraterno.
A Igreja que se aproxima com misericórdia deste marginalizados
eclesiais, traz a calma para os corações de todos. A repercussão da vivência
da misericórdia eclesial repercute de alguma forma no mundo inteiro. Ma-
ria Clara Bingemer, nesta mesma linha afirma que “uma Igreja que não
seja fiel à vocação de irradiar essa misericórdia estaria traindo seriamente
sua vocação e sua identidade. E falharia gravemente em sua missão de
ajudar a humanidade a ser cada vez mais humana e, portanto, cada vez
mais conforme ao sonho do Criador” (BINGEMER, 2016, p. 157)
A Igreja que caminha num mundo secularizado e plural parece per-
ceber a importância da unidade nos pontos essenciais e a importância
igualmente de uma grande diversidade naquilo que não é essencial. Só
60 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

assim todas as nações, tribos, povos e línguas virão adorar o Senhor na


comunhão da sua Igreja (cf. Ap 7,9ss).

Referências

BENTO XVI. Caritas in veritate: o desenvolvimento humano integral na caridade e na


verdade. Roma, 2009. Disponível em https://www.vatican.va/content/benedict-
xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html.
Acesso em 5 de julho de 2021.

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 1993.

BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Exigências Éticas da Misericórdia. In: MILLEN, Maria
Inês; ZACHARIAS, Ronaldo. O Imperativo Ético da Misericórdia. Aparecida:
Santuário, 2016.

CAMACHO, Fernando. As bem-aventuranças. In: TAMAYO, Juan Jose. Novo Dicionário de


Teologia. São Paulo: Paulus, 2009.

CATECISMO da Igreja Católica. São Paulo: Ave-Maria; Salesiana; Paulinas; Paulus; Loyola;
Petrópolis: Vozes, 2002.

FRANCISCO. Amoris Laetitia: sobre o amor na família. São Paulo: Paulinas, 2016.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São


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Roma, 2016. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/
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HAHN, Scott; HAHN, Kimberly. Todos os caminhos levam a Roma. 3. ed. Lisboa: Diel, 2003.

IGREJA CATÓLICA. Código de Direito Canônico. Promulgado por João Paulo II, Papa. São
Paulo: Loyola, 1983.
Darvan Hernandez da Rosa | 61

JOÃO PAULO II. Familiaris consortio: a função da família cristã no mundo de hoje. 12. ed.
São Paulo: Paulinas, 1998.

KAISER, Robert Blair. Não deixe ninguém lhe dizer que o Concílio não mudou nada. Revista
IHU online. São Leopoldo, 6 de nov. de 2012.

KASPER, Walter. A misericórdia: condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã.


2. ed. São Paulo: Loyola, 2015.
4

A comprensão da identidade do leigo nos


documentos das conferências gerais do CELAM

Dorcelina do Carmo Alves Gomes 1

Introdução

A intenção desse artigo é apresentar o objeto da pesquisa de mestrado


intitulado A compreensão da identidade do leigo nos documentos das
Conferências Gerais do CELAM. Devido à brevidade do estudo, não será
plausível aprofundar a análise dos documentos conclusivos após a
realização do Concílio Ecumênico Vaticano II. Tem-se uma compilação de
Medellín, 1968; Puebla, 1979; Santo Domingo, 1992; e Aparecida, 2007.
Assim, delimitou-se o corpus textual do artigo destacando a índole secular
do leigo nas conferências episcopais, o que lhe confere identidade própria.
Tendo como meta um aspecto eclesiológico renovador, o Concílio
Vaticano II não procurou emitir uma definição restritamente dogmática
para os leigos, mas sim, uma descrição tipológica, cujo fundamento está
pautado da sua positiva natureza teológica e na sua condição de vida ou
estado eclesial que lhe é própria e peculiar à índole secular. 2 Foi o primeiro
concílio ecumênico a dedicar-se exclusivamente sobre os cristãos fiéis
leigos. Nunca um documento do Magistério da Igreja manifestou tanto
interesse e preocupação por esta categoria nunca vista na história dos

1
GOMES, Dorcelina do Carmo Alves. Graduada em Jornalismo e Letras/Português pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (UNISINOS). Mestra em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) RS. Contato:
dorce.dorce@yahoo.com.br. O presente artigo foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Brasil – Código de Financiamento 001.
2
PHILIPS, Gérard. La Iglesia y su mistério en el Concilio Vaticano II: historia, texto e comentario de la constitución
Lumen Gentium. Vol. II. Barcelona: Herder, 1969, p. 18.
Dorcelina do Carmo Alves Gomes | 63

Concílios, mas facilmente explicada devido à relevância do laicato para a


eclesiologia e para a vida da Igreja.
Na Igreja pré-conciliar, o leigo era visto como um colaborador da
hierarquia. O Vaticano II confere-lhe missão própria, sendo, portanto,
evangelizador dentro do prolongamento da hierarquia e esta é a novidade
do Concílio Ecumênico. Afinal, o Vaticano II foi inovador ao dedicar dois
importantes documentos conciliares aos leigos: a Constituição Dogmática
Lumen Gentium (Luz dos Povos), em seu capítulo quarto, e o Decreto
Apostolicam Actuositatem, que desenvolve os princípios do capítulo quarto
sobre o apostolado dos leigos.
Gérard Philips salienta que é a primeira vez na história que um
Concílio consagra um capítulo particular aos cristãos fiéis leigos (PHILIPS,
1969, p.13). Para o principal redator da Constituição sobre a Igreja, o breve
tratado conciliar sobre os cristãos fiéis leigos (LG 30-38) resume-se no
conceito de comunhão (PHILIPS, 1969, p. 82).
Na etimologia, o termo secular origina-se do latim saeculum, que
significa mundo. A fim de que a índole secular qualificasse teologicamente
o laicato, os padres conciliares precisaram conceber o mundo numa
perspectiva teológica. 3
Schillebeeckx afirma que “a relação com o mundo secular só pode ser
absorvida no conceito teológico do leigo, se a missão específica da Igreja já
inclui em si mesma uma definida relação eclesial com este mundo secular”

3
“El termino viene de saeculum, que el latín litúrgico significa, poco más o menos, el tiempo que abarca la vida
terrena desde la creación hasta la consumación del mundo. Hoc saeculum, éste siglo que passa, en otros términos:
la duración que vafluyendo en el mundo con sus preocupaciones, se opone al porvenir, futurum saeculum, eso será
definitivo en la presencia de Dios. El carácter secular encarna el valor de las cosas creadas, particularmente para el
laicato. Reconocerlo es sumamente importante. Sin éstere conocimiento del mundo como lugar en que el hombre
tiene de cumprir su misión temporal, o de la materia com la que actualmente tiene que trabajar, nunca logrará el
seglar descobrir su vocación cristiana”. (PHILIPS, Gérard. La Iglesia y su misterio en el Concilio Vaticano II: historia,
texto y comentario de la constitución Lumen Gentium. Vol. II. Barcelona: Herder, 1969, p.31).
64 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

(SCHILLEBEECKX; In: BARAÚNA, 1965, p. 981-1000). 4 Forte concorda em


parte com a linha de raciocínio de Schillebeeckx e faz este alerta:

Não é o fato de estar no mundo que caracteriza a vocação cristã do leigo. É


mais do que isso. Implica todo o empenho mundano, na variedade das condi-
ções de vida familiar e social, de humanizar esse mundo, segundo a vontade
de Deus. Nessa gama de relacionamentos, o leigo deve animar cristamente a
ordem temporal, na luz do espírito evangélico, principalmente com o testemu-
nho de vida (FORTE, 1987, p. 45).

Enfim, a Lumen Gentium foi a constituição que ofereceu importante


contribuição para uma visão mais otimista em relação ao leigo na Igreja.
Entretanto, existem muitas questões teológicas e pastorais que necessitam
de revisão mesmo com os avanços realizados. Por fim, a partir do Concílio
Vaticano II, há o reconhecimento positivo da secularidade, o que contribui
para a superação da percepção negativa dos leigos como aqueles que não
possuem cargo ou função. Assim, as conferências episcopais vêm de en-
contro a essa nova perspectiva sobre a teologia do laicato, que se enraíza
cada vez mais no continente latino-americano.

1 A compreensão da identidade do leigo nos documentos das conferências


gerais do CELAM

Em todos os quatro documentos episcopais, existem reflexões pre-


ponderantes sobre o laicato na vida e na missão da Igreja no continente
latino-americano e caribenho. Analisados os documentos episcopais – Me-
dellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) a
partir de obras relevantes e confrontação com autores e diversas opiniões,
podem-se emitir as seguintes conclusões: cada conferência a seu modo

4
Casiano Floristán endossa que o secular é o caráter próprio e particular dos leigos. Conforme Floristán, o leigo
procura o Reino de Deus e este elemento distintivo incorpora-se na definição tipológica do leigo cristão. Dessa
maneira, a secularidade dos leigos é o que os caracteriza (FLORISTÁN, Casiano. Teología Práctica: teoría y práxis de
la acción pastoral. Salamanca: Sígueme, 2002, p. 340-341).
Dorcelina do Carmo Alves Gomes | 65

aplicou de forma gradual e sistemática a doutrina do Concílio Ecumênico


Vaticano II sobre o laicato. Ainda se percebe que a maior preocupação das
conferências não está relacionada às definições teológicas, mas principal-
mente com o entendimento da identidade e missão do leigo na Igreja e no
mundo.

2 Medellín

O Concílio Ecumênico Vaticano II, com a Constituição Dogmática Lu-


men Gentium, em seu capítulo quarto dedicado aos leigos, e o decreto
Apostolicam Actuositatem, atestam um novo olhar para o laicato em rela-
ção à sua identidade, à sua vocação e à sua missão na Igreja. Os influxos
destes documentos de avanços significativos, transformações e preocupa-
ções chegam à América Latina, em 1968, como sinal de esperança, quando,
na cidade de Medellín, Colômbia, acontece a II Conferência Geral do Epis-
copado Latino-Americano, no período de 26 de agosto a 08 de setembro.
Este evento refletiu sobre o tema “A Igreja na atual transformação da Amé-
rica Latina, à luz do Concílio Vaticano II”. O fruto maior desta Conferência,
em 1968, foi ter sido a aplicação do Vaticano II para a América Latina e,
com isto, ter propiciado uma feição própria à Igreja na América Latina,
América Latina, caracterizando um verdadeiro rosto latino-americano
para a Igreja que está na América Latina (KUZMA, 2018, p. 633).
Congar assevera sobre o documento:

O Documento de Medellín é até hoje uma referência obrigatória para entender


a vida eclesial do continente no período pós-conciliar, pois neles se traçou uma
rota teológica e pastoral de recepção do Concílio Vaticano II, isto é, um cami-
nho de assimilação vital dos acordos, decisões e horizontes teológico-eclesiais
formulados pelo Concílio (CONGAR, 1972, p. 57-85).
66 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

O teólogo José Comblin, após 20 anos de Medellín, formula a seguinte


apreciação sobre a II Conferência em seu artigo: “Medellín busca na situa-
ção latino-americana uma voz de Deus: os sinais que Deus dirige à sua
Igreja” (COMBLIN, 1988, p. 813).
Um reflexo dos ensinamentos do Concílio Ecumênico Vaticano II,
posteriormente trabalhado pelos bispos latino-americanos na Conferência
de Medellín, trata-se do capítulo 10 do Documento Final intitulado Movi-
mentos de Leigos. A Teologia do Laicato, herdada do Concílio e recuperada
por Medellín, tornou-se capital para pensar uma Igreja toda ministerial,
impulsionando novas atitudes e perspectivas no âmbito pastoral intra ec-
clesiam e na ação social extra ecclesiam. Pode-se dizer que há uma
convergência entre o Concílio e Medellín, explícito na ânsia de transfor-
mação social da América Latina e na transformação eclesial do Concílio
(GALILEA. In: ALBERIGO; JOSSUA, 1985, p. 87-106). 5
Na Teologia do Laicato apresentada pela Conferência de Medellín, so-
bressai-se a mesma referência que a Lumen Gentium faz para definir a
pertença do homem e da mulher perante Deus: o batismo. Através do ba-
tismo, tornam-se seu Povo, Povo de Deus (cf. LG 11). Assim, Medellín
privilegia a descrição de Igreja como Povo de Deus e, a partir disso, elabora
seus critérios teológico-pastorais. Está explícito no capítulo 10 Movimento
de Leigos que “no seio do Povo de Deus, que é a Igreja, há unidade de mis-
são e diversidade de carismas, serviços e funções” (DM 10,7).
Concomitante a essa missão ad intra, há uma que se expande para ad extra
da Igreja, que é a missão do Povo de Deus na sociedade (OTTAVIANI;
FREZATO, 2019, p. 749). Essa missão tão própria da vocação secular é
constituída essencialmente pela participação dos leigos a seu modo do

5
O teólogo chileno Galileia afirma que os leigos e as leigas na 2ª Conferência do CELAM são compreendidos como
sujeitos ativos de uma ação transformadora social e eclesial, cuja inspiração são as constituições Lumen Gentium e
Gaudium et Spes. É preciso realçar a importância teológico-pastoral desta Conferência para o futuro da Igreja no
continente latino-americano e, em especial, compreender a identidade do leigo.
Dorcelina do Carmo Alves Gomes | 67

tríplice múnus de Cristo: profético, sacerdotal e régio. Inclusive, há no Do-


cumento de Medellín uma insistência a essa “índole secular” em todos os
números das recomendações teológico-pastorais (DM 10,7-12).
Um fato significativo a observar é que a fundamentação da identifi-
cação de todo leigo com Cristo por intermédio da participação do tríplice
múnus traz uma ordem modificada pela Conferência de Medellín. O Con-
cílio, na Lumen Gentium, apresenta a seguinte ordem: sacerdote, profeta
e rei (LG 2,10-13). Mesma referência também se encontra no Catecismo da
Igreja Católica, promulgado no ano de 1997 pelo Papa João Paulo II (CEC
436). Em contrapartida, o Documento sobre os leigos de Medellín muda
essa ordem, apresentando os leigos, em primeiro lugar, com a função pro-
fética de Cristo, para, depois, citar as outra duas: sacerdotal e real (cf. DM
10,8). Os pesquisadores Ottaviani e Frezato acreditam que a inversão dessa
ordem presente em Medellín não é desproposital, tratando-se de uma nova
perspectiva de compreender o sacerdócio comum, ao enaltecer a missão
profética dos leigos, tão necessária às realidades da América Latina.
Enfim, Medellín apoiou-se nas fundamentações teológicas e pastorais
do Concílio Vaticano II, contribuindo para o amadurecimento da visão la-
tino-americana sobre a vida e a missão dos leigos e leigas no Continente.

3 Puebla

A terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-americano reali-


zou-se em Puebla de los Angeles, no México, de 28 de janeiro a 13 de
fevereiro de 1979, e buscou retomar os ensinamentos do Concílio Ecumê-
nico Vaticano II. Além disso, resgatou Medellín, avançando em
determinados pontos. Convocada oficialmente pelo Papa Paulo VI (1963-
1978), teve como tema “Evangelização no presente e no futuro da América
Latina”. A Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (EN) do Papa Paulo
VI serviu de inspiração doutrinal-teológica e norteou todos os trabalhos da
68 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Conferência. Foi confirmada por João Paulo II, sendo um dos primeiros
atos de seu pontificado (1978-2005).
Ao se debruçar sobre o modo como o Documento de Puebla concebe
os leigos, torna-se necessário antes percorrer o caminho do “ser ao agir”,
“da identidade à missão”. Afinal, a finalidade fundamental da conferência
é a evangelização. O ponto de partida é o quarto capítulo da Constituição
Dogmática Lumen Gentium. Nesta seção, descrevem-se, inicialmente, os
elementos constitutivos dos cristãos designados como leigos na Igreja,
para após explanar a missão no mundo e na Igreja.

A raiz e o significado da missão do leigo encontram-se em seu ser mais pro-


fundo, que o Concílio Vaticano II se preocupou em sublinhar em alguns de
seus documentos: batismo e confirmação o incorporam a Cristo e o tornam
membro da Igreja; participa, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real
de Cristo, e exerce-a na condição que lhe é própria; a fidelidade e coerência
com as riquezas e exigências do seu ser lhe conferem a identidade de “homem
da Igreja no coração do mundo, e do homem do mundo no coração da Igreja”
(DP 786c).

Sendo assim, ao iniciar a seção específica sobre os leigos, o Docu-


mento de Puebla não apenas repete a fórmula conciliar de que a vocação
do laicato é a índole secular (cf. LG 31), mas situa os leigos neste olhar.
Dentro dessa perspectiva, evidencia que cresce a tomada de consciência da
presença dos leigos na vida pública da Igreja, apresentando uma fisiono-
mia cristã comprometida com a promoção da justiça dos povos (cf. DP
777).
Por sua vez, Puebla é a conferência que melhor elabora a concepção
da Lumen Gentium a respeito da teologia do laicato. Contudo, traz a noção
de cristãos fiéis leigos comprometidos e os cristãos leigos não-comprome-
tidos. A adoção dessa terminologia admite questionamentos e ponderações
sobre as relações de pertença à Igreja e a incoerência entre a fé professada.
Dorcelina do Carmo Alves Gomes | 69

Este divórcio entre fé e vida acentua-se com o secularismo (cf. DP 783).


Uma das fontes de tensões é a persistência de certa mentalidade clericalista
em numerosos agentes pastorais, tanto em membros da hierarquia quanto
do laicato (cf. DP 784).

4 Santo Domingo

A quarta conferência do Conselho Episcopal da América Latina


(CELAM) teve lugar em Santo Domingo, na República Dominicana. Reali-
zada no período de 12 a 28 de outubro de 1992, o Papa João Paulo II foi
quem a convocou para refletir sobre o tema “Nova evangelização, promo-
ção humana, cultura cristã” e iluminada pelo lema “Jesus Cristo ontem,
hoje e sempre” (Hb 13,8). 6
A segunda parte do Documento Final consta de trecho exclusivo de-
dicado ao laicato: “Jesus Cristo evangelizador vivo em sua Igreja”.
Corresponde a essa seção o capítulo sobre “A nova evangelização”, mais
especificamente o subtítulo a respeito do Espírito e a diversidade de mi-
nistérios e carismas, onde trata da temática dos cristãos fiéis leigos na
Igreja e no mundo sob o título: “Os fiéis leigos na Igreja e no mundo”.
Quanto ao núcleo teológico-dogmático da teologia do laicato, esta
conferência parte do fato de que o leigo é um homo ecclesia, pois a Igreja,
o Povo de Deus, é constituída na maioria por cristãos fiéis leigos, e que o
leigo é homo christianus, porque, pelo sacramento do batismo, é incorpo-
rado em Cristo. Ambos os conceitos remetem à noção de missão. Como
consequência do batismo, são chamados a viver o tríplice ofício sacerdotal,
profético e régio (cf. DSD 94). Quanto ao múnus sacerdotal e profético, os
leigos são protagonistas no exercício da vida familiar (Igreja Doméstica) e

6
Tanto o tema como o lema tornam evidente como razão da conferência a celebração dos 500 anos de evangelização
na América Latina e transmite ao Povo de Deus uma palavra de esperança, um instrumento eficaz para uma
evangelização. Em Santo Domingo, os leigos são chamados por Cristo como Igreja para serem os agentes e
destinatários da evangelização.
70 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

social. 7 São funções exercidas no campo do trabalho, da educação, da po-


lítica, dos meios de comunicação social e da cultura (cf. DSD 99). 8
Santo Domingo está em consonância com a Christifideles Laici
quando assume a participação como palavra-núcleo para a formação da
corresponsabilidade na missão e este status alicerça a proposta da nova
evangelização do documento. “O lugar do leigo é na sociedade, no mundo”
(cf. DSD 94), sendo esta a resposta à sua vocação particular, que é a índole
secular. O documento reitera que o leigo exerce seu protagonismo pelo
anúncio e testemunho do Evangelho. Também constata que a superação
do clericalismo acontece mediante a opção do episcopado pelo protago-
nismo dos leigos em conformidade com a exortação apostólica
Christifideles Laici (DSD 293), considerada como uma linha prioritária da
pastoral latino-americana (DSD 103).
Uma questão inquieta os bispos da Conferência de Santo Domingo: o
fato de que embora exista grande participação dos leigos não persiste o
sentimento de pertença à Igreja e a não consciência do laicato de sua vo-
cação e missão. Percebe-se a partir dessa realidade um entrave: “Sentem-
se católicos, mas não Igreja” (DSD 96). Puebla já discutia o problema, ao
explicitar o “divórcio entre fé e vida” (cf. DP 783). É uma preocupação
ainda na América Latina e que antes desta e da III Conferência é um ponto
levantado pelo Concílio Vaticano II e Medellín.

7
Segundo Boff, o protagonismo dos leigos na Conferência de Santo Domingo é necessariamente no mundo, no
compromisso com a realidade social, familiar, política e cultural (BOFF, Clodovis. “Evangelho” de Santo Domingo.
Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 53, fasc. 212, dez. 1993, p. 791-800). Ver KLOPPENBURG, Boaventura.
O protagonismo dos fiéis leigos. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 35, n. 148, jun. 2005, p. 264-274; HACKMANN,
Geraldo Luiz Borges. A amada Igreja de Jesus Cristo: manual de eclesiologia como comunhão orgânica. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003, p. 242-246.
8
Santo Domingo está de acordo com o decreto Apostolicam Actuositatem, que alude ao fato de que os leigos
“compartilham a missão de todo o Povo de Deus na Igreja e no mundo”, e, desse modo, é característico do estado
leigo viver em meio ao mundo – sua índole secular (cf. LG 31) – e a partir disso é chamado ao exercício de seu
apostolado (cf. AA 2).
Dorcelina do Carmo Alves Gomes | 71

5 Aparecida

A quinta conferência do Conselho Episcopal da América Latina e Ca-


ribe reuniu-se no período de 13 a 31 de maio de 2007, na cidade de
Aparecida, Brasil, iluminada pelo tema “Discípulos e missionários de Jesus
Cristo, para que nele nossos povos tenham vida”. “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida” (cf. Jo 14,6). O tema escolhido tem um centro profunda-
mente cristológico: a vida de Jesus Cristo.
É na segunda parte do documento sobre “A vida de Jesus Cristo nos
discípulos missionários” que corresponde ao método teológico do ‘julgar’
adotado pela conferência que a teologia do laicato se encontra mais esmiu-
çada. Desse modo, a segunda parte do documento conclusivo no capítulo
V com o título “Os fiéis leigos e leigas, discípulos e missionários de Jesus
Luz do Mundo” destaca, como nas demais conferências latino-americanas,
que “a missão própria e específica dos leigos é no mundo”, e com seu tes-
temunho e atividade, contribuem para a transformação das realidades e
para a criação de estruturas justas segundo os critérios do Evangelho (cf.
DA 210).
A insistência no aspecto da vocação secular do laicato, sendo esta sua
identidade própria e peculiar como assevera a Lumen Gentium (LG 31).

Sua missão própria e específica se realiza no mundo, de tal modo que, com seu
testemunho e sua atividade, contribuam para a transformação das realidades
e para a criação de estruturas justas segundo os critérios do Evangelho. “O
espaço próprio de sua atividade evangelizadora é o mundo vasto e complexo
da política, da realidade social e econômica, como também da cultura, das ci-
ências e das artes, da vida internacional, de os „mas media‟ e outras realidades
abertas à evangelização, como o amor, a família, a educação das crianças e
adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento” (DA 210).

Aparecida compreende os cristãos leigos como a “Luz do Mundo” (cf.


DA 209- 215). Além de retomar às conferências latino-americanas
72 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

anteriores, Aparecida dá um acento teológico e doutrinal bem de acordo


com o ensinamento do Concílio Vaticano II e dos documentos posteriores,
pois teve a capacidade de recolher as reflexões feitas até o momento.
Ponto marcante desta Conferência é descrever os leigos como verda-
deiros sujeitos eclesiais (DA 496a). Esta expressão extraída do documento
apresenta os leigos como interlocutores dentro dos novos areópagos de
decisão da sociedade: econômica, política e cultural. São os interlocutores
entre Igreja e sociedade e sociedade e Igreja (DA 497a). A partir disso, con-
firma-se sua identidade secular, o “ser do mundo” e “estar no mundo” a
serviço da propagação do Evangelho, ampliando as reflexões da Evangelii
Nuntiandi do Papa Paulo VI.
O diferencial desta conferência para as demais é que Aparecida deli-
neia o caminho mistagógico como proposta para a formação do discípulo
missionário. Se comparada com as conferências anteriores, nota-se uma
continuidade e progressiva assimilação dos elementos teológicos descritos
na Lumen Gentium (LG 31), no qual se resgata a participação na tríplice
função de Cristo conforme a índole secular atribuída ao leigo:

Os fiéis leigos são “os cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo,
que formam o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote,
profeta e rei” (cf. LG 31). Realizam, segundo sua condição, a missão de todo o
povo cristão na Igreja e no mundo. São “homens da Igreja no coração do
mundo, e homens do mundo no coração da Igreja” (DA 209).

Considerações finais

O Concílio Ecumênico Vaticano II deu passos importantes para a


compreensão da identidade do leigo, deixando claro sua índole secular (LG
4, 31), isto é, sua identidade secular. Atribuiu-lhe, também, uma visão po-
sitiva. E o Concílio reconheceu a importância do laicato na Igreja,
especialmente no capítulo IV da Constituição Dogmática Lumen Gentium,
Dorcelina do Carmo Alves Gomes | 73

Luz dos Povos, e no decreto Apostolicam Actuositatem sobre o apostolado


dos leigos. Ainda um avanço significativo foi a afirmação da comum dig-
nidade de todos os filhos de Deus (LG 4,32c) e da missão dos leigos, não
mais como ajudantes da hierarquia, mas como própria deles.
Ainda se percebe que a maior preocupação da II Conferência não está
relacionada às definições teológicas, mas principalmente com o entendi-
mento da identidade e missão do leigo na Igreja e no mundo. Em Medellín,
confirma-se o já enunciado pelo Vaticano II: a sua vocação secular, assina-
lando aspectos fundamentais centrados na doutrina conciliar sobre os
leigos. Medellín traz em seu texto conclusivo a experiência dos Movimen-
tos de Leigos que abarca todo o capítulo 10 da conferência e externa esse
compromisso ao conjunto dos cristãos fiéis leigos. É este apostolado que
permeia toda a ação evangelizadora da Igreja. De fato, foi entendido como
uma releitura do Concílio Vaticano II.
As questões fundamentais elencadas por Puebla determinaram um
norte à atuação do laicato. Nesta Conferência, percebe-se a intencionali-
dade de destinar força ao leigo e fazer dele parte da Igreja no mundo.
Alçada a essa condição, a Igreja da América Latina favoreceu a participação
do leigo, permitindo-lhe protagonismo de atuação frente às dificuldades.
É conveniente citar uma evolução desde a Conferência do Rio de Janeiro,
em 1955, que perpassa Medellín, em 1968, e remete a Puebla (1979). As
duas últimas convergem para uma grande mudança no pensamento sobre
os leigos, simplesmente porque não refutaram os ensinamentos pós-con-
cílio. Entretanto, ainda havia lacunas que, mais tarde, as conferências de
Santo Domingo, em 1992, e a de Aparecida, em 2007, dariam novos hori-
zontes e novas formas ao leigo e à atuação dele na Igreja e na sociedade.
Realizado trinta anos depois do Concílio Vaticano II, Santo Domingo
ocupa-se da vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo. Em todo o
documento, exorta-se o protagonismo dos leigos como sinal de novos
74 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

tempos para a Igreja do continente latino-americano, sendo este o conceito


central do documento. Os cristãos fiéis leigos são os protagonistas da Nova
Evangelização – terminologia usual e que transcorre o conjunto do texto
final – e que está de acordo com a Exortação Apostólica pós-sinodal Chris-
tifideles Laici, do Papa João Paulo II. A ideia recorrente é que os cristãos
comprometidos sejam os protagonistas da evangelização e que os cristãos
não-comprometidos sejam os destinatários da nova evangelização.
O texto conclusivo não utiliza a expressão índole secular para desig-
nar a vocação específica dos leigos, mas a deixa implícita e se deduz a partir
deste pressuposto: “a exercer no mundo, vinha de Deus, uma tarefa evan-
gelizadora indispensável” (DSD 94). Desse modo, os leigos exercem o seu
protagonismo a partir do momento em que respondem à sua vocação par-
ticular, que é a índole secular, tanto na Igreja como no mundo.
O Documento de Aparecida acolhe, em suas linhas gerais, a eclesiolo-
gia do Vaticano II ao descrever tipologicamente o “fiel leigo” (DA 209).
Assim como em Puebla, Aparecida também os reconhece como “homens
da Igreja no coração do mundo, e homens do mundo no coração da Igreja”
(DA 209). Diante dessas constatações, a Igreja só tem razão de ser, se es-
tiver inserida no mundo, e se faz presença no mundo pelos leigos, “Povo
de Deus” (LG 30). Os leigos se tornam, assim, no mundo – índole secular
– os que realizam a missão de todo o povo cristão – através de seu sacer-
dócio comum, sendo profetas e reis em Jesus Cristo (cf. LG 31).
Em concordância com o Concílio Vaticano II, Medellín, Puebla, Santo
Domingo e Aparecida reconhecem a índole secular como competência pró-
pria do leigo. Também os compromissos pastorais acenados pelos bispos
são pertinentes à teologia do laicato e fazem parte dos documentos con-
clusivos das conferências. Nesse sentido, há como pré-requisito a
formação integral e sistemática do laicato nos fundamentos da fé e do
Dorcelina do Carmo Alves Gomes | 75

ensino social da Igreja como exigência da missão evangelizadora na Igreja


e no mundo.

