Você está na página 1de 3

05/07/2022 18:15 Folha de S.

Paulo - O desafio japonês - 15/12/1996

  São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996

Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice

O desafio japonês
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Os que previam o fim da hegemonia americana a partir das sucessivas


crises do padrão dólar da década de 70 estavam equivocados. Fiz essa
afirmação em vários artigos desde 1984 ("Revista da Cepal") e quero
voltar ao tema, lembrando que o debilitamento do poder financeiro e
industrial da potência dominante se enfrentava, àquela altura, com a
crescente importância da economia japonesa.
O Japão expandiu-se mais rapidamente do que todas as economias
industrializadas desde os anos 50, fez uma revolução tecnológica que
lhe permitiu acumular superávits comerciais crescentes, sobretudo
com os Estados Unidos, e tornou-se provedor de financiamentos de
longo prazo, possibilitando ao governo americano ampliar sem susto
seu endividamento interno e externo.
Como bem assinalou, em trabalho recente, meu colega da UFRJ e
parceiro em trabalhos sobre o Japão Ernani Teixeira Torres Filho, "a
perspectiva de um desafio japonês foi, no entanto, afastada no início
da década de 90. A despeito da continuidade dos déficits comerciais e
fiscais dos EUA, o Japão deixou de ser visto como a grande ameaça
potencial aos interesses e à liderança norte-americana no mundo.
Desde o Acordo de Plaza de 1985, as sucessivas valorizações do iene,
a relocalização das indústrias nipônicas no exterior e, em particular, o
surto especulativo verificado recentemente nos mercados de ativos de
Tóquio levaram o Japão a uma crise econômica e política sem
precedentes".
Essa crise configurou o enfraquecimento de uma potência industrial
que foi considerada, ao longo de todo pós-guerra, um paradigma de
resposta nacional tanto ao desafio do atraso econômico (anos 50 e 60)
quanto aos choques externos -elevação do preço do petróleo (1973 e
1979), aumento dos juros norte-americanos (1980) e valorização do
iene (1985).
Para que se possam identificar os fatores que levaram à atual crise da
economia japonesa é necessário, antes de mais nada, voltar ao início
da década de 80 e analisar as estratégias de ajuste adotadas pelo
governo, pelas empresas e pelos bancos nipônicos, frente às pressões
e aos desafios impostos pelo cenário internacional, marcado pela
"Reaganomics".
Desde a política de Reagan o Japão foi o principal beneficiário direto
dos déficits comerciais norte-americanos. Entre 1982 e 1986, o
desequilíbrio do comércio bilateral aumentou de US$ 18 bilhões para
US$ 51 bilhões, mantendo-se posteriormente em torno de US$ 45,5
bilhões. A acumulação desses megasuperávits fez com que o Japão se
tornasse já em 1985 o principal credor líquido do mundo, posição
tradicionalmente ocupada pelos Estados Unidos.
Diante desse quadro os Estados Unidos passaram a pressionar o Japão
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/12/15/dinheiro/16.html 1/3
05/07/2022 18:15 Folha de S.Paulo - O desafio japonês - 15/12/1996

para que este flexibilizasse os limites às importações de bens e


serviços estrangeiros e liberalizasse seu mercado financeiro. A
pressão pela "liberalização" veio acompanhada da iniciativa do
governo americano, apoiada pelas principais economias capitalistas
desenvolvidas, de promover uma desvalorização gradual da moeda
norte-americana.
Por meio dos Acordos de Plaza de 1985, a expectativa era de que o
iene deveria valorizar-se de 240 unidades por dólar para 160-170
unidades. Na realidade, a partir de 1987 o iene ficou em torno de 130,
oscilando até menos de 100 por dólar na recente crise financeira. Essa
sobrevalorização brutal reduziu consideravelmente a taxa de
crescimento da economia japonesa e as margens de lucro dos setores
exportadores. Para compensar essas perdas, o governo japonês
decidiu ampliar a demanda interna adotando uma política monetária
expansionista, que reduziu a taxa de redesconto de 5% para 2,5% ao
ano.
A queda dos juros mal conseguiu aquecer a economia, mas permitiu
que as empresas japonesas obtivessem grandes lucros em operações
de arbitragem, já que os juros dos Fundos Federais norte-americanos
flutuaram entre 5,5% e 7,5%. Atualmente estima-se que os
investidores japoneses detenham 30% dos "treasuries" em circulação
no mercado.
As empresas produtivas japonesas lançaram-se com grande apetite em
operações especulativas, numa busca desenfreada por lucros não-
operacionais. Essa fome especulativa, acompanhada da liberalização
do mercado financeiro, permitiu que as companhias nipônicas
fizessem da gerência financeira uma atividade mais lucrativa do que
os investimentos em bens reais. A Sony obtinha com operações de
arbitragem financeira 56% de seus lucros antes dos impostos. A
Toyota passou a ser conhecida como Banco Toyota e o mesmo
aconteceu com outros grandes grupos empresariais, como a
Matsushita, a Nissan e a Sharp.
Essa foi a gênese da bolha especulativa que jogou a economia
japonesa numa profunda crise nos anos 90 e que tem como um de
seus sinais mais evidentes uma enorme massa de créditos
improdutivos sujeitos à reestruturação. Créditos esses que chegavam
a US$ 400 bilhões em março de 1995, de acordo com o Ministério
das Finanças japonês, mas que fontes não oficiais admitiam alcançar
o dobro, ou seja, perto de US$ 800 bilhões.
A crise japonesa não tem, porém, apenas uma face financeira. Sua
face real é igualmente importante. Para consolidar sua conquista dos
mercados externos e aplicar seus excedentes de caixa, as empresas
japonesas passaram a um movimento de internacionalização crescente
a partir dos anos 80. Bancos, "tradings companies" e empresas
industriais se tornaram globalizadas e isso acabou levando a uma
deterioração dos laços de solidariedade vertical e horizontal que
caracterizavam a sociedade japonesa, tornando mais difícil a
coordenação de decisões empresariais e estratégicas e a distribuição
equilibrada dos frutos do progresso técnico.
Todo o esquema de contratos estáveis de longo prazo e de cooperação
técnica que ligavam grandes e pequenas empresas ficou em xeque e,
finalmente, a famosa estabilidade no emprego ficou sob ameaça.
Assim começaram a ser erodidas as próprias bases internas de
sustentação do paradigma japonês.
No jogo financeiro global os japoneses desempenham um papel de
auxiliar de primeira linha para a continuação do financiamento
externo norte-americano. Mais recentemente decidiram apoiar a
prática imperial de adotar as teses do liberalismo comercial e da
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/12/15/dinheiro/16.html 2/3
05/07/2022 18:15 Folha de S.Paulo - O desafio japonês - 15/12/1996

desregulamentação do investimento direto "para os outros", em


particular seus sócios menores, os "ex-tigres asiáticos".
Na atual reunião de Cingapura o comando do jogo ficou totalmente
por conta dos Estados Unidos. O Japão parece ter adotado a velha
tática dos que, ao não poderem lutar com um parceiro mais forte, se
associam. Os demais membros da reunião são apenas parceiros
menores ou comparsas claramente submetidos, a quem cabe apenas o
direito de espernear.

Texto Anterior: Entenda as mudanças no IR da pessoa física


Próximo Texto: Mercosul vai adiar acordo com a Bolívia
Índice

Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/12/15/dinheiro/16.html 3/3

Você também pode gostar