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1965, p. 981-1000.
5

A relação entre ciências naturais e teologia e


sua urgência para o futuro do planeta

Eliseu Lucas Alves de Oliveira 1


Luiz Carlos Susin 2

Introdução

Na presente reflexão, se considerará a urgente necessidade de ciên-


cias naturais e teologia em laborar pela salvaguarda do futuro do planeta.
Para isso, se levará em conta as possibilidades desta relação, utilizando os
conceitos de Ian Barbour a respeito de conflito, independência, diálogo e
integração, optando pelo caminho do diálogo. Isso levará ao segundo
passo onde serão analisadas as metodologias das ciências naturais e da
teologia para, num terceiro momento, perceber a possibilidade de aproxi-
mação e trabalho em comum no campo da ecologia.

1 Teologia e ciência: duas metodologias

Ian Barbour refletiu sobre as diferentes formas de encontro entre fé


e ciência, dividindo em quatro modelos: o conflito, a independência, o di-
álogo e a integração. Em relação ao conflito, Barbour cita os dois lados
opostos do materialismo cientifico que considera somente realidade o que
passa pela experiência científica, e do lado oposto, os fundamentalistas que
são consideram a Bíblia como norma de fé e de ciência (Cf. BARBOUR,
2004, p. 25). Na independência, está a distinção de que a Bíblia, como

1
Bacharel em Filosofia pela PUCRS. Bacharel em Teologia pela FAPAS. Mestrando em Teologia PUCRS com bolsa
parcial da CAPES desde março de 2021.
2
Doutor em Teologia pela PUG. Licenciado em Filosofia pela Unijuí. Professor Permanente e Pesquisador no
Programa de Pós-graduação de Teologia da PUCRS.
Eliseu Lucas Alves de Oliveira; Luiz Carlos Susin | 79

revelação de Deus que exige fé, trata de questões de salvação enquanto a


ciência fala das leis do funcionamento do mundo (Cf. BARBOUR, 2004, p.
32-33). No campo do diálogo está o encontro da fé e ciência que distingue
as metodologias, as possibilidades e os limites deste encontro (Cf.
BARBOUR, 2004, p. 38). No campo da integração estão as tentativas de
aproximar as explicações teológicas e científicas, fazendo parte desta abor-
dagem a teologia natural, que é a reflexão filosófica sobre a natureza para
encontrar nela os vestígios de Deus (Cf. BARBOUR, 2004, p. 44), bem
como, a teologia da natureza, que faz uma revisão das afirmações teológi-
cas para estar de acordo com as últimas descobertas científicas (Cf.
BARBOUR, 2004, p. 47).
Ao analisar a relação entre teologia e ciências é preciso considerar,
ainda, que existem duas metodologias, sendo que o método é “um cami-
nho escolhido de modo consequente, coerentemente e, sempre que
possível, logicamente” (GANOCZY, 2005, p. 16). Portanto, veremos inici-
almente o método das ciências naturais e, posteriormente, o método da
teologia.

1.1 Metodologia das ciências naturais

Há uma corrente positivista, que é também senso comum, afirmando


que a ciência trabalha com objetividade, fundamentada em uma metafísica
realista do mundo, ou seja, o entendimento de que aquilo que vemos é a
realidade em si mesma. No entanto, o advento da nova física fez com que
“a velha suposição totalmente metafísica de um mundo em si é substituída
pelo que se chamou de ‘campo das possibilidades construtivas’”
(MOLTMANN, 2007, p. 27). Não obstante, na concepção atual de metodo-
logia científica, já se sabe que, o próprio ato de conhecer modifica a
realidade daquilo que é conhecido, em uma interação sujeito-objeto. Ou
seja, desde Kant, há uma suspeita a respeito da objetividade do sujeito,
80 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

pois, “a crítica da razão de Kant já mostrou ‘que a razão só compreende o


que ela mesma produz segundo seu projeto” (MOLTMANN, 2007, p. 26).
Para sair deste impasse, o melhor seria adotar um ‘realismo moderado’,
em que “‘o mundo informa nossas teorias, mesmo que nossas teorias ja-
mais descrevam adequadamente o mundo’” (MOLTMANN, 2007, p. 87).
Embora tenha dificuldade em abordar com total objetividade os fe-
nômenos de sua investigação, como era o esperado, a ciência ainda “tem
como objeto primordial a pesquisa e o entendimento dos fenômenos na-
turais” (STOEGER, 2002, p. 86). Este objetivo progride no empenho
individual do cientista, mas, sobretudo, na ‘comunidade dos cientistas’,
onde se expõe o resultado da pesquisa e existe “a possibilidade de ser subs-
tituída ou abrangida por uma teoria diferente ou mais completa – uma
teoria que explique mais ou seja aplicável em uma séria mais ampla de
situações e condições” (STOEGER, 2002, p. 27). Com isso, para que a co-
munidade dos cientistas chegue a um acordo sobre a veracidade do
fenômeno a ser interpretado, há de se ter um padrão que distinga a vera-
cidade do erro. “O sucesso da ciência ‘normal’ funda-se na ‘presunção de
que o grupo científico sabe de que forma é constituído o mundo’, ainda
que possam sobrevir momentos em que esse ‘saber’ é colocado em xeque”
(EUVÉ, 2006, p. 88).
Faz parte da compreensão da ciência que toda a afirmação advinda
do campo científico se manifesta e se torna inteligível através da lingua-
gem e, deste modo, está sujeita aos problemas da linguagem, pois “a
linguagem esforça-se por apreender um mundo por meio de seus recursos
próprios; por outras palavras, procurar tornar conhecido o desconhecido,
mas em uma redução jamais definitiva” (EUVÉ, 2006, p. 90-91). Não obs-
tante, a ciência contemporânea não supõe mais uma natureza fixa, com
fenômenos repetíveis no tempo e no espaço, mas “privilegiam mais as sin-
gularidades, as rupturas, as ‘catástrofes’, em uma perspectiva menos
Eliseu Lucas Alves de Oliveira; Luiz Carlos Susin | 81

operacional, e sim mais centrada em uma busca de significação” (EUVÉ,


2006, p. 92). A metáfora e o jogo emergem como ferramentas de interpre-
tação da realidade.
O diálogo entre ciências naturais e teologia tem uma finalidade muito
especial. Em jogo está a danação ou a salvação desta história no sentido da
sobrevivência da espécie humana na aventura planetária, diante de uma
iminente crise ecológica (MOLTMANN, 2007, p. 31). Não é um conheci-
mento neutro e desinteressado. Não existe, portanto, a neutralidade e
separação entre sujeito e objeto, ser humano e natureza. “O homem não
está mais contraposto à ‘natureza’ como sujeito de conhecimento e traba-
lho, mas também está como sujeito de conhecimento e trabalho numa
história com ela” (MOLTMANN, 2007, p. 31-32).

1.2 Metodologia teológica

Para abordarmos a metodologia da teologia, o ponto de partida é re-


cordar que, “antes de tudo, a teologia se arroga o direito de ser ciência”
(LIBÂNIO; MURAD, p. 76). Seu objeto de estudo é o próprio Deus, fonte,
origem e que dá consistência a todas as coisas. “Como ciência do ser su-
premo e do valor último, a teologia cristã se tornou um poder de ordem
no cosmos científico” (MOLTMANN, 2007, p. 23). Tendo isto posto, pode-
mos já considerar que, em primeiro lugar, teologia é sabedoria, pois, “no
sentido objetivo, significa a ciência que tem a Deus por objeto; no subje-
tivo, a ciência que Deus mesmo possui e comunica aos homens por graça”
(LATOURELLE, 1981, p. 11). Deus se dá a conhecer por meio de sua reve-
lação (LATOURELLE, 1981, p. 24). Sendo assim, a teologia, ao tratar da
realidade do mistério que se revela, precisa da resposta da fé. “A fé suscita
a teologia, no plano da adesão de fé como no plano do objeto de fé”
(LATOURELLE, 1981, p. 39). A fé não é uma visão direta de Deus, mas
82 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

conhecimento pelo ouvido que se abre e se põe a caminho na esperança”


(LATOURELLE, 1981, p. 39).
Na escolástica, a razão teve seu ponto alto no campo da teologia. Se-
gundo Libânio e Murad, “nessa dimensão racional da teologia, a realidade
‘razão’ impôs-se ao ‘intelecto’. A razão opera fundamentalmente a relação
entre meio e fim. O intelecto debruça-se sobre os valores e metas que ser-
vem de guia” (LIBÂNIO; MURAD, p. 78). Já na modernidade, teologia e
pensamento moderno começam a repensar seus fundamentos e seus limi-
tes.
É o tempo da crítica. “Antes de tudo, a crítica nasce das suspeitas teó-
ricas filosóficas atingindo os próprios pressupostos da teologia. Esta arma-
se então de ferrenha apologética para defender-se dos assaltos da razão
crítica” (LIBÂNIO; MURAD, p. 79). Foi neste período que as ciências natu-
rais desenvolveram a metodologia experimental e se distanciaram da
teologia. “A certeza já não se fundamenta nem na autoridade da Escritura
nem na de filósofos da Antiguidade (Aristóteles), mas em sua verificação
experimental” (LIBÂNIO; MURAD, p. 81).
O contexto histórico da modernidade resultou em questionamentos
vindos das ciências empíricas que colocaram em crise a teologia e esta pre-
cisou, mais uma vez, se justificar para que pudesse ser chamada de ciência,
e, assim, “enquanto a teologia pode exibir um conjunto de conhecimentos
ordenados, com objeto, método, unidade e sistematização próprios, me-
rece, com direito, o título de ciência” (LIBÂNIO; MURAD, p. 84).
No diálogo com as ciências naturais, a teologia também se assume
imersa no contexto, nos paradigmas, no movimento de interpretação que
sempre é uma ação intersubjetiva porque também coletiva; no horizonte
da compreensão, no tempo histórico, movida por interesse, consciente ou
não (Cf. LIBÂNIO; MURAD, p. 85). A teologia precisa sempre considerar
que as ciências também mudam a sua autocompreensão no decorrer do
Eliseu Lucas Alves de Oliveira; Luiz Carlos Susin | 83

tempo. Aquilo que, há tempos, era afirmado e fundamentava até mesmo


uma crítica à teologia, pode hoje ter outra intepretação. Por exemplo, a
relação sujeito e objeto no conhecimento, quando “as partículas não po-
dem ser conhecidas em si mesmas, mas somente em relação com o
observador. Logo, a ocular do observador define também o fenômeno e
não simplesmente o capta” (LIBÂNIO; MURAD, p. 85). Tal abertura de
sentido possibilita uma visão ecológica e de responsabilidade pela criação,
“pelo futuro aberto, que está à frente da natureza com ele e dele com a
natureza, ele se torna cônscio não apenas de seu poder sobre a natureza,
como também de sua solidariedade com ela” (MOLTMANN, 2007. p. 32).
Enquanto as outras ciências estudam um determinado campo do sa-
ber e interpretam os fragmentos de fenômenos, a teologia tem como
objeto a realidade última e a fonte de todo o Ser, e tal conhecimento dá
sentido ao ser humano. Aqui se faz presente a possibilidade do diálogo en-
tre ciências naturais e teologia, para “desvelar o sentido último e
transcendente da vida humana” (LIBÂNIO; MURAD, p. 87).
Na América Latina, o desenvolvimento da teologia esteve muito li-
gado à práxis libertadora tomando como uma mediação necessária,
embora não única, as ciências sócio-analíticas. Desenvolveu-se uma teolo-
gia da libertação com o seguinte método: “o primeiro passo para a Teologia
é pré-teológico. Trata-se de viver o compromisso da fé, em nosso caso, de
participar, de algum modo, no processo libertador, de estar comprometido
com os oprimidos” (BOFF; BOFF, 1986, p. 37). Em resumo, a teologia da
libertação consistia em “refletir a partir da prática, no interior do imenso
esforço dos pobres com seus aliados, buscando inspirações na fé e no
Evangelho para o compromisso contra a sua pobreza em favor da liberta-
ção integral de todo o homem e do homem todo” (BOFF; BOFF, 1986, p.
20).
84 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

2 A aproximação científica e a aproximação teológica ao mundo

Ciências naturais e teologia, nos seus métodos investigativos, ainda


que se utilizem do mundo material como componente da investigação, em
um determinado momento precisam traduzir suas observações para a lin-
guagem e para modelos explicativos. Por isso, “tanto num caso como no
outro o cientista abandona a materialidade visível e palpável das coisas e
dos processos para se expressar em fórmulas que são criações do espírito
humano” (GANOCZY, 2005, p. 17). Podemos afirmar, por isso, que “a pes-
quisa científica não é a simples tradução discursiva de uma ordem
subjacente ao real […]; sim um projeto, um método ativo, animado por
um desejo de lançar luz sobre a aparente opacidade do mundo” (EUVÉ,
2006, p. 84-85).
Se é possível afirmar que as ciências naturais partem da experiência
do fenômeno dado no mundo, ou seja, do recurso empírico, também a te-
ologia se arroga o direito de partir da experiência. “Só que em relação à
teologia não se trata de empiria científica, mas de um tipo diferente de
experiência, chamada de experiência religiosa ou experiência de Deus ou
da fé” (GANOCZY, 2005, p. 20). Partindo da experiência de estar no
mundo, a teologia avança para as perguntas últimas da existência. “Esse
alcançar além ou, em termos teológicos, esse transcender da realidade
imediata acontece de tal modo que formula perguntas como ‘Para quê?,
Para onde?, De onde?’, ou simplesmente a pergunta pela razão última e
pelo sentido do todo” (GANOCZY, 2005, p. 20-21). Assim, é possível dis-
tinguir dois tipos de experiência, uma em ciências naturais e outra em
teologia. Isto é, “se a ciência extrai sua eficácia da restrição de seu campo
operacional aos fenômenos acessíveis e mensuráveis, a teologia da criação
ocupa-se da totalidade do mundo, abordada, precisamente, enquanto to-
talidade” (EUVÉ, 2006, p. 92).
Eliseu Lucas Alves de Oliveira; Luiz Carlos Susin | 85

Tanto as ciências naturais quanto a teologia refletem e conceituam


dentro de uma comunidade interpretativa. “A pessoa religiosa sempre
volta a apoiar-se na experiência de Deus feita por outras pessoas que vive-
ram antes dela, ou que vivem no tempo dela” (GANOCZY, 2005, p. 21). Tal
fato diminui o peso do argumento de que a religião é resultado de experi-
ências privadas. Assim, “não se trata nesse caso de um assunto meramente
subjetivo, privado ou individual, mas, pelo contrário, de algo que pode ser
chamado de objetivo na medida em que está fundado em elementos pré-
vios e fatos que também são eficazes” (GANOCZY, 2005, p. 22). A
revelação de Deus ao ser humano se condensa, sobretudo, na Escritura
Sagrada, que é elemento concreto para investigação científica do fenô-
meno religioso que ali se manifesta. Por isso, devemos distinguir a
experiência pessoal e a experiência coletiva. “Não é a experiência pessoal
de Deus que pode ser investigada e refletida, mas sem dúvida sua configu-
ração linguística, assim como obviamente também sua forma transmitida
na comunhão” (GANOCZY, 2005, p. 22).
A experiência pessoal da totalidade faz com que o ser humano busque
respostas últimas sobre o sentido da existência. No entanto, a revelação
divina ao ser humano é uma experiência coletiva que se concretizou em
forma de escritura sagrada. Na sagrada escritura, o religioso alcança as
respostas sobre a verdadeira face de Deus e o sentido do mundo. Conclui-
se, por isso, que, em última análise, “como normativo vale unicamente o
que foi testemunhado pela Bíblia” (GANOCZY, 2005, p. 23). Ela é a norma
normans non normata.
Fé e ciências naturais tem uma palavra sobre o perigo de fechamento
em suas conclusões, o que poderíamos chamar de dogmatismo, que não é
o mesmo que dogma. Se o dogmatismo é um fechamento na busca da ver-
dade, “o dogma visa ser orientação para pessoas livres. O dogmatismo
acarreta que sejam inviabilizados quaisquer pesquisa e trabalho científico”
86 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

(GANOCZY, 2005, p. 24). O exemplo de dogmatismo na ciência é o cienti-


ficismo positivista que nega qualquer verdade para além da observação.
Do lado da teologia, o dogma fixa uma expressão da fé, mas não a sua
compreensão no tempo. Os dogmas de fé, portanto, são “afirmações teo-
lógicas que sempre voltam a expressar a experiência da fé e que a
interpretam levando em conta as diversas condições da época são relati-
vamente passíveis de complementação e melhoramento” (GANOCZY,
2005, p. 24).
A relação entre fé e ciências naturais compartilham da relação entre
as partes e o todo. O movimento da parte para o todo e do todo para as
partes configuram o método científico. Todavia, esse movimento é, nas
ciências naturais, da parte para o todo, enquanto na teologia pode se partir
do todo para as partes. Como exemplo, é quanto a teologia reflete sobre a
criação que é “por natureza, inapreensível, radicalmente impossível de
perceber como tal. Ela é misteriosa para a experiência comum e não po-
deria ser descrita de maneira exaustiva por meio dos conceitos de que
dispomos” (EUVÉ, 2006, p. 93).
Na busca da verdade, há de se considerar a consistência da realidade
e sua cognoscibilidade. Aqui estamos no âmbito da ontologia, do discurso
sobre o ser. Mas o discurso teológico é também limitado pelo mistério pro-
fundo, insondável, e pelo qual nos aproximamos com uma linguagem
limitada e insuficiente. Assim, “o discurso teológico apelará à imaginação,
que rompe o marco muito estritamente delimitado do saber estabelecido”
(EUVÉ, 2006, p. 97). Um discurso teológico que não se afasta das convic-
ções pessoais advindas de uma experiência com o inefável. Logo, “aquele
que defende esse discurso está envolvido nele pessoalmente. Não se refu-
gia no anonimato do discurso conceitual, mas aceita a aventura
imprevisível que a transmissão da fé representa” (EUVÉ, 2006, p. 98).
Eliseu Lucas Alves de Oliveira; Luiz Carlos Susin | 87

Ciências naturais e teologia tem métodos e objetos distintos, mas atu-


almente se faz urgente dirigir o olhar para o planeta e a possibilidade real
de uma catástrofe, em que a suposta e ultrapassada neutralidade científica
ou negação do mundo de uma teologia mal compreendida precisam ser
ultrapassadas. Cientistas e teólogos não estão imunes às consequências de
suas interpretações e atitudes frente à realidade da crise ecológica. A teo-
logia, por isso, “deve revogar seu restringir-se à Igreja, à fé e à
interioridade, para procurar, com todos, a verdade do todo e a salvação de
um mundo dilacerado” (MOLTMANN, 2007, p. 23). O mesmo convite se
faz à ciência, para refletir sobre seus pressupostos diante de um mundo
que corre perigo de aniquilação. Não está em jogo uma ideologia, mas a
verdade que torna possível a investigação humana em todas as áreas cien-
tíficas, porque é a vida humana como tal e a vida do planeta que está em
jogo. É o caminho da humanização, em última análise, o desafio ético da
ciência ou, talvez dizendo melhor, do cientista. Pois “onde quer que se per-
gunte pela verdade e esta seja encarada, ocorre a humanização do homem,
pois no horizonte dessa pergunta sobre a salvação e a danação do mundo
a liberdade e responsabilidade e a educação se tornam necessárias”
(MOLTMANN, 2007, p. 29-30).
O histórico e as possibilidades desta relação devem ser levados em
conta na sua complexidade e ambiguidades. As ambiguidades resultam de
ambivalências na interface ética ou moral entre ciências e realidade lida
pela teologia como criação divina. A ética é o espaço da consciência, da
liberdade, da decisão, e isso cabe ao cientista enquanto ser humano dotado
para o exercício ético do seu conhecimento e das suas consequências.
Como escrevia com certa ironia grave David Ruelle, da equipe do Nobel
em física Ilya Prigogine:
88 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

A ciência é totalmente amoral e completamente irresponsável. Os cientistas


agem, individualmente, de acordo com o senso que têm (ou não têm) de suas
responsabilidades morais, mas agem como seres humanos, não como repre-
sentantes da ciência. Tomemos um exemplo: o que antigamente chamávamos
a natureza, e que já não é mais do que o nosso meio ambiente, está a ponto de
se tornar meramente a nossa lata de lixo. Culpa da ciência? A ciência pode
efetivamente ajudar na destruição da natureza, mas também pode ajudar a
proteger o meio ambiente, ou pode servir para medir a poluição. As decisões
são todas humanas. A ciência responde às perguntas (pelo menos de tempos
em tempos), mas não toma decisão. Os humanos tomam decisões (pelo menos
de tempos em tempos). (RUELLE, 1993, p. 222-223)

A relação entre ciências naturais e teologia é um assunto muito per-


tinente, não só porque faz menção a duas áreas que se comprometem em
explicar a realidade, nos seus fragmentos fenomênicos ou no seu todo
como sentido do ser, mas porque o assunto em questão pode e deve levar
a uma prática de cuidado e proteção da casa comum, natureza e criação de
Deus.

Conclusão

Chegando ao término desta reflexão sobre as possibilidades de rela-


ção entre ciências naturais e teologia para o trabalho em comum no que
se refere a compreender o problema ecológico e na prática de cuidado no
âmbito da ecologia, percebeu-se que o ponto de partida de ambas é a ex-
periência, seja do fenômeno, seja da experiência de fé. Tais experiências
são organizadas e sistematizadas em tentativas de explicitação da reali-
dade que, em última instância, permanece sempre no âmbito do mistério.
Teologia e ciências, a partir da linguagem, da comunidade interpretativa,
estão sempre produzindo conceitos e explicações sobre o mistério da rea-
lidade em si mesma, no seu fragmento (o fenômeno) ou na sua totalidade
(o divino). Todavia, o contexto atual urge que fé e razão, teologia e ciências
Eliseu Lucas Alves de Oliveira; Luiz Carlos Susin | 89

se unam, não somente para dialogar e explicar como a realidade é e como


o mundo funciona mas, sobretudo, com urgência, desenvolver a dimensão
ética do conhecimento, que implica em escolhas e ações que levem em
conta a crise ecológica que ameaça o equilíbrio ambiental e a continuidade
da vida humana no planeta.

Referências

BARBOUR, Ian. Quando a ciência encontra a religião. Tradução de Paulo Salles. Editora
Cultrix: São Paulo, 2004.

BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer teologia da libertação. Petrópolis: Vozes,
1986. (Coleção Fazer – Vozes/IBASE).

EUVÉ, François. Pensar a Criação como jogo. Tradução Jonas Pereira dos Santos. São Paulo:
Paulinas, 2006. (Coleção repensar).

GANOCZY, Alexandre. Vastidões infinitas: visão de mundo científica e fé cristã. Tradução


de Werner Fuchs. Edições Loyola, São Paulo, 2005.

LIBÂNIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas.
5ed. São Paulo: Loyola. Disponível em < https://docero.com.br/doc/nv8cen0>.
Acesso em 15 de out. 2021.

MOLTMANN, Jürgen. Ciência e sabedoria: Um diálogo entre ciências naturais e teologia.


Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2007.

LATOURELLE, René. Teologia, ciência da salvação. Tradução Monjes Beneditinos de Serra


Clara. São Paulo: Paulinas, 1981. (Teologia hoje – 20).

RUELLE David, Acaso e caos. São Paulo: Unesp, 1993.

STOEGER, William R. As leis da natureza: conhecimento humano e ação divina. Tradução


Bárbara Theoto Lambert. São Paulo: Paulinas, 2002. (Coleção Religião e Cultura).
6

A Igreja Católica e o abolicionismo – a carta apostólica


In Supremo Apostolatus Fastigio (1839) de
Gregório XVI e apontamentos sobre a
sua integração no discurso e no fazer teológicos

Fabiano Glaeser dos Santos 1


Roberto Hofmeister Pich 2

Introdução

No dia 03 de dezembro de 1839, o Papa Gregório XVI publicou a Carta


Apostólica In supremo apostolatus fastigio, através da qual proibia catego-
ricamente a escravização e o comércio de indígenas e africanos. Ao longo
do documento, o Sumo Pontífice afirma estar inserido na tradição dos seus
predecessores que repreenderam com veemência a prática da escravidão.
De fato, muitos outros pontífices antes de Gregório XVI se posicionaram
contrários à escravidão, tanto de indígenas quanto de pessoas oriundas da
África Ocidental e Subsaariana, o que na prática, em particular no tocante
à escravidão negra, causou poucos ou muito modestos efeitos – e, em re-
gra, não duradouros. Afinal, e mesmo admitindo a suposição de um nexo
positivo entre a carta apostólica de Gregório XVI e o(s) movimento(s) abo-
licionista(s) do século 19, fato é que a escravidão negra no Brasil perdurou
oficialmente até 13 de maio de 1888 (SCOTT, 1988; MAESTRI, 1988;
MAESTRI, 102002; SCHWARCZ e GOMES, 2018).

1
Doutorando em Teologia pelo programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCRS. Bolsista da CAPES. E-mail para
contato: fabiano.glaeser@gmail.com.
2
Doutor em Filosofia pela Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, Alemanha. Professor do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCRS. Bolsista de Produtividade do
CNPq, Nível 1B. Pesquisador Afiliado do “Bonn Center for Dependency and Slavery Studies” da Universidade de Bonn.
E-mails para contato: roberto.pich@pucrs.br; roberto.pich@pq.cnpq.br.
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 91

Do século 15 em diante, a relação da Igreja Católica como um todo,


incluindo as suas autoridades eclesiásticas, os seus teólogos e os seus agen-
tes de ministério, com a escravidão foi marcada por ambiguidades e até
mesmo por contradições – para a percepção disso em relação à escravidão
negra e ao tráfico de escravos transatlântico, caberia revisitar as obras de
autores como Tomás de Mercado O.P. (1525–1575), Luis de Molina S.J.
(1535–1600), Alonso de Sandoval S.J. (1576–1652), Diego de Avendaño S.J.
(1594–1688), Francisco José de Jaca O.F.M. Cap. (ca. 1645–1689) e Epifanio
de Moirans O.F.M. Cap. (1644–1689) (cf. CULLETON, 2015, p. 29-38;
CENCI, 2015, p. 75-89; PICH, 2015, p. 51-74; PICH, 2019, p. 1-24; PICH,
2020, p. 1-13; PICH 2021, p. 69-110). No tocante à autoridade eclesiástica,
houve por um lado pontífices que, através de bulas pontifícias e breves
apostólicos, fizeram condenações à escravidão e, por outro, pontífices que
foram em maior ou menor grau condescendentes com ela, de início devido
principalmente à luta contra a expansão do islamismo no espaço do Mar
Mediterrâneo e, em seguida, em reação à sua expansão nos territórios da
África Ocidental e Subsaariana que passavam a ser mais e mais conhecidos
– como o faziam reciprocamente os muçulmanos com os cristãos, seria
legítimo, em particular, escravizar adeptos do islamismo no intuito de li-
vrá-los da religião falsa e infiel (cf. as referências no parágrafo
subsequente). Se ambiguidades e contradições por parte da Igreja Católica
com respeito à legitimidade da escravidão ao longo da história, causam,
hoje, surpresa e embaraço para os cristãos – para dizer o mínimo –, uma
vez que uma comunidade de fiéis que propaga a religião do amor carita-
tivo, sacrificial e salvífico, interpretada a partir do evangelho de Jesus
Cristo, dificilmente poderia encontrar consistência na instituição natural
ou política da escravidão, cabe uma lembrança cautelar. Afinal, a própria
ética da igreja cristã primitiva, que pode ser caracterizada a partir das car-
tas apostólicas de Paulo e Pedro, por exemplo, se incondicionalmente
92 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

denunciava e combatia o ser escravo do pecado em prol da única liberdade


verdadeira, concedida pelo perdão que salva, na comunhão em fé com
Cristo, não oferecia um discurso e nem elaborava um agir explicitamente
críticos – e, diga-se, “emancipatórios” ou “abolicionistas” – contra as for-
mas sociais e políticas de escravidão das quais o cristianismo primitivo foi
contemporâneo e com as quais sempre conviveu (KÄHLER, 2000, p. 375-
376). Em boa medida, no tocante à escravidão, a ética da igreja antiga se
associou ao “postulado paulino” – no caso de Paulo, por certo sob o fundo
de expectativas escatológicas sobre a segunda vinda Cristo – de aconselhar
a permanência de cada um em seu status, afinal já então as diferenças so-
ciais ganhavam relativização a partir do mandamento do amor e do mútuo
serviço e todo real sentido de liberdade e conseguinte valor do ser humano
se encontrava, no cerne, na comunhão com Deus pela fé, tornada possível
pelo ato sacrificial salvífico de Cristo (KLEIN, 2000, p. 379-381).
Mais em específico, na esteira tanto de ambiguidades nos documen-
tos oficiais da Sé Romana quanto do movimento de combate à ampliação
de fronteiras dos domínios muçulmanos no Ocidente e na África, é impor-
tante enfatizar que diversos Papas deram apoio ao projeto de expansão
ultramarina do Reino de Portugal justamente com uma série de bulas que
ofereciam respaldo religioso ao projeto político de conquista de novos ter-
ritórios ao longo da costa africana ocidental, mesmo se isso envolvesse a
escravização dos habitantes pagãos ou infiéis que fossem encontrados. A
propósito, já foi corretamente apontado que a Bula Sicut Dudum
(13.01.1435), do Papa Eugênio IV (pontífice de 1431 a 1447), não pode ser
considerada um documento antiescravista, contendo, sim, uma condena-
ção da escravização de cristãos batizados ou de pessoas que estavam em
vias de receber o batismo cristão (PRIESCHING, 2008, p. 145-146). Na pri-
meira dessas bulas de explícito respaldo ao expansionismo português com
tolerância às escravizações, a saber, a Dum diversas, publicada em 18 de
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 93

junho de 1452, “o Papa Nicolau V [pontífice de 1447 a 1455] autorizava o


rei de Portugal [Afonso V] a atacar, conquistar e subjugar os mouros sar-
racenos, pagãos e outros inimigos de Cristo” (GOMES, 2019, p. 343) – em
si, a escravização de pessoas negras da África Ocidental para fins comerci-
ais, pelos portugueses, já se documenta a partir de 1441 (ZEUSKE, 2006),
com a dita bula, contudo, ela ganhava sanção eclesiástica. O mesmo Papa
Nicolau V, na bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, autorizava
o infante Dom Henrique a conquistar e escravizar não apenas os muçul-
manos, mas todos os pagãos encontrados entre o Marrocos e a Índia – em
um movimento, ratificado por Calixto III (pontífice entre 1455 e 1458), que
autorizava os portugueses a conquistas e à soberania política, a monopó-
lios comerciais e não por último a um “poder de jurisdição espiritual” na
África (PRIESCHING, 2008, p. 146-147). Seja como for, os Papas renascen-
tistas e pré-modernos subsequentes – que, como Nicolau V, foram
marcantemente adeptos da ideia da “plenitude de poder” papal – mostra-
ram posicionamentos diversos. Já o Papa Pio II (de inclinação humanista e
autor de vasta obra em história e cosmografia, cujo pontificado se esten-
deu de 1458 a 1464), sucessor de Nicolau V, voltou a afirmar, em 1462, em
carta dirigida ao Bispo de Rubicón (Ilhas Canárias), que a escravização e o
comércio de escravos africanos em condições como aquelas tidas em con-
sideração por Eugênio IV (PRIESCHING, 2008, p. 147), décadas antes,
eram um grave pecado e trariam, como consequência, severas penas ca-
nônicas aos seus perpetradores. O Papa Paulo III (cujo pontificado se
estendeu de 1534 a 1549) publicou o breve Veritas ipsa (02.05.1537) e a
bula Sublimis Deus (02.06.1537) 3, documentos em que proibia toda e qual-
quer escravização por suposta condição natural de inferioridade,
apresentando com isso a base decisiva para a refutação de qualquer

3
Na literatura, há divergência sobre as datas de emissão desses dois documentos, que, em si, são de conteúdo
semelhante.
94 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

esforço de legitimação da conquista dos povos aborígenes e dos territórios


americanos, a partir da ideia de que eram destituídos de alma ou defeitu-
osos de razão e, por isso mesmo, naturalmente inaptos à liberdade e ao
direito de propriedade de bens exteriores (ZAVALA, 1991). Por sua vez,
Urbano VIII (que exerceu o pontificado de 1623 a 1644), com a bula
Commissum Nobis, de 22 de abril de 1639, declarava – ou melhor, em se-
guimento aos documentos de Paulo III, “redeclarava” – a proibição da
escravização e do comércio de indígenas ou habitantes originários das Ín-
dias Ocidentais e do Sul escravizados (PRIESCHING, 2008, p. 150). É
importante ter em mente que nenhum dos documentos com conteúdo crí-
tico à escravidão acima aludidos – aos quais o documento In supremo
apostolatus de Gregório XVI faz, com efeito, referência explícita (cf. abaixo,
Subdivisão 3), ficando de fora do mesmo as bulas de Eugênio IV e Calixto
III – constitui uma condenação incondicional e estrita da escravidão: eles
se dirigem a formas específicas de escravidão e a grupos específicos de
pessoas injustamente escravizadas. É de especial significado notar tam-
bém que nenhum dos documentos papais contempla como tal a escravidão
negra como sistema de escravização e tráfico transatlântico, de suporte à
exploração econômica das Américas.
Sobre a escravidão de africanos negros no contexto do tráfico transa-
tlântico – basicamente, da costa oeste da África para as Américas, desde o
começo do século 16 (KLEIN, 1987, p. 11-57; ZEUSKE, 2006, p. 97-264;
ZEUSKE, 2015, p. 296-348; ZEUSKE, 2018, p. 79-119) –, houve, quase
desde o início, vozes críticas dentro da Igreja. Se os pensadores católicos
críticos à escravidão negra, nos séculos 16-18, não eram “abolicionistas”
em sentido estrito, segundo o posicionamento de que sempre e em todos
os lugares é errado que seres humanos sejam propriedade de outros seres
humanos e tratados como tal, houve, essencialmente, ainda que, nesses
mesmos pontos, com ambivalências, duras críticas à legitimidade do
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 95

comércio e da posse e a aspectos do tratamento (não condizente com uma


ética de servos-e-senhores cristã) dado aos escravos africanos enviados
para as e vivendo – como os seus descendentes – em regime de trabalho
forçado nas Américas (LUDOVICUS MOLINA, 1738 [1611], I, tr. 2, disp. 32-
40, p. 86-117; DIDACUS DE AVENDAÑO, 1668, tit. IX, cap. XII, § 8, nn.
180-205, p. 324-330; ALONSO DE SANDOVAL, 1987, II, iv-v, p. 243-251;
PICH; CULLETON; STORCK, 2015, p. 3-15). Além disso, em alguns poucos
casos, houve também oposição ao sistema de tráfico e propriedade como
um todo, advogando sem margem para ambiguidades em prol de seu fim
(FRANCISCO JOSÉ DE JACA, 2002; EPIFANIO DE MOIRANS, 2007). Posi-
cionamentos não ambíguos e radicalmente contrários à escravidão negra,
oriundos de ministros, missionários e pensadores católicos, em regra não
foram exaltados e divulgados e, de uma ou outra maneira (por pressão
interna da Igreja e por pressão externa das autoridades civis, e sempre por
pressão dos agentes econômicos cujos empreendimentos dependiam da
mão-de-obra escrava), foram desencorajados e silenciados (sobre a atua-
ção engajada de Francisco José de Jaca e Epifanio de Moirans contra o
comércio e a propriedade de escravos negros no Caribe, cf., por exemplo,
PENA GONZÁLEZ, 2002, p. XXVIII-XXXVI).
Por mais desconcertantes que sejam os seus caminhos, posiciona-
mentos antiescravistas no seio da Igreja Católica ganharam força somente
no século 19, com a emergência de uma firme e decidida pressão na política
internacional, capitaneada pelo governo britânico sobretudo nos anos
1830, pelo fim do comércio de escravos no Atlântico e que repercutiu no
Vaticano (cf. abaixo, Subdivisão 3) e também com a ascensão do modelo
ultramontano na estrutura hierárquica católica – com impactos nas rela-
ções com o estado secular –, caracterizado pelo firme alinhamento à
autoridade papal. Por todo o globo, os bispos ultramontanos lutaram pelo
fim da ingerência do poder civil no âmbito eclesiástico e para que as
96 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

normas emanadas pelos papas fossem integralmente aplicadas em seus


contextos ministeriais (WOLF, 2017, p. 111) – no caso a ser em seguida
estudado, também no Brasil (SANTOS, 2020, p. 44). Esse é um dos con-
textos eclesiásticos de fundo da publicação, pelo Papa Gregório XVI (cujo
pontificado se estendeu de 1831 a 1846), da Carta In supremo apostolatus 4
– em si, o primeiro documento oficial da Igreja Católica que, a uma só vez,
explicitamente condenou a escravização e o comércio de pessoas negras,
indígenas e em geral (ISA, 1839, n. 1), legitimados até então, lato sensu no
Ocidente, por razões do(s) direito(s) das gentes e positivo. A repercussão
de tal documento em países e sociedades católicas e o seu papel para o
fortalecimento de movimento(s) abolicionista(s) no século 19 e da partici-
pação de leigos e clérigos nos mesmos é um campo de estudos em aberto
(sobre a recepção do documento de Gregório XVI no pensamento de An-
tônio Vicente Ferreira Viçoso, Bispo de Mariana de 1844 a 1875, cf.
recentemente MARQUES; PEREIRA, 2020a, p. 70-74). No presente estudo,
quer-se apresentar os conteúdos da Carta Apostólica In supremo aposto-
latus e fazer breves apontamentos acerca da sua integração no discurso e
no fazer teológicos da Igreja Católica no Brasil do século 19.

1. Uma Igreja envolvida com e pela escravidão

Nada mais inequívoco sobre a desconcertante relação da Igreja Cató-


lica com a escravidão – aqui, sobretudo a escravidão negra pré-moderna e
moderna – do que a lembrança do fato de que, no primeiro leilão de escra-
vos africanos feito pelos ibéricos, que ocorreu na pequena cidade
portuguesa de Lagos, em 1444, um dos primeiros compradores foi justa-
mente o padre da cidade – que acabaria vendendo depois os escravos

4
Em referências à Carta Apostólica, será utilizada a abreviatura “ISA”. A divisão em cinco parágrafos numerados
segue a tradução encontrada in: Papa GREGÓRIO XVI, Carta Apostólica In supremo [1839], MONTFORT Associação
Cultural. http://www.montfort.org.br/bra/documentos/decretos/in_supremo/. Acesso em 11.01.2022. O texto
original em latim foi cotejado com essa e com a seguinte tradução para o inglês: Pope GREGORY XVI, In supremo
apostolatus, Papal Encyclicals Online. https://www.papalencyclicals.net/Greg16/g16sup.htm. Acesso em 10.01.2022.
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 97

adquiridos, para comprar alfaias para o altar da igreja (GOMES, 2019, p.


51).
A mão-de-obra escrava foi a base da economia no período colonial do
Brasil e também na maior parte do período de existência do Império do
Brasil (LUNA; KLEIN, 2010; TOMICH 2011). Ainda que não haja unanimi-
dade entre os historiadores acerca do número de escravos trazidos para o
país, pode-se seguir a estimativa de Laurentino Gomes, em sua recente
obra sobre a escravidão negra no Brasil, que afirma que quase 5 milhões
de africanos escravizados foram trazidos para terras brasileiras, o que
equivale a 40% do total aproximado de 12,5 milhões de traficados
(GOMES, 2019, p. 24; cf. também ALENCASTRO 2018, p. 57-63). Embora
o comércio e a posse de escravos negros no Brasil colonial não tenham sido
a primeira forma de regime escravocrata associado aos processos coloniais
extrativistas e de produção agrícola praticados no território brasileiro – na
prática, e à revelia de normas legais oficiais, a escravidão indígena conti-
nuou em pleno vigor ainda no século 17 adentro (SCHWARTZ 2018, p. 216-
222) –, em geral o discurso e a atuação da Igreja Católica frente ao sistema
escravocrata relativo aos africanos foram distintos daqueles frente à escra-
vização, aos aldeamentos ou à redução dos habitantes originários. Nesse
sentido, Vieira afirma que:

A Igreja no Brasil, no tocante aos negros escravizados, adotou uma atitude


diversa, no sentido de menos atuante, daquela que manteve em relação aos
nativos indígenas, ainda que o cativeiro dos africanos tenha tido uma existên-
cia mais longa (VIEIRA, 2016, p. 63).

Também Beozzo observa que os jesuítas não mediram esforços na


luta pela liberdade dos indígenas, que, ainda que “reduzidos”, deveriam
ser evangelizados sempre na condição de livres; no entanto, com relação
aos negros africanos, a atitude geral da Companhia de Jesus foi outra:
98 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

A premissa básica que levou os missionários jesuítas à longa luta pela liber-
dade do índio é que seu projeto missionário pecaria pela base, se junto com a
evangelização viesse a escravidão do índio pelo colono branco. Esta premissa
vai faltar à Igreja do Brasil no seu contato com o negro (BEOZZO, 2008, p.
264).

Como um todo, tanto o clero regular quanto o clero secular se aco-


modaram à existência de uma sociedade escravista constituída por
africanos traficados, ao ponto de também eles possuírem escravos – em
alguns casos, em grande quantidade. Chama a atenção que o Pe. Manuel
da Nóbrega, que estava no primeiro grupo de missionários jesuítas que
chegaram ao Brasil em 1549, juntamente com o governador-geral Tomé
de Sousa, e que fora ele mesmo o primeiro superior provincial da Compa-
nhia de Jesus no Brasil (até 1560), ainda naquele ano de chegada pediu ao
rei de Portugal “cinco escravos para plantações, cinco escravos para a
pesca” (GOMES, 2019, p. 339). Em especial a partir do século 17, os jesuítas
utilizaram amplamente escravizados africanos como serviçais e como
mão-de-obra de produção em suas propriedades (ZERON 2011).
Como indica Vieira, há fontes do período colonial que mostram que
os escravos dos religiosos eram mais bem tratados que os demais. Assim,
pois, consta de uma relação jesuítica de 1617 que os escravos dos membros
da Companhia de Jesus não fugiam para os mocambos 5, não roubavam,
não se amancebavam e não se embriagavam (VIEIRA, 2016, p. 68). Já no
século 19, o pintor e desenhista alemão Johann Moritz Rugendas (1802–
1858), que esteve em São João del Rei em 1824 – junto com a comitiva em
expedição científica ao Brasil liderada pelo Barão Georg Heinrich von
Langsdorf – e que depois viajaria por boa parte do país, deixando um

5
Isto é, habitações e pontos de refúgio dos escravos que fugiam, localizados sobretudo nas matas e menores em
dimensão que os “quilombos”, que em regra compreendiam diversos mocambos.
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 99

registro de sua experiência na obra Malerische Reise in Brasilien / Voyage


pittoresque dans le Brésil (Viagem pitoresca através do Brasil), de 1835,
teria observado que “as fazendas dos padres e dos conventos eram os lu-
gares em que se tratava melhor os escravos” (VIEIRA, 2016, p. 68). Seja
como for, no tocante ao projeto de catequese e evangelização dos escravos
trazidos ao Brasil, verificava-se de pronto uma séria lacuna, que não se
tinha se verificado nos esforços missionários relativos aos povos indíge-
nas:

Não há notícias de catecismos na língua das diferentes nações africanas que


aqui aportavam e que muitas vezes eram batizadas no ponto de desembarque,
quando não no ponto de embarque na África. Se nas cidades de Minas no sé-
culo XVIII floresceram as irmandades dos escravos, semelhantes às suas
congêneres dos brancos e dos pardos, no mundo rural, onde se concentrou a
massa da população escrava, a presença da Igreja foi sempre tênue e limitada
às desobrigas anuais (BEOZZO, 2008, p. 263).

Semelhantemente ao que ocorrera com respeito aos indígenas, os sa-


cerdotes regulares e seculares tinham a preocupação de catequizar e
evangelizar os africanos escravizados, tornando-os cristãos. Em particular,
diante da estrutura da propriedade de escravos no Brasil colonial – e, so-
bretudo, no contexto rural da propriedade escrava e da fragilidade, nesse
âmbito, da presença e da atuação de clérigos –, a preocupação pela cate-
quese e evangelização deveria ser compartilhada com os donos de
escravos. Assim, pois, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
(1707), primeiro conjunto de normas pastorais elaboradas no Brasil, fruto
do sínodo provincial convocado pelo quinto arcebispo da Bahia, Dom Se-
bastião Monteiro da Vide (1643–1722), determinavam que os senhores de
escravos tinham o dever de zelar pela instrução religiosa dos escravos e
pela recepção dos sacramentos por parte deles (CONSTITUIÇÕES
100 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1853 [1707], Título III, n. 8).


Com isso – como assim o testemunham também diversas obras de missi-
onários e padres jesuítas atuantes no Brasil e também em vice-reinos
hispânicos no continente americano (cf. ALONSO DE SANDOVAL, 1987, II,
iv-v, p. 243-251, sobre a catequese e a evangelização dos negros no Vice-
Reino de Nova Granada) –, os proprietários de escravos acabavam sendo
investidos de uma verdadeira função pastoral pela Igreja (BEOZZO, 2008,
p. 265), que eles em regra estavam efetivamente longe de poder e de que-
rer desempenhar. Não é de pouca importância indicar, ademais, uma
orientação de tarefa catequética no próprio corpo de um sermão de Antô-
nio Vieira, em que o sentido maior da condição de escravos na qual os
negros trazidos ao Brasil viviam era explanada. Ora, fundamental era mos-
trar o contraste entre o único cativeiro verdadeiro – o da alma – com o
cativeiro absolutamente menor, a saber, o do corpo somente, válido só
para essa vida; igualmente fundamental era deixar claro o presente cha-
mado à liberdade pela fé, que finalmente então, na nova terra dos
emigrados, era felizmente anunciada como boa nova aos cativos. Justa-
mente esse ensino sobre escravidão, orientava o Padre Vieira, deveria ser
explicado aos escravos pelos senhores e senhoras (ANTÔNIO VIEIRA, 1965,
Vol. V, Sermão XXVII (1633), do Rosário).

2. O ultramontanismo e o abolicionismo na Igreja Católica

A partir do final do século 18, após os eventos da Revolução Francesa,


o movimento ultramontano começou a ganhar força no universo católico-
romano, a saber, um modelo eclesial que despontava já nos séculos ante-
riores, mas que se consolidou na segunda metade do século 19. O grupo
ultramontano, a propósito, saiu inequivocamente vencedor do Concílio
Vaticano I (1869–1870) (O’MALLEY, 2018). O ultramontanismo tinha
como principais características o alinhamento estrito do clero com a cúria
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 101

romana e, em consequência disso, o combate à forma estatal da Igreja e o


favorecimento da plena liberdade da Igreja no tocante ao seu ministério e
à sua jurisdição. Bispos e padres ultramontanos, em seus locais de ativi-
dade, lutavam contra toda forma de ingerência do Estado nas questões
eclesiásticas (CONZEMIUS, 2002, p. 254). Em Portugal, em particular, vi-
gorava desde o século 15 o sistema do Padroado Régio, no qual a Igreja, na
prática, era um departamento do Estado, e os membros do clero eram fun-
cionários da coroa. O sistema do Padroado Régio perdurou no Brasil até a
proclamação da República, em 1889, mostrando claros sinais de desgaste
já a partir da segunda metade do século 19, justamente em função do au-
mento da adesão de padres e bispos ao movimento ultramontano, que
questionavam e se opunham àquele ordenamento jurídico entre Igreja e
Estado. Assim, pois, a partir de 1840, um número crescente de bispos e
padres ultramontanos atuava no Brasil, tendo sido, em sua maioria, for-
mados pelo influente Seminário Sacerdotal Saint-Sulpice de Paris –
estabelecido em 1651, por Jean-Jacques Olier – ou pelo Colégio Romano
(SANTOS, 2020, p. 69). Os clérigos ultramontanos se opuseram a um or-
denamento fundamental do Padroado Régio, que estabelecia que os bispos
de um país ou estado fossem nomeados pela autoridade política máxima –
no caso do Brasil do século 19, pós-independência, pelo imperador. Em
contrariedade ao que se poderia esperar, justamente Dom Pedro II – coro-
ado de forma precoce em 18 de julho de 1841 – escolheria para o
episcopado brasileiro padres que, mais tarde, contribuiriam para a dissi-
pação do próprio sistema do Padroado Régio. Em tese, a motivação de
fundo de Dom Pedro II era simplesmente evitar que clérigos com tendên-
cias revolucionárias – “republicanas”, no caso – chegassem ao episcopado
e fizessem uso de sua influência e jurisdição no campo político (VIEIRA,
2016, p. 225).
102 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

A Carta Apostólica In supremo apostolatus, de Gregório XVI, foi tor-


nada pública pouco mais de sete meses antes do golpe da maioridade no
Brasil, perpetrado pela Assembleia Geral em 23 de julho de 1840, fazendo
de Pedro II, aos seus 14 anos, uma pessoa maior de idade. Se In supremo
apostolatus recebeu o “placet” para publicação no Brasil, isso ainda cabe
verificar – aparentemente, o documento nunca chegou a ser publicado em
Cuba, por exemplo, outra potência escravista da América Latina de então
(PRIESCHING, 2008, p. 157). Em tese, sob o regime regalista vigente, es-
tabelecia-se que todo e qualquer documento eclesiástico só poderia ser
traduzido e publicado no Brasil com a aprovação ou o beneplácito de sua
autoridade política máxima. Para todos os efeitos, já é possível afirmar que
clérigos brasileiros ou atuantes no Brasil, notadamente o em 29.12.1840 6
ainda padre Antônio Vicente Ferreira Viçoso (VIÇOSO, 2020, p. 184-187),
já pouco depois da sua publicação, tiveram contato com a dita Carta Apos-
tólica – por caminhos que ainda não são bem conhecidos, como não são
bem conhecidos os novos rumos que o documento papal indicou e mesmo
exigiu, no tocante ao pensamento e à atuação de religiosos brasileiros nos
processos que lentamente levaram ao fim da escravidão no país. É arguí-
vel, de todo modo, que o documento In supremo apostolatus alimentou
decisivamente, em termos doutrinais, a convicção de que a escravidão feria
gravemente a mensagem do Evangelho – convicção essa que teria impacto
positivo na aceitação entre católicos fiéis da vigência de leis antiescravistas
no Brasil, como a Lei de 07 de Novembro de 1831 (“Lei Feijó” ou “Lei para
inglês ver”) e mais tarde a Lei de 04 de Setembro de 1850 (“Lei Eusébio de
Queirós”). O caminho de impacto institucional e sócio-político e também
de integração no discurso e no fazer teológicos da Carta Apostólica no

6
Data que consta ao final de seu manuscrito original, guardado no Arquivo Eclesiástico Dom Oscar de Oliveira ou
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana / MG, e que foi identificado e editado por João Paulo Rodrigues
Pereira. Cf. os dados da publicação nas Referências Bibliográficas.
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 103

catolicismo brasileiro deve ser especialmente percorrido – toma-se assim


como hipótese de trabalho – no conjunto de clérigos atuantes no Brasil
especialmente movidos pela fidelidade ao Romano Pontífice e explicita-
mente ligados ao movimento ultramontano, ao qual pertencia, por
exemplo, o Padre Viçoso, indicado em 12.01.1844, por Dom Pedro II, para
ser bispo de Mariana.

3. A carta apostólica In supremo apostolatus

Gregório XVI (1765–1846), nascido Bartolomeo Alberto Cappellari, é


em regra tido como um Papa tanto conservador – devido em especial à sua
rejeição ao catolicismo liberal e a modernismos como o regime democrá-
tico e a liberdade de consciência, como indica a Bula Mirari vos, de
15.08.1832 – quanto, como já não seria agora surpreendente, fortemente
ligado ao movimento ultramontano. A sua atuação como prefeito da Con-
gregatio de Propaganda Fide, de 1826 a 1831, revela o seu interesse na
atuação missionária da Igreja e, no mesmo passo, faz supor a sua familia-
ridade com áreas de missão como a África e a América Latina
(PRIESCHING, 2008, p. 156-157). É visível que a sua preocupação pastoral-
evangélica e missionária com as comunidades católicas o impulsionam à
emissão da Bula de 1839, mas há, no tocante à mesma, um fundo político
que precisa ser ressaltado. Foi da Grã-Bretanha que partiram políticas in-
ternacionais de abolição do tráfico transatlântico de escravos no século 19
e também daquele reino não católico-romano o pedido explícito, por seu
secretário de relações exteriores (Lord Palmerston), com a mediação do
cônsul britânico Thomas Aubin, sediado em Florença, por uma declaração
do Pontífice Romano, por razões humanitárias, em prol da sua causa
(PRIESCHING, 2008, p. 156). Gregório XVI de fato reagiu à altura. A Carta
Apostólica In supremo apostolatus é um documento curto em extensão e
deveras denso em conteúdo, também porque pressupõe muitos outros
104 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

documentos papais e sintetiza ideias teológicas importantes. Já de início,


(i) 7 Gregório XVI afirma que faz parte da sua “solicitude pastoral” o esforço
de afastar os cristãos fiéis “do desumano tráfico escravo de negros e todos
os outros homens” (ISA, n. 1). A afirmação é particularmente importante,
porque ela oferece a moldura conceitual ao documento como um todo, a
saber, que, face ao Evangelho, o comércio de escravos é desumano, e, ao
mesmo tempo, é o comércio de escravos a pauta prioritária da Carta.
Como se pode depreender da totalidade do parágrafo seguinte de In
supremo apostolatus, Gregório XVI, tendo os escravizados da Antiguidade
ou, mais exatamente, do período da igreja primitiva e da igreja antiga em
vista, afirma que (ii) o Evangelho de algum modo, uma vez tornado co-
nhecido, trouxe, entre ou junto aos cristãos, algum alívio àqueles
numerosos “míseros”. A propósito, (iii) razão precípua de se encontrarem
então pessoas na condição de escravidão foram as guerras (ISA, n. 2). Gre-
gório XVI aponta que, em um primeiro momento, (iv) os apóstolos não se
preocuparam com o fim da escravidão, mas antes em como os senhores
deveriam tratar humana e justamente os seus escravos e como esses últi-
mos deveriam preservar, “segundo a carne”, a obediência àqueles. Base
para esse vínculo de obediência-e-comando e ao mesmo tempo de mútuo
serviço de benefício é o princípio teológico de que senhores e servos têm
“um Mestre [Senhor] comum” e diante dele todos são iguais em condição
(ISA, n. 2). É explícito, nesse ponto, que Gregório XVI explora a teologia
de cartas apostólicas de Paulo – as seguintes passagens são citadas: Ef 6.5-
9; Cl 3,22-35; Cl 4.1 – para formular as notas essenciais das relações hu-
manas para os cristãos, que condicionam sobretudo entre cristãos –
precipuamente nos domicílios e nas grandes famílias e, de forma derivada,

7
Os pontos a seguir, a saber, “(i), (ii), (iii)..., etc.”, não são divisões da In supremo apostolatus, mas dos autores deste
estudo. Eles pretendem ser auxílios de leitura e interpretação da Carta Apostólica e indicam ênfases ou marcas
daquilo que é entendido como central no texto, segundo os autores.
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 105

nas comunidades e nas sociedades cristãs – a instituição da escravidão


como relação senhor-e-servo. É importante perceber que Gregório XVI
não quer confinar a instrução cristã acerca do tratamento de escravos para
os lares e as sociedades cristãs ou, em síntese, para vínculos entre cristãos.
Nesse sentido, afirma que (v) a “lei evangélica” é “uma sincera caridade
para com todos” – o “próximo” para quem se age em caridade, tal como
ao próprio Cristo, é todo e qualquer necessitado conforme o texto de Mt
25.35-40 (ISA, n. 2). A obediência a essa lei explica (vi) a tradição da igreja
antiga de orientar os seus fiéis a libertar escravos por merecimento, o que
ocorria, segundo Gregório de Nissa, por costume nas “solenidades pas-
cais”. É também em função da orientação da lei evangélica, que condiciona
a vida da Igreja, (vii) que cristãos fervorosos aceitaram tornar-se escravos
para, em substituição, libertar outros escravizados – testemunho esse que
Gregório XVI retira da mui antiga Epístola [de Clemente] aos Coríntios ou
Primeira Epístola de Clemente (POWELL, 1981, p. 113-118) de outro Papa,
a saber, Clemente I, cujo pontificado teria se estendido do ano 88 até o ano
97 d.C. (ISA, n. 2).
Uma percepção importante do papel da religião cristã na formação
de pensamento e de atitude sobre a escravidão aparece na última parte do
parágrafo 2 de In supremo apostolatus, que tem como escopo a visão teo-
lógica geral dos apóstolos (da igreja primitiva) e da igreja antiga sobre a
escravidão. Gregório XVI claramente entende (viii) que a lei evangélica da
caridade, que em tese comanda e coordena todas as ações da Igreja Cristã,
no decorrer do tempo e na expansão de sua influência no mundo por in-
termédio daquela mesma Igreja, fez dissipar “o nevoeiro de bárbaras [ou:
pagãs] superstições” e “mitigou os costumes dos povos bárbaros [ou: sel-
vagens]” (ISA, n. 2). Implícito está nessa afirmação, assim pode-se
interpretar, que a lei evangélica, inserida ou determinada no mundo a par-
tir da instituição da comunidade cristã, é um elemento estimulador de
106 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

processos históricos de civilização e humanização. É a título de conse-


quência, e mesmo evidência desse papel histórico da ética cristã, (ix) que
se pode dizer que, finalmente, “há vários séculos” ter-se-ia chegado a uma
forma de sociedade em que “não mais existiam escravos em meio ao
grande número de povos cristãos [ou: nações cristãs]” (ISA, n. 2). Há de-
masia nessa última estimativa positiva de Gregório XVI; seja como for, ao
que tudo indica ele tem em vista o mundo cristão existente até aproxima-
damente o fim do século 15 ou, para todos os efeitos, a disposição daquele
mundo antes dos movimentos de descoberta e expansão ultramarinas dis-
parados por Portugal e Espanha. Sem precisar datas, pode-se supor (x)
que a “profunda dor” que o Pontífice Romano expressa diante dos eventos
que então se deram entre cristãos, por causa da “cobiça de sórdido ganho”,
“em isoladas e inacessíveis regiões” (ISA, n. 2) – da costa ocidental da
África? Do continente americano? –, é também o lamento pela interrupção
de um progresso histórico e, então, pela regressão a um estado que se de-
sejava superado desde o cristianismo. Os fatos em apreço são, de forma
geral, (xi) as renovadas escravizações “de indígenas, negros e outros mí-
seros” povos (ISA, n. 2). Se a condenação do comércio de escravos é a
moldura da Carta Apostólica In supremo apostolatus, ela contém não só
um lamento pela reintrodução de escravizações motivadas por cobiça
torpe, mas por óbvio também uma condenação daquelas; afinal, tais es-
cravizações (xii) são a pressuposição do tráfico instituído – o comércio
transatlântico? –, que vem a favorecer/promover as escravizações (ISA, n.
2).
No próximo parágrafo de In supremo apostolatus, Gregório XVI faz
referência a documentos pontifícios anteriores que trouxeram condena-
ções a escravizações e ao comércio de escravos indígenas e africanos. A
escolha é conscientemente seletiva e parece ter em vista, em particular, a
tangência entre escravização, colonização da América e tráfico
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 107

transatlântico de escravos da África para o Novo Mundo (para uma visão


geral de posicionamentos dos Papas, de forma documental, sobre a escra-
vidão, do século 15 ao século 19, cf. PRIESCHING, 2008, p. 145-155;
ADIELE, 2017). Todos os documentos aludidos são do século 15 em diante,
estendendo-se do pontificado de Pio II (cf. acima, na Introdução) ao pon-
tificado de Pio VII (de março de 1800 a agosto de 1823). Gregório XVI (xiii)
venera e elogia as contribuições pontifícias anteriores para a condenação
da atitude ou do “comportamento” dos cristãos que reintroduziram escra-
vizações e desenvolveram o comércio de escravos. Afirma (xiv) que tais
agentes comprometem a sua “salvação espiritual”, envergonham “o nome
cristão” e promovem junto aos “povos infiéis” o ódio à religião cristã, a
saber, a religião “verdadeira” (ISA, n. 3) – nesse último ponto, é evidente
que Gregório XVI destaca o malefício que a escravidão causa à missão de
evangelização dos povos, pela Igreja Católica. Para esse último parecer (xv)
são invocadas, com respeito aos ameríndios, a Sublimis Deus de Paulo III
e a Commissum Nobis de Urbano VIII (cf. acima, na “Introdução”), cujo
escopo de condenação é destacado: condenou-se a escravização, o comér-
cio e o tratamento dos indígenas como propriedade em todos os aspectos
possíveis, por parte de atores diretos e indiretos, bem como a manutenção,
nesse status, de indígenas uma vez escravizados. Em uma renovada ine-
quívoca condenação da escravização e do comércio de escravos indígenas,
apela-se, no documento de 1839, a um terceiro Papa, a saber, Bento XIV
(pontífice de 1740 a 1758), que emitiu em 20 de dezembro de 17418 a Carta
Apostólica Immensa Pastorum principis – e enviou um breve apostólico –
para o episcopado brasileiro e de outros lugares (ISA, n. 3; cf. ADIELE,
2017, p. 377-378, 532-534). Ao que parece, o contexto de fundo da Bula de
Bento XIV, de pouco efeito prático ao final, era o propósito de defender as

8
A Carta Apostólica de Gregório XVI, de 03.12.1839, interrompeu um longo silêncio, pela Sé Romana, sobre o tema
da escravidão, que durava, pois, desde a Carta Apostólica de Bento XIV, de 20.12.1741.
108 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

missões dos jesuítas no Paraguai junto aos guaranis (PRIESCHING, 2008,


p. 153-154). No mesmo parágrafo, (xvi) Gregório XVI destaca ainda dois
Papas que emitiram pareceres de condenação à escravização e ao conse-
quente comércio de escravos negros da costa atlântico-ocidental da África,
a saber, o já citado Pio II e também Pio VII. No caso de Pio VII, a condena-
ção veemente ao tráfico de escravos negros (ISA, n. 3) não está registrada
em Bulas, mas antes no gesto político da Sé Romana de adesão ao Con-
gresso de Viena de 1815, que, em declaração conjunta das potências
europeias, proibia o tráfico de escravos no Hemisfério Norte, a ainda na
comunicação epistolar dirigida às coroas da França e de Portugal.
É no parágrafo 4 de In supremo apostolatus que Gregório XVI se volta
ao seu próprio tempo e especifica para os fiéis católicos os conteúdos de
condenação e instrução de sua Carta. (xvii) Se através dos documentos de
seus predecessores a Igreja Católica tinha procurado frear a “crueldade dos
invasores” e a “cupidez dos mercadores cristãos” com respeito aos indíge-
nas e aos negros, o ainda existente e frequente tráfico de negros praticado
pelos cristãos católicos – é sobre eles, afinal, que o Papa tem jurisdição
espiritual – motivou um novo esforço para remover tal mácula “das nações
cristãs”. (xviii) Isso ganha, então, a forma de condenação e proibição, das
quais todos os católicos – clérigos e leigos – devem saber e as quais todos
estão obrigados a observar:

[...], admoestamos e esconjuramos energicamente no Senhor todos os fiéis


cristãos de qualquer condição que, doravante, ninguém ouse [injustamente]
fazer violência, desapropriar de seus bens ou reduzir seja quem for à condição
de escravo, ou prestar ajuda ou favorecer àqueles que cometem tal delito ou
querem exercitar o indigno comércio por meio do qual os negros são reduzidos
a escravos – como se não fossem seres humanos, mas pura e simplesmente
animais, sem nenhuma distinção, contra todos os direitos de justiça e huma-
nidade –, são comprados, vendidos e constrangidos a trabalhos duríssimos.
Ademais, quem propõe esperança de ganho aos primeiros traficantes de
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 109

negros provoca também revoltas e contínuas guerras nas suas regiões (ISA, n.
4).

Em síntese, a partir desse documento (xix) está condenada e proibida


para os cristãos qualquer forma de escravização de qualquer pessoa – qual-
quer ato de escravizar qualquer pessoa –; ademais, (xx) está condenado o
comércio de escravos, que é alimentado pela escravização e alimenta de
novo a escravização, e que em si põe o escravizado em uma condição de
vida desumana (sobretudo o trabalho desumano). Nos dois últimos casos,
as ações indignas respectivas são condenadas se feitas direta ou indireta-
mente. No parágrafo em destaque de In supremo apostolatus, apesar do
tom geral da condenação, (xxi) são as pessoas negras como vítimas de tais
crimes que são mencionadas: a mensagem é precipuamente para elas
(para fazer-lhes justiça) e para os seus algozes (para pará-los e condenar
as suas ações). (xxii) Pode-se interpretar a Carta de tal maneira que os
motivos pelos quais as práticas mencionadas são condenadas e proibidas
são essencialmente dois: elas são completamente desumanas e também
completamente injustas ou lesivas ao direito. Nessa condição, pode-se
acrescentar, aquelas práticas estão em estrita oposição à lei evangélica da
caridade, anteriormente referida (ISA, n. 2), e de tudo o que dela se deriva.
(xxiii) Repete-se, ao final, o tema do vínculo entre o mal da escravidão e o
mal das guerras. Se já no parágrafo 2, focado no período da igreja primi-
tiva, as guerras apareciam como as grandes geradoras de escravos,
novamente no parágrafo 4: se o comércio de escravos se alimenta das es-
cravizações e retroalimenta as escravizações, as escravizações se
alimentam das guerras e retroalimentam as guerras – no caso, entre as
nações do continente africano.
Se a expectativa, pela autoridade do Pontífice Romano, de que os con-
teúdos da Carta Apostólica sejam adotados e seguidos pode ser em si óbvia,
110 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

não deve passar despercebido que In supremo apostolatus termina com


palavras enfáticas sobre o uso da autoridade papal para a condenação de
escravizações e tráfico de negros e sobre o uso da mesma para “vetar” que
qualquer clérigo ou leigo católico defenda a licitude da opinião contrária e
ensine algo contrário às determinações que a Carta contém (ISA, n. 4). De
resto, Gregório XVI finaliza com a relação de pequenas medidas para que
a sua Carta venha a ser, sem dificuldades, de conhecimento de todos os
cristãos (ISA, n. 5).
Tem-se, sem dúvida, em In supremo apostolatus, uma condenação
oficial e de plena autoridade, pela Igreja Católica, do conjunto escravização
e comércio (transatlântico) de escravos africanos: isso doravante não po-
deria mais ser praticado, estava doravante condenado e proibido aos
cristãos. Essa interpretação foi apresentada por Nicole Priesching como
“interpretação estreita” (“enge Auslegung”) da proposta da Carta Apostó-
lica, em distinção a uma “interpretação ampla” (“weite Auslegung”;
PRIESCHING, 2008, p. 144), segundo a qual especialmente o conteúdo do
parágrafo 4 poderia ser interpretado como condenação da escravidão em
si, uma vez que o “fazer violência” e o “desapropriar bens” de alguém po-
deriam, de fato, referir-se a todos os então injusta e desumanamente
escravizados que existissem. A primeira interpretação favoreceria o enten-
dimento do propósito do documento como parcialmente antiescravista, ao
passo que a segunda favoreceria o entendimento do documento como am-
plamente antiescravista – e elas, em graus correspondentes, poderiam ser
associadas a defesas de abolições da escravatura menos amplas ou mais
amplas. Novamente em seguimento à explanação de Nicole Priesching
(PRIESCHING, 2008, p. 154), se a “interpretação ampla” é correta – se-
gundo a qual toda escravidão existente de indígenas e negros deveria
acabar, e qualquer continuidade dela seria condenável –, a Carta Apostó-
lica conteria duas novidades na comparação com todos os documentos
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 111

papais anteriores sobre a escravidão: (a) ela abordaria em um mesmo do-


cumento a escravidão dos indígenas e dos negros 9 e (b) ela condenaria
toda forma de escravização e comércio de escravos, e não um aspecto ou
outro dessas condições. Seja como for, cabe uma nota de acurácia concei-
tual: o uso da expressão “interpretação ampla”, bem como a alusão
implícita às noções, dos autores, de “antiescravismo amplo”, “abolicio-
nismo amplo”, etc., não devem lançar sombra à percepção de que Gregório
XVI não faz uma defesa do que poderia ser chamado de “abolicionismo
estrito”. Assume-se que, segundo esse, sempre e em todos os lugares é
moralmente condenável que seres humanos sejam propriedades de outros
seres humanos – ou, em outras palavras, que entes pessoais (racionais,
volitivos e, é claro, conscientes) sejam destituídos, em uma medida tão sig-
nificativa que o perdem ou mesmo cedem para outros, do bem precioso da
liberdade exterior como posse do próprio corpo e do seu uso conforme o
desejo ou a intenção. Sob essa definição, em sentido estrito “abolicio-
nismo” significa puro e simples “antiescravismo”. Antes, o antiescravismo
ou o abolicionismo que In supremo apostolatus claramente representa é a
condenação de toda e qualquer forma desumana e injusta de escravidão,
sem asseverar que não existe forma possível de humana e justa escravidão.

Considerações finais

Cabe destacar que, por mais impactante e prescritivo que seja, o texto
de In supremo apostolatus deixa o leitor diante de uma ambiguidade de
importância não pequena – a saber, se afinal é orientação ou ao menos
permissão normativa sua a manutenção da condição de escravos na qual
milhões de indivíduos já se encontravam ou se esse não é o caso. Justa-
mente esse flanco aberto para interpretações pertence à história da

9
Evidentemente, essa novidade é contemplada também pela “interpretação estreita”.
112 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

recepção de In supremo apostolatus no catolicismo brasileiro, de 03 de de-


zembro de 1839 em diante (sobre a recepção da Carta entre católicos e
protestantes nos Estados Unidos da América, cf. QUINN, 2004, p. 67-93;
PRIESCHING, 2008, p. 157-160). Qual o discurso e o fazer teológicos que
a Carta Apostólica de Gregório XVI gerou ou ajudou a moldar no contexto
do Brasil imperial, isso de novo tanto faz parte da história de sua interpre-
tação quanto da descrição do potencial histórico de suas teses, e nisso do
potencial da instituição Igreja Católica, no Brasil como um todo, de fomen-
tar convicções e ações que levaram à adesão às leis antiescravistas e ao
movimento abolicionista no país. É pertinente pensar que, como orienta-
ção inequívoca à atitude moral dos cristãos e à sua ação social, em sentido
lato, a Bula de 1839 por certo ajudou a dar forma à relação da Igreja Cató-
lica com o movimento abolicionista – entendido como plural em suas
motivações, mas uno em sua finalidade, a saber, a supressão de toda forma
até então vigente e também futura de escravidão e comércio de escravos.
Há evidências de que, entre membros ultramontanos do clero, as ori-
entações da Carta Apostólica tiveram como repercussão a criação de
círculos abolicionistas, fomentados por eclesiásticos – sobretudo bispos –
católicos, bem como a criação de literatura ou mídia impressa antiescra-
vista, como, por exemplo, o jornal Selecta Catholica, que circulou de 1846
a 1847, editado por Dom Antônio Vicente Ferreira Viçoso e pelo Padre José
Antônio dos Santos (MARQUES; PEREIRA, 2020b, p. 34-35) – o Padre José
Antônio dos Santos, a propósito, seria consagrado o primeiro bispo de Di-
amantina, em 1864, onde articulou um “discurso emancipador” e
fomentou o abolicionismo (OLIVEIRA, 2011, p. 71-100). Sem dúvida, os
exemplos ora mencionados de si já sugerem pôr em suspenso qualquer
parecer apressado ou em princípio e unilateral, segundo o qual a Igreja
Católica no Brasil – tanto no período colonial quanto no período imperial
– simplesmente chancelou o sistema escravista e apenas procurou mitigar
Fabiano Glaeser dos Santos; Roberto Hofmeister Pich | 113

os seus efeitos desumanos e cruéis. Em realidade, já no período colonial e


claramente no século do Brasil imperial, entre autoridades eclesiásticas,
teólogos e agentes ministeriais não havia consenso e parecer unânime so-
bre teses e políticas relativas à escravidão negra. Nesse sentido, como foi
apontado acima (cf. a Subdivisão 3), a Carta In supremo apostolatus
trouxe à comunidade católica uma orientação suficientemente unificadora
acerca da escravidão negra. Vozes antiescravistas após e na base da publi-
cação de In supremo apostolatus se fizeram ouvir no clero brasileiro, mas
foram apenas algumas vozes entre muitas, de teor diverso: no clero oito-
centista, antes e depois de 03.12.1839, houve número significativo de
defensores da continuidade da sociedade escravocrata, e mesmo a posição
abolicionista de religiosos católicos não deixava escapar ambiguidades, he-
sitações e acanhamentos. De que maneira eclesiásticos e também leigos
católicos tiveram acesso, no Brasil, ao conteúdo de In supremo apostola-
tus, manifestando reações e coordenando ações, em quais direções forem,
disso ainda se possui apenas precário conhecimento. Os poucos indícios,
entretanto, já trazem expectativas importantes para a continuidade da
pesquisa.

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7

Ecologia integral como referência


educativo-pastoral a partir da Laudato Si’

Luiz Carlos Selbach 1


Tiago de Fraga Gomes 2

Questões introdutórias

A partir 2013, quando eleito Pontífice, Jorge Mário Bergoglio revestiu-


se de uma expressão extremamente potente ao assumir o nome de “Fran-
cisco”. Desde então, com profunda assertividade e autoridade de quem fala
e faz, tem pontuado grandes desafios para a humanidade contemporânea.
De tal forma que, tanto a sua história de vida, quanto o contexto eclesioló-
gico de seu pontificado, impulsionam abordagens contundentes e
proféticas frente à diversas pautas. Num contexto marcado por sequen-
ciais catástrofes ecológicas e sociais, e de muitas crises humanas, incluindo
a epidemia da Covid-19 que expõe a fragilidade com que cuidamos coleti-
vamente dos irmãos e irmãs empobrecidos, emerge a voz de uma
importante liderança mundial, afirmando que é possível repensar cami-
nhos para a humanidade, e renovar a maneira como conduzir as questões
da Igreja diante de um compromisso com o complexo tecido social.
Perpassa o pensamento e as atividades pastorais de Francisco, a clara
intenção de revolucionar o modo de ser e viver, não somente dos católicos,
mas com diálogo e fraternidade, de toda a humanidade, a fim de repensar
o futuro compartilhado por todos os membros da mesma Casa Comum.

1
Mestrando em Teologia pela PUCRS. Supervisor de Pastoral na Rede de Colégios e Unidades Sociais da Rede Marista.
E-mail: luiz.selbach@maristas.org.br
2
Doutor em Teologia pela PUCRS com estágio pela Ruhr-Universität Bochum, Alemanha. Pós-Doutorando pela
PUCRio. Professor do PPG em Teologia da PUCRS. E-mail: tiago.gomes@pucrs.br
120 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Tendo em vista isso, percebe-se como algo relevante, a nível pastoral, e


também social, colocar no centro da discussão a pessoa do Papa Francisco
com sua pedagogia, e sobretudo, com seu compromisso por uma ecologia
integral, que é referência tanto a nível educativo, quanto a nível pastoral.
Partindo de algumas reflexões a respeito de uma ecologia integral,
emergentes do pontificado do Papa Francisco, a presente pesquisa pre-
tende, através de revisão bibliográfica, identificar aspectos pedagógicos e
pastorais que impulsionem uma nova forma de educar e de evangelizar.
Para isso, têm-se em vista que, nos últimos anos, presenciou-se uma mu-
dança radical na história da Igreja a partir da presença de Bergoglio, que,
para além de seu compromisso de zelar e guiar os católicos no contexto
global, situa-se como uma nova bússola para a sociedade hodierna, denun-
ciando aspectos em que a vida é ameaçada e, apontando caminhos para a
salvação da humanidade e do planeta.
Olhar para as narrativas de vida, presentes em obras biográficas, traz
elementos importantes, os quais fazem emergir uma espécie de chave de
leitura para compreender traços de atuação e formas como as pessoas vão
colocando em práticas seus projetos de vida. Avelar (2012) reforça o
quanto as nuances presentes na possibilidade da escrita biográfica se con-
figuram como uma modalidade da escrita da história. Pois, como será
descrito ao longo do texto, a própria história da Igreja e do mundo está
permeada pela história do papa com todos os aspectos de suas intenciona-
lidades biografadas. Para Dosse, “a biografia retornou como objeto da
história erudita, refletindo sobre a ação humana dotada de sentido” (2012,
p. 140).
A presente pesquisa, tomando como ponto de partida o conclave, en-
quanto evento onde se anuncia Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de
Buenos Aires, como o novo papa, seguirá elaborando uma breve passagem
pelos nove anos de seu pontificado, tomando como pauta a perspectiva
Luiz Carlos Selbach; Tiago de Fraga Gomes | 121

educativa e pastoral, especialmente no que tange ao Pacto Educativo Glo-


bal, para, por fim, propor uma reflexão sobre possíveis chaves de leitura
que possam resignificar a Pastoral Escolar à luz do pensamento e das ações
do Papa Francisco. Entre tantos inéditos que Francisco nos presenteia, está
a ecologia integral, que inspira a busca de uma atualização teológica, mís-
tica e prática.

1 Pastor sensível à necessidade de mudança

Naquele 13 de março de 2013, quando o mundo acompanhou a fu-


maça branca saindo pela chaminé da Capela Sistina e o tão esperado
anúncio do Habemus Papam, era momento de acolher o Cardeal Jorge Ma-
rio Bergoglio como o 266º papa da Igreja católica, com sua simpatia, sua
formação, suas esperanças, sua história e uma série de ineditismos que o
circundam. Um papa que primeireia – neologismo criado pelo Papa Fran-
cisco. É o primeiro jesuíta eleito papa. O primeiro papa não europeu em
mais de 1.200 anos – o último exterior ao continente foi Gregório III, Sírio,
no período de 731 a 741. O primeiro na história da Igreja que assume após
renúncia, por idade avançada, de seu antecessor (TORNIELI, 2013, p. 24).
O primeiro a escolher o nome “Francisco”, e ao assumi-lo, demarca a in-
tencionalidade de seu pontificado. A biografia oficial do Vaticano, na época
da eleição pontifícia, refere-se que “o primeiro papa americano é o jesuíta
argentino Jorge Mario Bergoglio, 76 anos, arcebispo de Buenos Aires”. É
profundamente simbólica a afirmação que refere a Jorge como “uma figura
de destaque no continente inteiro e um pastor simples e muito amado na
sua diocese” (A SANTA SÉ, 2013).
Nascido em 17 de dezembro de 1936, filho mais velho Mário e Regina.
Sua mãe, argentina. Seu pai, imigrante italiano recém-chegado na Argen-
tina (1929), fugido do fascismo. Mário, que era ferroviário, e Regina,
doméstica, tiveram ainda outros cinco filhos – Alberto Horácio, Oscar
122 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Adrián, Marta Regina e Maria Helena. Fez um curso técnico profissionali-


zante em química e, em 1958, aos 21 anos, foi acometido de uma grave
doença pulmonar que quase o levou à morte. Logo depois, restabelecido
de sua saúde, aos 22 anos, ingressou no noviciado da Cia. de Jesus. Em
1963 estudou Humanidades, no Chile. Nos anos de 1964 a 1966 foi profes-
sor de literatura e psicologia na escola Santa Fé, em Buenos Aires. Em 1969
foi ordenado presbítero. De 1967 até 1970 foi professor de Teologia, e logo
mais em 1980, assumiu como Reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia.
Foi nomeado e ordenado bispo de Auca em 1992, nomeado arcebispo de
Buenos Aires em 1998 e cardeal em 2001.
A formação seminarística de Bergoglio junto aos jesuítas coincide
com um período político turbulento na América Latina. Sob a perspectiva
da formação eclesial e teológica, é crucial considerar que Bergoglio – se-
minarista, padre, bispo, arcebispo e cardeal – estuda e cresce sob os
reflexos imediatos do Concílio Vaticano II, cercado da Teologia Latino-
americana, que por sua vez é marcada pela Teologia da Libertação. Sua
formação acadêmica em teologia, que compreende efetivamente os anos
de 1970 a 1986, repercute este marco temporal na história da Igreja e, cer-
tamente desdobra-se em elementos importantes para pensar sua ação
pastoral. Sua formação intelectual – forjada entre a vida religiosa e acadê-
mica e a permanente ação pastoral – inclui, também, estudos de doutorado
em teologia em Freiburg, na Alemanha.
Na gênese – mística, poética e profética – da escolha do nome para o
exercício de seu pontificado, como afirma Leonardo Boff, o nome “Fran-
cisco” reveste-se de um impulso espiritual e político que resgata, ao menos,
três elementos da vida de São Francisco de Assis: a) a crise eclesiástica; b)
a opção pelos pobres e a radicalidade do Evangelho; c) a relação com a Mãe
terra; sob o compromisso de a partir de cada um deles – cada um a seu
tempo – restaurar a Igreja de Cristo (BOFF, 2014, p. 50-53), com coragem
Luiz Carlos Selbach; Tiago de Fraga Gomes | 123

e ternura. Bergoglio põe-se, assim, a caminho de uma Ecclesiam semper


reformanda.

2 Compromisso com a evangelização e com a educação

Os bastidores da vida de Bergoglio trazem à tona um pequeno ma-


nuscrito, usado por ele nas celebrações, nas congregações gerais –
inclusive em reuniões de cardeais antes do conclave –; trechos deste, des-
tacam algumas ideias que, logo em seguida, Francisco apontaria em sua
exortação apostólica Evangelii Gaudium, tais como: “a Igreja está chamada
a sair de si mesma e ir às periferias geográficas, mas também às periferias
existenciais” (1§); “quando a Igreja não sai de si mesma para evangelizar,
torna-se autorreferencial e então adoece” (2§); no terceiro item de sua
anotação, registrou que a Igreja evangelizadora que sai de si “deve ilumi-
nar as possíveis mudanças e reformas que tenha a fazer para a salvação
das almas”. No último item do seu manuscrito indica aos seus pares “pen-
sando no próximo papa: um homem que a partir da contemplação e
adoração à Jesus Cristo, ajude a sair de si rumo às periferias existenciais”.
Todo o discurso, bem como o manuscrito, foi divulgado pelo Arcebispo de
Havana, Cardeal Jaime Ortega, dias após o Conclave, e publicados na re-
vista Palavra Nueva, com a devida autorização do pontífice (ACIDIGITAL,
2017).
Desde lá até o presente momento, podemos tomar suas três encíclicas
como ponto de partida de um caminho metodológico e, sobretudo, de um
horizonte de eclesialidade que Francisco tem legado. Partindo disso, com
um olhar sensível e amoroso para o contexto eclesial atual, Francisco con-
vida a repensar a Igreja a partir de uma vida alegre, no Evangelho, a partir
de novas relações interpessoais e com o planeta, nossa casa comum. Fran-
cisco se configura, assim, como um papa que “veio de baixo” e que provoca
a olhar, a partir desse lugar, para todos os lados. Com sua experiência de
124 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

pastor, tem a possibilidade de transformar a Cúria romana, descentralizar


a administração e conferir um rosto diferente e crível à Igreja, como um
todo, relevando os apelos do mundo atual. Essa é a grande esperança de
todos os que acompanham o caminho da Igreja. Têm-se a esperança de
que de fato isso aconteça, pois Francisco de Assis é o grande patrono e a
referência inspiradora de seu pontificado, figura essa que é marcante e
decisiva para a superação de muitos tabus morais e espirituais (BOFF,
2014, p. 53).
Francisco, por não ser eurocêntrico, nem eclesiocêntrico ou vaticano-
cêntrico, se coloca com originalidade no compromisso franciscano com os
mais pobres e com a ecologia. Para dar forma às suas escolhas eclesiológi-
cas e operar a fidelidade da Igreja à missão do Evangelho, Francisco
cunhou o neologismo periferia existencial, ampliando o conceito de po-
breza e convidando toda a humanidade a olhar para onde há sofrimento,
solidão e degradação da vida. Esses novos critérios, apontam para outra
ideia – força expressiva de seu pontificado –, na direção de uma Igreja em
saída, a qual, por sua vez, leva a novos cenários de evangelização, tais
como as escolas e as universidades, a economia, as relações com a casa
comum e a questão dos ambientes digitais que foram exponencialmente
percebidos pela Igreja especialmente durante a pandemia da Covid-19.
Chama a atenção em Francisco que ele, de modo recorrente, sempre
convida a considerar os contextos de dor, sofrimento ou degradação da
vida, e a pensar na educação das futuras gerações como um caminho de
restauração humana e social. Infere-se, assim, muito além de uma asser-
tividade específica e simplista, uma visão orgânica e integral do tecido
social desde a perspectiva de uma educação integral: humana, cristã, eco-
lógica. Já na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium a expressão
educação aparece sete vezes, revelando a importância do tema para o Pon-
tífice. Assim afirma Francisco:
Luiz Carlos Selbach; Tiago de Fraga Gomes | 125

As tensões e os conflitos minam o tecido social, destruíram famílias e sobre-


tudo o futuro de milhares de jovens. O caminho mais eficaz para contrastar a
mentalidade de prepotência e as desigualdades, bem como as divisões sociais,
é investir no campo de uma educação, que ensine os jovens a pensar critica-
mente e ofereça um caminho de amadurecimento nos valores (EG 64).

Na Evangelii Gaudium, Francisco condena uma educação subservi-


ente à lógica econômica do consumismo que, por sua vez, aprofunda as
desigualdades sociais. Nesse sentido, um dos grandes desafios educativos
é o de reinventar processos que favoreçam a compreensão de uma huma-
nidade que precisa com celeridade de um “projeto comum que vai além
dos benefícios e desejos pessoais” (EG 60). Na encíclica Laudato Si’, a pri-
meira no Magistério da Igreja que pauta explicitamente a temática
ecológica, a educação ganha destaque ainda maior. Encontra-se aí o termo
dez vezes. De modo simples e direto, Francisco aponta que:

A educação será ineficaz e os seus esforços estéreis, se não se preocupar tam-


bém por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade
e à relação com a natureza. Caso contrário, continuará a perdurar o modelo
consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos me-
canismos eficazes do mercado (LS 15).

Na Laudato Si’ é apresentada uma cosmovisão sistêmica da ecologia


integral que pressupõe a integração entre os sistemas sociais, políticos,
ambientais, religiosos e educativos, como um paradigma que não dissocia
os sistemas naturais dos sistemas sociais, mas os situa na compreensão de
um mundo integrado e plural. A encíclica Fratelli Tutti, finalizada em pe-
ríodo de pandemia, continua essa discussão denunciando a íntima relação
entre o desenvolvimento da fraternidade e a vida digna com acesso à edu-
cação para todos (FT 109). Faz referência sobre o papel da Igreja em
126 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

relação à educação, indicando que a Igreja tem um papel público na pro-


moção do ser humano e da fraternidade universal.
No âmago dos textos Evangelii Gaudium, Laudato Si’ e Fratelli Tutti
percebe-se um Francisco que aponta novos elementos que precisam estar
presentes e atuantes nos processos educativos, não apenas como conte-
údo, mas como premissas, metodologia e espiritualidade, a fim de educar
as futuras gerações para uma esperança viva que mova ao espírito cristão,
ao humanismo fraterno e solidário e a uma ecologia integral como sacra-
mento e meio de salvação da pessoa humana e do planeta, nossa casa
comum.

3 Ecologia integral como referencial educativo

Ao se realizar uma busca simples nos discursos oficiais do pontífice,


do início do seu pontificado, em 2013, até 30 de novembro de 2021, no
portal do Vaticano, é possível localizar as expressões pastoral ou pastora-
lidade, 780 vezes. Já as expressões educar ou educação possuem 578
incidências. A recorrência das expressões são contundentes manifestações
de que o horizonte de compromisso do Papa Francisco com a educação
leva, sobretudo, educadores e pastoralistas a assumir uma atitude de es-
perança e alegria diante dos desafios que se apresentam atualmente.
Francisco convida a pensar a educação como uma realidade dinâmica, ori-
entada ao pleno desenvolvimento da pessoa humana em suas dimensões
individual e social.
Nos discursos de Francisco são palavras-chave de sua compreensão
de educação as expressões: “humanizar a educação”, “cultura do diálogo”
e “semear a esperança”. Pode-se dizer que a educação é para Francisco
uma das principais forças capazes de ressignificar o futuro da humani-
dade. Seguindo esse viés, em 2019, o Papa Francisco convidou a
Luiz Carlos Selbach; Tiago de Fraga Gomes | 127

restabelecer um Pacto Global pela Educação, o qual traz importantes ele-


mentos para o fazer educativo e para o fazer teológico-pastoral.
Também é preciso salientar que na encíclica Laudato Si’, Francisco
pauta uma grande novidade para o mundo: o conceito de ecologia integral,
que passa a ser um novo referencial educativo, e também, para a Doutrina
Social da Igreja. A ecologia integral elencada por Francisco quer indica ao
ser humano atual uma visão global, holística e mística que desperta para
a consciência de que se vive dentro de uma imensa totalidade, e que, a
partir da individualidade, é preciso olhar para o coletivo tendo por base a
inserção nos contextos locais. Francisco se refere à ecologia integral como
uma compreensão da inter-relação e da necessária colaboração mútua de
todos os elementos e sujeitos que compõem a convivência vital planetária,
“dado que tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais
requerem um olhar que leve em conta todos os aspectos da crise mundial”
(LS 137).
O horizonte da ecologia integral, descortinado pelo Papa Francisco,
conclama a Igreja a pautar mais a importância de se colocar a serviço da
vida em plenitude para todos e para o planeta. Evoca uma nova concepção
deste oikos comum, considerando tudo e todos, incluindo cada uma das
criaturas. Afinal, “tudo está interligado” (LS 138). A natureza não pode ser
considerada como algo separado da humanidade ou como uma mera mol-
dura da vida. Todos estamos incluídos nela, somos parte dela. Sendo
assim, “é fundamental buscar soluções integrais que considerem as inte-
rações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há
duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e
complexa crise socioambiental (LS 139).
Na visão de Francisco, o ponto central consiste em relacionar as eco-
logias ambiental, econômica e social (LS 138-142), cultural (LS 143-146),
da vida cotidiana (LS 147-155). Ambas ecologias, encharcadas da
128 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

espiritualidade, da mística e da mistagogia de Francisco, impulsionam


uma ecologia integral. Nesse sentido, Francisco afirma que não se avan-
çará à pleno no que diz respeito a um progresso socioeconômico sem a
devida melhoria na qualidade da vida humana. Por isso, Francisco convida
toda a humanidade a iniciar, desde a intimidade de sua vida cotidiana, a
colaborar, com os devidos cuidados, na colaboração que “produza uma
melhoria na qualidade de vida humana”, tendo em vista um processo pla-
netário em que “os ambientes onde vivemos influem sobre a nossa
maneira de ver a vida, sentir e agir”, pois a forma como se lida com o
ambiente revela muito de nossas convicções e identidade, sendo funda-
mental fomentar o desenvolvimento de “uma identidade integrada e feliz”
(LS 147).
Dentro do vasto horizonte da ecologia integral, pode-se extrair alguns
elementos inspiracionais fundamentais que contribuem para a elaboração
de um fazer pedagógico como referência educativo-pastoral importante
para o tempo atual:

a) Uma pedagogia aberta: em saída, sinodal, não autorreferencial, que se coloca em


estado permanente de missão; uma pastoral que sabe dizer não ao pensamento
único; que educa para a complexidade, que possibilita escolhas e ajuda a com-
preender seus frutos; uma educação que ensina a criticar, a questionar (LS 210);
uma educação para a pluralidade, que considera a diversidade; que no campo
religioso vive o ecumenismo e o diálogo inter-religioso como premissa elemen-
tar para compreender o currículo evangelizador e viver a espiritualidade de
comunhão;
b) Uma pedagogia evangelizadora que toma como ponto de partida a periferia: que
permanentemente faça convites ao descentramento; que veja o Reinado de Deus
a partir dos pequenos; que cuida de quem está à margem, seja na sala de aula
ou no pátio; que dê atenção constante; que vigie e escute atentamente os sinais
das dores das periferias geográficas e existenciais; e atue de forma transforma-
dora;
Luiz Carlos Selbach; Tiago de Fraga Gomes | 129

c) Uma pedagogia integral: que promova uma antropologia integral, humana e so-
lidária; que busque o desenvolvimento pleno do ser humano e da sociedade; que
eduque para a elaboração de projetos de vida; que insista em uma pastoral pro-
fética e evangelizadora; que parte da formação da interioridade e cuide de todas
as dimensões do humano; que desenvolva competências socioemocionais e pro-
mova a integralidade da vida humana e do planeta;
d) Uma pedagogia da proximidade e do encontro: que promove o “ir ao encontro”
do povo, das pessoas; Francisco indica que para educar é preciso, em primeiro
lugar, chegar perto, ir ao encontro; é fundamental denunciar toda e qualquer
estrutura que fragmenta e divide para dominar; por isso, é importante privile-
giar o encontro educador e evangelizador, e não uma simples doutrinação;
e) Uma pedagogia da escuta e do diálogo: as recorrentes denúncias do autorita-
rismo e, da mesma forma, a escolha da escuta e do diálogo como caminhos,
acenam a profecia e a esperança de uma educação que se faz “com” e não “para”;
é importante promover uma pedagogia da escuta e do diálogo; após a escuta
vem o diálogo, que sob a ótica cristã pressupõe respeito e a superação de diver-
gências ideológicas;
f) Uma pedagogia da alegria e da esperança: que promova o processo educativo e
evangelizador com um sorriso frequentemente estampado na face, como faz e
adverte Francisco, a fim de não se promover um cristianismo cinzento, conforme
propõe a exortação apostólica Evangelii Gaudium; uma pedagogia da alegria do
Evangelho; mesmo que haja tantos obstáculos, e que não seja fácil viver na es-
perança, é preciso ter presente, à luz da fé, que a esperança é o ar que o cristão
respira, sem esperança perde-se o fôlego para fazer a diferença;
g) Uma pedagogia do “nós”: que tenha em vista a Casa Comum, um futuro com-
partilhado, a fraternidade universal e um humanismo solidário; que promova a
consciência do “nós” como superação do egoísmo; que supere o isolacionismo e
a idolatria do egocentrismo; que promova a sinodalidade eclesial; que eduque
para edificação de projetos de vida em favor da vida plena para todos; que fo-
mente projetos de vida não “ensimesmados”, mas conectados com um projeto
de sociedade – a civilização do amor – como “nós cada vez maior” que implica o
cultivo de uma espiritualidade conectada com a Criação; que incentive a solida-
riedade, atitude base e pré-requisito para a vida em sociedade; que alimente
atitudes de voluntariado que façam ver o outro como um semelhante e a vida do
planeta como uma responsabilidade comum.
130 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Para além de simples programas ou projetos eventuais, que estas lu-


zes, pinçadas desde a originalidade do pensamento de Bergoglio/
Francisco, contribuam para a elaboração e o aprofundamento de bases
epistemológicas relevantes que ajudem a arejar o fazer educativo e o fazer
teológico-pastoral a fim de que tenha em vista a formação da consciência
e o fomento da espiritualidade de sujeitos que se coloquem a serviço da
vida plena para todas as criaturas que habitam nossa Casa Comum.

Considerações finais

Ao final deste percurso de pesquisa, a partir de um breve itinerário


pela biografia de Bergoglio e pelo pontificado de Francisco, percebe-se o
quanto Francisco está convicto de que a educação, somando-se a outros
esforços, é um caminho propício de superação de muitos desafios vividos
atualmente. O Pacto Educativo Global é sinal desse compromisso eclesial
e social, e convida a humanidade a repensar processos formativos, favore-
cendo a cultura do encontro, o humanismo solidário, a ecologia integral e
a fraternidade social. Se a Igreja, atenta ao apelo do papa, está em saída,
oxalá que seus caminhos encontrem a escola, a universidade, para aí se-
mear a esperança e a alegria do Evangelho, conforme os referenciais
elencados acima.
Que a partir dos apontamentos elencados, deixemos que nossos pés
se enlameiem pelas estradas da educação e da missão. Pulsa a necessidade
de uma educação e de uma pastoral renovadas que avancem rumo ao ho-
rizonte descortinado pelo pontificado de Francisco. Cabe iluminar, com
novo ardor, um fazer educativo-pastoral a serviço da formação de sujeitos
autônomos, competentes e solidários. Que estas reflexões não se fechem,
nem se encerrem aqui, mas inquietem novos questionamentos, a fim de
Luiz Carlos Selbach; Tiago de Fraga Gomes | 131

que essa discussão vá em frente, promovendo um pensar pedagógico-teo-


lógico colaborativo desde a perspectiva de uma ecologia integral.

Referências

ACIDIGITAL. O manuscrito que o Papa Francisco leu antes de sua eleição no conclave. 2017.
Disponível em: <https://www.acidigital.com/noticias/o-manuscrito-que-o-papa-
francisco-leu-antes-de-sua-eleicao-no-conclave-90716>. Acesso em: 30 nov. 2021.

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<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/biography/documents/papa-
francesco-biografia-bergoglio.html>. Acesso em: 30 nov. 2021.

AVELAR, A. S. Escrita biográfica, escrita da história: das possibilidades de sentido. In:


AVELAR, A. S.; SCHMIDT, B. B. (Orgs.). Grafia da vida: reflexões e experiências com
a escrita biográfica. São Paulo: Letra e Voz, 2012, p. 63-80.

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BERGOGLIO, Jorge Mario. Educar: escolher a vida e testemunhar a verdade. São Paulo:
Ave Maria, 2014.

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Igreja. 2. ed. Rio de Janeiro: Mar de Ideias, 2014.

DOSSE, F. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: USP, 2015.

DOSSE, F. A história. São Paulo: Unesp, 2012.

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do


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FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social.
São Paulo: Paulinas, 2020.
132 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo:
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FRANCISCO, Papa. Instrumentum Laboris: Pacto Educativo Global. Disponível em:


<https://www.educationglobalcompact.org/>. Acesso em: 30 nov. 2021.

FRANCISCO, Papa. A esperança é o ar que o cristão respira. Disponível em:


<https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-10/papa-francisco-santa-
marta-esperanca-ar-cristao-respira.html>. Acesso em: 30 nov. 2021.

TORNIELLI, Andrea. Francisco: a vida e as ideias do papa latino-americano. 1. ed. São


Paulo: Planeta, 2014.
8

Religião e realidade em tensão: diálogo entre


Qohélet (Eclesiastes) e Dietrich Bonhoeffer

Luiz Maria de Barros Coelho Neto 1


Cássio Murilo Dias da Silva 2

Introdução

O que há em comum entre o autor do livro de Qohélet3 (Eclesiastes)


e o teólogo Dietrich Bonhoeffer? A resposta mais direta encontrada por
James Woelfel em Bonhoeffer’s theology foi que: “a primeira coisa a ser
notada na interpretação de Bonhoeffer sobre Qoheleth é a crítica à ‘reli-
gião’.” (WOELFEL, 1970, p. 232). A crítica se origina na observação da
realidade. Os parâmetros que sustentavam a religião de cada autor entra-
ram em tensão com as realidades por eles vividas. Dessa forma, a realidade
tornou-se um elemento questionador da religião.
O presente texto discute, portanto, o problema da tensão entre reli-
gião e realidade conforme as opiniões dos dois pensadores com modelos
religiosos distintos: Qohélet, para o judaísmo na Jerusalém do período he-
lenístico; Dietrich Bonhoeffer, para o cristianismo de vertente evangélica
na Alemanha do período nazista. Baseado em tais pilares, a pesquisa pro-
cura compreender de que maneira a crítica à religião realizada pelos
autores contribuiu para edificar novos parâmetros para suas respectivas

1
Mestre em Teologia com ênfase em Teologia Sistemática pela PUCRS com bolsa CAPES, Licenciado em filosofia pela
PUCRS, bacharel em teologia com dupla titulação pela PUCRS e pela Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma.
E-mail para contato: barroslui@gmail.com.
2
Doutor e Mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma). Professor na Escola de Humanidades
(PUCRS) nos programas de Graduação e Pós-graduação. Editor do periódico científico “Revista Brasileira de
Interpretação Bíblica – ReBiblica”. E-mail para contato: cassio.silva@pucrs.br.
3
O nome hebraico é grafado de diferentes modos, dependendo dos autores e dos idiomas das traduções: Qoheleth,
Qohélet, Coélet, etc. No texto deste artigo adota-se a grafia utilizada por Vílchez Líndez, contudo mantém-se a grafia
adotada pelos autores nas citações.
134 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

fés. Da mesma forma, partindo do diálogo entre os autores, esta pesquisa


se propõe a oferecer alguns parâmetros para uma vivência religiosa elo-
quente para a realidade atual.

1 Religião e realidade

O que a religião deve fazer para não se tornar uma alienação da rea-
lidade? A religião de hoje faz sentido para sua respectiva realidade? O
discurso religioso atual tem algo a dizer para o ser humano deste tempo?
Quando a realidade questiona a religião e esta se dispõe a responder,
ocorre um amadurecimento mútuo. A discussão aqui proposta é uma ten-
são dialética entre religião e realidade, com o objetivo de propor uma
síntese, na qual a teoria e a prática da religião se caracterizam por uma
compreensão esclarecida e encarnada na realidade, de modo a contribuir
efetivamente para o bem do ser humano.
Qohélet é um autor sapiencial do século III a.C. Ele apresenta uma
crítica à religião institucionalizada de sua época e embasa suas opiniões na
observação da realidade. Na Jerusalém helenizada em que viveu Qohélet,
a religião judaica era bastante marcada pela doutrina da retribuição. Qohé-
let assume a tarefa de passar pelo crivo da sua experiência pessoal as
afirmações e crenças de tal doutrina. As observações daquele autor eviden-
ciavam que, no cotidiano, não há retribuição. Em outras palavras: o justo
sofre enquanto o ímpio prospera; o sábio não encontra o sucesso e a rea-
lização como previa a sabedoria tradicional de Israel; todas as alegrias do
ser humano são vazias, sem sentido, inconsistentes, névoa de nada, sopro,
efemeridade, em suma, hébel. Esta palavra hebraica é, sem dúvida, a chave
interpretativa para a obra de Qohélet. Por sua vez, Dietrich Bonhoeffer
experimenta, na Alemanha do século XX, um cristianismo pouco atuante
e distante da realidade. Este teólogo alemão critica a forma de expressar o
cristianismo por meio de uma linguagem que ele chama de “religiosa”,
Luiz Maria de Barros Coelho Neto; Cássio Murilo Dias da Silva | 135

mas que não é eloquente para um mundo adulto. Da mesma forma que
Qohélet, Bonhoeffer baseia-se na tensão entre a religião e a realidade para
realizar uma crítica à religião institucionalizada de sua época.
Ambos os autores, com suas reflexões, contribuíram para um ama-
durecimento das compreensões religiosas de suas respectivas épocas e
podem igualmente iluminar a experiência religiosa de hoje, ainda mais se
as opiniões por eles emitidas forem colocadas lado a lado. Este é o objetivo
do presente texto: estabelecer um diálogo entre esses dois teólogos de re-
ligiões, épocas e circunstâncias diferentes, mas, ao mesmo tempo,
semelhantes, procurando mostrar alguns pontos convergentes no pensa-
mento de ambos e apresentando os parâmetros que encontraram para
uma vivência religiosa mais eloquente para as suas respectivas realidades.
De modo análogo, tal diálogo permite descobrir parâmetros para uma vi-
vência religiosa eloquente para a realidade atual.

2 Qohélet e Bonhoeffer em diálogo

Há grande distância temporal e de credo entre Qohélet e Bonhoeffer.


Isso faz com que os temas entre ambos não sejam exatamente os mesmos.
No presente texto não há, portanto, a tentativa de identificar o conteúdo
dos temas que abordaram estes dois autores, mas sim a aproximação de
ambos pela tensão que experimentaram entre a religião praticada em suas
respectivas épocas e a realidade que se lhes apresentava. As críticas de cada
um deles às práticas religiosas permite estabelecer um diálogo em torno
de três temáticas: a relevância da realidade, a crítica à religião e a realiza-
ção possível ao ser humano.

2.1 A relevância da realidade

Em Qohélet, a realidade é constatada como vazio (hébel), juntamente


com a dominação do povo e a exploração do trabalho, a frustração do sábio
136 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

e a crise da sabedoria. Em Bonhoeffer, ela se apresenta em contexto de


domínio da ideologia nazista, a perseguição racial e uma religião tímida,
pouco comprometida com a realidade.

2.1.1 Qohélet

Na obra de Qohélet, toda a realidade pode ser descrita pelo termo


hebraico hébel. Este é o enquadramento de todo o livro.

2.1.1.1 Tudo é “hébel ”

Presente no início e no fim da obra (cf. Ecl 1,2;12,8), “hébel denota


não só o que é vaporoso e evanescente, mas também o que é sem substân-
cia e falso, dando um passo a mais para o deslizamento hébel = falso,
mentira” (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 431-432). Para Tamez (1998, p. 21),
“o superlativo reiterado do v. 2 do capítulo 1 se leria assim: ‘uma grande
porcaria – diz Qohélet –, uma grande porcaria, tudo é porcaria”. Por outro
lado, “a perspectiva de Qohélet está totalmente dominada pelo que ele
chama de hébel, o vazio, a ilusão, o que não tem sentido.” (SILVA, 2016,
p.408). De fato, hébel “ilustra a inutilidade dos esforços e dos projetos do
homem; seu resultado é nulo.” (GLASSER, 1975, p. 21).

2.1.1.2 Domínio dos Ptolomeus sobre Israel

Entre os motivos da insatisfação de Qohélet certamente encontra-se


o contexto sócio-político vivido em seu tempo. A Palestina do século III a.C.
estava sob o domínio dos Ptolomeus, que exploravam os povos dominados
pela cobrança de impostos exorbitantes, gerando desigualdades sociais e
até mesmo escravidão (XAVIER, 2011, p. 101). Em tal realidade, havia mi-
séria, exploração do trabalho, injustiças, fraudes e desvios.
Luiz Maria de Barros Coelho Neto; Cássio Murilo Dias da Silva | 137

2.1.1.3 Crise da sabedoria

Soma-se a esse contexto, a crise da sabedoria advinda do período pós-


exílico. A assim chamada “sabedoria tradicional” de Israel e dos povos cir-
cunvizinhos apregoava o sucesso absoluto do sábio em todos os seus
empreendimentos: ele era sempre abençoado por Deus. Nas novas cir-
cunstâncias sociais e políticas do século III a.C., todavia, a observação da
realidade força o descrédito no sucesso do sábio. Já não parece tão inques-
tionável a certeza de que o sábio e o justo receberão sempre a benção do
Senhor. Como recorda Festorazzi (1993, p. 197):

A crise da sabedoria insere-se num fenômeno mais vasto: deve-se falar em


crise de todas as reflexões de fé de Israel, sob o impulso do drama do exílio da
Babilônia, que o fracasso da reconstrução pós-exílica tornou ainda mais agudo.

2.1.1.4 Rejeição à fuga mundi

É fundamental compreender com clareza que o ensino de Qohélet so-


bre hébel não se identifica com a posterior interpretação do desprezo do
mundo conhecida como fuga mundi. Qohélet não deseja evadir-se do
mundo; ao contrário, como será visto adiante, ele convida ao desfrute das
alegrias concretas presentes na realidade. Líndez (1999, p. 436-437) escla-
rece:

Também é muito antiga e conhecida a tradição sobre a doutrina espiritual


cristã do “desprezo do mundo”, que pretende fundamentar-se na doutrina do
Eclesiastes. Neste momento não pretendemos fazer uma crítica à doutrina em
si do “desprezo do mundo”. O que negamos, porém, é que Ecl 1,2 sirva de
fundamento escriturístico para essa doutrina, apesar de autores antigos repe-
tirem como estribilho o “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” para provar
sua tese De contempto mundi, sobre o desprezo do mundo.
138 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Acerca da realidade, em poucas palavras, Qohélet constata: sofre o


inocente; o injusto triunfa e o sábio se frustra no seu empreendimento.
Essa é a realidade áspera e crítica que Qohélet observou debaixo do sol e
que o fez afirmar veementemente: “habel habalîm hakkol habel – vaidade
das vaidades, tudo é vaidade”4 (Ecl 1,2).

2.1.2 Bonhoeffer

Dietrich Bonhoeffer nasceu em 04 de fevereiro de 1906, na antiga


cidade alemã de Breslau, atual Polônia, e “foi executado por alta traição
por ordem de Himmler, nos últimos dias de guerra, no campo de extermí-
nio de Flossenburg, na alta Baviera, na madrugada de nove de abril de
1945.” (PERUZZO, 2010, p.40).

2.1.2.1 A Alemanha nazista

Teólogo de tradição luterana, Bonhoeffer testemunhou com a própria


vida o que escrevia em resistência ao regime nazista. Foi forte opositor às
atrocidades realizadas durante o período de governo de Hitler e exata-
mente por isso foi perseguido e morto. Com uma teologia cristocêntrica e
com ênfase no seguimento de Cristo, “ele é um defensor convicto de um
cristianismo apaixonado, exigente, absoluto, completo” (MONDIN, 1980,
p.165-166). E quanto à postura adotada por Bonhoeffer em relação à rea-
lidade do domínio nazista:

Durante longo tempo [Bonhoeffer] se mantivera em posições quase-pacifistas,


mas depois chegou à conclusão de que o pacifismo era uma escapatória ilegí-
tima. Por isso, desde o início das hostilidades, ingressa na Resistência, porque
está convencido de que é necessário opor-se ao regime diabólico de Hitler com
a ação política direta: “Não é só meu dever ocupar-me das vítimas deixadas no

4
A tradução da língua latina é “vanitas vanitatum” e permite conservar o aspecto a-moral do termo. No português,
porém, o termo foi traduzido por “vaidade”, o que conduziu a uma interpretação de cunho moral que não está
presente no termo hebraico.
Luiz Maria de Barros Coelho Neto; Cássio Murilo Dias da Silva | 139

chão por um louco que dirige desvairadamente um carro por uma estrada
abarrotada, mas também fazer de tudo para impedi-lo de dirigir”. (MONDIN,
1980, p.169).

2.1.2.2 O mundo adulto

Outro aspecto da realidade vivida por Bonhoeffer é o que ele classifi-


cou como “maioridade do mundo”. Para Bonhoeffer, o mundo moderno é
um mundo tornado adulto, isto é, um mundo que aprendeu a viver sem
precisar recorrer à tutela de Deus para resolver os seus problemas e dile-
mas existenciais. O mundo moderno, portanto, é emancipado pela razão e
nele “fica evidente que tudo também funciona sem ‘Deus’, e tão bem
quanto antes.” (BONHOEFFER, 2015, p. 435).

2.1.2.3 Cristocentrismo a-religioso

As constatações de Bonhoeffer acerca do mundo adulto e da experi-


ência dolorosa e desafiadora da Alemanha dominada pelo nazismo fizeram
com que ele criticasse um cristianismo pouco eloquente, tímido e inti-
mista. Para Mondin, Bonhoeffer é autor de um cristocentrismo a-religioso:
“Dos dois termos, o primeiro indica o gênero e o segundo a diferença es-
pecífica, ou ainda melhor, o primeiro indica o conteúdo e o segundo a
forma” (MONDIN, 1980, p. 165). A crítica do teólogo alemão não é ao con-
teúdo do cristianismo, mas à forma como tal conteúdo era apresentado ao
mundo na sua época com categorias “religiosas”. Para Bonhoeffer, não era
mais possível pensar um cristianismo de sacristia, preocupado apenas com
a vida eterna, exclusivamente com a “salvação da alma”, desprezando a
corporeidade, fugindo assim das obrigações para com a vida concreta. Ap-
pel e Capozza, em seu artigo sobre a eclesiologia de Bonhoeffer, sinalizam
a rejeição de uma religião voltada para a fuga mundi:
140 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Toda fuga para estruturas pretensamente santas, não contaminadas pelo


mundo e suas necessidades, assim como toda autossegurança ética, que pensa
anunciar uma verdade a-histórica, eterna, longe dos desafios sociais concretos,
com isso é recusada, assim como a separação entre uma Igreja autossuficiente
e um mundo “fora”, que na melhor das hipóteses seria território de missão e,
sem autoridade própria, fosse apenas receptor das verdades eclesiais. (APPEL;
CAPOZZA, 2006, p. 592).

Para Bonhoeffer, a única forma eloquente de anunciar o Evangelho


de Cristo ao mundo adulto era através da vivência de um cristianismo en-
carnado e comprometido solidariamente com as situações concretas do
cotidiano. “Ele [Bonhoeffer] diz, com efeito: o único modo de tornar o cris-
tianismo inteligível hoje é o bom exemplo; com a nossa vida podemos fazer
com que os outros intuam o conteúdo de nossa fé.” (MONDIN, 1980, p.
179).

2.2 A religião: temor a Deus e seguimento

Em Qohélet, a religião baseada na doutrina da retribuição entra em


crise no confronto com a realidade. O autor propõe uma renovada com-
preensão acerca do temor a Deus. Em Bonhoeffer, o cristianismo precisa
reencontrar o seguimento autêntico de Jesus para que seja eloquente para
o mundo adulto.

2.2.1 Qohélet

2.2.1.1 A doutrina da retribuição

A perspectiva clássica da sabedoria de Israel afirmava que “se a pes-


soa agir de maneira piedosa receberá bênçãos de Deus. Por outro lado, se
agir de maneira impiedosa, receberá desgraças de Deus” (XAVIER, 2011,
p. 102). Esse princípio é a base da doutrina ou teologia da retribuição, o
pensamento imperante na sabedoria de Israel, ao menos até o período da
crise da sabedoria advinda do contexto pós-exílico. Contudo, a constatação
Luiz Maria de Barros Coelho Neto; Cássio Murilo Dias da Silva | 141

de Qohélet é que há incongruências entre o ensinamento tradicional da


religião na sua época e a realidade na qual estava inserido. Para Qohélet, a
“sabedoria escolástica do sistema teológico cuja doutrina fundamental – a
crença na retribuição –, [...] perdeu a credibilidade” (SELLIN; FOHRER,
1977, p. 506). O autor de Jó e Qohélet estão convencidos de que “o sofri-
mento humano não pode ser explicado pelo simplismo da teologia da
retribuição” (SILVA, 2016, p. 408). Qohélet não poupa tinta para demons-
trar a insuficiência das explicações da doutrina da retribuição para os
problemas da realidade:

É exatamente no confronto com a realidade que a tese (“primeira” Teologia


[da retribuição]) entra em crise. A realidade funciona como antítese desta tese,
funciona como um teste. Ou seja, é no confronto com a realidade (antítese) –
tal como ela se apresenta – que a “primeira” Teologia (tese) fica de pé ou cai.
No caso de Qohélet ela caiu. Sua realidade é marcada pela exploração. [...] “No
lugar do direito encontra-se o delito, no lugar do justo encontra-se o ímpio”
(Ecl 3,16). (XAVIER, 2011, p. 102-103).

2.2.1.2 A frustração do sábio

A constatação de que a teologia da retribuição explica de forma insa-


tisfatória os dilemas e sofrimentos que se apresentam na realidade
provoca ainda outra crise na compreensão da sabedoria clássica: a incom-
preensão dos planos de Deus. Se antes de Qohélet o sábio intentava “a
compreensão das ações de Iahweh, sobretudo dos seus juízos”
(MCKENZIE, 1983, p. 813), agora Qohélet conclui que “o conjunto da obra
de Deus não pode ser compreendido pelo homem” (cf. Ecl 3,11b). Como
bem observa Festorazzi (1993, p. 195), “o homem só percebe o murmúrio
dos caminhos de Deus”.
142 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

2.2.1.3 Temor a Deus

A fé de Qohélet, questionada pela realidade, precisou encontrar novas


perspectivas, o que o levou a repensar o conceito de “temor a Deus”, que
implica, sem dúvida, submissão e confiança, mas vai além. Para Qohélet,
temer a Deus “é algo que deve ser separado de qualquer noção de recom-
pensa ou punição, algo, portanto, totalmente gratuito” (MAZZINGHI,
2009, p. 552); por tal razão, a atitude do sábio “contém a ideia da consci-
entização dos próprios limites e da dependência de Deus” (MAZZINGHI,
2021, p. 41). Em outras palavras, “o significado do termo temor de Deus
(yra’) não corresponde a ter medo”, e sim “reconhecer bem a distância que
separa Deus e o ser humano” (cf. TAMEZ, 1998, p. 58). Por conseguinte,

o reconhecimento de Deus como Deus dá início à realização humana. Pode-se


viver e planejar viver, porque aconteça o que acontecer, tem-se a fé de que
Deus está presente. Assim, pois, paradoxalmente, o temor de Deus significa
“não temas”; convida ao sossego em meio à prática afanosa. O temor de Deus
está relacionado com o comportamento do ser humano e com sua atitude
frente à vida, por isso implica um forte acento de confiança. Reconhecendo os
limites humanos, a consciência se desdobra nas margens da possibilidade, pois
do impossível Deus se encarregará. (TAMEZ, 1998, p. 58-59).

Dessa forma, a nova perspectiva sobre o temor a Deus que Qohélet


apresenta convida a um reconhecimento de submissão e confiança que
conduz a uma atitude religiosamente madura e sábia, pois “há um mo-
mento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu” (Ecl 3,1)
e Deus “fez tudo apropriado ao seu tempo.” (cf. Ecl 3,11a).

2.2.2 Bonhoeffer

2.2.2.1 A rejeição da graça barata

Em 1937, Bonhoeffer publica uma de suas principais obras Nachfolge


(Discipulado). O seguimento de Cristo precisa ser levado até as suas
Luiz Maria de Barros Coelho Neto; Cássio Murilo Dias da Silva | 143

últimas consequências, por isso é marcado pela obediência da fé e pela


exigência de configurar-se a Cristo. Para isso, Bonhoeffer explicitou a di-
ferença entre “graça preciosa” e “graça barata”. Para ele, aproximar-se de
Deus apenas para receber benefícios, sem nenhuma exigência de resposta
da fé é sinônimo de graça barata. “A graça barata [...] é a graça como ines-
gotável tesouro da Igreja, distribuído diariamente com mãos levianas, sem
pensar e sem limites; a graça sem preço, sem custo” (BONHOEFFER,
2004, p.9). Woelfel (1970, p.243) esclarece tal afirmação acrescentando a
crítica do teólogo aos esquemas religiosos de sua época: “Ele [Bonhoeffer]
repreende a Igreja por promover a ideia de facilidade ou de graça ‘barata’,
por separar fé da obediência, por falar de generalidades enfeitadas”.

2.2.2.2 A configuração a Cristo

O seguimento de Jesus se faz ainda mais exigente quando associado


à configuração a Cristo. Junto à crítica ao regime nazista com seus ideais
de purificação da raça ariana e dos programas de extermínio, Bonhoeffer
entende que Deus se fez homem real e não ideal ou abstrato. Em sua Ethik
(Ética) ele afirma:

Estar configurado ao Encarnado significa poder ser o homem na realidade que


se é. Aparência, hipocrisia, crispação, violência, ser algo distinto, melhor, mais
ideal do que se é: tudo isso fica aqui eliminado. Deus ama o homem real. Deus
se fez homem real. (BONHOEFFER, 2000, p. 78).

Os cristãos seguem Jesus em seu ser-para-os-outros inclusive na ab-


negação e renúncia de si, passando pela aceitação do sofrimento, se
necessário for, em prol dos outros. As palavras de Jesus em Mt 16,24 – “Se
alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-
me” – foram levadas a sério na teologia de Bonhoeffer. Uma vez que “o
sofrimento e a cruz de Cristo mostram a profundidade da encarnação. A
144 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

encarnação do Verbo vai até as últimas consequências, assumindo o sofri-


mento e a morte. [...] A distância entre Deus e o sofrimento foi aniquilada”
(HAMMES, 1991, p. 503), o autêntico seguidor é aquele que participa nos
sofrimentos do mestre Jesus.

2.2.2.3 Ser-para-os-outros

Ramussen aprofunda esta reflexão trazendo-a para o nível do ser. É


da essência de Cristo ser-para-os-outros e deve ser esta a vida de seus se-
guidores:

Ser para os outros tem uma base ontológica para Bonhoeffer. É a essência de
ser Cristo. Conceber Cristo de qualquer outra forma é literalmente “ímpio”. A
antropologia de Bonhoeffer é baseada em sua cristologia. Porque a essência de
Cristo é o seu Dasein pro-andere, estar-aí-para-os-outros. A estrutura ontoló-
gica do homem está localizada no ser de Cristo para o homem, a natureza e a
história. O homem é apenas homem na relação Tu-eu, eu-Tu, assim como
Cristo é apenas Cristo em seu pro nobis Sein. (RAMUSSEN, 2005, p. 19).

O seguimento de Cristo proposto por Bonhoeffer é aquele que confi-


gura o discípulo à vida de Jesus. Com efeito, “ser-para-os-outros [...]
significa tomar parte no ‘ser-para-os-outros’ de Jesus, inclusive no sofri-
mento, já que a configuração a Cristo coloca a vida a serviço das
necessidades de outras vidas e do mundo” (PERUZZO, 2010, p.54).

2.3 A realização do ser humano

Em Qohélet, o ser humano pode encontrar uma porção de alegria


debaixo do sol. São as alegrias concedidas por Deus como dom, fruto do
trabalho e que permitem uma realização parcial. Em Bonhoeffer, o gozo
da vida corporal é um direito inerente à vida humana e é um dom de Deus
vivido nesta realidade penúltima em vista da realidade última.
Luiz Maria de Barros Coelho Neto; Cássio Murilo Dias da Silva | 145

2.3.1 Qohélet

2.3.1.1 A “porção” do ser humano

Apesar de toda constatação da efemeridade e das contradições da vida


real, Qohélet ainda prefere o viver ao morrer, pois “ainda há esperança
para quem está ligado a todos os vivos e um cão vivo vale mais do que um
leão morto.” (Ecl 9,4). Quanto à felicidade, ela é sim possível: “há uma
felicidade possível para o homem debaixo do sol, uma felicidade limitada
certamente, porém portadora de gozo.” (DORÉ, 1997, p. 32).
Há, portanto, uma “porção” de felicidade ao ser humano debaixo do
sol e é dada por Deus como dom (cf. Ecl 2,24; 3,13; 5,18). Difere, portanto,
daquela promessa de felicidade, sucesso e realização que era apresentada
ao sábio pela doutrina tradicional da sabedoria, como um resultado quase
mecânico após um comportamento virtuoso. Efetivamente, a felicidade

é limitada aos poucos dias de vida dado por Deus; obtém-se uma “parte”,
quando se desejaria que fosse sem fim. Mas precisamente devemos alegrar-
nos com a felicidade que se obtém no dia a dia, sem olhar muito longe para
frente: “No dia do bem-estar, goze da felicidade” (7,14). Ela é bastante consis-
tente para que não se pense muito na brevidade da vida (5,19); tem suficiente
fundamento para que seja “louvada” e celebrada (8,15). Confere à existência
um sentido imediato e livra o homem da angústia. (GLASSER, 1975, p.265-
266).

2.3.1.2 Desfrute das alegrias e do momento presente

Qohélet convida à alegria e ao desfrute do momento presente (cf. Ecl


2,24-26; 3,12-13.22; 5,17-19; 8,15; 9,7-9; 11,8-9), gozando do fruto do tra-
balho (cf. Ecl 2,24; 3,13.22; 5,18, 8,15; 9,9) e das alegrias que Deus concede
ao ser humano sobre a terra. Tal convite demonstra que, “a conclusão de
Qohélet é que o desfrute é a finalidade da vida e sua admoestação é para
gozar de uma vida feliz tanto quanto possível.” (CARSTENSEN, 1903, p.
18).
146 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Entendido sem conotação moral nem hedonista, o convite a comer e


beber feito por Qohélet está referido “não só com a finalidade de manter a
vida que recebemos, mas como expressão de sentimentos mais profundos
e nobres do homem, como o são a hospitalidade, a amizade, a alegria e a
festa.” (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 234). Qohélet, portanto, não nega a
possibilidade de o ser humano ser feliz, sem a necessidade de grandes e
fortes emoções:

Pergunte ao Eclesiastes “o que é a vida”, e ele dirá que é sentar-se à mesa com
os filhos e apreciar uma bela taça de vinho. Vida é terminar um trabalho e se
largar exausto na poltrona, cheio de satisfação com o que acabou de fazer. É
ver um pôr do sol e ficar extasiado com aquela visão sublime. É receber o
abraço de um amigo, um abraço repleto de afeto e de amor. É saber-se amado.
Isso sim é vida. (KIVITZ, 2009, p.143).

2.3.2 Bonhoeffer

2.3.2.1 A rejeição à fuga mundi

A teologia de Bonhoeffer afasta o cristianismo do desprezo pelo


mundo terreno e, como vimos, rejeita a visão de cristianismo como fuga
mundi, no sentido de alienação e descompromisso com a vida presente.
Para Bonhoeffer “não se pode entender a vida natural simplesmente como
algo parecido a uma escala prévia para a vida com Cristo, mas sim que ela
recebe a sua confirmação pelo próprio Cristo” (BONHOEFFER, 2000,
p.139). Bonhoeffer corrigiu dois erros na abordagem da religião, dois ex-
tremos: de um lado, o equívoco de o ser humano refugiar-se no além e se
esquecer do aquém; do outro, o equívoco oposto de fixar-se tão cegamente
no aquém, a ponto de esquecer o fundamento transcendente que provém
de Deus. Para isso, Bonhoeffer elaborou a teologia do último e do penúl-
timo.
Luiz Maria de Barros Coelho Neto; Cássio Murilo Dias da Silva | 147

2.3.2.2 A teologia do último e do penúltimo

Esta elaboração de Bonhoeffer refere-se ao âmbito último toda reali-


dade da graça que se inaugura com a Ressurreição de Cristo e ao qual se
dirige o penúltimo. O âmbito penúltimo, por sua vez, é a vida terrena que
antecede a realidade do âmbito último. Esclarecendo:

Por penúltimo, Bonhoeffer explica que é “o caminho que tem que ser andado
até ali onde Deus lhe põe o termo”. O penúltimo é tudo aquilo que conduz à
realidade última, é, na verdade, um novo modo de indicar a situação já men-
cionada em Discipulado, da realidade do mundo, dos valores da humanidade,
da vida terena; se refere às coisas do mundo, ao cotidiano humano que, apesar
de não garantir o alcance do último, deve ser assumido responsavelmente
como preparação para o recebimento do que é último, ou seja, é a relação do
ser humano, especialmente o cristão, com o mundo do qual faz parte.
(PERUZZO, 2010, p. 57).

É, portanto, necessário, assimilar que “há um tempo para pensar so-


bre a eternidade, vida após a morte e o paraíso de bênçãos, mas há
igualmente um tempo para aceitar e viver completamente todas as alegrias
da terra nesta vida” (WOELFEL, 1970, p. 231-232). Com o binômio penúl-
timo-último, juntamente ao princípio da encarnação do Verbo, Bonhoeffer
elabora a sua compreensão acerca da dignidade da vida corporal.

2.3.2.3 A dignidade da vida corporal

Faz parte da maturidade cristã rejeitar o menosprezo à vida física:

O cristão maduro no mundo moderno não vira as costas para a vida que Deus
deu a ele, mas aceita-a completa e responsavelmente da mão de Deus. O autor
do Eclesiastes, acredita Bonhoeffer, testemunha tal vida na qual “Deus fez tudo
belo a seu tempo” (3,11). Para Qoheleth e o cristão “secular” há um tempo para
tudo nesta vida terrena, porque todos os tempos estão nas mãos de Deus.
(WOELFEL, 1970, p. 233).
148 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Para Bonhoeffer, a vida natural e o gozo dos prazeres que lhe são
inerentes são direitos do ser humano. Em sua obra Ethik (Ética), ele asse-
vera: “a destruição do natural significa destruição da vida. [...] O não
natural é inimigo da vida” (BONHOEFFER, 2000, p. 141). E prossegue
nessa direção:

A habitação dos homens não tem apenas o sentido de um refúgio contra as


tormentas e a noite como as cavernas dos animais, mas sim é o âmbito em que
o homem pode gozar das alegrias de uma vida pessoal na segurança dos seus
e de sua propriedade. Comer e beber não apenas serve para a conservação da
saúde corporal, mas sim também ao gozo natural da vida corporal. As vesti-
mentas [...] a diversão [...] o jogo [...]. A sexualidade não é somente um meio
de multiplicação, mas sim que, dentro do matrimônio, independentemente
desta finalidade, proporciona o gozo por amor de duas pessoas entre si. Do
que temos dito resulta que o sentido da vida corporal nunca desaparece em
razão de sua determinação teleológica, mas sim ela se plenifica com a realiza-
ção da demanda de prazer que lhe é inerente. (BONHOEFFER, 2000, p. 150).

A realização do ser humano, para Bonhoeffer, está referenciada a


Cristo. Ele inaugura o âmbito último e faz da vida presente a realidade
penúltima. Esses âmbitos não se contrapõem. Ambos são legítimos mo-
mentos da mesma realidade “que vem da mão de Deus” (Ecl 2,24). Viver
bem consiste em gozar das alegrias que são inerentes à vida natural,
agindo à luz do último, configurando-se a Cristo pelo seguimento. “A Ética
sugere viver plena e alegremente no penúltimo agindo à luz do último”
(PAULSON, 1998, p. 307).

Conclusão

As reflexões realizadas pelos autores colocadas em diálogo permitem


encontrar parâmetros para uma vivência religiosa que seja eloquente para
Luiz Maria de Barros Coelho Neto; Cássio Murilo Dias da Silva | 149

a realidade de hoje. Esses parâmetros provêm da tensão dialética entre as


compreensões religiosas de suas épocas e as suas respectivas realidades.
Primeiramente constata-se que a religião precisa observar atenta-
mente a realidade na qual está inserida a vida do ser humano. A religião
que se afasta demasiadamente da realidade corre o risco de tornar-se uma
alienação.
O segundo parâmetro que deriva dessas considerações é a relevância
do questionamento que a religião deve fazer-se acerca de sua capacidade
de iluminar a realidade na qual se insere o ser humano. Em outras pala-
vras, a religião deve ser capaz de se questionar se está sendo uma eficaz
fonte de esperança e de luz para a realidade.
O terceiro parâmetro é a necessidade de a religião conduzir o ser hu-
mano para uma compreensão integral acerca de si próprio. Isto é, deve
ajudar o ser humano a compreender-se em sua realidade integral e inte-
gradora, esquivando-se das visões dualistas acerca da vida humana e da
própria realidade.
Por fim, como quarto parâmetro, os autores estudados deixam claro
que uma religião eloquente para a realidade não conduz à fuga mundi e às
falsas ideias de Deus, como aquela pregada pela doutrina da retribuição ou
aquela que incentiva a busca da graça barata. Deixam claro ainda a rejeição
de uma religião descomprometida com a realidade.
A religião de nossos dias está inserida em uma realidade que ainda
respira os ares próprios do contexto da pandemia de COVID-19. Ela precisa
oferecer uma resposta eloquente para os questionamentos que a realidade
propõe para a religião. Em Qohélet, a visão da pandemia como um castigo
divino imposto como consequência da má conduta do ser humano seria
refutada. O sábio ainda pronunciar-se-ia acerca dos néscios da atualidade
e dos verdadeiros sábios tementes a Deus. Por fim, Qohélet certamente
usaria como argumento a efemeridade da vida e a importância do tempo
150 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

presente. Bonhoeffer, por sua vez, chamaria a atenção dos cristãos para
uma vivência encarnada do cristianismo comprometido com o socorro da-
queles que sofrem com os males decorrentes do contexto atual. Também
denunciaria uma visão mágica da fé que esperasse passivamente uma in-
tervenção divina miraculosa própria daqueles que desejam a graça barata.
O problema da tensão entre religião e realidade não se esgota nesse
diálogo. Há tantas dialéticas possíveis quantas forem as realidades diver-
sas nas quais as religiões estiverem inseridas. O presente texto procurou
provocar um questionamento oportuno para que a religião permaneça
sendo uma contribuição para a vida e o bem integral do ser humano.

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Bíblia e fundamentalismo: o discurso político

Rafael Holdefer Bohrer 1


Cássio Murilo Dias da Silva 2

Introdução

Cada vez mais, discursos políticos são costurados e embasados com


citações diretas ou indiretas de textos bíblicos. A pesquisa visa analisar cri-
ticamente esta prática que, sem dúvida, é antiga, como se vê em
experiências políticas autoritárias, como o nazismo e o stalinismo, que se
articulam sobre a ótica sujeito-subjetividade. Há 20 anos, acontecia um
dos maiores atentados em nome da fé, 11 de setembro, que as manchetes
conceituaram como um ato fundamentalista. Esse mesmo conservado-
rismo islâmico que dá margens para a triste realidade que se vive no
Afeganistão, hoje. No Brasil, as bancadas religiosas do Congresso Nacional
arrastam multidões sobre suas pautas em nome da doutrina cristã. A esse
uso político-ideológico, acrescentam-se os discursos simplistas acerca da
pandemia. Sobre este pano de fundo que se apresenta o problema de es-
tudo desse artigo: com qual equivalência hermenêutica-exegética trechos
são retirados da Sagrada Escritura, e amarrados na prática discursiva? Ini-
cialmente, apresentar-se-á uma base conceitual do tema e posteriormente
dois exemplos. Pois interessa a essa pesquisa discursos que trazem citações
e/ou interpretações bíblicas de forma fundamentalista, embasando

1
Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (2018) e cursando
Teologia na mesma universidade. E-mail: rafael.holdefer@edu.pucrs.br
2
Doutor em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Antigo Testamento da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. E-mail: cassio.silva@pucrs.br.
154 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

opiniões ou mesmo movimentando massas. Para isso, tais discursos serão


comparados com a exegese bíblica e analisada sua aplicação.

Fundamentalismos

Para um substancial aprofundamento do tema, definir conceitos ga-


rante evitar ambiguidades. Etimologicamente, a palavra fundamento vem
da expressão latina fundamentum, e da qual derivam outras de mesmo
radical, como: fundamentalismo. Em sua maioria trazem à ideia o conceito
de algo que está na raiz. Não é raro ouvir expressões como: isso é funda-
mental..., há fundamento em..., o que falo está fundamentado..., sem
fundamento a casa cai e tantos outros.
A expressão fundamentalismo, surge na primeira parte do século XX,
nos Estados Unidos com a controvérsia Modernista-Fundamentalista no
debate sobre o criacionismo. Os defensores protestantes, ao descreverem
uma lista específica de credos teológicos, usam-no nesse movimento.
Desde então, o termo é sinal de adesão a qualquer conjunto de credo e
“converteu-se em tendência marcante de certas denominações protestan-
tes” (SCHLESINGER e PORTO, 1995). Pode-se definir como sendo um
princípio de determinado grupo religioso ou não, é, por assim dizer, uma
busca por identidade.
O fundamentalismo é perverso, fundamentalismo intencional, para
justificar ou fundamentar comportamentos rígidos e modos de agir totali-
tários a partir de princípios religiosos.

Fundamentalismo não é, então, apenas a interpretação literal de uma expres-


são verbal, é uma atitude que, a partir da literalidade, justifica todo e qualquer
absolutismo e radicalismo. A motivação religiosa é o suporte mais adequado
para essa atitude. Daí o fundamentalismo “ecumênico” evangélico-católico, o
fundamentalismo islâmico, o fundamentalismo judaico, o hinduísta e outros.
(PRADO, 2018)
Rafael Holdefer Bohrer; Cássio Murilo Dias da Silva | 155

Há, portanto, muitas formas de fundamentalismo. Pode-se, por


exemplo, falar de fundamentalismo étnico, religioso, político. Certamente,
é um fator mais subjetivo do que objetivo a atitude fundamentalista. Pois,
não é mais que a busca por:

valores e verdades simples, coerentes, unitárias, imutáveis, universalmente


válidas e que excluem os pontos de vista discordantes. A atitude fundamenta-
lista pode ter um maior ou menor grau e, por vezes, é inconsciente e bem
articulada, mesmo com pessoas equilibradas e bem instruídas. Não se pode,
portanto, considerar a atitude fundamentalista como um problema de indiví-
duos com distúrbios afetivos, perturbados e intelectualmente inferiores.
(SILVA, 2011, p. 16)

Qualquer pessoa que objetifique algo como princípio sui generis e in-
defectível dos valores e das verdades incorre em tal atitude. Com isso, é
possível perceber a mútua relação parasítica do discurso político quando
traz citações bíblicas. Por isso, interessa, nesse artigo, responder ao pro-
blema de pesquisa: com qual equivalência hermenêutica-exegética trechos
são retirados da Sagrada Escritura, e amarrados na prática discursiva po-
lítica-ideológica? Para tal, restringir-se-á, o texto, ao chamado
fundamentalismo bíblico que surge como reação contra o liberalismo.
Por mais que o termo tenha surgido na primavera do século XX, suas
raízes se estendem ao século XVIII com a exploração científica do universo
advinda com o iluminismo. Quando alguns dados, apresentados como ver-
dade absoluta pela Igreja, começam a ser questionados pela ciência um
clima de tensão emerge: identidades estão em risco. Diversas reações di-
vergentes à literalidade, tornam-se recorrentes e, consequentemente,
defesas como reações pessoais e que com o tempo passam a ser assumidas
pela instituição.
156 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

O fundamentalismo, como atitude e tendência, se encontra em setores de to-


das as religiões e caminhos espirituais. Hoje em dia, o fundamentalismo judeu
se centra na construção do Estado de Israel segundo o tamanho que lhe atribui
à Bíblia hebraica. O fundamentalismo islâmico quer fazer do Alcorão a única
forma de vida, de moral, de política e de organização do Estado entre os islâ-
micos e em todo o mundo. Todos os que se opõem a essa visão de mundo são
obstáculos à instauração ''da cidade de Deus'' e consequentemente são infiéis
e merecem ser perseguidos e eventualmente eliminados. O fundamentalismo
não possui apenas um rosto religioso. Todos os sistemas sejam culturais, ci-
entíficos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como
portadores exclusivos de verdade e de solução única para os problemas devem
ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz
de vários fundamentalismos. (BOFF, 2002)

Evidente que se a Palavra de Deus está no Livro Sagrado, questões


como: a Bíblia está livre dos erros da palavra humana? O sentido do texto
é claro e expressa em palavras perfeitamente adequadas? Essa é a única
autoridade para a Doutrina e para a Moral? A aplicação moral é resistente
aos tempos, à história e às diferenças culturais? O texto é um tesouro de
argumentos que confirmam o credo e a doutrina de um grupo? Toda ela
pode ser interpretada do mesmo modo?

Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo es-
pírito com que foi escrita, não menos atenção se deve dar, na investigação do
reto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura,
tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé. Cabe aos
exegetas trabalhar, de harmonia com estas regras, por entender e expor mais
profundamente o sentido da Escritura, para que, mercê deste estudo de algum
modo preparatório, amadureça o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz
respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que
tem o divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de
Deus. (DV 12)
Rafael Holdefer Bohrer; Cássio Murilo Dias da Silva | 157

O grande drama se desenvolve quando o uso do Texto Sagrado se


confronta com tema, que a Dei Verbum, Constituição Dogmática sobre a
Revelação Divina, chama de Inspiração Divina e a Interpretação da Sa-
grada Escritura, em seu terceiro capítulo. O que está cunhado pela
Tradição e assumido pelo Magistério é que “toda escritura inspirada por
Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça,
a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa
obra” (Conf. 2Tm 3,16-17). Sendo assim, “as coisas reveladas por Deus que
se encontram e manifestam na Sagrada Escritura, foram escritas por ins-
piração do Espírito Santo” (DV 13).
Infelizmente, a interpretação da Escritura, é feita não apenas para
esses fins, mas como força de manobra para um grupo. A fuga da ciência
na interpretação leva o leitor e interprete a usar o texto apenas para con-
firmar sua leitura como canônica.

Entre os pentecostais alguns discursos são importantes para a construção do


fundamentalismo religioso, como a lógica do triunfalismo e da cura, que en-
volvem a teologia da prosperidade e a teologia do domínio. A primeira reforça
o sentido individual da possibilidade cristã de felicidade e prosperidade ter-
rena, a partir da fé e de seu comprometimento com a igreja. Já a segunda
aponta que, para a realização dessa felicidade, é necessário se inserir na bata-
lha espiritual contra o Diabo, sendo este o responsável de todos os males da
humanidade, e que os crentes devem resistir as tentações e pecados deste.
(ARAGÃO e VICENTE, 2020, p. 173-174)

Outro mal do fundamentalismo, o texto passa a ser usado para sus-


tentar o que o líder quer e não o contrário. Ainda, essa leitura é feita sem
levar em consideração outro ponto que a Dei Verbum deixa bastante claro
ao afirmar que para ler como mesmo Espírito que fora escrito é preciso
estar atento ao conteúdo e a unidade toda da Escritura, bem como para
158 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

descobrir as reais intenções dos hagiógrafos é preciso levar em conta os


gêneros literários.
O uso dele na religião é algo que preocupa, não se está só maculando
e conduzindo a Palavra de Deus, o que já é bastante grave, mas vidas estão
em risco. Nesse período de pandemia, quantos abusos em nome do pres-
tígio e da aceitação. Muitos líderes religiosos assumindo posturas baixas e
pouco cristãs, fundamentando seus discursos simplistas na Escritura. O
uso desse diabólico instrumento afeta a vida em níveis vitais como mos-
trado por Aragão e Vicente:

O uso da religião como manipulação ainda é um instrumento de controle sobre


os corpos e subjetividades em alguns contextos. Por mais que os princípios da
Reforma Protestante aponte caminhos para uma fé mais individualista e pri-
vada, no campo popular brasileiro a realidade é oposta. Para Ronaldo: “As
pessoas não foram preparadas para serem independentes. Foram preparadas
para serem dependentes do ditador trazido para a igreja”. Um elemento que
alguns desses líderes traziam, e ainda trazem, é a cura. Um exemplo é o vídeo
publicado no Youtube em que o pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus,
Valdemiro Santiago, promete a cura do coronavírus através da compra de se-
mentes de feijão abençoadas, pedindo o “propósito” de R$1 mil por elas. Após
inúmeras críticas, a IMPD emitiu uma nota alegando que não vendiam semen-
tes, nem prometiam a cura. No dia 11 de maio o MPF (Ministério Público
Federal) solicitou que o YouTube retire do ar vídeos, e continua investigações
em relação a “curas mágicas”. Os esgarçamentos de tais discursos podem ser
um ponto de fissura no fundamentalismo religioso. (ARAGÃO e VICENTE,
2020, p. 175)

As raízes desse mal estão em toda a sociedade, não se concentram


apenas nos púlpitos religiosos. A partir desse ponto, tendo conhecido mais
sobre o que se compreende por fundamentalismo, sabendo que pode e que
está em muitos lugares da sociedade e que causa um grande estrago apre-
sentar-se-á dois exemplos de discursos políticos que fazem uma leitura
Rafael Holdefer Bohrer; Cássio Murilo Dias da Silva | 159

pouco profunda do texto e que apenas o usam para legitimar, ou mesmo


arrastar massa, com seu discurso. Importante ressaltar ainda que a pes-
quisa, a qual origina-se esse artigo, está no seu início e, por isso, são poucos
os discursos analisados bem como sua análise carece de maiores desenvol-
vimentos.
Discurso do Presidente da República em 04/03/2021: “Não temas” -
justifica uma segurança divina para sair de casa e não deixar para depois
questões financeiras. Mas pode-se afirmar que esses trechos façam refe-
rência a uma garantia divina para que a pessoa se coloque em risco? Para
tal, analisa-se as vezes em que esse texto aparece no Texto Sagrado e com-
para-se a aplicação no discurso político.
Mais de 60 citações em toda Bíblia3: Gênesis: 5x; Números:1x; Deu-
teronômio: 6x; Josué: 2x; Juízes: 2x; Rute:1x; Samuel: 5x; Reis: 3x;
Crônicas: 2x; Tobias:2x; Judite:1x; Ester:1x; Salmos:1x; Macabeus:1x; Ecle-
siástico:3x; Isaías:7x; Jeremias: 3x; Ezequiel: 2x; Daniel:2x; Joel:1x;
Sofonias:1x; Mateus:1x; Marcos:1x; Lucas: 4x; João: 1x; Apocalipse: 4x.
Delimitando a análise ao texto livro do Gênesis, percebem-se cinco
citações. Na sequência, em itálico o versício bíblio e logo abaixo breve re-
flexão exegética. São elas:
Depois desses acontecimentos, a palavra do Senhor foi dirigida a
Abrão, numa visão, nestes termos: “Nada temas, Abrão! Eu sou o teu pro-
tetor; tua recompensa será muito grande”. (Gênesis 15, 1)
Relato da Aliança. Funde dois temas fundamentais: descendência e a
posse da nova terra. Abraão está num empasse: “sair” para “entrar”. Mas
sair da cultura fechada para o encontro com Deus (subjetividade), pois está
trancado em casa (nos problemas domésticos da herança). Por causa desse
desafio YHWH lhe diz: “não temas!”.

3
Segundo uma ferramenta de pesquisa da internet.
160 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Deus ouviu a voz do menino, e o anjo de Deus chamou Agar, do céu,


dizendo-lhe: “Que tens, Agar? Nada temas, porque Deus ouviu a voz do
menino do lugar onde está. (Gênesis 21, 17)
Consolo de Agar. Agar está temendo o que pode acontecer a seu filho
pelo desprezo da madrasta. Abraão, sendo pais de ambos, reconhece em
Ismael as primícias de sua virilidade. Mas é aconselhada pelo próprio
YWHW a aceitar as condições de Sara, pois proveria descendência a seu
primogênito. Por isso, o anjo vem e diz a ela: “não temas!”.
Durante as dores do parto, a parteira disse-lhe: “Não temas, porque
ainda terás este filho”. (Gênesis 35, 17)
Um relato de parto. As dificuldades próprias desse momento forçam,
junto ao dramático contraste da vida e morte, uma palavra de consolo:
“não temas!”.
E Deus disse: “Eu sou Deus, o Deus de teu pai. Não temas descer ao
Egito, porque ali farei de ti uma grande nação. (Gênesis 46, 3)
Relato de comunicação. Antes de abandonar o território Jacó tem
uma visão. Uma palavra que legitima a promessa de que seria no Egito que
se desenvolveria nação escolhida. Por isso, um estímulo: “não temas!”.
O segundo exemplo foi retirado da Assembleia Convencional de 2021
- Assembleia de Deus em Manaus/AM em 27/10/2021, também um dis-
curso do Presidente da República no qual se percebe além do
fundamentalismo já encontrado no texto anterior um pensamento ligado
a Teologia da Retribuição (TdR).
Segue: “...quando você se empenha, ..., tem fé, você atinge seu obje-
tivo” – justifica a fé como condição para a prosperidade.
Pode-se afirmar que a TdR funciona? Seu princípio básico: “aqui se
faz, aqui se paga”. Portanto as consequências das ações humanas ainda
nesta vida podem ser em duas ordens: para o justo: saúde, vida longa, ri-
queza, felicidade; para o ímpio: doença, vida breve, pobreza, infelicidade.
Rafael Holdefer Bohrer; Cássio Murilo Dias da Silva | 161

Algumas frases equivalentes: “Mentira tem perna curta”; “Deus é justo:


tarda, mas não falha”; “Que mal eu fiz a Deus para merecer isso?”; “No
fim, tudo dá certo. Se ainda não deu certo...” Dois riscos dentro desse dis-
curso são, primeiro colocar Deus abaixo da TdR – será Ele obrigado à
retribuição? E o segundo, coagir o agir humano – se o comportamento
humano é fruto do medo pelo castigo, há liberdade no agir?
Retoma-se a pergunta inicial: com qual equivalência hermenêutica-
exegética trechos são retirados da Sagrada Escritura, e amarrados na prá-
tica discursiva?

Conclusão

Com isso, não se quer afirmar que toda linguagem política esteja em
desarranjo com teologias específicas, mas apenas que é uma prática muito
frequente apresentar interpretações ou mesmo trechos sagrados empre-
gando-os de forma literal com as mais variadas finalidades: legitimar o
assalto ao poder, justificar desmandos e autoritarismos etc. A isso, dá-se o
nome de leitura fundamentalista da Bíblia, uma prática que corrompe o
texto fonte e o público-alvo. Um texto só pode ser adequadamente aplicado
se observado o contexto sócio-histórico em que surgiu, bem como respei-
tado os efeitos que o autor queria produzir em seu tempo. Soma-se a essa
prática a Teologia da Retribuição, pois carrega em si elementos próprios
de um fundamentalismo religioso. Espera-se com isso, ampliar e valorizar
mais o texto Sagrado não o reduzindo a um argumento descontextuali-
zado. Pois acreditar de forma completa, literal, inflexível; praticar de forma
cega, inegociável, intolerante; legitimar abusos, imposições, silenciamen-
tos, violências em nome da fé é uma ação diabólica. É mister estar atento
e alerta frente ao fundamentalismo religioso que afeta a grande política,
quanto, por outro, à tentação mais sutil do fundamentalismo econômico e
162 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

político, lembrando que esse último, lamentavelmente, está latente na so-


ciedade hoje.

Referências

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______. C. M. D. D. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007.

______. C. M. D. D. A bíblia não serve só para rezar. São Paulo: Edições Loyola, 2011
10

O canto da “Igreja em saída”: uma releitura


do Magnificat à luz da Evangelii Gaudium

Vinícius da Silva Paiva 1


Rafael Martins Fernandes 2

Introdução

Nesta breve reflexão pretende-se, a partir do cântico de Maria (Lc


1,46-55), traçar um paralelo entre o Magnificat e a Exortação apostólica de
Francisco – Evangelii Gaudium – sobre o anúncio do Evangelho no mundo
atual, sobretudo em relação à proposta de uma “Igreja em saída” (EG 20),
possibilitando assim a releitura do texto lucano em perspectiva socioecle-
sial. No acontecimento da Encarnação e na figura histórica de Maria de
Nazaré, destacamos, nesta pesquisa, a confluência de três importantes sa-
beres teológicos: a Pneumatologia, a Mariologia e a Eclesiologia. São como
três afluentes que recebem mananciais da narrativa bíblica da Visitação
(Lc 1,39-55) e podem ser relacionados com as três funções pneumatológi-
cas visibilizadas em Maria, elencadas por Xabier Pikaza: intimidade,
criatividade e encontro (PIKAZA, 1987, p. 97). Essas funções são expressas
no Magnificat por meio de uma tríade: (i) canto de alegria que brota da
intimidade com o Senhor; (ii) canto de profecia criativa; (iii) canto de mis-
são que gera encontro. A tríade remete também ao modo de atuação do
Espírito Santo na Igreja, como será demonstrado nas páginas a seguir. O

1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS). Bolsista CAPES. E-mail: teologodemaria@gmail.com
2
Professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS) e Bolsista do Programa Nacional de Pós-doutoramento (CAPES). Porto Alegre, RS, Brasil. E-
mail: rafael.martins@pucrs.br
Vinícius da Silva Paiva; Rafael Martins Fernandes | 165

escopo desta demonstração é iluminar, sob o ponto de vista mariológico,


a proposta de Francisco por uma “Igreja em saída”.
Atualmente, há setores eclesiais que têm dificuldade em compreen-
der o projeto missionário de Francisco, afirmando-o como demasiado
social, de tons ecológico, político, interreligioso e que, por isso, extrapola-
riam a missão espiritual da Igreja. O estudo da ação do Espírito Santo em
Maria é útil para demonstrar a unidade entre o “ser” e a “práxis” cristã no
mundo, bem como evidencia a insuficiência de uma visão dualista do se-
guimento de Cristo, na qual Igreja e mundo estariam simplesmente
separados.
Nesta pesquisa, destacar-se-á, de modo especial, a segunda parte do
Magnificat, pois revela a aplicabilidade da mensagem cristã no ethos social
e à luz da Evangelli Gaudium explicita a importância da dimensão social
da evangelização. A intervenção de Deus na História, por meio da “força
de seu braço” (Lc 1,51a), interpela a Igreja à causa da libertação a partir do
mover do Espírito, integrando, desta forma, o espiritual e o social. Do iné-
dito encontro bíblico de duas mulheres protagonistas emerge a consciência
crítica a respeito do futuro da humanidade e da própria missão e vocação
da Igreja.

1 Canto de alegria e de intimidade

Uma das definições mais belas sobre o Magnificat foi dada por Mar-
tim Lutero, comparando-o com a água quente que ferve e se derrama por
causa do calor, “assim também são todas as palavras da bem-aventurada
virgem neste cântico. São poucas e, mesmo assim, profundas e grandes
(LUTERO, [2016], p. 63). Essa experiência de transbordamento marcou a
vida da menina de Nazaré. Quando a Igreja reconhece nos lábios de Maria
a afirmação “O Senhor fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,49), está
cantando não só o inaudito acontecimento da Encarnação, mas também o
166 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

jubilar mistério pascal de Cristo que se inicia em Maria. O canto do Mag-


nificat é marcado pelo verbo grego agalion (Lc 1,47) que significa “exultar”,
o mesmo verbo aparece no estremecimento de João Batista no ventre de
Isabel (Lc 1,44), e na exultação de Jesus no Espírito ao louvar o Pai pela
verdade revelada aos pequeninos (Lc 10,21). Portanto, o tema da alegria é
parte estrutural do evangelho de Lucas e que, além de dar nome à Exorta-
ção Apostólica de Francisco, “enche o coração e a vida inteira daqueles que
se encontram com Jesus” (EG 1).
Maria canta sua história, mas a bem-aventurança sobre si mesma (Lc
1,48) não é autorreferencialidade. Segundo Clodovis Boff, “Maria irrompe
em louvor pelo fato de que ela é testemunha e partícipe do evento esperado
pelos séculos: a vinda do Messias e a salvação que ele traz” (BOFF, 2006,
p.334) e sua alegria é em função de um acontecimento maior que lhe toca,
de uma experiência de encontro com a “sombra de Altíssimo” (Lc 1,35)
como genuína expressão de sua intimidade com Deus.
Brustolin, comentando a relação entre o encontro de Maria com a
“sombra do Altíssimo” e a passagem de Êxodo 40,34, no qual a nuvem
cobria a tenda da Aliança no Antigo Testamento, assim se pronuncia:

Do mesmo modo como a nuvem pairou sobre a tenda da Arca, o Espírito cobre
Maria com sua sombra, consagrando seu seio virginal com a presença daquele
que outrora era reconhecido como o habitante do Santo dos Santos. Ele
mesmo faz do seio de Maria uma shekiná, uma tenda para sua morada. Não
mais um templo feito por mãos humanas, mas a carne da virgem filha de Sião
torna-se o santuário mais excelso para o Filho da Santíssima Trindade parti-
cipar da experiência humana em sua forma mais profunda: a encarnação
(BRUSTOLIN, 2017, p.26).

A alegria em Maria está diretamente ligada à sua experiência pneu-


mática. É uma alegria que brota da mística da Encarnação expressa em
sua relação maternal com o Filho de Deus por meio do Espírito. Uma
Vinícius da Silva Paiva; Rafael Martins Fernandes | 167

alegria que a faz cantar, profetizar e sair alegremente em missão. Como é


possível manter permanentemente essa alegria evangélica a não ser por
meio de uma profunda intimidade com Deus? A palavra íntimo tem sua
origem no termo latino intimus, que é superlativo de intus, que significa
“dentro”; portanto, se houvesse um sinônimo na língua portuguesa para
descrever o que significa a expressão “íntimo”, tal palavra seria “dentrís-
simo”. Vale lembrar que o tema da interioridade é um importante capítulo
da bimilenar história do Cristianismo 3. Quem pode precisar ou mensurar
a insondável alegria de Maria ao acolher o Verbo, associando-lhe sua pró-
pria existência por meio da entrega maternal de todo seu ser?
Segundo Xabier Pikaza, “Maria é a intimidade aberta a Deus. A partir
de sua resposta afirmativa e como efeito da presença do Espírito, ela se
converte em lugar da fecundidade intradivina” (PIKAZA, 1987, p.98). Ela
não perde sua condição criatural, como pretendeu Leonardo Boff em seu
teologúmenon da espiritualização hipostática (L. BOFF, 2012, p. 138), mas
se torna “sinal de transparência do Espírito” (PIKAZA, 1987, p. 98). Esse
tipo de diafania, pela qual o vidro não retém a luz que passa, é a base para
a compreensão do mistério de Maria: uma intimidade que consagra, hu-
maniza e santifica sua existência. Por isso Cantalamessa se refere a ela
como “a criatura pneumática por excelência” (CANTALAMESSA, 2002, p.
190) e “a maior carismática da história da salvação” (IBIDEM, p. 188). É
por isso que o mistério da relação de Maria com o Espírito Santo é um
mistério de alegria e de intimidade, é por esse motivo que seu canto co-
municou o Espírito a João Batista no ventre de Isabel (Lc 1,44).
Quando a Igreja canta o Magnificat expressa também sua alegria e
intimidade no Espírito Santo – uma alegria transbordante e uma

3
Cita-se, entre os escritos da tradição cristã que põe em evidência a importância da interioridade, as Confissões de
Santo Agostinho. Ele diz: “Tarde te amei! Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu Te amei!
Eis que estavas dentro, e eu, fora – e fora Te buscava, e me lançava, disforme e nada belo, perante a beleza de tudo e
de todos que criaste. Estavas comigo, e eu não estava Contigo” (SANTO AGOSTINHO, [1997], p. 180).
168 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

intimidade diária. Cada oração de Vésperas, ao recitar o canto de Maria,


faz ressoar na Igreja universal e local o júbilo do acontecimento da Encar-
nação como evento salvífico. Não se trata apenas de uma hermenêutica
espiritualista, muito pelo contrário, são palavras que comunicam uma ale-
gria encarnada, que possui efeitos colaterais e duradouros, uma alegria do
Espírito e, por isso, uma alegria profeticamente criativa.

2 Canto de profecia e de criatividade

A realidade social não está fora do campo de atuação da Igreja. O


Magnificat, enquanto canto da “Igreja em saída”, traz em sua segunda
parte (Lc 1, 51-53) seu núcleo profético, que não pode ser ignorado sob o
risco de descaracterização da figura histórica de Maria e do ethos da pri-
meira comunidade cristã, que o adotou como canto litúrgico. Clodovis Boff
em sua célebre obra de Mariologia Social, destaca que “a Virgem do Mag-
nificat é uma mulher realista, de olhos abertos sobre o mundo. Sabe que
existem poderosos e humildes, ricos e pobres, e sabe também que os po-
derosos oprimem os humildes e os ricos espoliam os pobres. É uma
mulher – como se diria hoje – que tem consciência crítica” (C. BOFF, 2006,
p. 360). Se na primeira parte do canto, a relação é entre Deus e Maria, na
segunda aparecem outras pessoas: os dispersados (Lc 1,51), os destronados
e os exaltados (Lc 1,52), os despedidos de mãos vazias e os saciados (Lc
1,53).
Portanto, são versículos bastante “movimentados”. No início do as-
sim chamado “núcleo duro do Magnificat” (C. BOFF, 2006, p. 359), parece
haver uma clara indicação do que faz o canto mudar de tom, ou seja, deixar
de ser um canto exclusivamente de louvor e passar a ser também um canto
profético – essa é uma verdadeira “dobradiça” no texto: “Agiu com a força
de seu braço” (Lc 1,51a). Existe uma atuação divina, uma intervenção de
Vinícius da Silva Paiva; Rafael Martins Fernandes | 169

Deus na história que se dá pela encarnação do Verbo e isso é percebido,


testemunhado e cantado pela Igreja primitiva.
Heribert Mühlen é categórico ao afirmar que “a Igreja primitiva era
um movimento baseado na experiência pentecostal” (MÜHLEN, 1983, p.
7), mas que ao mesmo tempo fazia uma “experiência social de Deus”
(IBIDEM, p. 6):

Os primeiros cristãos não podem celebrar a Eucaristia uns com os outros, sem
antes terem realmente ordenado as suas relações sociais! O culto religioso da
Igreja primitiva não era, portanto, apenas um rezar social, para o qual cada
um contribuía com alguma coisa, senão também, simultaneamente, um exer-
cício de relacionamento social bem concreto, e isso precisamente em
consequência da experiência do Espírito, a qual fundamentava tudo (IBIDEM,
p. 50).

A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium dedica um capítulo inteiro


(Cap. IV) ao tema da dimensão social da evangelização e reconhece que
“cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus
a serviço da libertação e da promoção dos pobres” (EG 187). A opção pre-
ferencial pelos pobres não é ideológica, mas sim uma categoria que
convida “a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria
que Deus nos quer comunicar através deles” (EG 198). Isso exige abertura
à ação de Deus para que a “força de seu braço” (Lc 1,51a) transforme louvor
em profecia, experiência pneumática em experiência social de libertação.
Francisco adverte, com razão, que “qualquer comunidade da Igreja, na me-
dida em que pretende subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem
cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja
a inclusão de todos, correrá o risco da sua dissolução” (EG 207).
O século XXI tem pautado desafios complexos para a humanidade e
tem exigido da Igreja uma postura cada vez mais assertiva em assuntos de
170 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

ordem econômica, social e ambiental. A releitura do Magnificat em seu


viés profético deveria ser capaz de despertar no âmbito eclesial um senso
de corresponsabilidade pelo futuro da humanidade e pelo destino das na-
ções. Para que esse cântico continue chegando às sucessivas gerações, a
causa do pobre e do planeta não podem ser relegadas a um segundo plano.
É urgente, que através do exemplo de Maria, a Igreja consiga reconhecer
a voz do Espírito no rosto dos pobres e vulneráveis.
Cantar e viver o Magnificat é, portanto, fundamental para a sobrevi-
vência das comunidades eclesiais. Não deve haver divórcio entre o que é
espiritual e o que é social. O Espírito era a força de Deus que dispersava,
derrubava os poderosos, reorganizava a sociedade e não permitia que hou-
vesse necessitados entre eles (At 4, 34). Tratava-se de um tipo de força de
atração que fazia com que os cristãos gozassem da simpatia do povo e por
isso o Senhor lhes acrescentava outros (At 2, 47). É o que Mühlen chama
de “fascinação pneumática” (MÜHLEN, 1983, p. 118) e o que Pikaza chama
de “solidariedade pneumatológica” (PIKAZA, 1987, p. 98) enquanto traço
característico da atuação do Espírito em Maria e na Igreja. Seja como for,
verifica-se que, pelo menos na origem do Cristianismo, a profunda expe-
riência do Espírito não era alienante, mas fundamental para o crescimento
da Igreja. Por isso, a atuação da Igreja em seus primórdios foi orginal-
mente criativa e decididamente profética.

3 Canto de missão e de encontro

Se o anúncio do anjo a Maria é considerado “o primeiro aconteci-


mento eclesial” (PAREDES, 2013, p.213), também pode-se afirmar que o
Magnificat cantado na casa de Isabel (Lc 1,39-55) é a primeira celebração
eclesial da era cristã. Aliás, como destaca a teóloga feminista Ketheleen
Coyle, a visitação é “o encontro de duas mulheres que compartilham a
graça de estarem grávidas de filhos que terão missões especiais no plano
Vinícius da Silva Paiva; Rafael Martins Fernandes | 171

divino de salvação. É a única passagem, em todo o Evangelho, em que duas


mulheres se encontram e ocupam o centro da cena” (COYLE, 2012, p.89).
Trata-se de uma celebração missionária em um novo locus bíblico: ela não
acontece na casa de José, nem no Templo, mas na casa de uma mulher,
cujo marido sacerdote estava mudo por não ter acreditado (Lc 1,20). O
Magnificat acontece a partir da experiência de intimidade de Maria com o
Espírito de Deus (Lc 1,35), que a impulsiona a sair apressadamente ao ser-
viço de Isabel (Lc 1,39) inaugurando “um estilo mariano na atividade
evangelizadora da Igreja” (EG 288).
Maria poderia ter permanecido em sua casa para louvar a Deus por
sua gloriosa gravidez, mas preferiu se arriscar num longo percurso para
servir Isabel e cantar profeticamente a chegada do Reino. No contexto da
Igreja latino-americana, o papel de Maria é especialmente importante,
como nos recorda Lina Boff: “Nós não podemos pensar o cristianismo la-
tino-americano-caribenho do nosso povo sem conhecer o novo modo de
viver esse cristianismo, que tem como uma das marcas mais vivas sua vin-
culação com a pessoa e a vida de Maria” (L. BOFF, 2019, p. 51). E uma das
formas emergentes do catolicismo da América Latina é a piedade popular,
que Francisco considera ser uma “verdadeira expressão da atividade mis-
sionária espontânea do povo de Deus” (EG 122). Nesse sentido, o canto da
Igreja em saída é também o canto do povo. Carlos Galli assim define essa
relação:

A teologia da piedade popular de Francisco parte de uma eclesiologia que


pensa a relação entre a Igreja e o Mundo como admirável troca entre o Povo
de Deus e as culturas dos povos. A piedade popular se apresenta como a forma
peculiar de viver a fé da parte do povo cristão e católico no âmbito de uma
determinada modalidade cultural (GALLI, 2018, p. 23).
172 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

A piedade popular mariana nem sempre foi reconhecida como um


relevante locus teológico pela comunidade acadêmica. A teologia do povo
e de forma particular sua mariologia, foi, por vezes, considerada um lugar
secundário para a reflexão teológica sistemática, que se interessava mais
pelos dogmas do que pelo povo. Com o advento do pontificado de Fran-
cisco, a Igreja é convidada a deixar seus muros e a se aventurar pelas
estradas enlameadas a procura de seus filhos (EG 49) para gerar comu-
nhão. Pikaza afirma que o Espírito Santo “é poder de comunhão: é o
encontro que se torna realidade, mistério de coessência e abertura mútua
em que as pessoas se ligam e se enriquecem” (PIKAZA, 1987, p. 97). Fran-
cisco ressalta que se trata de uma “intimidade itinerante” que se dá na
“comunhão missionária” (EG 23), uma comunhão construída no caminho,
a exemplo dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).
A “Igreja em saída” é a comunidade dos discípulos missionários que
‘primeireiam’, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e feste-
jam (EG 24). O Papa explica que o neologismo “primeirear” significa
tomar a iniciativa. A Igreja em saída é aquela que toma a iniciativa, que se
mistura e se conecta às outras realidades do mundo. A exemplo de Maria
na Visitação, é uma Igreja-mãe que sai em “direção aos outros para chegar
às periferias humanas” (EG 46). Não basta saber-se mãe, é preciso falar e
agir como mãe (EG 139). Um dos ícones de Maria que retrata de forma
belíssima sua condição maternal é o da galaktotrophousa – a virgem que
amamenta. A Igreja não deve ter vergonha de sair e amamentar em pú-
blico, de oferecer o leite espiritual do querigma aos recém-nascidos na fé,
nem de estar com seus filhos em suas lutas e sofrimentos no mundo. Fran-
cisco enxerga nessa pastoral em chave missionária o convite do Espírito
para que todos sejam “ousados e criativos nesta tarefa de repensar os ob-
jetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas
Vinícius da Silva Paiva; Rafael Martins Fernandes | 173

comunidades” (EG 33). O Magnificat relido sob o prisma da missão e do


encontro é o autêntico canto da “Igreja em saída”.

Considerações finais

Este breve ensaio sobre a ‘Igreja em saída’ quis recuperar a força te-
ológica do evento da Encarnação. O mistério da encarnação do Verbo traz
consigo o mistério da atuação do Espírito e recapitula a história da salva-
ção. Como já dizia Irineu de Lion, “o homem, modelado no princípio pelas
mãos de Deus, isto é, o Filho e o Espírito, vai crescendo na imagem e se-
melhança de Deus” (IRINEU DE LION, [1995], p. 323). O Cristo e o Espírito
Santo são as duas mãos abertas do Pai que acolhem maternalmente essa
humanidade criada à sua imagem e semelhança. A figura de uma Igreja-
mãe que sai à procura de seus filhos pode representar a grande guinada
eclesial do Cristianismo no século XXI. Essa pastoral em chave missioná-
ria, cujo programa foi brilhantemente delineado por Francisco na
Evangelii Gaudium, além de revelar a lógica da Encarnação, indica as qua-
lidades necessárias da “Igreja em saída”: uma igreja alegre, profética e que
vai ao encontro dos mais vulneráveis.
O canto do Magnificat, bem como a Mariologia, está a serviço dessa
reflexão na medida que, como sugere Xabier Pikaza, podemos contemplar
na vida de Maria a luz diafânica do Espírito. A relação de Maria com o
Espírito Santo sugere uma mística muito próxima daquela que Karl
Rahner previu para o cristão do futuro: “o cristão do futuro ou será mís-
tico, isto é, pessoa que ‘experimentou’ algo, ou não será cristão” (RAHNER,
1967, p. 25). O Magnificat é o transbordamento da experiência mística de
Maria, uma experiência que integra louvor e profecia, pneumatologia e li-
bertação, comunhão e missão. A dimensão social da evangelização tão
evocada por Francisco no capítulo IV da Evangelii Gaudium ganha voz e
rostos no encontro protagonizado por duas mulheres – Maria e Isabel. O
174 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

estilo mariano da Igreja inspira-se justamente na experiência pneumática


dessas duas mulheres, que se encontram e partilham da alegria profética
do Reino. O canto de Maria é o canto do povo. Para cantá-lo com fidelidade
bíblica, o Magnificat precisa ser o canto de uma Igreja verdadeiramente
em saída.

Referências

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl.. São Paulo: Paulus, 2012.

BOFF, Clodovis. Mariologia Social: o significado da Virgem para a sociedade. São Paulo:
Paulus, 2006.

BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

BOFF, Lina. Mariologia: Interpelações para a vida e para a fé. Petrópolis: Vozes, 2019.

BRUSTOLIN, Leomar. Eis tua mãe: Síntese de Mariologia. São Paulo: Paulinas, 2017.

CANTALAMESSA, Raniero. Maria, um espelho para a Igreja. Aparecida: Santuário, 2002.

COYLE, Kathleen. Maria tão plena de Deus e tão nossa. São Paulo: Paulus, 2012.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium, a alegria do Evangelho: sobre o anúncio do Evangelho no


mundo atual. São Paulo: Loyola: Paulus, 2013.

GALLI, Carlos María. Cristo, Maria, a Igreja e os povos: A mariologia do Papa Francisco.
Col. A Teologia do Papa Francisco, Vol. 5. Brasília: CNBB, 2018.

IRINEU DE LION. Contra as Heresias: Denúncia e refutação da falsa gnose. São Paulo:
Paulus, 1995. (Coleção Patrística).

LUTERO, Martim. Magnificat: O Louvor de Maria. Aparecida: Santuário, 2016.


Vinícius da Silva Paiva; Rafael Martins Fernandes | 175

MÜHLEN, Heribert. Fé cristã renovada: carisma, Espírito, libertação. São Paulo: Loyola,
1983.

PAREDES, José Cristo Rey Garcia. Mariologia: síntese bíblica, histórica e sistemática. São
Paulo: Ave-Maria, 2011.

PIKAZA, Xabier. Maria e o Espírito Santo: Notas para uma mariologia pneumatológica. São
Paulo: Loyola, 1987.

RAHNER, Karl. Espiritualidad Antigua y Actual. In: Escritos de Teología. Vol. VII. Madrid:
Taurus, 1967.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo:
Paulus, 1997 (Coleção Patrística).
11

Marronnage: ponto de recusa da escravidão e


eclosão da cultura afro-haitiana

Wilner Charles 1

Introdução

Nesta breve reflexão, propomos de apresentar um recorte da redação


da tese, intitulada “INCULTURAÇÃO DA FÉ: perspectivas religiosas e cul-
turais dos afro-haitianos”. Trata-se de perceber mediante diversas
manifestações religiosas, como os afro-haitianos entendem a inculturação
da fé. O descendente afro une o culto e a cultura uma vez que o ritual cul-
tual dá origem à cultura. Este artigo, como recorte da tese, concentra-se
em volta da temática: MARRONNAGE COMO PONTO DE RECUSA DA
ESCRAVIDÃO E ECLOSÃO DA CULTURA AFRO HAITIANA. Nosso objetivo
é apresentar os diversos sentidos e função da expressão marronnage no
percurso histórico dos afro-haitianos. Para atingir esse objetivo, especifi-
caremos e desenvolveremos os subtemas a seguir: contextualização;
quatro níveis de cultura afro-haitiana em base de marronnage; as vias ide-
ológicas da marronnage como caminho da salvação; novo sentido de
marronnage hoje na sociedade haitiana; formação integral da atual cultura
afro haitiana; marronnage como deserto para repetir a experiência espiri-
tual dos antepassados; nova identidade religiosa da cultura afro-haitiana;
marronnage como recepção do outro sem negar a si mesmo. São estes
pontos que pautarão nossa reflexão nas linhas a seguir.

1
Haitiano, padre da Congregação dos Oblatos de São Francisco de Sales, pároco da Paróquia de Santa Isabel, em
Viamão-RS, Brasil. Mestre e doutorando em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. E-mails: charleswilner@yahoo.fr; oblatoosfs@gmail.com
Wilner Charles | 177

1 Contextualização

Marronnage é um movimento que os negros iniciaram a partir de


1501, quando chegaram à América Espanhola. Este movimento significa
protestação violenta contra o estado de coisa que os negros eram conside-
rados. É um movimento que testemunha o espírito e o desejo de liberdade
que constantemente animavam os africanos conduzidos a escravidão para
América. Em toda parte da Ilha que tinha escravizados, havia também um
grupo de fugitivos. Marronnage é forma de resistência dos negros em
busca de liberdade. Revela toda estratégia dos negros em oposição ao sis-
tema escravagista. Marronnge era considerado pelos colonizadores como
crime. Os fugitivos eram sujeitos à pena de morte (PRICE-MARS, 1942, p.
35-36).
O marronnage é o processo em que tudo começa para revelar a ver-
dadeira identidade afro-haitiana. Historicamente, a expressão
marronnage significa na cultura afro-haitiana a fuga e o refúgio de um
sistema que não oferece outra via a não ser que a morte. Desde a chegada
dos primeiros negros à Ilha, já iniciava esse movimento de fuga em direção
às montanhas. Conforme Blot (2005, p. 13-49), marronnage é a forma de
resistência mais organizada dos escravizados. É essa forma de organização
que permitiu que os escravizados elaborassem uma nova alternativa para
criar uma cultura. Surgiram no contexto de marronnage quatro níveis da
cultura afro-haitiana. A seguir trataremos destes níveis.

2 Quatro níveis de cultura afro-haitiana em base de marronnage

Os níveis da cultura afro-haitiana que surgiram no contexto de mar-


ronnage são: nível ecológico, nível econômico, nível sociopolítico, nível
ideológico.
Nível ecológico: os escravizados fugiram para as montanhas. Ali,
nesse novo espaço, criaram uma cultura, alternativa à cultura dominante
178 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

e à cultura das plantações. O marronnage permite aos escravizados de


criar uma estratégia de sobrevivência à margem das plantações e do meio
urbano. O termo em si tem um sentido positivo, mas nunca é aceitável
pela classe dominante.
Nível econômico: os fugitivos organizaram a agricultura familial que
ainda hoje sustenta 70% da população. É uma agricultura de sobrevivên-
cia. Os grupos familiares plantavam batata, mandioca, inhame, malanga e
banana. No Haiti tudo isso é reconhecido como “viv”. A economia da so-
brevivência ainda hoje é forte no meio da população haitiana.
Nível sociopolítico: os escravizados se organizavam para estruturar
seu modo de vida na fuga (marronnage) com uma forma própria de fun-
cionamento do fugitivo. Organizavam grupos de fugitivos e grupos
político-militares que tiveram como missão defender os fugitivos de todos
os tipos de ataques dos colonizadores. Eram reconhecidos como grupos
autodefesas. Estes grupos tiveram como missão de ir de noite ao encontro
das pessoas escravizadas e ajudá-las a tomar consciência da sua situação
desumana. Então, os grupos armados falavam aos escravizados como é
bela a vida nas montanhas e todos são livres. O certo é fugir também para
aumentar o paraíso da montanha. Assim, aumentariam os bandos fugiti-
vos e ganhariam mais forças para combater os opressores (PRICE-MARS,
1942, p. 36). Esse espírito é mantido até hoje, mas é polarizado e os bandos
são conhecidos como criminosos ou gang.
Nível ideológico: Os escravizados, sendo de várias culturas africanas,
criaram uma língua e uma maneira de alimentar a fé no Deus da vida.
Modo certo de alimentar a fé e esperança no Deus da vida é reunir todas
as práticas religiosa oriunda da África sob o nome de Vodu. O verdadeiro
sentido da palavra Vodu na sociedade haitiana hoje é modo de celebrar e
tomar consciência da realidade da dor e do sofrimento da população e as-
sim promover o caminho para a liberação. Na contramão disto
Wilner Charles | 179

infelizmente é alimentado um ensinamento que leva a população a ter


medo até mesmo de repetir a palavra Vodu, enquanto a história mostra
que vodu não é nada mais a não ser que grupos de base que recusam toda
forma de escravidão e de discriminação social para a população afro-hai-
tiana.

3 As vias ideológicas da marronnage como caminho da salvação

São duas as vias ideológicas de marronnage: crioulo e o vodu. Vamos


então apresentar uma breve análise de cada uma dessas vias.

3.1 Crioulo

A criação do crioulo nos grupos fugitivos é uma forma de dizer, num


grupo de base, que todos devem falar a mesma língua apesar das diferen-
ças e barreira culturais. O crioulo é a língua comunicada para recusar toda
forma de escravidão e apontar o caminho da salvação ou libertação. Por
isso a língua crioula é uma língua de suma importância para um ser haiti-
ano. No Haiti o homem livre é aquele aprende a falar crioulo.

3.2 Vodu

O caminho da libertação ou da salvação dos escravizados afro-haitia-


nos passa por duas vias ideológicas: a criação da língua crioula e vodu. Este
último foi durante séculos e ainda hoje desvalorizado. Ele tem um papel
preponderante no processo de desenvolvimento da fé afro-haitiana. É viá-
vel dizer que um bom cristão afro haitiano tem como identidade o vodu.
O haitiano que identifica com o vodu, empenha-se e assume o papel do
profeta de Nazaré eliminando e recusando toda forma de alienação social.
Os escravizados oriundos da África vieram com sua memória e suas
crenças religiosas. Com estas memórias e crenças celebraram seu desejo
profundo de liberdade conforme suas condições materiais de exploração e
de opressão. A convicção religiosa afro-haitiana facilitou os escravizados a
180 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

se distanciar do sistema que os alienou e ainda pensar outra cultura que


promove vida. Por isso, ao se referir ao Vodu, referimos a um povo que
participa na luta, que promove esperança numa vida alternativa ao sis-
tema repressivo. A linguagem do Vodu haitiano é uma linguagem profética
que condena toda forma de violação da vida humana. Por isso Hurbon en-
tende o Vodu como linguagem original da massa, linguagem da frustração
sócio-histórico dos oprimidos. O Vodu é linguagem da resistência face aos
opressores. É a criação dum espaço de reflexão duma dignidade recusada
pelo sistema escravagista. O vodu faz parte da história da liberdade, pois a
história do ser humano é uma história de liberdade (HURBON, 2000).
O Vodu tem sido visto como sendo uma religião específica com de-
terminados rituais, mas a história não nos permite de entender o Vodu
como sendo apenas uma religião que deve ser liberada para funcionar
como sendo mais uma religião. Porém, esse último é o caminho que pro-
põe alguns teólogos e sociólogos haitianos. Propunham esse caminho
porque é a via mais fácil que permite ignorar todo o fenômeno social cul-
tural e religioso que se manifesta num único sujeito. No Haiti,
independentemente de quem professar a fé católica ou outra confissão re-
ligiosa, todos são vinculados à prática do vodu uma vez que são membros
das religiões existentes que se unem para combater o mal que oprime a
vida humana. Quando nós falamos do Vodu, referimo-nos a uma série de
características que englobam todas as realidades afro-haitiana. Simpatiza-
mos com Vonarx (2012, p. 94) ao afirmar que o vodu é base original e
essência da cultura afro-Haitiana e de seu folclórico.
As pessoas que cultivam a espiritualidade afro-haitiana no sentido
religioso não se afirmam por medo de serem rejeitadas pela Igreja Católica
ou outras confissões do Cristianismo. No conjunto das práticas do vodu
encontramos certos elementos religiosos que não são suficientes para ca-
racterizar o mesmo como uma religião com determinados fiéis. No Vodu
Wilner Charles | 181

existem pessoas que buscam de ponto de vista religioso resolver alguns


problemas misticamente. É verdade que Price-Mars, no seu Livro “Assim
fala tio” (2014, p. 47-48), apresenta uma estrutura que mostra o vodu
como sendo uma religião, mas, observando todo fenômeno social, no
modo que os afro-haitianos vivenciam a espiritualidade religiosa do vodu,
deduzimos que os afro-haitianos são pessoas que apresentam uma nova
identidade cristã no seu modo de conversar com Deus. Especificamos a
espiritualidade religiosa, porque no vodu não há apenas uma espirituali-
dade, mas existem espiritualidades. Por exemplo, encontramos uma
espiritualidade artística, de dança, militante, política e outras. Talvez
Price-Mars se refira apenas a algumas confrarias dentro da capital para
chegar à conclusão do Vodu como religião. Mesmo assim, não consegui-
mos comprovar a veracidade de seus argumentos do vodu como religião.
O fenômeno social das práticas do vodu entra na linha de costumes e liga-
ções culturais mais profundas do que uma simples religião.
Podemos concordar com Price-Mars (2014, p. 41) quando escreve a
respeito da crença popular que propomos de analisar com mais profundi-
dade na segunda parte da tese de “INCULTURAÇÃO DA FÉ: perspectivas
religiosas e culturais dos afro-haitianos”, cujo título: “características fun-
damentais do pensamento religioso na expressão cultural afro-haitiana”.
Price-Mars entende como crença popular o conjunto de fenômenos psico-
lógicos designados sob um nome genérico. A crença popular sem dúvida
nasce a partir de vários elementos, costumes e tradições. Ao lado da com-
preensão de Price-Mars sobre a crença popular, podemos contribuir
dizendo, do ponto de vista teológico, que a crença popular é um modo pelo
qual o leigo da teologia faz emergir uma nova reflexão teológica. Geral-
mente essa reflexão teológica, que nasce do leigo da teologia, não é
acolhida pela teologia acadêmica, porque a teológica acadêmica assume a
postura de colonizador, caso que dificulta muitas vezes a inculturação da
182 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

fé. Diante dessa realidade o que precisa conservar é a doutrina de cada


confissão religiosa, mas a teologia precisa sair do cativeiro para respirar o
ar da experiência e vivência cotidiana.
Considerando a expressão de Vonarx (2021, p. 5-6) podemos dizer
que a cultura afro-haitiana passa pelo processo de transição de uma cul-
tura condenada ao de uma cultura valorizada Porque, se durante um
grande período foi falseada pelos discursos do mundo capitalista e pela
Igreja Católica, então com o passar do tempo é vista como espaço exigente
para inculturação da fé cristã. É necessário um método mais eficaz e tole-
rante das culturas locais, pois o conceito de inculturação visa o
enraizamento do cristianismo nas diferentes realidades culturais, sendo
mais tolerantes às diferenças. Inculturação da fé no espaço haitiano requer
agentes pastorais sensíveis aos contextos culturais. Para a Inculturação da
fé é essencial à liberação dos aspectos positivos da cultura local. É preciso
admitir no espaço haitiano um modo de ser e de viver a fé cristã, singular,
mas fundado sobre um evangelho comum. Essa reflexão será aprofundada
no último capítulo da tese sob o título: “inculturação da fé na perspectiva
religiosa e expressão cultural afro-haitiana”.
De fato, a cultura afro-haitiana, o vodu, é uma cultura popular a qual
corresponde à luta e à resistência popular. A fuga dos escravizados alega
no Haiti hoje uma cultura predominante que tome conta da vida cotidiana
da população mais pobre. Em outras palavras o cotidiano da massa haiti-
ana, (quer dizer modo de pensar, agir e crer) foi construído num dado
histórico bem determinado. Foi uma historia dolorida, mas que permitia
de pensar alternativas próprias para recriar a cultura. Está cultura recri-
ada é chamado Vodu. Infelizmente este último é rejeitado pela classe média
do país. Preconceituosamente falar da palavra Vodu é falar de demônio.
Porém, para quem não é cego já pode perceber que, se vodu é um demônio,
Wilner Charles | 183

este último só assume a missão dos anjos para auxiliar a vida do povo de-
samparado (BLOT, 2005, p. 13-49).

4 Novo sentido de marronnage hoje na sociedade haitiana

A expressão marronnage, na cultura afro-haitiana, é uma forma de


salvaguardar a herança e o patrimônio africano no sol haitiano. Neste
termo contemplamos uma visão social, econômica, cultural, política e re-
ligiosa. Portanto, tais visões (referindo a visão social, econômico, cultural,
politica e religiosa) de cunhos africanos devido aos preconceitos alimenta-
dos pelos colonizadores somente podiam sobreviver à base da fuga. Os
preconceitos relativos à herança e ao patrimônio cultural afro-haitiano fo-
ram e ainda são alimentados em quase todos os sistemas sociais do Haiti.
O ser haitiano foi educado para não aceitar a si mesmo. Por exemplo, a cor
negra no Haiti é inaceitável para muitos afro-haitianos. Como fugir dessa
cor malvista e apropriada ao demônio? Muitos usam produtos fortes para
poder clarear a pele como o “fè grimel”. Algumas famílias chamam seu
filho de “Blan”. Muitas mães usam produtos para clarear a pele de seu
filho. Então a palavra marronnage, oriunda do tempo da escravidão, as-
sume várias formas na atual sociedade haitiana. O termo marronnage é
utilizado hoje em dia no sentido de a pessoa se desapropria de sua reali-
dade e se âncora em outra que não é sua.
Sem dúvida, o termo marronnage (FLORENT, 2004, p. 15) hoje ad-
quire o sentido de negatividade, porque a população foi educada a negar
de si mesma e aceitar o outro. Mas parte do próprio contexto em que nas-
ceu o termo marronnage, ele não teve nenhum sentido negativo para os
afro-haitianos. Não foi pensada para ensinar a fugir do verdadeiro “eu”.
Pelo contrário, seu objetivo era de recuperar o verdadeiro “eu” com digni-
dade. É a maneira mais eficaz de organizar os movimentos populares. No
período da escravidão, tempo dos opressores europeus de nacionalidade
184 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Francesa, o “marronnage” foi organizado pelos afro-haitianos em grupos


e assim estes últimos formulavam toda a estratégia para a “abolição ofi-
cial” da escravidão no Haiti. Dizemos “abolição oficial” porque ainda hoje
o espírito escravagista não está desenraizado na mentalidade afro-haiti-
ana, sobretudo na mentalidade dos representantes da população. A
escravidão é alimentada mentalmente. Mas isso não foi a intenção dos pri-
meiros afro-haitianos escravizados que se reuniram no meio do mato para
mobilizar a população. A revolta afro-haitiana 2 teve como único interesse
a liberdade e vida digna por todos os afro-haitianos. Com certeza, nas reu-
niões teve celebrações, convivência e reflexões sobre a dor e sofrimentos
dos escravizados. Claro que os projetos foram desviados no decorrer da
história. Os líderes foram assassinados pela infiltração econômica dos pró-
prios colonizados e traição de alguns escravizados manipulados. Por
exemplo, Jean Jacque Dessaline foi assassinado dois anos depois da inde-
pendência. Boukman, quem apresentou em agosto de 1791 todas as
estratégias a ser usada para vencer a luta, foi morto dois meses depois, ou
seja, em 26 de outubro de 1791. A morte de Boukman serviu como prova
para intimidar os outros afro-haitianos que acompanhavam Boukman na
luta. Foi exposta a cabeça de Boukman numa placa “tête de Boukman chef

2
No outono de 1791, eclodiu a revolução. Num só mês, duzentas plantações de cana foram queimadas; os incêndios
e os combates se sucederam sem trégua, à medida que os escravos insurretos iam empurrando os exércitos franceses
na direção do oceano. As embarcações zarpavam carregando cada vez mais franceses e cada vez menos açúcar. A
guerra verteu rios de sangue e devastou as plantações. Foi longa. O país, em cinzas, ficou paralisado; no fim do século
a produção tinha caído verticalmente. “Em novembro de 1803 quase toda a colônia, antigamente florescente, era um
grande cemitério de cinzas e escombros”, diz Lepkowski. A revolução haitiana coincidira – e não só no tempo – com
a revolução francesa, e o Haiti sofreu na carne o bloqueio da coalizão internacional contra a França: a Inglaterra
dominava os mares. Porém, logo sofreu também, enquanto se tornava inevitável sua independência, o bloqueio da
França. Cedendo à pressão francesa, o Congresso dos Estados Unidos, em 1806, proibiu o comércio com o Haiti.
Somente em 1825 a França reconheceu a independência de sua antiga colônia, mas em troca de uma gigantesca
indenização em dinheiro. Em 1802, pouco depois de ter sido preso o general Toussaint-Louverture, o general Leclerc
escreveu do Haiti para seu cunhado Napoleão: “Eis aqui minha opinião sobre o país: é preciso suprimir todos os
negros das montanhas, homens e mulheres, conservando as crianças menores de 12 anos, exterminar a metade dos
negros da planície e não deixar na colônia nem um só mulato que use farda”. O trópico se vingou de Leclerc, ele
morreu “agarrado pelo vômito negro”, apesar dos esconjuros mágicos de Paulina Bonaparte, e sem poder cumprir
seu plano, mas a indenização em dinheiro foi uma pedra esmagadora nos ombros dos haitianos independentes, que
tinham sobrevivido aos banhos de sangue das sucessivas expedições militares enviadas contra eles. O país nasceu em
ruínas e não se recuperou jamais: hoje é o país mais pobre da América Latina (GALEANO, 2010, p. 65-66).
Wilner Charles | 185

des revoltés”, traduzido assim “cabeça de Boukman, chefe dos revoltados”.


Foi exposto para convencer os discípulos de Boukman que, se continuas-
sem o movimento de libertação, também seriam assassinados. No mesmo
dia da morte de Boukman, Philemon, um padre da Igreja Católica, foi en-
forcado por causa de sua simpatia com os discípulos de Boukaman.
Analisando todo o percurso e estudos relacionados ao termo marronnage,
deduzimos que, na base desse movimento, os escravizados tiveram como
objetivo não só eliminar o sistema escravagista, mas também eliminar
seus autores juntos com a base de seus interesses.

5 Formação integral da atual cultura afro-haitiana

A cultura afro-haitiana encontra-se diante de muita repressão para


se desenvolver numa sociedade que quer cada vez mais o crescimento da
cultura capitalista. Como escreve Hurbon (1979, p. 37), a violência cultural
da realidade afro haitiana desenvolve-se numa relação estreita com a im-
plantação do mundo capitalista, que é uma forma de produção dominante.
A seguir, Hurbon (1979, p. 37) mostra com bons argumentos como a pró-
pria consistência da cultura afro-haitiana tem menos elementos da sua
africanidade como tal na sua forma de atualização da africanidade, en-
quanto força de afirmação e de contestação.
A cultura afro-haitiana foi aprisionada e confinada para aceitar todas
as formas de dominação e repressão. Toda estratégia que poderia fazer
emergir a cultura afro-haitiana foi silenciada durante séculos. A mentali-
dade do povo afro-haitiano ficou presa a uma realidade incompatível com
a sua identidade. A própria educação na sociedade convida a fuga da iden-
tidade. A cultura dominante nem deixa brecha para o afro-haitiano
perguntar sobre o fenômeno que está sendo desenvolvido. Apenas os afro-
haitianos são convidados a receber e preencher seu vazio com os elemen-
tos positivos e que são paralelos a tudo que oriunda do continente africano.
186 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

5.1 Falseabilidade da cultura afro-haitiana

A cultura afro-haitiana passou por um processo de falseabilidade. As-


sim, foi apresentada como um conjunto de superstições e de práticas
escandalosas. Os autores que escreveram sobre a cultura afro-haitiana são
influenciados pelas estratégias de dominação geopolítica como também
por uma leitura evolucionista das sociedades e das tradições religiosas que
projetam uma imagem negativa da cultura afro-haitiana, mediante uma
literatura para-antropológica que pretende informar objetivamente sobre
os costumes haitianos. Quem escreve sobre os afro-haitianos são os euro-
peus e americanos. Estes autores, entre os séculos XIX e XX, construíram
um discurso sobre os afro-haitianos baseado no preconceito da cor e dos
pressupostos relativos à desigualdade racial. Tal discurso justificou o pro-
jeto de dominação política e cultural ocidental, projetando uma realidade
afro-haitiana catastrófica. Os discursos europeus e americanos afirmaram
que a cultura afro-haitiana faz com que o Haiti não entre na linha dos pa-
íses civilizados, pois é um país dirigido pelos escravos revoltados e
mestiços. As críticas do universo europeu e americano apresentaram o
Haiti como um mundo desumano e de práticas demoníacas (VONARX,
2012, p. 1-2).
As críticas negativas não influenciam apenas o mundo externo, mas
também os próprios haitianos se encontram num dilema de desapropriar
de sua identidade para que assim possa ser um ser civilizado. Em outras
palavras ser civilizado é assumir a identidade do outro. Tudo isso levou os
afro-haitianos a desenvolver uma espiritualidade em forma de fuga, a fim
de evitar todas as formas de críticas em relação a sua identidade. Nesse
contexto, o ser haitiano vive numa condição que não o permite expressar
suas verdadeiras convicções. Quer dizer que nem sempre existe uma
Wilner Charles | 187

coerência entre o que faz e o que pratica. É uma realidade que se reflete
no plano social, político, religioso e cultural.

5.2 Desmitificação dos falsos discursos sobre a realidade afro-haitiana

Alguns intelectuais haitianos reagiram contra os falsos discursos que


inferiorizam a cultura afro-haitiana. Estes intelectuais caracterizaram os
discursos estrangeiros como uma leitura racista da realidade afro-haiti-
ana. Demonstram a incoerência dos discursos em relação a realidade afro-
haitiana. Porém, os que defendiam a cultura afro-haitiana dos falsos dis-
cursos deparam com barreiras por parte da Igreja católica. Esta apoiava os
discursos europeus e americanos, uma vez que ela também considerava a
cultura afrodescendente como coisa de demônio e idolatria. A missão da
Igreja era de combater toda realidade que diz respeito à cultura afrodes-
cendente no Haiti. Durante muitos anos a Igreja do Haiti incentivou os
afro-haitianos a renunciarem à sua identidade e a aderirem à cultura eu-
ropeia. A cultura afro-haitiana foi diabolizada. Toda a prática afro-haitiana
foi ensinada à base da literatura para-antropológica como feitiçaria. Tal
ensinamento da literatura faz com que se reproduza a literatura colonial
que inferiorizava a cultura afro-americana considerando-a como práticas
de superstição.
O ser humano é inconcebível fora da sua realidade cultural. Ele é livre
apenas quando aceita e assume sua identidade sem prejudicar o seu opres-
sor, mas mostra que a felicidade nasce à base de comunhão e jamais à base
de divisão. Apesar de toda a repressão, a cultura afro-haitiana nunca perde
a esperança de um dia eclodir. Como diz Hurbon (1979, p. 39), as circuns-
tâncias históricas fizeram com que os afro-haitianos desenvolvessem
estratégias e táticas diversas que os permitiram sair do cativeiro. A cultura
afro-haitiana entendida como o vodu é uma base de resistência contra to-
das as formas de repressão.
188 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

6 Marronnage como deserto para repetir a experiência espiritual dos


antepassados

Marronnage é o horizonte pelo qual se busca reabilitar toda a cultura


afro-haitiana. É a base da reconstrução de um culto africano com criação de
instrumentos indispensáveis para este culto e a produção da língua crioula
que já mencionamos como arma de comunicação entre os escravizados.
Marronnage permite a reabilitação da organização familiar africana. A fuga
dos escravos pode ser considerada como princípio da gestação da cultura
afro-haitiana. Os escravizados não fugiram sem objetivo. Tiveram toda uma
estratégia para confrontar a realidade insuportável. Esta estratégia passa a
reabilitar os valores fundamentais da cultura afro-haitiana.
O marronnage tem um papel preponderante na inculturação de todos
os costumes afro no Haiti. Com a fuga, os escravizados fizeram tudo o que
foi possível para readaptar sua cultura dentro de uma nova realidade. Bus-
caram ressignificar a nova situação, dotar-se de uma força de coesão
cultural. A fuga dos afro-haitianos mostra a toda a humanidade que ne-
nhum grupo social é capaz de abandonar suas tradições de um dia para
outro. Isso é motivo pelo qual que a doutrina cristã sente-se incomodado
com a prática da herança ancestral africana, o Vodu haitiano. Este último
é a memória de um passado rejeitado com força, mas que deixou uma
marca indelével em todas as esferas haitianas na sua dimensão integral.

7 Nova identidade religiosa da cultura afro-haitiana

Por maronnage, entendemos a resistência dos escravizados e não a de-


sistência. Marronnage é um modo de resistência que os escravizados negros
e ameríndios adotaram para escapar a todas as brutalidades e más condições
de vida que sofreram nas plantações. Escaparam assim à falta de alimento,
ao chicote ou à morte e enfrentaram todos os perigos para reencontrar suas
famílias ou simplesmente a liberdade (SUZINI, 2015, p. 4).
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A nova identidade da cultura afro-haitiana inicia quando, a partir do


vodu, começa a emergir outras manifestações culturais. Este fenômeno
tem seu começo entre os séculos XVII e XVIII. Nestes séculos, na base do
Vodu, surgiu uma literatura africana oral. Essa literatura é expressa me-
diante contos e provérbios nas horas de lazer das noites. O culto em honra
aos mortos que é um costume africano foi readmitido no mesmo instante
da fuga.
Quando falamos do Vodu haitiano, não nos referimos apenas a uma
celebração religiosa, tampouco nos referimos apenas a uma força revoluci-
onária. Tampouco não foi desenvolvido apenas na fuga. Há muitas famílias
que alimentaram a espiritualidade afro-haitiana praticando o Vodu como
medicina terapêutica. Para as famílias camponesas o vodu é uma terapêu-
tica. Conceberam o vodu como sinônimo de medicina tradicional. As
famílias praticam esta forma de medicina, mas sempre em segredo. No
Haiti, as famílias têm grande apreço pelas medicinas de base natural indi-
cado pelos pais de santos, ou seja, por alguém da família que já tem uma
experiência amadurecida. Certas práticas que existem no Haiti são impedi-
das oficialmente e isso dificulta a possibilidade de obter dados necessários
da realidade afro-haitiana (VONARX, 2012, p. 10). Na realidade afro-haiti-
ana, falar do vodu para além de uma celebração religiosa compreende todos
os momentos de lazer, convivência, modo de agir e de pensar.
O vodu entra na linha de uma cultura popular. Esta última comporta
uma consistência própria. É fruto de resistência a uma séria de agressão
cultural e de desapropriação das forças simbólicas. Por exemplo: a língua
crioula, a música, dança popular, cerimoniais religiosos em casa, literatura
oral (folclórico), contas, legendas, provérbios, pinturas e outros
(HURBON, 1979, p. 196).
As pessoas que praticam a devoção aos santos fazem ligação dessas
práticas à espiritualidade afro-haitiana. Tal devoção é desviada ao que nós
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chamamos de exotérico. Os santos da Igreja Católica são ligados a outras


divindades desconhecidas. Tal versão é entendida por alguns teólogos e
etnólogos como simbiose ou sincretismo.
Em relação ao sentimento religioso dos afro-haitianos, podemos ale-
gar que a maioria é cristã da Igreja Católica. Outros são adeptos das igrejas
reformada, batista, adventista e metodista (PRICE-MARS, 2014, p. 135).
Porém, na prática, a nova identidade religiosa da cultura afro-haitiana é
desenvolvida a base de marronnage. É dessa identidade religiosa que se
precisa partir para entender como os afros-haitianos entendem a questão
da inculturação. Sabemos como os missionários impediram que os afros-
descendentes desenvolvessem a sua fé ancestral para que o cristianismo
pudesse ser implantado. As culturas ancestrais foram obrigadas a buscar
uma alternativa de sobrevivência. Assim, a expressão marronnage foi seu
método de resistir sem desistir. Todas as práticas ancestrais foram assu-
midas numa forma de marronnage (JOINT, 1999, p. 53).

8 Marronnage como recepção do outro sem negar a si mesmo

Marronnage é uma forma de receber o outro sem sair de si mesmo.


Pois, o objetivo dos escravizados era de diluir as diferentes práticas religi-
osas numa cerimônia única. É dessa forma que pensavam acolher os
ensinamentos dos missionários sem abandonar também suas práticas an-
cestrais. A melhor maneira de conjugar a prática dos missionários com a
prática ancestral africana é implantar a espiritualidade ancestral africana
na estrutura das práticas dos missionários europeus (JOINT, 1999. p. 53).
Quer dizer, os afrodescendentes usam o cristianismo como um caminhão
para carregar suas bagagens espirituais.
Os afrodescendentes e os euro-descendentes podem reunir e rezar no
mesmo espaço, mas cada um com suas bagagens espirituais e convicções
diferentes, mas a forma que orienta é o catolicismo. Essa realidade não
Wilner Charles | 191

existe apenas no Haiti, mas em vários outros países da América cremos


que a Igreja Católica é apenas uma formalidade, uma representação para
o povo, mas o conteúdo da fé sobrenatural é outro. Por sobrenatural,
afirma-se a crença em um ser superior. A fé natural é algo mais racional
que impulsiona a trabalhar para erradicar toda forma de pobreza no
mundo. Claro que a fé natural e a fé sobrenatural são inseparáveis para
um ser cristão.
Grosso modo, marronnage contribuiu na formação da nova identi-
dade religiosa e cultural afro-haitiana. Esta última é a compreensão do ser
religioso cristão no Haiti. A compreensão do ser religioso cristão é unificar
as partes para formar um todo que se dá no sincretismo ou na simbiose.
Assim, para entender a prática religiosa no Haiti, é necessário perceber
esse fenômeno e aproximá-lo sem nenhum preconceito.

Considerações finais

Observando os passos desenvolvidos no corpo deste artigo, deduzi-


mos que marronnage é ponto de recusa da escravidão e eclosão da cultura
afro-haitiana. Percebemos que, à luz de marronnage, foi desenvolvida toda
uma estratégia social, política, cultural e religiosa para que o sistema es-
cravagista chegue a ponto final. A compreensão do sentido de marronnage
no percurso histórico afro-haitiano permite compreender ao mesmo
tempo o modo de agir e de pensar em diversas disciplinas. O ser afro-hai-
tiano é constituído à base de marronnage. Este último pode ser entendido
numa alternativa negativa, mas, percorrendo os eventos históricos, pode-
se perceber que é uma expressão que se aproxima mais de uma alternativa
positiva do que negativa. Porque, ao longo dessa reflexão, percebemos cla-
ramente que marronnage assume como função a libertação do ser afro-
haitiano de toda a alternativa de escravidão. O termo marronnage surge
como modo de resgatar a dignidade humana conforme a vontade de Deus.
192 | III Semana Acadêmica do PPG em Teologia da PUCRS

Marronnage é o método para evitar toda forma de escravidão e de coloni-


zação para que a identidade humana seja respeitada e conservada em base
de sua cultura sem recusar a presença das outras bases culturais.

Referências

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National d’Etnologie, n. 1. Haiti: 2005. Pp. 13-49.

FLORENT, Françoise. Le Vaudou en Haiti: La magie d’un culte bafoué par l’histoire. Haïti:
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GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2010.

HURBON, LAënnec. Culture et dictature em Haïti: L’imaginaire sous contrôle. Paris: Les
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PRICE-MARS, Jean. La contribution haïtienne à la lutte des Ameriques pour les libertés
humaines. Haiti: Port-au-Prince, Imprimerie de l’État, 1942.

SUZINI, Carrefour. Sur les chemins de la liberté, 2015. Disponível em: https://hist-
geographie.dis.ac-guyane.fr/sites/hist-geographie.dis.ac-guyane.fr/IMG/pdf/livret-
marronnage-v8.pdf Acesso em 20/11/2021.

VONARX, Nicolas. Le Vodou haïtien: Entre médecine, magie et religion. Rennes, Presses
universitaires de Rennes, 2012.
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